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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.58 n.128 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O transtorno do pânico e o Rorschach no sistema compreensivo

 

The panic disorder and the Rorschach comprehensive system

 

 

Flávia Helena Zanetti Farah*; Anna Elisa de Villemor Amaral

Universidade São Francisco

 

 


RESUMO

O Transtorno do Pânico se caracteriza pela ocorrência de crises de ansiedade generalizada e desenvolvimento de vários sintomas físicos e psíquicos. O objetivo deste estudo é verificar se os sinais típicos de ansiedade, conforme o Sistema Compreensivo, contribuem significativamente para identificar pacientes com Pânico. A amostra foi composta por 48 sujeitos, sendo 24 não pacientes e 24 pacientes com Transtorno do Pânico. Os resultados dos testes estatísticos apontaram as variáveis Fd, m, SumC e WSumC como sendo significativas, revelando que os pacientes com Transtorno do Pânico possuem mais condutas de dependência, concebem com certa ingenuidade suas relações interpessoais e apresentam um tipo de atividade cognitiva não deliberada que implica certo sentimento de perda de controle. Paralelamente a esses resultados, uma análise qualitativa das respostas MOR traz dados interessantes que apontam para novos estudos a serem realizados futuramente.

Palavras-chave: Transtorno do pânico, Rorschach, Sistema Compreensivo, Avaliação psicológica.


ABSTRACT

The Panic Disorder is characterized by the occurrence of generalized anxiety and development of some physical and psychic symptoms. The goal of this study is to verify the occurrence of typical indicators in Rorschach that could help to assess Panic disorder. The sample was composed by 48 subjects: 24 presenting Panic Disorder and 24 without symptoms. The results of the statistical tests have pointed the variables Fd, m, SumC, and WsumC as being significant, revealing that the patients with Panic Disorder have a greater dependent behavior, have naïve conceptions about their interpersonal relationships and present a type of involuntary cognitive activity that conveys a feeling of loss of control. In addition to these results, a qualitative analysis of MOR responses revealed interesting data which point to the importance of further studies.

Keywords: Panic disorder, Rorschach, System Comprehensive, Psychological assessment.


 

 

INTRODUÇÃO

O psicodiagnóstico em Psicopatologia é sempre um terreno fértil para discussões, já que as classificações nosográficas mudam ao longo dos tempos e a própria sociedade apresenta, em períodos históricos diferentes, configurações psicopatológicas diferentes. Por isso, avaliações corretas, nesta área, são sempre um desafio no âmbito científico.

Dentre os inúmeros transtornos psicopatológicos descritos em vários manuais de classificação, encontra-se o Transtorno do Pânico, cujo diagnóstico é cada vez mais freqüente na população. Segundo Kaplan e Sadock (1997), os dados epidemiológicos relacionados ao Transtorno de Pânico apontam sua prevalência em aproximadamente 1,5 a 2% da população geral, desenvolvendo-se na idade adulta jovem, por volta dos 25 anos de idade, numa proporção, entre os sexos, de aproximadamente duas mulheres para um homem.

Embora referências ao Transtorno do Pânico sejam encontradas em escritos antigos, pois as fobias específicas foram reconhecidas desde o tempo de Hipócrates, Rangé (2001) relata que essa denominação é bastante recente na nosografia psiquiátrica e psicanalítica e tem suas origens nas descrições de medo, ansiedade, fobia e agorafobia. A origem da palavra Pânico é proveniente do grego “Panikon” que tem como significado susto ou pavor repetitivo. Na mitologia grega o deus Pã, que possuía chifres e pés de bode, provocava com seu aparecimento, horror aos pastores e camponeses. Dessa forma a palavra tem em nossa língua o significado de medo ou pavor violento e repetitivo. Em Atenas teria sido erguido na Acrópole um templo ao deus Pã, ao lado da Ágora, praça do mercado onde se reunia a assembléia popular para discutir os problemas da cidade, sendo daí derivado o termo agorafobia, usado em Psiquiatria, que significa o medo de lugares abertos.

No levantamento histórico feito por Rangé (2001) vemos que foi Robert Burton em 1621, ao publicar Anatomy of Melancholy, quem sistematizou as descrições de muitos padrões de medo patológico, inclusive a ansiedade social. Mas foi apenas em 1871, que Wesphal (1822-1890) cunhou o termo agorafobia, numa monografia hoje clássica. Freud (1893), em seu primeiro artigo sobre as psiconeuroses de defesa, fala das fobias e logo depois sobre a neurose de angústia (1899), tendo qualificado de obscuro o mecanismo das fobias, mesmo após as análises do Pequeno Hans (1909) e do Homem dos Lobos (1918).

