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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.3 Fortaleza set./dez. 2021

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i3.e9305 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Do liame entre imaginário e violência: desenlaces no corpo

 

On the link between Imaginary and Violence: Dissolutions in the Body

 

De la unión entre Imaginario y Violencia: Desenlaces en el Cuerpo

 

Le lien entre Imaginaire et Violence : Dénouements du Corps

 

 

Mariana Salles KehlI; Maria Isabel FortesII

IPsicanalista. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio (CNPq) | Humboldt-Universität zu Berlin (DAAD); Visiting Research Fellow na Brown University
IIPsicanalista. Professora Adjunta II do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio; Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Considerando-se a dissolução dos valores tradicionais modernos e as particularidades das configurações subjetivas engendradas na Contemporaneidade, este artigo propõe uma reflexão teórica a partir da reassunção do percurso psicanalítico lacaniano no que se refere à formulação do registro imaginário, destacando seu liame com a violência e seus desdobramentos no corpo. Para tanto, percorre-se o caráter essencial do estádio do espelho na formação do Eu, a conflituosa e intrínseca relação com o outro, as distinções teóricas entre agressividade e violência, os fundamentos do corpo com o qual a Psicanálise opera e sua compreensão como desenlace sintomático favorecido pelo ato. Por fim, delineiam-se os recursos que a clínica psicanalítica pode oferecer frente a tal conjuntura.

Palavras-chave: imaginário; violência; corpo; sintoma; contemporaneidade.


ABSTRACT

Considering the dissolution of modern traditional values and the particularities of the subjective configurations engendered in Contemporary, this article proposes a theoretical reflection based on the resumption of the Lacanian psychoanalytic path concerning the formulation of the imaginary register, highlighting its link with violence and its consequences in the body. Therefore, the essential character of the mirror stage in the formation of the Self is covered, the conflicting and intrinsic relationship with the other, the theoretical distinctions between aggression and violence, the foundations of the body with which Psychoanalysis operates, and its understanding as an outcome symptomatic favored by the act. Finally, the resources that the psychoanalytic clinic can offer in this situation are outlined.

Keywords: imaginary; violence; body; symptom; contemporaneity.


RESUMEN

Considerando la disolución de los valores tradicionales modernos y las particularidades de las configuraciones subjetivas engendradas en la Contemporaneidad, este trabajo propone una reflexión teórica a partir de la reanudación del recurrido psicoanalítico lacaniano en lo que se refiere a la creación del registro imaginario, enfocando su unión con la violencia y sus despliegues en el cuerpo. Para tanto, se recorre el carácter esencial del estadio del espejo en la formación del Yo, la conflictiva e intrínseca relación con el otro, las distinciones teóricas entre agresividad y violencia, los fundamentos del cuerpo con lo cual el psicoanálisis actúa y su comprensión como desenlace sintomático favorece por el acto. Por fin, se delinean los recursos que la clínica psicoanalítica puede ofrecer frente a tal situación.

Palabras clave: imaginario; violencia; cuerpo; síntoma; contemporaneidad.


RÉSUMÉ

En considérant la dissolution des valeurs traditionnelles modernes et, aussi, les particularités des configurations subjectives engendrées à l'époque contemporaine, cet article propose une réflexion théorique fondée sur la reprise du chemin psychanalytique lacanien avec la formulation de l'enregistrement imaginaire. En faisant cela, on met en évidence son lien avec la violence et ses dénouements du corps. Pour cela, ils sont abordés : 1) le caractère essentiel de l'étape miroir dans la formation du Soi, 2) la relation conflictuelle et intrinsèque à l'autre, 3) les distinctions théoriques entre agression et violence et 4) les fondements du corps avec lesquels opère la psychanalyse et sa compréhension comme dénouement symptomatique favorisée par l'acte. Finalement, on a défini les recours lesquels la clinique psychanalytique peut offrir devant cet phénomène.

Mots-clés: imaginaire; violence; corps; symptôme; contemporanéité.


 

 

A Psicanálise tem se ocupado com a temática da violência desde sua fundação e permanece sendo convocada a se posicionar perante essa questão e diante de outros agentes promotores de mal-estar na Pós-Modernidade. Entretanto, para além da constatação concreta, a disciplina oferece também a possibilidade de uma compreensão que ultrapassa a descrição objetiva de seus modos de manifestação, dedicando-se particularmente à investigação dos fenômenos em suas premissas significantes e seus efeitos na subjetividade.

No contexto atual da clínica psicanalítica, a gradativa incidência e elevada exacerbação das patologias do ato, circunscritas por manifestações sintomáticas tipificadas pela reiterada presença de descargas violentas e atuações, constitui-se como quadro de notável expressividade (Kehl, 2018; Marcos & Derzi, 2013). Haja vista os insólitos contornos derivados da dissolução dos valores tradicionais modernos e as particularidades das novas configurações subjetivas engendradas na Contemporaneidade, este artigo propõe a reassunção do percurso psicanalítico lacaniano no que se refere à formulação do registro imaginário em seu liame com a violência e seus desdobramentos no corpo. Para tanto, recupera-se o caráter essencial do estádio do espelho na formação do Eu, a intrínseca e conflituosa relação com o outro, as distinções teóricas entre agressividade e violência, os fundamentos do corpo a partir dos quais a Psicanálise opera e propomos sua compreensão em 4 tempos - relacionados aos complexos e suas imagos - como desenlace sintomático da violência e de uma política orientada ao imperativo do gozo (Lacan, 2008). Por fim, delineiam-se os recursos que a clínica psicanalítica pode oferecer frente a tal conjuntura.

 

O Imaginário e seus Fundamentos Teóricos

Jacques Lacan, interessado no fenômeno do Narcisismo em seu prisma relacional, dedica-se diligentemente ao desenvolvimento de suas especificidades para além das contribuições de Freud, apoiando-se na experiência da criança frente ao espelho. Sua investigação, alicerçada em uma análise anterior a respeito dos complexos familiares e fundamentada de modo singular em teóricos procedentes de outros campos do saber, produz subsídios para a formulação de uma teoria psicanalítico-lacaniana do imaginário, registro que seria contemplado posteriormente em seu entrelaçamento topológico na forma de nó borromeano com as instâncias do real e simbólico.

