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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.22 no.1 Fortaleza jan./abr. 2022

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v22i1.e12158 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Sujeito e objeto na clínica psicanalítica: a função do resto

 

Subject and object in the psychoanalytic clinic: the function of the rest

 

Sujeto y objeto en la clínica psicoanalítica: la función del resto

 

Sujet et objet dans la clinique psychanalytique : la fonction du repos

 

 

Eugênia Assis VictorI; Cristóvão Giovani BurgarelliII

IPsicóloga e mestra na linha Bases Históricas, Teóricas e Políticas da Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG)
IIPsicanalista. Pós-Doutorado em Ciências da Educação pela Universidade Paris 8, Vincennes-Saint-Denis. Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás (UFG)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda a função do resto na psicanálise, a partir do enlace dialético entre a teoria e a clínica. Trabalhamos a noção de que um tanto da experiência com o corpo não se inscreve de que há um resíduo, um impossível de ser dito. Esse resto, elidido e excluído, pode se materializar na forma de um corpo abjeto, expressão de um modo de ser não legítimo socialmente. Um corpo marginal que causa horror fora do ideal de normalidade, de felicidade ou da vida saudável. Tais formulações, então, surgem da escuta clínica e à clínica retornam enquanto questionamentos e inquietações sobre o fazer psicanalítico com o resto. Tomamos como objetivo, neste artigo, discutir alguns dos efeitos da formulação de Lacan (1962-63/2005) a respeito do objeto a, no fazer da psicanálise. Primeiramente, vamos recorrer à elaboração de Freud (1915/2004) a respeito da pulsão, numa articulação com o que Lacan formulou sobre o resto como causa de desejo. Em um segundo momento, trabalharemos com a especificidade e a subversão própria à clínica psicanalítica, pautada na escuta do sujeito de desejo. Para isso, recorreremos a esta outra implicação entre Lacan e Freud: a questão da clínica freudiana e a do sujeito em Lacan, passando por sua elaboração sobre a letra. Argumentamos que a análise vislumbra saídas pela via da escrita do resto, no limiar da letra, convocando à invenção de um saber-fazer com o real. Propomos, portanto, que não há clínica sem que se considere o avesso, o imundo, o marginal e o horror.

Palavras-chave: psicanálise; resto; sujeito; clínica.


ABSTRACT

This article approaches the function of the rest in psychoanalysis from the dialectical link between theory and clinic. We work on the notion that a part of the experience with the body is not inscribed, that there is a residue, an impossible to be said. This rest, elided and excluded, can materialize in the form of an abject body, an expression of a socially non-legitimate way of being. A marginal body that causes horror outside the ideal of normality, happiness, or healthy life. Such formulations, then, arise from clinical listening and return to the clinic as questions and concerns about psychoanalytic work with the rest. We aim, in this article, to discuss some of the effects of Lacan's formulation (1962-63/2005) regarding object a, in the making of psychoanalysis. First, we will resort to Freud's (1915/2004) elaboration on the drive, in articulation with what Lacan formulated about the rest as a cause of desire. In a second moment, we will work with the specificity and subversion proper to the psychoanalytic clinic, based on listening to the subject of desire. For this, we will resort to this other implication between Lacan and Freud: the question of the Freudian clinic and that of the subject in Lacan, passing through its elaboration on the letter. We argue that the analysis foresees ways of writing the rest, on the threshold of the letter, calling for the invention of know-how with the real. We propose, therefore, that there is no clinic without considering the reverse, the filthy, the marginal, and the horror.

Keywords: psychoanalysis, rest, subject, clinic.


RESUMEN

Este trabajo enfoca la función del resto en psicoanálisis, a partir del enlace dialéctico entre teoría y clínica. Trabajamos la noción de que una parte de la experiencia con el cuerpo no se inscribe de que hay un residuo, un imposible de ser dicho. Este resto, eliminado y excluido, puede materializarse en la forma de un cuerpo abyecto, expresión de un modo de ser no legítimo socialmente. Un cuerpo marginal que causa horror fuera del ideal de normalidad, de felicidad o de la vida sana. Estas formulaciones surgen, entonces, de la escucha clínica y a la clínica vuelven como cuestionamientos e inquietudes sobre el hacer psicoanalítico con el resto. Tomamos como objetivo en este trabajo discutir algunos de los efectos de la formulación de Lacan (1962-63/2005) con relación al objeto a, en el hacer de la psicoanálisis. Primeramente, vamos a recurrir a la elaboración de Freud (1915/2004) sobre la pulsión, articulando con la formulación de Lacan sobre el resto como causa de deseo. En un segundo momento, trabajaremos con la especificidad y la subversión propia de la clínica psicoanalítica, pautada en la escucha del sujeto de deseo. Para eso, acudiremos a esta otra implicación entre Lacan y Freud: la cuestión de la clínica freudiana y la del sujeto en Lacan, pasando por su elaboración sobre la letra. Argumentamos que el análisis vislumbra salidas por vía de la escrita del resto, en el límite de la letra, convocando el invento de un saber-hacer con el real. Proponemos, por lo tanto, que no hay clínica sin considerar el contrario, el inmundo, el marginal y el horror.

Palabras clave: psicoanálisis; resto; sujeto; clínica.


RÉSUMÉ

Cet article aborde la fonction du reste en psychanalyse, à partir du lien dialectique entre théorie et clinique. On travaille sur l'idée qu'une partie de l'expérience avec le corps n'est pas inscrite, qu'il y a un résidu, quelque chose d'impossible à dire. Ce reste, élidé et exclu, peut se matérialiser sous la forme d'un corps abject, expression d'une manière d'être socialement non légitime. Un corps marginal qui fait horreur en dehors de l'idéal de normalité, de bonheur ou de vie saine. De telles formulations naissent alors de l'écoute clinique et reviennent à la clinique sous forme de questions et de préoccupations concernant le travail psychanalytique avec le reste. Nous visons, dans cet article, à discuter certains des effets de la formulation de Lacan (1962-63/2005) concernant l'objet "a", dans la pratique de la psychanalyse. Dans un premier temps, nous recourrons à l'élaboration de Freud (1915/2004) sur la pulsion, en articulation avec ce que Lacan formule sur le repos comme cause du désir. Dans un second temps, nous travaillerons sur la spécificité et la subversion propres à la clinique psychanalytique, fondée sur l'écoute du sujet du désir. Pour cela, nous recourrons à cette autre implication entre Lacan et Freud : la question de la clinique freudienne et celle du sujet chez Lacan, à travers son élaboration sur la lettre. Nous soutenons que l'analyse envisage des manières d'écrire le reste, au seuil de la lettre, appelant à l'invention d'un savoir-faire avec le réel. Nous proposons donc qu'il n'y ait pas de clinique sans considérer l'inverse, le sale, le marginal et l'horreur.