Rangé (2001), nesse seu histórico, afirma que a literatura sobre a ansiedade cresceu gradualmente entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, sendo que os estudos de Donald Klein (1989) provocaram um renascimento das abordagens biológicas do problema e que influenciaram a caracterização atual do Transtorno do Pânico no DSM-III-R (1987) e DSM-IV (1995), quando fazia seus estudos sobre os efeitos da imipramina na ansiedade esquizofrênica.

O desenvolvimento de teorias etiológicas, que procuraram estabelecer fatores causais e aspectos patogênicos a respeito do Transtorno do Pânico, ocorreu em virtude da busca de fatores antecedentes, empiricamente demonstráveis, que influenciam a predisposição, a vulnerabilidade ou o início deste quadro. Nos últimos 20 anos houve um grande progresso nesta área, devido aos estudos neurobiológicos, genéticos, psicofarmacológicos e comportamentais, tanto em animais quanto em humanos (Rangé, 2001).

Do ponto de vista das abordagens psicológicas, várias são as discussões a respeito deste transtorno. As teorias comportamentais afirmam que a ansiedade é uma resposta condicionada a estímulos específicos, o que faz com que os tratamentos sob esse enfoque sejam mais efetivos. Nessa perspectiva consideram possível que o indivíduo aprenda a ter uma resposta interna de ansiedade, imitando as respostas ansiosas de seus pais (Kaplan e Sadock,1997). Os mesmos autores afirmam que, segundo um dos modelos comportamentais, os pacientes com Transtorno de Ansiedade tendem a superestimar o grau e a probabilidade de perigo em uma determinada situação e a subestimar suas capacidades de enfrentarem as ameaças percebidas a seu bem-estar físico ou psicológico. Existem estudos afirmando que os pacientes com Transtorno do Pânico têm pensamentos de perda do controle e medo de morrer, seguindo-se as sensações fisiológicas inexplicáveis, que precedem e, depois, acompanham os ataques de pânico.

As teorias existenciais buscam explicar o Transtorno do Pânico, discutindo que não existe um estímulo específico para um sentimento de ansiedade crônica, sendo que o centro do problema reside na tomada de consciência de um profundo vazio em suas vidas (Kaplan e Sadock, 1997).

Os aspectos psicodinâmicos da ansiedade foram primeiramente apresentados por Freud (1917/1969) em seus estudos sobre as neuroses. Num primeiro momento, considerou que a ansiedade é resultado da transformação da libido não utilizada, que encontra descarga sob esta forma. Posteriormente, considerou a ansiedade como uma reação do ego frente ao perigo de ameaça de manifestação da libido reprimida, estando desta forma associada ao deslocamento da libido que dá lugar à formação de sintomas como manifestações somáticas e fóbicas (1926/1969). Foi assim que Freud redefiniu sua compreensão da ansiedade em função de sua mais recente criação, o modelo estrutural. A ansiedade era, agora, vista como resultado do conflito psíquico entre impulsos sexuais ou agressivos inconscientes, com origem no Id, e as correspondentes ameaças de punição do Superego, sendo compreendida como um sinal da presença de perigo no inconsciente. Aqui, Freud definiu a ansiedade tanto como sendo uma manifestação sintomática de conflito neurótico, quanto como um sinal adaptativo para desviar o conflito neurótico da consciência.

Segundo Nemiah (1981), a ansiedade desempenha importante papel na organização da personalidade, pois põe em movimento as defesas do ego. No entanto, nos ataques de pânico essas defesas não são suficientes para a contenção da ansiedade, que invade a personalidade. Gabbard (1992) considera que uma significativa parte dos ataques de pânico decorra de fatores psicodinâmicos, sem desencadeantes ambientais ou intrapsíquicos aparentes. Propõe uma investigação exaustiva das circunstâncias desses ataques e da história de cada paciente, na busca de identificar fatores psicológicos relevantes.

A invasão da ansiedade também é descrita por Trinca (1997), quando afirma que a angústia vivida no ataque de pânico é uma angústia de dissipação do self, de aniquilamento, fazendo a pessoa sentir-se em face de seu desaparecimento, experimentando uma confusão do ser com o nada. O autor afirma que a intensa ansiedade experimentada na crise de pânico é uma situação de caos e de grande desestruturação interna. As noções de realidade se afrouxam e, no momento de crise, tendem a desaparecer, causando uma sensação momentânea de inexistência de tempo, espaço e identidade, vivenciando uma paralisação e uma sensação de pavor e morte, “uma grande morte que não morre”.

A fobia se dá pela fragilidade do self e o que nos permite diferenciá-la do Transtorno do Pânico são os núcleos do self. Já que o problema se encontra nas rupturas do self, o resultado relaciona-se a déficit nas experiências de existir, pois o continente interno e o centro de sustentação interna são afetados. Esta angústia de dissipação do self é a angústia fundamental da fobia. Já no caso do pânico, há o rompimento da relação eu-comigo, pois os vínculos com o centro de sustentação interna se acham muito enfraquecidos. A pessoa apresenta momentos de incomunicabilidade com ela mesma, acompanhados por intensa angústia de dissipação do self (Trinca, 1997).