Os fundamentos do imaginário, por sua vez, podem ser localizados de antemão já em 1936 como desdobramentos correlatos da expressão "estádio do espelho". De acordo com Roudinesco e Plon (1998, pp. 194-195), Lacan faz uso dessa terminologia pela primeira vez em uma comunicação realizada na Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), retomando-a no mesmo ano no Congresso da International Psychoanalytical Association (IPA), em Marienbad. Ao termo é conferido maior relevância, sendo articulado às principais concepções teóricas do autor nos anos seguintes, adquirindo exponencialmente aspectos mais particulares e conformações originais, sobretudo em sua confluência com grande parte dos argumentos associados ao complexo de intrusão e à noção de imago, ambos explorados em seu trabalho Os complexos familiares na formação do indivíduo, de 1938. Por fim, 13 anos após suas primeiras alusões, o estádio do espelho é consubstanciado detalhadamente em uma comunicação realizada em ulterior Congresso também da IPA, sediado em Zurique.

Essa última exposição se encontra consignada sob a forma do texto intitulado O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica (1998a) e Lacan desenvolve os determinismos da prematuração do nascimento (e o decorrente déficit fisiológico característico do infans), da assunção de uma imagem própria (âmago do conhecimento paranoico) - apesar das limitações do corpo - e da dialética social na dinâmica da constituição do sujeito. O autor demonstra a necessidade de se "reconhecer, na captação espacial manifestada pelo estádio do espelho, o efeito, no homem, anterior até mesmo a essa dialética, de uma insuficiência orgânica de sua realidade natural" (Lacan, 1998a, pp. 99-100), sintetizando os efeitos de uma antecipação psíquica em detrimento da experiência prática e veraz de um corpo fragmentado. Tal antecipação é crucial para a compreensão de todo o processo, uma vez que é a partir dela que se assenta a unificação de uma imagem inicialmente despedaçada, que só tem como se sustentar de modo especular. Nesse mesmo escrito, podem ser verificadas algumas modificações cruciais no que diz respeito às raízes do imaginário no seu entrelaçamento com a formulação do estádio do espelho. Assim, observa-se naquele momento uma virada importante nas conceituações do Eu, da imagem e do papel da imago.

No texto de 1938, a imago, já compreendida como matriz de uma primeira teoria do imaginário na ligação entre o Eu e o outro, se dava de forma associada aos complexos (desmame, intrusão e Édipo) e era condicionada em sua face intrusiva ao semelhante (irmão), cuja presença se dava no interior do dispositivo familiar. Na exposição de 1949, a figura do ente fraterno tem sua categorização extrapolada e adquire também a configuração de "um outro comum", elemento insigne no processo de instituição do Eu por imagens e da aquisição de um corpo próprio através da identificação com a imago. Articulada à essa nova chave de leitura, se, em 1938, Lacan centrava sua abordagem em termos de uma etapa da história individual do desenvolvimento infantil, em 1949, como verifica Simanke (1997), o autor desenvolve as implicações do espelho em termos de uma organização primordial e comum, um modelo que irá operar sincronicamente como um clichê simbólico na vida futura do sujeito a partir da configuração de um "eu-ideal", efeito de uma determinação impositiva derivada das significações de "fora". Tal clichê atuaria como um padrão, um "lugar-comum" na condução da vida erótica, um engessamento dos modos de ser que seria repetido e reimpresso nas relações do sujeito com o Outro, enfatizando os conflitos da dualidade/especularidade e alteridade.

De forma sintética, pode-se dizer, então, que o estádio do espelho em seu liame com o imaginário representa um "momento da primeira relação consigo mesmo que é irremediavelmente, e para sempre, uma relação com outro [...] não é um estádio a ser superado, mas uma configuração insuperável" (Ogilvie, 1991, p. 112). Tais aspectos serão elucidados e pormenorizados adiante.

 

O Estádio do Espelho: Propedêutica da Matriz do Imaginário

O estádio do espelho, considerado a matriz do registro imaginário, constitui-se como elemento crucial na teoria psicanalítica. Em suas formulações iniciais, Lacan utiliza o termo como um adjetivo correspondente ao caráter dual e consequentemente conflituoso da relação com o semelhante (e também consigo mesmo), modificando-o morfologicamente (elevando à categoria de substantivo) apenas em 1953, quando o articula à sua tópica, indicando seus atributos de ilusão, engano, sugestão e alienação da subjetividade.

Lacan parte das observações a respeito do notório interesse da criança por sua imagem refletida no espelho, assim como de elementos paralelos envolvidos nessa experiência (descritos por teóricos freudianos e pós-freudianos e autores do campo da Psicologia Experimental, Psicologia Comparada e de outras áreas do conhecimento), em direção ao estabelecimento de uma ótica própria. Como mencionado previamente, trata-se, na interpretação lacaniana, de um momento no qual, através de um processo de alienação, a criança se confunde com a imagem refletida especularmente e se apropria antecipadamente de uma identidade corporal. Essa experiência é qualificada como ponto fundamental na constituição do Eu1 e pressupõe um trajeto rumo à "maturação" da subjetividade.

Lacan, com o intuito de respaldar suas formulações apresentadas no estádio do espelho como "devir imaginário do eu (moi)" (Gómez, 2012, p. 5), apropria-se de elementos da Fenomenologia de Hegel, Husserl, Heidegger e Kojève e da Fenomenologia Existencial de Sartre e Merleau-Ponty. Assim o faz seja criticando o caráter ilusório sartreano de uma suposta consciência autônoma, seja aderindo parcialmente aos construtos teóricos devolvidos ou realizando torções nas ideias oriundas dos autores de referência. Gómez (2012) assevera a importância das ideias de Umwelt e Innenwelt, do biológo alemão Jakob von Uexküll, para o esboço lacaniano do imaginário. A premissa dessa teoria é a de que o mundo exterior refletiria o meio interior, isto é, o mundo externo é fabricado e é resultado da constituição/projeção do ser, designando uma relação de dependência entre ambos.