Mots-clés : psychanalyse ; reste ; sujet ; clinique.


 

 

Este artigo, resultante da pesquisa intitulada Corpos à Margem: A função do resto na psicanálise (Victor, 2021), busca realizar uma discussão sobre o resto que cai da operação do discurso e fica à margem, de fora da cena, mas produz efeitos nela. Esse resto elidido e excluído pode materializar-se na forma de um corpo abjeto, expressão de um modo de ser não legítimo socialmente. Um corpo marginal, sem função, que causa horror, fora do ideal do que seria "um indivíduo normal, feliz, saudável". Em vez disso, um corpo, talvez, submetido a uma segregação que não cessa de expelir o seu morador (o tal indivíduo) do campo da existência.

Todo discurso comporta uma operação que tem como efeito um resto, e o tecido social nos revela que estamos às voltas com esse arranjo em diferentes dimensões. Lidar com os restos remete a diversas esferas da vida e da estrutura social, daquilo que cai e fica de fora dessas construções. Por exemplo, as configurações territoriais e a utilização dos espaços na cidade são atravessadas por noções de poder e privilégio, sendo assim os locais destinados aos loucos, às prostitutas, aos indivíduos em situação de rua, aos usuários de drogas, às pessoas marginalizadas tornam-se estigmatizados e descolados do laço social.

Isso demonstra que há uma parcela da população que só tem possibilidade de lidar com esse material desprezado. E, mais que isso, há corpos que, dentro da estrutura social, são descartáveis, isto é, eles próprios ocupam um lugar-resto. A função do resto diz respeito a como o abjeto circula, aparece e desaparece nos espaços e nos corpos que compõem a trama social. O valor de resto impregna e penetra nos objetos e nas pessoas até que elas próprias se identifiquem com esse lugar ou consigam manejar e fazer outras coisas desse resto.

Tomamos como objetivo, neste artigo, discutir alguns dos efeitos da formulação de Lacan sobre o resto, no fazer da psicanálise. Com o objeto a, Lacan convoca a psicanálise a radicalmente dar lugar ao resto, ao obsceno, ao imundo, e isso, portanto, tem efeitos no seu fazer. Dessa forma, este trabalho aborda alguns dos possíveis efeitos do que Lacan (1962-63/2005) considera como "a sua única invenção" para a psicanálise. Com sua formulação a respeito de a, a letra a, a psicanálise é capaz de tratar da dimensão de objeto do sujeito, do seu ser de objeto. Ela bordeja as tramas do desejo nas transações com o Outro1, assim como margeia o horror da compulsão à repetição, a angústia, o jogo mortífero do sadomasoquista, os cortes e autoflagelações no acting out ou a passagem ao ato do suicídio. Aproxima-se, assim, da questão do resto perdido de gozo, do resto que tem efeitos no corpo.

Compreendemos a construção desse conceito enquanto uma herança de Freud e buscamos argumentar que Lacan faz a psicanálise avançar seguindo radicalmente a letra freudiana. É na sua leitura singular da teoria das pulsões que ele "inventa" o objeto a. Tendo isso em vista, tomamos como aporte teórico o conceito de pulsão, em Freud, numa articulação com o objeto a, em Lacan.

Pensar a clínica com Lacan implica tratar das operações da linguagem e, por isso, do resto que cai do encontro com o Outro. A escuta do sujeito, enquanto ser de linguagem, aponta para a subversão própria à clínica psicanalítica. Um movimento subversivo por meio do qual se pode compreender que o sujeito não é sem restos, sem tropeços, sem corpo, sem errância, sem corte. Ou seja, que ele é estruturado também pela dimensão de objetalidade. O a faz um furo na teoria do conhecimento; é também o que escapa à racionalidade e à interpretação. Isso quer dizer que todo discurso, ao tentar garantir a sua unidade e completude, produz as suas próprias exclusões. A clínica psicanalítica, porque se compromete com esse princípio, não visa à higienização da conduta social, mas sim ao que se pode escrever daquilo que comparece como desejo inconsciente.

Destarte, este artigo está dividido em dois momentos. No primeiro, é feita uma articulação entre a pulsão e o objeto a, de maneira a abordar a função do resto na psicanálise. Argumentamos que a psicanálise sustenta seu lugar à margem dos outros saberes, com uma lógica própria e singular, e, por isso, muitas vezes lança mão do que é desprezado por eles, como a literatura, a mitologia, as ficções. À psicanálise resta falar sobre os restos: do que não pode ser apreendido pela escrita científica; resta falar do corpo e dos seus excessos, falar de amor e das suas perdas.

No segundo momento, realizamos uma discussão sobre os efeitos do resto no fazer da psicanálise. O tópico tem início com um fragmento clínico ilustrando o obsceno e o horror que comparece na prática clínica. Discutimos sobre a clínica em Freud - a questão do fenômeno e da realidade psíquica, em uma articulação com a questão do sujeito em Lacan. Por meio dessas discussões, compreendemos que a análise vislumbra saídas pela escrita do resto, no limiar da letra, convocando à invenção de um saber-fazer com o real. Diante disso, consideramos que o que fica de fora da normalização comparece na análise, de forma que a clínica não é sem o avesso, o imundo e o horror.

 

Do Conceito de Pulsão em Freud ao Objeto a de Lacan como Causa do Desejo

Freud (1915/2004) realiza uma subversão ao apontar não só que a consciência tem limitações, mas que há algo no sujeito a que ele não pode ter acesso. A experiência psíquica encontra-se em grande parte fora da cena obs(cena) e inconsciente. A experiência da sexualidade, do corpo, insiste em se inscrever no psiquismo, o que nem sempre encontra representação, já que parte da experiência não oferece possibilidades de simbolização. A experiência subjetiva é de base pulsional e se constitui por meio de recortes ou fragmentos devido ao movimento pulsional e às suas vicissitudes.