As ideias provenientes do médico francês Henri Wallon (1931/1963) e suas contribuições à Psicologia Infantil demonstram-se particularmente profícuas à tese lacaniana, uma vez que a experiência do estádio do espelho tem origem, propriamente, em um estudo do autor. Lacan, por sua vez, faz uma releitura desse trabalho e retira os predicados pleiteados por Wallon no que se refere a uma suposta maturação psicológica, vivência efetiva do corpo e progresso do conhecimento. Não se trata de um progresso fisiológico para Lacan, mas sim de uma progressão lógica precoce em relação ao organismo e, portanto, uma organização de ordem psíquica: uma identificação antecipada com o reflexo de uma imagem de um corpo unificado - corpo não coordenado plenamente e de vivência ainda fragmentada, sem domínio - significa a construção de uma unidade ilusória, uma vez que esta não encontra paralelismo nas experiências proprioceptivas.

A teoria da Gestalt, desenvolvida por Wertheimer, Köhler e Koffka, constitui-se como outra referência importante ao pensamento lacaniano. Seus axiomas assentados em fenômenos da percepção visual possibilitam asseverar que "antes que haja unidade orgânica se busca globalidade corporal" (Gómez, 2012, p. 11). Tal assertiva franqueia a viabilidade de uma criança depreender uma imagem especular total de si, aplacando a angústia de uma experiência de fragmentação através de uma constituição alienada do Eu. Em conjunto com as demais referências supracitadas, essas concepções auxiliam Lacan na elucidação das operações psíquicas que promovem a assunção de uma imagem de corpo próprio, transformando e possibilitando a emergência de um sujeito.

Com as noções promovidas pelo campo da Etologia, Lacan se vale dos aspectos biológicos animais vinculados à imagem e também do fenômeno do mimetismo, analisado pelo intelectual francês Roger Caillois (1986). Diferentemente de Caillois, o mimetismo não é compreendido como um recurso meramente utilitário de defesa e sobrevivência (designado por Lacan como identificação homeomórfica - concernente à imagem do semelhante), mas é considerado como modo de cumprimento de uma função estética ligada ao ambiente/espaço (identificação heteromórfica - que não se relaciona com a imagem de "um outro", mas com a perda da fronteira entre o Eu e o meio exterior, dinâmica que estaria em operação nos quadros de esquizofrenia, por exemplo). Lacan (1998a) sustenta a proposição (em sua correlação no ser humano) de um valor estrutural da imagem em suas consequências na formação do organismo animal e de sua faculdade na organização da relação com o outro, isto é, um argumento que reforça a necessidade de apreensão da imagem do outro como condicionante do processo de maturação. Assim, o autor traz e traduz para a Psicanálise os efeitos e impactos da imagem no psiquismo - imagem do outro e de si em seu vínculo potencialmente conflituoso, porém essencial.

No que se refere à imagem do outro, esta é basilar para a constituição de si no estádio do espelho. Devido ao nascimento considerado precoce, falta à criança coordenação motora e domínio fisiológico nos primeiros meses de vida, predominando um mal-estar que encontra apoio na dependência materna para ser mitigado. Esse incômodo é, então, parcialmente superado com o reconhecimento pelo infans de sua imagem no espelho, daí a cena de grande satisfação - Aha-Erlebnis (Lacan, 1998a, p. 96) - que representa a aquisição de um domínio psíquico da imagem do corpo e de um sentimento de Eu não correlato à sua realidade orgânica, mas outorgante de um eu-ideal que servirá de modelo dotado de rigidez para as identificações secundárias.

De modo concomitante ao espelho, o autor aponta a particular curiosidade e fascínio da criança pela imagem do outro, em especial pelo rosto da figura que oferece cuidado - o que irá demonstrar que a imagem do outro antecede a sua própria. Por conseguinte, pode-se afirmar que é a configuração de um corpo articulado à identificação com uma imagem (não necessariamente de si, mas à imagem da forma humana), que é primeiramente a de "um outro" (cultivada por sua presença), que produz um sujeito - identificado com algo que vem de fora. Como afirma Lacan: "É no outro que o sujeito se identifica e até se experimenta a princípio." (Lacan, 1998b, p. 182).

A criança se reconhece em sua própria imagem, caucionada nesse movimento pela presença e pelo olhar do outro (mãe ou substituto) que a identifica, que a reconhece simultaneamente nessa imagem. Nesse instante, porém, o Eu (Je) é como que captado por esse Eu (Moi) imaginário: de fato, o sujeito não sabe o que é, acredita ser aquele Eu (Moi) a quem se vê no espelho. Trata-se de um engodo, é claro [...]. (Roudinesco & Plon, 1998, p. 212)

A imago, palavra latina que designa imagem, dispõe-se, então, como princípio capital no desenvolvimento do registro imaginário. Segundo Lacan: "a função do estádio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade - ou como se costuma dizer, do Innenwelt com o Umwelt" (Lacan, 1998a, p. 100).

Segundo Laplanche e Pontalis (2001, pp. 234-235), o termo imago é definido como o "protótipo inconsciente de personagens que orienta seletivamente a forma como o sujeito apreende o outro; é elaborado a partir das primeiras relações intersubjetivas reais e fantasísticas com o meio familiar". Lacan, em seu texto sobre Os Complexos Familiares (2001), sublinha a configuração das imagos enquanto objetos psíquicos (tomando o seio materno como paradigma), ressaltando sua importância analítica, uma vez que estas têm uma função na instituição do próprio sujeito. Em Formulações sobre a causalidade psíquica, Lacan (1998b) esquadrinha os efeitos psíquicos do imaginário (condicionado pelas imagos):

A história do sujeito desenvolve-se numa série mais ou menos típica de identificações ideais que representam os mais puros dentre os fenômenos psíquicos por eles revelarem essencialmente a função da imago. E não concebemos o Eu senão como um sistema central dessas formações, sistema que é preciso compreender, à semelhança delas, na estrutura imaginária e em seu valor libidinal. (Lacan, 1998b, p. 179)

As imagos primitivas, compostas consequentemente como resultado das identificações primárias que ocorrem no estádio do espelho estão, portanto, intimamente vinculadas às transformações nas relações do indivíduo com seus semelhantes, estabelecendo um vínculo particular com a realidade. Dessa forma, Lacan eleva a imago naquele momento de seu ensino à condição de objeto privilegiado da Psicanálise, uma vez que esta possuiria efeitos formativos no Eu, condicionaria o sujeito a determinadas disposições imaginárias e operaria enquanto realidade psíquica. Com o desenvolvimento dos outros registros, a imago é destituída desse posto, que passa a ser ocupado pelo Simbólico e o campo da linguagem e posteriormente pela potência do real.

 

Os Outros no Espelho: Sobre Identificação e Agressividade em Psicanálise

Como demonstrado anteriormente, Lacan (1998a) afirma que é a partir do semelhante que o Eu se constitui. O reconhecimento de si na imagem especular é consequência de um processo denominado identificação. De acordo com Roudinesco e Plon (1998), esse termo é utilizado para designar "o processo central pelo qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando, em momentos-chave de sua evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam" (p. 363). A identificação (e sua contínua dialética) é estabelecida por Lacan não apenas como pressuposto do estádio do espelho, mas também destino em sua saída.

Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial [...], a dialética que desde então liga o (eu) a situações socialmente elaboradas. É esse momento que decisivamente faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo desejo do outro, constituir seus objetos numa equivalência abstrata pela concorrência de outrem. (Lacan, 1998a, p. 100).

Assim, pode-se dizer que a organização do Eu, do outro e da realidade é realizada de modo simultâneo e marcada por seu aspecto alienante e paranoico, resultante de três vetores articulados: narcisismo, imaginário e agressividade, como veremos a seguir.

Ancorado nos estudos da psicóloga alemã Charlotte Bühler sobre a infância e a noção de transitivismo, momento vivenciado entre o Eu e o semelhante em que "cada parceiro confunde a parte do outro com a sua e se identifica com ele" (Lacan, 2001, p. 44), Lacan desenvolve a inerente noção de agressividade referida ao vínculo condicionado narcisicamente ao outro - fenômeno situado no registro do imaginário que denota a ambivalência estrutural do sujeito e a fusão entre Eu e outro, explicitando que a prática do sentimento de si passa pela assunção da imagem do outro.

A agressividade, portanto, "se manifesta numa experiência que é subjetiva por sua própria constituição" (Lacan, 1998c, p. 105) e é engendrada como "a tendência correlativa a um modo de identificação que chamamos narcísico, e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico do seu mundo" (Lacan, 1998c, p. 110). Sendo assim, a agressividade (e sua ambivalência erótica) constitui-se como reflexo da identificação, uma vez que identificar-se com outrem pressupõe uma apropriação e assenhoramento de seu lugar e a aquisição de alguns de seus atributos, produzindo necessariamente rivalidade (já que não se sabe o que pertence ao outro e o que pertence a si mesmo) na concorrência por um mesmo objeto. O desejo é concebido, então, a partir daquilo que o outro deseja, isto é, o desejo por algo é despertado à medida que esse algo já é desejado (ou supostamente desejado) por outro, arranjo que origina uma tríade e coloca em cena a sincronicidade de sentimentos de amor e ódio (decorrentes da identificação e da agressividade) pelo outro e, por conseguinte, por si mesmo.

Tal processo, descrito sinteticamente, percorre, dessa forma, a dinâmica já examinada: a captura narcísica da imagem especular na imagem do outro. Neste ponto vem à tona a vivência de uma intrusão - Complexo de Intrusão - quando a imagem do semelhante com o qual se identifica é vivenciada de maneira intrusiva na relação de objeto. O semelhante, enquanto terceiro na relação, promove a emergência do ciúme, sentimento que se revela como "arquétipo dos sentimentos sociais" (Lacan, 2001, p. 50).

É a partir do ciúme que se desenvolve a agressividade primordial dirigida ao intruso, agressividade de ordem imaginária relacionada à constituição do Eu e que marcará perenemente a relação com o semelhante, de modo que não poderá ser integralmente superada. O narcisismo presente no complexo de intrusão encontra outra possibilidade de destino na entrada em um novo complexo, de Édipo, no qual a rivalidade ainda é mantida, porém com a particularidade da constituição de um objeto de desejo propriamente e a formação de uma nova triangulação na relação dual estabelecida com a mãe e um terceiro, o pai. Aqui, vislumbra-se a oportunidade de desvinculação do sufocamento procedente da relação especular, ainda que sua viabilidade seja sempre parcial.

 

Agressividade e Violência: Distinções Teóricas

Ao ensino de Jacques Lacan são atribuídos três momentos2. A ênfase dada ao eixo "eu e outro" a partir da instância do imaginário (em sua articulação com a pulsão) em seu primeiro ensino é fundamental para o desenvolvimento do arcabouço teórico do autor que, após assumir como aspecto central a instância simbólica - emblemática em sua obra - culmina em seu último ensino, no qual o real e o gozo em si, sem endereçamento ao Outro, assumem o protagonismo (Barroso & Ferrari, 2014). Todavia, ainda que uma apreciação que ofereça destaque à via do imaginário possa ser considerada insuficiente para uma análise e investigação acuradas, não se pode relegar a importância do estádio do espelho, seus efeitos e seu potencial interpretativo na abordagem de fenômenos e temáticas vigentes na Contemporaneidade, como o recrudescimento da violência em suas múltiplas faces, por exemplo. Opta-se, assim, por uma circunscrição teórico-metodológica que favoreça o registro Imaginário como chave de leitura do fenômeno da violência, sem deixar de levar em conta, entretanto, com clareza e discernimento, que este não pode ser reduzido àquele. O que se sugere, paralelamente, é uma possível regressão e ênfase no caráter e na instância do imaginário na atualidade, mas não em sua exclusividade. Não há, portanto, desconsideração à teoria psicanalítica já estabelecida, mas, trata-se de um esforço de compreensão e tentativa de produzir algum avanço, sempre se subordinando não apenas à teoria, mas também à clínica contemporânea.