De acordo com Le Gaufey (2018), Freud sustenta uma fratura estrutural na racionalidade cartesiana ao conceituar o impossível de se saber, um impossível de "ser dito". A marca e o traço essencial da psicanálise estão em se constituir enquanto um "saber insabido", que não cessa de não se fundamentar como um saber autônomo, pois não pode responder pela unidade de si mesmo. Uma estrutura de saber incompleto, que coloca em questão a sua própria essência. Um saber que se afirma errante e faltante por estrutura, esburacado, que não se propõe a fechar a conta e jogar o resto fora. Assim, de acordo com o autor,

[...] para submeter um ser falante ao jogo dos acasos da sua fala, dessa ladainha de palavras que dizem bem mais e bem menos do que "a sua história" ou "seus problemas", alça-se o que não é atribuível a nenhum enquadramento... a saber, a questão do próprio enquadramento - disso que vem constituir um nessa maré de enunciados, isolando, por conseguinte, o lugar de um resto inclassificável, errático, que nenhuma apreensão, mesmo conceitual, agrupa. Porque a empreitada do tratamento não é racionalmente seletiva, mas procura jogar conforme o acaso, ela se vê incluindo aquilo que qualquer outro empreendimento de saber que marcha "conforme a ordem das razões" deve excluir inicialmente: esse resto sem razão, mas ao qual, em contrapartida, a razão deve um bocado - especialmente quando ela se imagina como sendo una. (Le Gaufey, 2018, p.11, grifo do autor)

A função da fala, no campo da linguagem, isola um resto que nenhum conceito é capaz de conter, apenas bordejar. A experiência psicanalítica, como um trabalho dos acasos da fala, inclui um resto inacessível, não pensado racionalmente, um não previsto de antemão. Resto esse que vem a ser causa da própria razão.

A função do resto, no tocante à análise, está na (im)possibilidade de decifrar a materialidade da palavra, o significante em jogo, o fragmento de lembrança, o resíduo de uma cena traumática que não pôde ser incorporada. A clínica está fundamentada na escuta de um inefável, daquilo que não se apreende. O sujeito não sabe muito bem o que é, por que está ali, o que fazer com aquilo. Por isso ele fala do seu sofrimento em círculos, tentando dizer de um ponto central que ele não alcança.

Freud (1933/2010b) constrói uma mitologia para simbolizar algo da experiência humana universal que comparece na clínica e que só poderia ser entendido por meio de uma teoria metapsicológica como a das pulsões. Assim, associar a pulsão com um mito é um modo de estabelecer uma explicação teórica para fenômenos enigmáticos. Fenômenos esses que se sustentam sobre uma indeterminação.

Nas Novas Conferências, publicadas em 1932, Freud afirma que a teoria das pulsões "é, por assim dizer, nossa mitologia. Os instintos são seres míticos, formidáveis em sua indeterminação. Em nosso trabalho não podemos ignorá-los um só instante, mas nunca estamos certos de vê-los com precisão." (Freud, 1905/2016, p. 173). O autor recorre aos mitos como uma forma de ilustrar uma experiência clínica, quando não se consegue explicar certos fenômenos. A psicanálise reconhece algo de irrepresentável no objeto, o impossível de ser simbolizado, por isso a noção de mito e ficção tem espaço nas concepções freudianas.

Lacan (1964/2008) volta-se à noção de pulsão enquanto mito para tomá-la como ficção. Ou seja, o uso de tais expressões revela e comporta a desconstrução de noções e definições que se pautam pela precisão e objetividade e implicam a exigência da ciência tradicional. O termo ficção, empregado nesse momento, refere-se à proposição na qual a pulsão não é algo natural, não se encontra na dimensão orgânica. O biológico segue um ritmo, um ciclo, já a pulsão é uma força constante. O movimento pulsional não se produz por uma maturação biológica, "mas pela intervenção, o reviramento, da demanda do Outro" (Lacan, 1964/2008, p. 171). Nesse trecho, o autor ressalta que, se não é natural, é preciso que algo aconteça: a linguagem, o Outro atravessando as exigências pulsionais. A pulsão, então, pode ser entendida como criação, como ficção, já que sem linguagem não há pulsão.

As noções de mito e ficção apontam para uma tentativa de conhecer, dar sentido ao que escapa à experiência humana. Há um tanto da pulsão que não se inscreve e há um furo que compõe a cena. É por reconhecer tais furos que as noções de mito e ficção servem à psicanálise como forma de suportar e sustentar uma indeterminação incontornável. A pulsão refere-se ao registro do real do corpo, por isso mesmo ela é estruturada como uma mitologia, pois abarca algo do qual não se sabe dizer. Sempre que se fala da pulsão, algo de seu aspecto obscuro e enigmático comparecerá, algo no corpo a que não tem forma ou palavra que dê contorno. Trata-se de uma experiência anterior à nossa memória, e só se fala dela por aproximação, por hipótese, por observação. Um lugar em que a significação cessa e só é possível avançar pela invenção, pela ficção.

Contíguo ao processo de estruturação do sujeito, temos um corpo erógeno, sede do movimento pulsional. A pulsão apresenta-se assim como a manifestação do atravessamento da linguagem no corpo, e sob o domínio da pulsão a necessidade dá lugar ao desejo. Esse corpo erógeno é efeito, primeiramente, do investimento parental, correspondente a uma erotização, uma simbolização desse corpo. É porque há uma relação entre linguagem e gozo, entre palavra e pulsão, que essa erotização se dá. O outro, enquanto semelhante e representante da cultura, erotiza a criança, que fica assujeitada ao desejo dos pais, que submetem o seu corpo a um prazer não genital. Trata-se de uma invasão simbólica, que se constitui pela tentativa de nomear a experiência da criança com seu corpo - por isso é que daí advêm a angústia, a dor, os sintomas.

A pulsão é entendida por Lacan (1964/2008) como um conceito fundamental da psicanálise, e é a partir dela que o autor faz uma elaboração sobre o movimento pulsional e o objeto a. A pulsão apresenta um circuito, um movimento circular que contorna o objeto. Ou seja, o percurso pulsional é circular e marcado por um vaivém no qual apresenta uma curva na flecha, que sai de uma borda - zona erógena - e a ela retorna como seu alvo. Nesses termos, Lacan apresenta dois sentidos diferentes ao que seria o alvo pulsional: 1) Aim, que é o trajeto a ser percorrido e 2) Goal, que é atingir o alvo escolhido, e não o objeto em si. Dessa forma, por se constituir como parcial, a pulsão vai ser satisfeita sem atingir seu objeto; ela o contorna, dando volta em torno dele. O alvo pulsional, então, se torna o retorno ao seu curso, a curva, a própria circularidade que marca o seu trajeto pelo qual é possível atingir a satisfação. Assim, pode-se entender a pulsão como um movimento em torno do objeto perdido.