Antes de nos dedicarmos propriamente às dissemelhanças elementares existentes entre agressividade e violência, é importante mencionar a direção das propostas teóricas desenvolvidas por Freud e Lacan no que se refere à agressividade. Para Lacan, a agressividade é um elemento apreendido pelo psiquismo em sua própria constituição, de modo que esta se configura a partir do complexo fraterno, de intrusão. Já em Freud, em alguns de seus textos de caráter eminentemente sociológico, como Mal-estar na Civilização (1930/1996g) e Por que a guerra? (1933/1996h), a agressividade é estabelecida como aspecto vinculado ao masoquismo erógeno e à presença da pulsão de morte nos laços sociais. Assim, Lacan propõe uma agressividade que se constitui pelas imagos, diferentemente de uma agressividade freudiana promovida pela pulsão de morte.

Delimitar as idiossincrasias do estatuto da agressividade e da violência para a Psicanálise pressupõe que examinemos as origens de suas formulações em Freud. Segundo o autor, a agressividade é um aspecto imanente, atributo intrínseco ao ser humano. A civilização não é apenas instituída por esta (em forma de lei), mas, ao mesmo tempo, a agressividade sobrevém como recurso para sua regulamentação: "[...] a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto [...]. Essa 'frustração cultural' domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos" (Freud, 1930/1996g, p. 105).

Assim, a cultura, do ponto de vista freudiano, apreendida a partir das coordenadas discursivas de sua época, teria como função restringir aquilo que da natureza do homem poderia desintegrar a própria humanidade: sua inclinação à agressividade (desejo de agressão e destruição quando voltada ao exterior), como descrito em sua carta destinada a Einstein (1933/1996h). A cultura, nessa perspectiva, atuaria como entrave de ordem social, fundamentada no poder coercitivo da força de lei cuja origem pode ser remontada ao mito de Totem e Tabu (1913/1996b). Afetos como ódio e hostilidade se dariam vinculados à agressividade. Além disso, a crueldade é categorizada como franca expressão de sua prática dada no registro da ação.

A manifestação da agressividade pode ser entendida, assim, convenientemente, como ato de violência intrinsecamente associado à sua natureza pulsional e traço de intencionalidade (ainda que esta possa se dar de modo inconsciente). Aqui, é importante ressaltar que a violência não adquire status de um conceito para a teoria psicanalítica freudiana nem para a lacaniana, mas é entendida a partir de seu elo com a agressividade. Além disso, a partir da segunda tópica de Freud, estabelecida em Além do Princípio do Prazer (1920/1996f), a proposição de um novo dualismo pulsional permite, então, que a violência seja compreendida metapsicologicamente através da pulsão de morte e de seus destinos psíquicos.

Considerando-se as características concernentes à agressividade desenvolvidas por Lacan (1998c), sua inovação ao retomar os caminhos trilhados por Freud, no que se refere à violência, consiste na chave de leitura dos fenômenos mediada pelo destaque atribuído às instâncias de sua tópica. Lacan, em 1948, estabelece os princípios da agressividade enfatizando o registro imaginário, a estrutura do eu e a identificação narcísica. A agressividade "é articulada a uma intenção do sujeito e ainda que o ato seja restrito (sem que haja violência precisamente), sua expressão e eficácia podem se dar na forma de imagens" (Kehl & Fortes, 2019, p. 527).

O autor avança e define a violência como a agressividade em ato, passagem ao ato, recurso que pode entrar em cena quando os mecanismos da linguagem falham, produzindo um nonsense frente àquilo que escapa ao simbólico e recai no real (aludido na negativa como dimensão do impossível e do sem limite; daquilo que não se pode simbolizar e, igualmente, escapa ao imaginário). Nesse sentido, Lacan afirma no Seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1999) que a violência é:

[...] o que há de essencial na agressão, pelo menos no plano humano. Não é a fala, é até exatamente o contrário. O que pode produzir-se numa relação inter-humana são a violência ou a fala. Se a violência distingue-se em sua essência da fala, pode colocar-se a questão de saber em que medida a violência como tal - para distingui-la do uso que fazemos do termo agressividade - pode ser recalcada, uma vez que postulamos como princípio que só pode ser recalcado, em princípio, aquilo que revela ter ingressado na estrutura da fala, isto é, a uma articulação significante. Se o que é da ordem da agressividade chega a ser simbolizado e captado no mecanismo daquilo que é recalque, inconsciência, daquilo que é analisável, e até, de maneira geral, daquilo que é interpretável, é por intermédio do assassinato do semelhante que está latente na relação imaginária. (Lacan, 1999, p. 471)

Enquanto a agressividade pode ser circunscrita, significada e interpretada, a violência é instaurada quando resta apenas o ato de agredir em substituição às palavras que faltam. O que está em questão é o esvaziamento de recursos e da falha no apelo ao simbólico do sujeito/agente da ação.

Trata-se, portanto, em última instância, de uma satisfação pulsional sem mediação simbólica, efeito direto ou indireto do registro imaginário. Destaca-se, aqui, o aspecto eminentemente real da violência, entretanto, constituído em decorrência do caráter imaginário da agressividade, algo que no último ensino de Lacan, poderia ser compreendido como uma ação sem objeto, gozo Outro, aquele que escapa ao laço social. Aqui, a linguagem deixa de ser fato substancial e "o corpo vivo é marcado irremediavelmente pela incidência do gozo como traumatismo, que promove o que Lacan vai chamar de acontecimento de corpo" (Barroso & Ferrari, 2014, p. 251).