O corpo erógeno é sexual, mas há um lugar da denegação da pulsão sexual. O corpo passa a ser pensado então como o lugar de inscrições e de não inscrições. Se a linguagem é o que faz com que o sujeito se constitui como tal, a sua inserção nela nunca é completa; há um elo que falta na cadeia, um resto irrepresentável. O ato de fala, portanto, somente se engendra ao colocar o real em evidência, não se tratando de fazer o simbólico recobrir o real, mas de sustentar que há na palavra um indizível. É o vácuo no discurso, o nada que ele insiste em desconhecer, pois há um esforço para ao manter-se longe do que é da ordem do inominável. A ignorância do sujeito aponta para o fato de que a palavra não dá conta do real; dele, ela é apenas o mínimo de contorno possível.

Na operação de divisão, pelo encontro com o Outro, funda-se o sujeito, ser de linguagem, e deixa-se cair um resto, opaco e impossível de ser dito. Lacan estabelece que a função de a é da ordem de um resto, do que sobrevive do encontro com o Outro, em que emerge o sujeito; e essa função de resto tem a ver com a excentricidade e marginalidade própria do lugar do objeto a. Ou seja, "se o que mais existe em mim mesmo está do lado de fora, não tanto porque eu tenho projetado, mas por ter sido cortado de mim, os caminhos que eu seguir para a sua recuperação oferecerão uma variedade inteiramente diferente" (1962-63/2005, p. 246). Assim, o que é mais fundamental foi cortado e separado do sujeito; e, na tentativa de retomá-lo, o sujeito irá cursar diferentes caminhos.

Na cena do estádio do espelho nem tudo passa pela imagem especular. Há um resto lacunar, que fica cortado, excluído, mas que, ainda assim, tem efeitos na cena. O objeto a se encontra muito próximo para ser visto, e isso encerra o sujeito em um engano quanto à imagem de seu desejo. O sujeito tem acesso apenas à imagem virtual e, quanto mais ele se aproxima do que acredita ser seu objeto de desejo, maior é seu engodo.

O objeto a é da ordem de uma ausência, sem materialidade, característica, aspecto, imagem ou formato. Trata-se de uma notação algébrica designada pela letra a, como uma maneira de dotar ao conceito uma significação vazia. O objeto a opera como uma isca à pulsão, uma promessa de se alcançar algo que poderia completar aquilo que é faltante à natureza humana, e exatamente por isso é que ele não tem forma, pode ser qualquer coisa, pode ser tudo. Há um brilho que reveste o objeto a e o coloca como algo enigmático, precioso. Uma miragem da presença, mas que essencialmente é um vazio.

Lacan, em O Seminário, livro 10: A angústia, realiza uma mudança do status do objeto, tomando o "a como justamente aquilo que representa o S em seu real irredutível" (1962-63/2005, p. 179). Nas construções anteriores ele ganha a dimensão de imaginário e simbólico, como o objeto visado pelo desejo, o objeto do desejo. A partir de então, essa revisão no status possibilita uma articulação entre os três registros, pois esse objeto, alçado à dimensão real, comporta como um furo central nesse enodamento.

Lacan (1962-63/2005) faz a diferenciação entre dois tipos de objeto: os comuns, que são partilháveis e reconhecíveis, e o a, não partilhável, privado e incomunicável. O autor destaca os três objetos já mencionados por Freud (1905/2016), que possuem um status particular na circulação e no campo da partilha com outros objetos: o falo, o cíbalo e o mamilo. Posteriormente, Lacan inclui o olhar e a voz nessa série de objetos, enumeráveis, que participam da função do objeto como causa.

O a é, portanto, anterior à constituição dos objetos partilháveis comuns. A sua função diz respeito à circulação de certos objetos que têm na sua marca a dimensão da perda e do corte. Compartilham entre si a característica de não estar bem enraizados, podendo então desprender-se. Frente a isso, o objeto a encarna-se em certos objetos que estão soltos, que são destacáveis, fazendo com que eles assumam a sua função.

Além disso, Lacan (1962-63/2005) propõe-se a decifrar a função do objeto a, os seus efeitos, como ele opera, qual o seu lugar, e buscar tatear os meios pelos quais se pode falar dele. Nesse sentido, ele estabelece a angústia como a "sua única tradução subjetiva" (p. 113), pois por onde o a é capaz de se encarnar há efeitos perturbadores ao sujeito; sendo a angústia o principal deles.

Para tanto, o autor retifica a compreensão subjetivista do objeto de desejo. Lacan promove um deslocamento do lugar do objeto, passando-o para trás do desejo, como causa deste. Nesse sentido, o a aparece como sendo anterior ao próprio surgimento do sujeito, encontrando-se no exterior, e isso permite que ele seja tomado pela sua função de causa, como uma condição para tudo o que for interiorizado e encarnado, possibilitando o aparecimento do sujeito e do desejo.

Tradicionalmente, a função da causa fica centrada na figura do sujeito cartesiano, consciente, sendo que toda a sua atividade tem origem no eu. A virada feita por Lacan coloca o eu como um objeto, dominado por a, que invade o discurso e faz o eu vacilar. A relação do sujeito com a, Lacan caracteriza-a como um "deixar-se cair", abandonar-se, sacrificar-se, isto é, como uma perda consentida, um pedaço de carne que ele cede para que possa advir o desejo. Dessa maneira, as manifestações de algo da ordem de a apontam para essa relação de perda e cessão, afetando e perturbando o sujeito em sua unidade.

O desejo apresenta uma relação permanente com o objeto perdido; o lugar central da função do desejo corresponde ao objeto dos objetos, o a. O destino fica submetido ao objeto a se encarnar em um desses objetos soltos, caducos e cortados. Assim, nos momentos de corte pode-se esperar a angústia, pois a queda aponta para o que há de mais real no sujeito, quando alguma coisa lhe é arrancada. Há certa parte do corpo que fica elidida e determina a relação do sujeito com o próprio corpo.