 

A Violência como Sintoma na Contemporaneidade

O fenômeno da violência e suas diversas manifestações se apresentam como uma constante na história da humanidade. É até mesmo através de um ato de violência, a saber, o parricídio do pai da horda (Freud, 1933/1996h), que se instaura a Cultura. Entretanto, a violência tem adquirido contornos muito particulares na atualidade, corolário da composição de novas formas de subjetividade condicionadas à derrocada da moral civilizada e suas exigências de renúncia pulsional, alicerçada numa ética pós-moralista sem sacrifício (Lipovetsky, 2005) e a um tipo de satisfação sui generis. Satisfação que pode ser associada ao retorno da ênfase no imaginário com efeitos na ordem do real, isto é, na tentativa de sustentação de relações imaginárias (não condicionadas à falta/castração), que recaem em um encontro com o real do gozo numa "satisfação pulsional independente do prazer" (Bastos, 2004, p. 56). Segundo Costa (1984), hoje verificamos que a violência "invadiu todas as áreas da vida de relação do indivíduo: relação com o mundo das coisas, com o mundo das pessoas, com seu corpo e sua mente" (p.9). Baseado nesse viés, é possível compreender, portanto, a violência como um entrecruzamento entre os registros imaginário e real com o intuito de se pensar numa especificidade da violência que temos testemunhado na Contemporaneidade: descarga direta, com pouca mediação ou possível atenuação pelo simbólico.

Diversos autores dedicam-se a esta temática e se utilizam de uma multiplicidade de termos para referirem-se aos paradigmas culturais vigentes que operam como índice de subjetividades marcadas pela primazia do gozo sobre o desejo e a crescente supressão de limites. O próprio termo "limite" e seus possíveis desdobramentos têm sido objeto de estudo bem presente nas pesquisas psicanalíticas.

Miller e Laurent (2005), por exemplo, caracterizam a Contemporaneidade pela depleção do Outro, ou seja, pelo declínio da lei-simbólica que tem como representante a metáfora paterna, "Nome-do-Pai", conceito forjado por Lacan. Os desdobramentos políticos dessa afirmativa são muitos: estabelece-se uma cultura hedonista, individualista, marcada pela queda dos ideais e pelo discurso capitalista em sua associação com o discurso da ciência, produzindo um esfacelamento dos laços sociais - o gozo torna-se norma, e por isso, mandatório (Lacan, 2008), promovendo a propagação das patologias do ato - delineadas frequentemente por ataques à imagem corporal - e suscitando a violência como resposta sintomática possível. Há, assim, uma "disseminação da violência enquanto modus operandi frente a qualquer ordem de conflito. Desse modo, o discurso vigente implica a difusão de uma política de atuação pela qual os atos substituem a palavra, isto é, a resposta do sujeito se dando unicamente pela via do gozo, coadunando-o" (Kehl & Fortes, 2019, pp. 525-526).

A aproximação entre violência e sintoma se dá à medida que ambos contemplam gozo. Contudo, é preciso ter em vista que a concepção de sintoma em questão, além de estar circunscrita por seu aspecto destacadamente social/coletivo, distancia-se da configuração clássica do conflito neurótico e se aproxima do gozo produzido, refletido e condensado na forma de patologias da atualidade, cujo excesso pulsional e dificuldade nos processos de simbolização são enfatizados como elementos essenciais em seu nexo com o corpo.

O mal-estar não é uma novidade da atualidade, mas sua causalidade (excesso e não renúncia pulsional) e as adversidades em seu manejo como resultado da capacidade precária de simbolização o são. Dessa forma, como defende Ritter (2017), o corpo (como registro mais eminente), a ação (em seu caráter de compulsão à repetição) e o sentimento de vazio articulado ao mutismo psíquico de nossos tempos constituem-se como destinos do mal-estar contemporâneo. Trata-se de artifícios utilizados para o escoamento de tensão (e também gozo), seja na forma de inscrição corporal através de uma descarga interna no corpo, seja através de uma descarga externa na forma de ato que pode envolver, muitas vezes, violências.

 

O Corpo como Desenlace da Violência

Considerando-se a polissemia presente no radical "atual", que faz referência à época presente e à política do ato, pode-se dizer que o corpo (em sua face privilegiada de campo sintomático pós-moderno) opera como desígnio das formações da Cultura e tem tido sua (oni)presença acentuada na atualidade.

Diferentemente da Modernidade freudiana do século XIX, quando o corpo se dava predominantemente de modo "marcado" pelo sintoma - desfecho de um "conflito psíquico e [uma] repressão consumada" (Filloux, 1988, p. 48), hoje o próprio corpo em sua íntima filiação com a violência se faz sintoma de forma prevalente - consequência do "excesso pulsional que transborda pelo corpo em razão da ausência da intermediação das formas psíquicas de simbolização" (Ritter, 2017, p. 39).

Dessa maneira, o corpo pode adquirir dimensões muito singulares em sua relação com a tripartição psíquica estrutural proposta por Lacan. O autor reconhece o real do corpo em suas funções fisiológicas sujeitas à bio-lógica: corpo somático sistematicamente subordinado ao tempo, à dor física e à morte. Trata-se igualmente de um real do corpo pulsional, subjugado à sexualidade e à invariabilidade da pulsão que se origina ali e seu constante trabalho de pressão, cujo objeto de satisfação se dá na ordem de um impossível. O real do corpo também se estabelece no ensino de Lacan, assim, pela falta, pois "no cerne da sexualidade humana figura uma falta de objeto" (Jorge, 2011, p. 139), falta nomeada por Lacan como objeto a - objeto causa do desejo e não objeto do desejo, de satisfação pulsional.

Condensado no envoltório do objeto a, está o que Lacan nomeia mais-de-gozar, um "a mais" de gozo que garante a vivificação do sujeito, antes visto como mortificado pelo simbólico. Lacan finalmente compreende que, da pulsão, uma parte é representável, transcrita como desejo, enquanto outra permanece vinculada ao real, sendo o objeto a isso que faz a ponte entre prazer e gozo [...] a trajetória do conceito de gozo no ensino de Lacan [...] culmina, em seu momento final, em uma alteração radical nos conceitos de gozo e linguagem a partir do Seminário 20 (1972-1973). Até aqui, falava-se de gozar de algo, como também de um gozo que se liga ao Outro. A partir desse ponto, o ser falante passa apenas a gozar [...] [n]uma ação sem objeto. Não é mais a linguagem o fato primordial, mas o gozo. (Barroso & Ferrari, 2014, pp. 250-251)

Assim, temos aqui, então, o gozo como construto teórico capaz de estabelecer uma íntima correspondência entre o corpo e com o tema da violência.