Esse objeto encontra-se exterior a qualquer objetividade. Desse modo, para compreender como se forma o a, é necessário recorrer a uma objetalidade que diz respeito ao corte realizado pelo significante no corpo. O que Lacan (1962-63/2005) nos apresenta é que a causalidade tem correspondência com a experiência corporal, que algo nos foi arrancado e por isso procuramos retomá-lo, reencontrá-lo. "A causa está alojada na víscera e figurada na falta" (p. 238). Um pedaço de carne arrancado passa a ser figurado enquanto falta, fazendo com que o desejo seja lançado de objeto em objeto. Em função da implicação do sujeito no significante, sempre no corpo haverá algo de sacrificado e separado. É essa parte que está em jogo no movimento do desejo. Sendo o a opaco e invisível, só se têm notícias dele nos cortes que marcam o sujeito, nos objetos que têm valor exatamente porque caem, por serem perdidos naturalmente, por serem restos. Isto é, a sua função tem a ver com o fato de serem inertes e extirpados, figurando a castração.

 

A Função do Resto na Clínica Psicanalítica

O arcabouço teórico que dá base à psicanálise parte da clínica e tem origem na escuta em análise; portanto, não atende às replicações e generalizações. Aprendemos com Freud que os conceitos fundamentais não geram um sistema completo e aplicável para o próximo paciente a ser atendido. Assim, busca-se o movimento com os fundamentos a cada sujeito escutado. E a cada processo de escuta clínica, a cada nova articulação conceitual e significação da práxis, esse saber se reinventa. O saber psicanalítico, então, é marcado pela inquietação e está na contramão da resposta definitiva e fechada; ele constrói seu método segundo o objeto que se apresenta na clínica.

Recorremos aqui a um fragmento clínico da paciente E.2. E. relata à sua analista o caminho que a levou à separação, ao término de seu casamento, que durou 16 anos. A relação teve fim quando o marido, dependente alcoólico, a espancou quase até a morte e bateu com extrema violência no filho mais velho do casal. As agressões e violências - físicas e verbais - eram constantes ao longo de todo o casamento, com uma rotina de tortura, pânico e medo constantes, além do receio em prestar queixa de agressão devido possíveis retaliações e vinganças do marido.

A partir de uma narração de suas histórias passadas, E. menciona que havia vivido a sua infância, adolescência e parte da vida adulta sob o comando rígido da mãe, sem encontrar condições de questioná-lo. Os irmãos, pelo contrário, encontravam diversas maneiras de burlar os (des)mandos da mãe, coisa que ela não conseguia, pois, enquanto filha mais nova e mulher, carregava o peso de uma educação mais dura e severa.

E. narra que tentou se refugiar na casa das irmãs mais velhas, que haviam casado no anseio de fugir da convivência com a mãe, porém, devido ao ciúme dessas com os maridos, logo a relação entre elas se distanciou. A pressão de ver irmãs e amigas casadas e a insatisfação da convivência com a mãe a levaram ao casamento e posterior gravidez, fato que, na verdade, só proporcionou felicidade a E. após o nascimento de seu filho.

Com os anos o marido se revelou cada vez mais violento, e mesmo assim E. tinha dificuldades para dizer por que insistia na relação. Com algumas brigas sempre acompanhadas de violência, E. deixava a casa, mas acabava sempre retornando. Ela diz que o marido não a procurava, ele não prometia que "ia ser diferente", mas ainda assim, ela sempre retornava para a casa. E. conta que, se não tivesse apanhado quase até a morte, provavelmente ainda estaria casada com ele.

Quando chega à análise, E. encontra-se desempregada e vivendo com uma irrisória quantia que o marido enviava aos filhos, mas que devido ao medo de ser procurada por ele acabava por não exigir pensão. Morando pela primeira vez por sua conta, E. relata os desafios da nova vida após a separação. Desafio de se descobrir, por um lado, dona da sua casa, e por outro, do intenso medo de enfrentar o mundo sozinha, de se sustentar e sustentar seus filhos. Além disso, carregava uma intensa culpa por não ter protegido os filhos das agressões do pai, e temia futuros efeitos dessa violência sobre eles. Percebe-se que, ao longo de toda a sua vida, E. ocupou, repetidamente, a mesma posição apassivada, "eu me mato pelos outros", ela diz. Dessa forma, enquanto rodeia seu sofrimento em círculos, tentando dizer do lugar que não cessa de ocupar, E. toma conhecimento da sua repetição e do mundo do gozo a que foi submetida, quase se entregando à morte.

Esse fragmento aponta que há arranjos na cultura capazes de permitir que a agressividade possa ser direcionada a uma parcela da população que permanece oprimida (Freud, 1930/2010a). Indivíduos marginalizados submetidos ao horror de não ter o seu sofrimento reconhecido. Mas o caso também revela que uma pessoa em situação de vulnerabilidade não tem recursos materiais, simbólicos e afetivos para o enfrentamento de um contexto de violência, podendo assumir repetidamente um lugar objetificado, um lugar-resto.

O obscuro, o repulsivo e o inquietante da experiência humana comparecem no real da prática analítica. O jogo mortífero da compulsão à repetição, os engasgos da angústia compõem a cena e aparecem, muitas vezes, na forma de cortes e autoflagelações, tentativas de suicídio, exposição a situações de vulnerabilidade, entre outros. A psicanálise é o lugar do qual se coloca a escutar essa experiência humana de horror com uma radicalidade particular. No trabalho de análise, o sujeito é convocado a perder um tanto de gozo, a não ceder de seu desejo e, mesmo depois de ter topado com o horror, a produzir movimento, fala e escrita.

Nos seus escritos sobre os casos e atendimentos, Freud nos transmite muito mais do que os caminhos tomados pelo analisante, a história dos seus sintomas e as tramas que se decorrem com a análise. Ele nos relata também sobre um lugar que inventa, o lugar do analista, e nos convida a acompanhar essa invenção enquanto ele próprio a descobre e constrói, no seu fazer, guiado pelo desejo de escutar. Demonstra-nos também como a significação da sua práxis ocorre em um "só depois". Ou seja, Freud, enquanto analista, não somente como autor ou escritor, transmite-nos as veredas de sua clínica ressaltando-a como o lugar da criação, da inquietação, dos cortes e amarras.