Podemos compreender o corpo simbólico como a incorporação do (vazio) Outro, do significante, como terceiro componente do conjunto "Corpo - Eu (constituído ideal e imaginariamente) - Linguagem (instituidora do Ideal-do-Eu)". Esse corpo, erógeno, articulado a uma rede de significações possibilitaria a inscrição do desejo e operaria como proteção contra o gozo. Lacan (2008) estabelece, assim, que são, portanto, os significantes que, ao incidirem-se sobre o corpo, determinam seu(s) modo(s) de gozo. Entretanto, é preciso igualmente considerar que a constituição do sujeito como produto da linguagem, não contempla um corpo que goza. "O gozo Outro escapa ao laço social, não cessando de não se escrever, inapreensível [...] o que enfraquece a importância dada ao lugar da palavra como comunicação." (Barroso & Ferrari, 2014, p. 251).

É concebida também a noção de um corpo imaginário fundador do Eu, como desenvolvido previamente, e articulação de maior relevância na presente argumentação. O imaginário é o que permite que o corpo simbólico se operacionalize em sua relação com o real ao propiciar seu conteúdo, ainda que ilusório, com expectativas de completude. Desse modo, o elemento capital no entendimento das dimensões do corpo é sua incompletude constitutiva: é a falta - aspecto visado e diretamente impactado na pós-modernidade - que se converte em alvo na produção capitalista. Em suas inúmeras tentativas de mascaramento do real pela imagem, é o corpo como sintoma que produz e sofre de seu próprio gozo.

Vale ressaltar, contudo, que antes mesmo de um corpo imaginário, há um corpo afetado por um gozo que não se pode eliminar e que a operação de significantização não pode dissipar. Assim, encontramos um sujeito "não fixado a um significante, tornando insuficiente toda a possibilidade de identificação oferecida pelo Outro, o que garante a manutenção da repetição que o refunda cada vez que o trajeto da pulsão em direção ao objeto se refaz" (Barroso & Ferrari, 2014, p. 251).

Em seu aspecto imaginário, o corpo como desenlace da violência pode ter seu primeiro tempo localizado formalmente na própria fundação do Eu (considerando-se a imagem especular e imagos que subsidiam o estádio do espelho), confundindo-se a violência daquilo que é reivindicado de fora como imposição, projetado como ideal na criança, com a própria emergência do sujeito. Trata-se, aqui, da violência não apenas em seu caráter imaginário e de desamparo, mas também da linguagem, uma violência primária "porque impõe ao outro uma determinação antes mesmo desse outro poder expressar suas vontades, ou até mesmo necessidades. Mas é uma determinação absolutamente imprescindível" (Marin, 2002, p. 82).

Um segundo tempo da violência pode ser reconhecido no Complexo de Intrusão. Como já mencionado, a rivalidade na disputa pelo objeto traz à tona a agressividade e seus aspectos imaginários. O ciúme como afeto predominante demonstra que a "agressividade domina a economia afetiva nesse período, mas também que ela é sempre simultaneamente sofrida e imposta, ou seja, sustentada por uma identificação com o outro que é objeto da violência" (Lacan, 2001, p. 45).

Pode-se dizer que o terceiro tempo da violência tem sua origem situada nos encontros e desencontros da destituição da perfeição narcisista de His Majesty the Baby, com o perecimento do Eu-ideal e a constituição do Ideal-do-Eu, como postula Freud em seu trabalho Sobre o Narcisismo (1914/1996c). Esse momento é marcado por uma ruptura nos laços imaginários da perfeição inabalável, produzindo o ódio como afeto prevalecente nas relações de objeto.

O ego odeia, abomina e persegue com intenção de destruir, todos os objetos que constituem uma fonte de sensação desagradável para ele, sem levar em conta que significam uma frustração quer da satisfação sexual, quer da satisfação das necessidades autopreservativas. Realmente pode-se asseverar que os verdadeiros protótipos da relação de ódio se originam não na vida sexual, mas da luta do ego para preservar-se e manter-se. (Freud, 1915/1996d, pp. 142-143)

A violência se apresenta à medida que, de modo arbitrário e opressor, a experiência prática contraria o que se constituiu no espelho. Assim "a descoberta da exterioridade, do contato com a cisão, com a separação, é violenta, mas é o que constitui o indivíduo social" (Marin, 2002, p. 83). Aqui, em outras palavras, encontramos igualmente a violência da falta e da imposição de limites (associados ao complexo de Édipo) cujo início é circunscrito simbolicamente pela lei da proibição do incesto e sua perda de gozo - nesta perspectiva, estamos diante de um modo de violência que é constituinte e estruturante da condição de surgimento do sujeito.

Por fim, propomos aqui, um quarto tempo da violência, que se daria como desdobramento dos três primeiros. Trata-se do que depreendemos na Psicanálise como um princípio que designamos como "Um onipotente", que parte, mas não se confunde com a teoria do Um de Lacan. Esse princípio adquire caráter especialmente potencializado na condição pós-moderna e envolve a negação da alteridade em sentido lato (de 'um outro' ao Outro), em uma espécie de sobreposição subjetiva que implica na obliteração do outro (em seu aspecto dual que produz a ameaça e o risco de apagamento de si mesmo) ou numa aniquilação - ainda que temporária - do próprio sujeito (no que se refere à política do ato). Qualquer resquício da relação com o outro, com o mundo exterior ou consigo mesmo que toque em elementos estruturantes do imaginário e implique em um lapso ou ausência de recursos do simbólico pode evocar a emergência do real da violência e seu gozo.

Vale notar que diversos elementos podem ser identificados e localizados como disparadores desse processo. Obviamente, embora tal construção se dê de modo absolutamente singular para cada um, uma qualidade comum é o fato de que tais elementos colocam em xeque uma série de fatores repudiados pelo sujeito, com os quais não se quer confrontar. É preciso, frente essa configuração que possui caráter de urgência, portanto, eliminar aquilo que toca no insuportável3, aquele que in(corpo)ra a figura do estranho familiar, o Unheimlich freudiano (Freud, 1919/1996e), à estranheza que pode ser encontrada no próprio sujeito.