Na sua clínica, Freud interroga se as lembranças, fragmentos de memória e restos de palavras que aparecem como efeitos do trabalho em análise correspondem à realidade material ou se, por outro lado, se trataria de fantasias do paciente. Ele insiste em questionar a problemática da existência real ou fantasística da cena traumática, por exemplo. Uma interrogação impossível de resolver. Isto é, ele buscava saber "se algo que se acha no Eu como representação pode ser reencontrado também na percepção (realidade)" (Freud, 1925/2011, p. 252).

Há sempre um não assimilado como traço, a pulsão de morte, que opera silenciosamente furando a potência fálica das representações, o que dá todo valor ao uso de ficções míticas. Se a equivocidade fundamental da linguagem, o engano, era isolado e evitado por uns autores, no pensamento freudiano "a equivocidade não é mais aqui um defeito a ser evitado no necessário rigor da denotação, mas um elemento dinâmico em jogo na produção da significação - e decisivo na montagem das manifestações do inconsciente" (Le Gaufey, 2018, p. 190). Exatamente o que resta é tomado como fundamental à significação, ou seja, é preciso colocar na conta um resto de engano e equívoco impregnado à linguagem, que de tempos em tempos pode vir a furar as representações.

Para Le Gaufey (2018), Freud introduz uma ruptura no saber ao dar lugar ao inconsciente, "acabando com a necessidade que posicionava, até então, um sujeito 'puro-consciente' na ligadura entre a materialidade da representação e o 'objeto' representado" (Le Gaufey, 2018, p. 191). O mundo não é mais compreendido apenas como um efeito de representação, visto que há um lugar de não inscrições. Freud assume, então, que o significante não é sem opacidade, sem articulação com o real do corpo, e nesse sentido, ainda no primeiro contato com o objeto, defende que não se trata da ordem da objetividade ou da realidade concreta apenas. No aparelho psíquico não há a entrada da realidade objetiva por si só, mas sim signos de percepção, fragmentos de percepção, material linguageiro, restos de palavra do Outro. A representação psíquica do objeto é diferente da realidade externa. Assim, um tanto da realidade material é incorporada em fragmentos e um tanto fica de fora, por isso não se trata de um objeto que se aprende somente na objetividade; há uma criação particular sobre os fragmentos daquilo que se pôde incorporar do objeto.

Podemos compreender, portanto, que a realidade psíquica não corresponde à realidade material puramente. Ela é composta por fantasia, por ficções, é uma versão da verdade particular do sujeito. Não é um objeto nem somente externo e empírico e nem somente interno e recriado. A clínica freudiana se interessa pelo que é da ordem do que se encontra "entre" essas dimensões, entre o fenômeno e a realidade psíquica. E isso traz ainda outras implicações para a clínica, uma vez que ela se encontra no limiar entre tais dimensões. Sendo assim, a escuta clínica não pode ser apartada da realidade material e histórica, dos discursos que são ofertados no laço social. Sua questão é considerar, portanto, a tensão dialética entre o que o sujeito faz de si e como ele se engaja na fala do Outro, diante dos recursos materiais, simbólicos e afetivos que teve condições de receber.

A psicanálise toma como direção o fato de que há sempre algo que excede o discurso que se diz mais neutro e de que toda discursividade abrange uma dinâmica pulsional, o corpo dá notícias, ele insiste em não se inscrever. Isso fura a noção de uma objetividade do discurso, que visaria esgotar o real, representar e conhecer todo o objeto pela onipotência da razão.

Para além da objetividade, o que se encontra no eu não corresponde necessariamente ao que se apresenta no fenômeno. E, mais do que isso, freudianamente falando, a experiência subjetiva é apenas em parte constituída pelo eu. Esta instância faz-se inscrever como ativa, agente e supostamente capaz de apreender a si mesma, porém trata-se de uma unidade problemática, pois o que se ressalta, no descentramento que Freud promove da consciência, é que o eu se encontra submetido ao isso e ao supereu.

Por suas formulações sobre a estruturação do sujeito, Lacan estabelece que o eu não basta para definir o sujeito, e, mais do que isso, os dois termos não se coincidem. Ele considera que, mesmo havendo a dimensão imaginária do um, não é possível que o saber se feche nesse registro. Ao contrário, pois por se tratar de uma experiência cujo sentido é o dinamismo libidinal, quaisquer dados subjetivos vão comparecer sempre no enodamento entre imaginário, simbólico e real - sendo deduzidos, portanto, de uma técnica de linguagem (Lacan, 1998a). Em vez da consideração de que esse eu esteja centrado no sistema percepção-consciência, o que Lacan destaca é a sua função de desconhecimento, "em todas as suas estruturas" (p. 103).

Le Gaufey (2018) discute essa impossibilidade da unidade imaginária do eu; ponto a partir do qual é negada a noção de um corpo que esteja pronto, completo e inteiramente feito, seja num antes ou num depois. Ou seja, ele não cessa de não fazer um. Para Lacan, eu é uma função imaginária, que tem o estádio do espelho como o momento de sua constituição. O eu é uma montagem: a de que o sujeito dispõe para se relacionar com o Outro, nos desfilamentos do significante e nos feixes complexos de suas representações.

Dessa maneira, um discurso que tenta alcançar a completude, a universalidade e a objetividade supõe um consenso entre o eu e o outro, um acordo tendo como fim uma resolução fechada e normativa. Busca-se o apaziguamento e a harmonia com o objeto incluindo apenas o que pode ser efetivado na vida prática, como contabilizado. Há a exclusão do "não saber" e a manutenção de um ideal de unidade e fechamento. Espera-se resolver o impasse, porém ele não se resolve. A psicanálise sustenta, portanto, o desencontro radical com o outro pelo engajamento na linguagem, de maneira que a objetividade e a unidade são impossíveis.

Para Lacan (1962-63/2005), o eu é uma síntese um tanto pobre de como o sujeito se apresenta, pois o sujeito também é outro e vem de outro lugar. O sujeito se divide por se constituir no campo do Outro, o que Lacan (1962-63/2005) compreende como o lugar do significante. É essa a questão do sujeito, que, conforme Leite (2017), leva os psicanalistas a perguntarem, na clínica, pelos "efeitos que a presença do significante condiciona na cena que inaugura e sela tal divisão (p. 35)". Ela comenta que considerar esse ponto implica justificar o surgimento do desejo não "pela dependência que o filhote humano mantém por um longo período com relação ao outro semelhante", mas "pela incidência do significante" (p. 35).

Desse modo, é possível demarcar a separação entre o campo freudiano, atravessado pela noção de inconsciente, e outros campos do conhecimento de tradição filosófica, que adquirem mais poder a partir das definições cartesianas, pautadas na consciência do eu; é o caso da psicologia. Enquanto que por um lado o indivíduo (termo que se refere justamente a algo indivisível em sua estrutura) é um ser consciente, que sabe de si e que comporta uma verdade; para a psicanálise o que se sustenta é o sujeito do inconsciente, estruturalmente dividido, barrado pelos seus significantes. Sua essência não é outra, senão ser um ser-falante, que "se constitui, se forma, devido à sua inserção na própria experiência da fala" (Burgarelli, 2020a, p. 249). Ele emerge nessa operação de fala, por isso não pode ser apreendido, representado e substancializado; exatamente, por ser lacunar e evanescente. A estruturação do sujeito se dá entre a dimensão da linguagem e da objetalidade. Não se trata de transpor para esse campo o sujeito psicológico ou, em outras palavras, o sujeito consciente, senhor de suas representações, mas sim de dar lugar ao falante, que se constitui, se forma, devido à sua inserção na própria experiência da fala.

Ao tratar da operação de divisão do sujeito, Lacan (1962-63/2005) acrescenta algo novo à discussão: a "porção carnal", "parte de nós mesmos para sempre irrecuperável", um corte no corpo pela ação do significante. Algo que faz obstáculo à razão escapa ao simbólico para além das possibilidades de objetividade do conhecimento. Não se espera oferecer uma resposta saturadora, não se pretende "explicar tudo", dominar o objeto ou capturar o objeto de desejo, mas sim dar lugar ao vazio que nos protege da angústia.

O sujeito cede um pedaço da sua carne para se abrir ao desejo. O elemento algébrico de que Lacan se dispõe para tratar dessa problemática, a letra a, não tem a função de operar enquanto uma representação, uma metáfora ou de adquirir um valor significante. Trata-se, no entanto, de uma marca, uma impressão, um traço de que algo do corpo não foi significantizado, dirigindo-se ao real e ao gozo. O autor considera essa a sua criação mais original desde Freud e, a partir dela, volta às várias de suas elaborações iniciais articulando-as às subsequentes, como, por exemplo, o que acontece em seu texto Lituraterra, quando retoma O seminário sobre "A carta roubada".

No seu texto O seminário sobre "A carta roubada", Lacan, (1956/1998b) extrai o conceito de letra ao trabalhar um conto de Edgar Allan Poe. Na história, havia uma carta que precisava ser recuperada, pois colocava em risco a rainha. Ao ganhar o aspecto de uma velha carta, ela permanece às vistas de todos, mas ainda assim se conservando velada. Ocultando-se na figura de uma carta sem valor, um dejeto, a letra/carta adquire outra função para além da transmissão da mensagem que porta. Lacan ressalta uma homofonia entre os termos letter, letra, carta/ litter e lixo, que revela uma duplicidade na função da letra. Se de um lado, ela apresenta uma mensagem e corresponde a um elemento da significação, por outro, enquanto litter/lixo, segundo Lacan (1956/1998b), ela é o que resta de um significante despojado de significação.

Assim, a letra promove um furo no saber, dando lugar a um vazio, a ausência do objeto, no litoral do real. Se o simbólico se encontra submetido a uma ausência de significante que diga da coisa, a letra escreve a falta, uma escritura do real. Na lição sobre Lituraterra, Lacan (1971/2009) considera que a letra é o resíduo do discurso no litoral entre o simbólico e o real, entre o saber e o gozo. Trata-se de uma escrita que "vem de outro lugar que não do significante" (Porge, 2009, p.143), que toca no real, desenha uma borda no lugar em que o significante não alcança.

Com a sua invenção, Lacan bordeja a dimensão da falta, e inventa um modo de se arranjar com ela, de tratar daquilo que margeia o registro do real. Pela noção de um objeto da falta ele pôde tratar da cessão dessa parte de carne e de gozo. É possível, então, pensar que Lacan forja um lugar de ausência, um lugar impossível de nomear, uma ficção imprecisa para suportar o enigma e a indeterminação incontornável com a qual se depara. Trata-se de um lugar em que a significação cessa e só é possível avançar pela invenção, pela ficção, pela escrita com os restos.

Com a letra a encarna-se o objeto perdido correlato de uma satisfação, mítica e impossível. A invenção lacaniana permite uma escritura da falta, uma escrita sobre o que não cede à racionalidade, à interpretação; que faz furo na representação e rompe com a unidade imaginária. Frente a isso, a escritura possível é composta de restos, impressões e tentativas, sempre precárias, de produzir ciframentos entre os vestígios e as ruínas do passado. Não se trata de tentar apreender o real por um significante, de contê-lo por um conceito. Mas a escrita, no limiar da letra, preserva o vazio e o oco, daquilo que não tem significação.

Conforme Burgarelli (2020b, p. 07), no processo de causação do sujeito, o privilégio recai num "ponto-de-falta, que, embora possa permitir-lhe a sua pretensa suficiência, exige mantê-lo conexo ao objeto a"; é em torno desse objeto que gira o desejo de um sujeito. Assim, nessa perspectiva, é correto afirmar que o percurso analítico produz uma tentativa de decifrar um saber "insabido", de produzir uma criação que fabrique as bordas e dê contornos pela linguagem à ausência de limites do real que ameaça invadir o corpo. Na conversão histérica, pelo sintoma, as zonas erógenas assumem função significante, um deciframento possível de ser feito no percurso de uma análise.

Já no avesso da função mensageira da linguagem, a clínica possibilita um trabalho com a letra, permitindo supor o analisante no lugar de escritor, porém considerando que a escritura do corpo se diferencia das operações do significante, pois se trata da carne, do real do corpo, uma escritura intraduzível, ilegível e que não se pode decifrar. O trabalho de análise, portanto, produz algo da ordem da letra, de uma borda do que não cessa de não se escrever. Uma escrita que não é necessariamente texto escrito, mas é da ordem de um ato. Temos aí um enigma, um hieróglifo, traços e marcas entalhadas no corpo.