Assim, é no corpo, na forma de violência, que o sujeito pode encontrar um suporte para o gozo e excesso pulsional que se impõem, seja sob a condição de sujeito agente ou sujeito assujeitado. O corpo adquire, nesse viés, caráter de suporte privilegiado devido à inerente relação que tem com o gozo e a pulsão, descrita por Freud como:

Um conceito situado entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo. (Freud, 1915/1996d, p. 127)

Tal vínculo íntimo no corpo também é reestabelecido por Lacan a partir de seus registros do imaginário (formador do Eu), simbólico (corpo erógeno, produtor e receptáculo de significações) e real (corpo habitado pela pulsão). Consequentemente, o corpo pode operar como destino da violência justamente porque, como indica Fernandes (2003), pode ser o "palco onde se desenrola o complexo jogo das relações entre psíquico e somático, e como personagem integrante da trama dessas relações" (pp. 33-34). Logo, quando, em seu elo com o corpo, uma das instâncias responsáveis por sua função de recurso subjetivo estruturante ou civilizatório fracassa, o resultado pode se dar na forma de eclosão da violência enquanto ato-resposta àquilo que invade e ameaça a integridade do sujeito e seu corpo falante e de imagem.

 

Considerações Finais

De acordo com a afirmativa freudiana que em Psicanálise "pesquisa e tratamento coincidem" (Freud, 1912/1996a, p. 128) e o ulterior enunciado lacaniano que "a teoria não é, como implica nosso emprego do termo, a abstração da práxis, nem sua referência geral, nem o modelo daquilo que seria sua aplicação. Em seu surgimento ela é a própria práxis" (Lacan, 1991, p. 85), e pode-se dizer que o saber produzido pela Psicanálise tem sua origem e verificação nomeadamente na experiência analítica. A Psicanálise, então, fundamenta-se não tão somente na concepção e reconhecimento da teoria já constituída a partir da prática clínica, mas também implica (re)formulações teóricas que partam dessa experiência centrada em um sujeito que é consectário dos discursos de sua época.

Desse modo, a proposta de analisarmos a violência como um fenômeno de contornos específicos na atualidade - estrutura sintomática coletiva notável - encontra respaldo para além dos princípios teóricos lacanianos sobre o imaginário. Precisamente, a prática clínica - reflexo peremptório dos novos paradigmas estabelecidos na Pós-Modernidade - constitui-se como um dispositivo singular para a verificação da violência, suas causas e efeitos na subjetividade, construção de hipóteses clínicas e aportes teóricos bem fundamentados, e a criação de estratégias particulares para a abordagem e manejo da questão.

A violência, além de integrar a cultura e conformar-se como uma marca histórica, é componente substancial e estruturante da subjetividade. Com a proposição do princípio do Um onipotente articulado ao registro do imaginário, suas matrizes e desdobramentos, e à política vigente de imperatividade de um gozo (em sua origem ineliminável), vimos que a coordenação desses elementos produz uma violência que se expressa hoje, entretanto, de modo muito singular por meio da tentativa de aniquilação da alteridade, das perspectivas frágeis de relação com o outro e do reconhecimento de singularidades. Vivemos em uma época na qual a não-violência parece se mostrar possível apenas na ausência de semelhantes, o que, em última instância, aponta para a presença de uma posição solipsista no mundo de hoje. Todavia, sabemos, como reiterado ao longo do presente artigo, que a agressividade é intrínseca ao sujeito e, portanto, não pode ser entendida apenas como reação àquilo que vem de fora, mas também é resultado de projeções (sobre outros, logo, sobre si) e da percepção da presença do outro de forma hostil e ameaçadora ao psiquismo.

A nosso ver, a função de uma análise poderia ser entendida, grosso modo, como uma intervenção sobre o real do gozo, produzindo através de seu reconhecimento, ainda algo da ordem do simbólico que se possa operar através da linguagem, levando o sujeito a questionar seu próprio sintoma e reconhecer o gozo que está nele implicado. Se a violência se manifesta como real e gozo, é possível que algo seja elaborado e transformado no nível da pulsão, como propõe Lacan (1998d, p. 172). Desse modo, a Psicanálise aposta (ainda) em sua possibilidade de modificar a relação do sujeito com seu próprio gozo, produzindo algum endereçamento do sintoma através da reinserção da palavra e fazendo da violência e da servidão à imagem um saber de si que pode ser via de transformação daquelas.

 

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Endereço para correspondência:
Mariana Salles Kehl
E-mail: marianakehl@gmail.com

Maria Isabel Fortes
E-mail: mariaisabelfortes@gmail.com

Recebido em: 14/04/2019
Revisado em: 15/05/2021
Aceito em: 24/05/2021
Publicado online: 10/01/2022

 

 

1 É importante ressaltar a diferença que será posterior e devidamente marcada no transcorrer do avanço do ensino de Lacan existente entre os termos je e moi. Trata-se da distinção entre eu (je), sujeito do inconsciente, da enunciação - articulado ao ideal do eu, e moi, sujeito do enunciado correspondente ao eu ideal, especular, instância da ordem do imaginário e alienada em si. No texto de 1949, ambas as acepções são utilizadas ainda de modo indiscriminado. Entretanto, ao considerar-se a argumentação teórica do autor, encontramos elementos que indicam a predominância do moi e je como desdobramento póstero deste filiado ao registro simbólico.
2 Como sustentado por Barroso e Ferrari (2014), as diferentes leituras de Lacan e o desenvolvimento de sua teoria não implicam discrepância nem oposição entre os distintos momentos de seu ensino.
3 Encontramos aqui o mecanismo fundamental da violência no que diz respeito ao imaginário e às identificações que o constituem. Quando o Imaginário tem seus alicerces abalados e aquilo que orienta o sujeito no mundo e lhe dá estabilidade, ainda que de forma meramente enganosa, é posto em dúvida, o ato de violência enquanto defesa eclode na tentativa do sujeito se proteger contra a perda de seus referenciais identificatórios. Ele procura, assim, proteger-se de um iminente e pressuposto aniquilamento.

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