O significante é uma invenção a partir de algo que já se faz presente na letra, ou seja, ele é o lançar-se à frente pela repetição do que já estava escrito, enquanto que, por sua vez, a letra mantém a memória de um gozo perdido - para trazê-la à tona mais uma vez, e mais outra, e outra. A letra faz marca no corpo, recorta um resto perdido de gozo; deixa um vazio que engendra o movimento pulsional na fantasia de poder recuperar o que foi perdido, para que, no jogo da cadeia significante, possa se constituir o desejo.

A invenção do objeto a opera cortes na teoria do conhecimento, deixando uma escansão, uma ferida aberta nas possibilidades de saber do sujeito, demarcando uma perda. Um vazio que pode vir a ser motor de invenção, causa de desejo. Mobiliza não propriamente uma resposta, mas um saber-fazer possível com o real, com a elaboração de um saber que alça o enigma do sujeito. O real da letra nos convoca a um fazer frente aos limites do dizer e do representar. A invenção de um saber-fazer com o indizível, com a linguagem não-toda. Forja-se um estilo/estilete, e, com o corte que lhe é próprio, um fazer singular, que porta a marca da diferença.

Essa invenção de Lacan revela-nos como ele se apoia sobre os ombros de Freud, fazendo a psicanálise avançar seguindo radicalmente a letra freudiana. Nas linhas e entrelinhas de Freud faz-se emergir e operar pontos e cortes singulares. Dessa forma, Freud cria sua mitologia na tentativa de produzir sentido e significações, ainda que suportando as indeterminações do seu objeto, sabendo haver o "umbigo do sonho". Por sua vez, Lacan inventa o objeto a para suportar e garantir o vazio e a falta daquilo que se encontra fora do sentido, no limiar do impossível de ser dito, apostando num saber-fazer em que o (des)encontro com o vazio não leve ao caminho do horror, mas sim à abertura do campo do desejo.

Nesses termos, propomos que, para a psicanálise, o resto é o principal, o mais importante da cena, embora apareça primeiramente com o que está fora dela. A psicanálise assume e dá lugar ao resto, visto que ele subverte a cena. Com isso, a clínica toma a posição de abertura à alteridade, à dúvida, promovendo o deslocamento de uma lógica hegemônica, enquanto norma, para a lógica da diferença, permitindo, inclusive, que o sujeito possa se inquietar e se deslizar em posições paradoxais. Nesses termos, ela constitui uma crítica aos discursos que tentam garantir completude e universalidade à custa de suas próprias exclusões.

Consideramos que o que fica de fora da normalização, o que se produz como imoral, como perversidade, como abjeto, também nos constitui. Práticas normativas produzem um discurso adoecido que não faz laço, que se empenha no extermínio da alteridade. O discurso dominante insiste em não se haver com o resto que cai do seu saber, com o resíduo que fura a sua suposta unidade e completude. Promover um deslocamento da lógica hegemônica implica manejar e lidar com os restos, com o excedente, com o isso, que cai do discurso e não pode, no percurso de uma análise, ser silenciado, sufocado, descartado.

 

Algumas Considerações

Discutimos, neste artigo, o fazer da psicanálise com o resto na clínica. Esse resíduo faz incidir um vazio que não pode ser suturado nem apreendido. O resto é uma parte maldita do sujeito, experienciada como uma ausência de palavras que o atormenta, um íntimo que se encontra de fora, excluído. A parte que não lhe permite chegar a uma conta exata, fechada, sobre si mesmo. Reforçando essa via, em detrimento de outras, podemos concluir, com Porge (2017), que "o ser do sujeito não é a subjetividade, é seu excremento" (p.24), isto é, não se trata de uma identidade a si mesmo (um sintoma individual, por exemplo, ou uma denominação em voga para um fenômeno social), mas do que comparece como desvio entre o que se põe como enunciado e o que comparece como impasse numa fala singular.

Argumentamos que é nessa perda que cada sujeito pode movimentar-se de forma mais singular, a depender do modo como cada um irá posicionar-se diante desse resto. É essa parte que incita o sujeito a um movimento desejante, a novos laços, novas articulações. À vista disso, buscamos sustentar que o desejo se dirige a um resto, pois o central para o seu funcionamento é a busca pelo resto para sempre perdido. É o vazio da falta que vem causar e incitar o desejo rumo a objetos substitutivos. Diante dos materiais, das ferramentas, dos instrumentos mais ordinários e marginais, é possível fazer o novo.

O objeto a, a letra da falta, é ao mesmo tempo causa de desejo e objeto da angústia, ou melhor, objeto sem o qual não há angústia. Pois, quando esses resíduos insistem em se fazer vistos, temos uma cena de horror e uma perturbação angustiante pelo (des)encontro com o real. É quando, com os materiais mais ordinários e com os abjetos, é possível afundar num gozo mortífero.

Tomando essa via, acreditamos que o presente artigo constitui um movimento que pretende romper com certa perspectiva de psicanálise e de prática analítica enquanto individualista, subjetivista e elitista. Em uma época marcada pelo discurso capitalista, manuais psiquiátricos e rotulações estigmatizantes, abordar essas questões permitiu-nos uma contraposição aos pensamentos deterministas que culminam em normalizar, reintegrar, excluir a singularidade pela patologização e reduzir as diferenças subjetivas.

A presente discussão reafirma a posição política da psicanálise em reconhecer a alteridade, contrapondo-se aos discursos que anulam o sujeito de desejo. Destrate, não apenas a psicanálise abre espaço para a escuta do sujeito, mas nela tal escuta está necessariamente atrelada a um posicionamento ético e político do desejo. O saber da psicanálise privilegia, portanto, o que é rejeitado pela ciência positivista, mais exatamente o que é rejeitado da experiência humana por ser obscuro, repulsivo e inquietante. É isso que comparece no real da prática analítica e merece ser escutado.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Eugênia Assis Victor
E-mail: eugeniaassisvic@gmail.com

Cristóvão Giovani Burgarelli
E-mail: crgiovani@gmail.com

Recebido em: 27/01/2021
Revisado em: 16/05/2021
Aceito em: 24/05/2021
Publicado online: 29/04/2022

 

 

1 O outro, enquanto semelhante, se diferencia do grande Outro, empreendido como alteridade.
2 Retirado de Victor (2021).

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