Segundo Costa Pereira (1997), a Psiquiatria e Psicanálise se desenvolveram com base na elaboração freudiana sobre os ataques de angústia e afirma que, o que chamamos hoje de Transtorno do Pânico, na verdade, é um recorte do quadro clínico descrito por Freud há cem anos, sob o nome de neurose de angústia. O autor argumenta que o pânico se constitui como a última defesa erigida contra o risco de aniquilamento da organização psíquica. Ou seja, não é pura descarga, mas um ato psíquico pleno, desesperado, é uma forma psicopatológica de o sujeito fazer face à condição de desamparo radical de sua existência.

Constata-se que, invariavelmente, o tema da ansiedade está sempre presente nas descrições desse transtorno, seja qual for a abordagem teórica. Quando a ansiedade experimentada é proporcional à situação que a desencadeia, tem um valor adaptativo, sendo descrita como um fenômeno relacionado à situação atual, compreendido como reativo à realidade em que o sujeito está inserido. O problema é quando ultrapassa os níveis que favorecem a adaptação, originando sintomas que interferem demasiadamente na qualidade de vida.

Segundo Ledoux (2001), a ansiedade e o medo estão intimamente relacionados, ambos constituindo reações diante de uma situação efetiva ou potencialmente efetiva. O que diferencia a ansiedade do medo é a ausência ou presença, respectivamente, de um estímulo externo. O autor demonstra, a partir da perspectiva das neurociências, que as experiências traumáticas, conforme a teoria freudiana, podem ser armazenadas nos sistemas da memória sem estarem ligadas à consciência, abordando a questão do ponto de vista biológico. Afirma que a descoberta de que os hormônios do estresse podem ampliar as reações de medo condicionado implica uma importante discussão para o entendimento de transtornos de ansiedade, mesmo porque, às vezes, eles parecem ocorrer ou agravar-se após situações de tensão, sem qualquer relação.

Frente a tantas questões e às implicações do Transtorno do Pânico no bemestar do indivíduo, assim como suas repercussões na sociedade, é de fundamental importância a compreensão desse quadro sob diversas perspectivas que possam auxiliar na orientação e tratamento do paciente.

O Método de Rorschach é uma técnica bastante utilizada em vários contextos onde se faz necessária uma avaliação de personalidade para fins diagnósticos e indicação de tratamento e, embora esse método não apresente um conjunto de sinais específico para o Transtorno do Pânico, contém diversos indicadores de ansiedade e aspectos específicos da personalidade, tais como defesas e modos de lidar com os afetos, que podem contribuir de modo significativo para a avaliação dos indivíduos com esse transtorno.

Neste trabalho analisaremos um conjunto de sinais do Rorschach no Sistema Compreensivo que se referem à ansiedade e à alguns indicadores no conteúdo das respostas que possam revelar o estado do self, sentimentos de desamparo, vazio e temor ao aniquilamento, características principais do Transtorno do Pânico.

O objetivo deste trabalho é, portanto, verificar em que medida os sinais de ansiedade e controle no Psicodiagnóstico de Rorschach na abordagem do Sistema Compreensivo auxiliam na compreensão de pacientes com Transtorno de Pânico.

 

MÉTODO

Participantes

Participaram deste estudo 48 sujeitos, subdivididos em dois grupos. O primeiro grupo foi composto por 24 sujeitos, com idade entre 18 e 55 anos, de ambos os sexos, diagnosticados com Transtorno do Pânico (de acordo com a SCID - módulo Transtorno do Pânico), encontrando-se em tratamento em clínicas particulares e hospital-dia psiquiátrico numa região do interior de São Paulo. Neste grupo, como foi aplicado somente o módulo específico para identificar a patologia estudada, não é possível afirmar que não existam comorbidades.

Para o grupo de comparação foram escolhidos 24 sujeitos de acordo com a mesma faixa etária, nível educacional e sexo dos pacientes patológicos. O critério de inclusão utilizado neste grupo foi nunca ter necessitado de ajuda psiquiátrica ou psicológica.

Material

a) SCID - Strutured Clinical Interview for DSM-IV (First, Spitzer, Gibbon e Williams, 1996)

A SCID-I é um roteiro para entrevista semi-estruturada que pode ser administrado por um psiquiatra ou por um profissional da área de Saúde Mental, treinado e familiarizado com a classificação e critérios do DSM-IV (1994).

A aplicação tem a duração de aproximadamente uma hora e meia e possibilita a avaliação de aspectos ligados a: identificação; vida escolar e profissional; início, evolução e história do tratamento da enfermidade; contexto ambiental; problemas atuais e funcionamento social atual. A escala é composta de módulos que avaliam patologias do Eixo I (transtornos clínicos como depressão maior, transtorno somatoforme, esquizofrenia, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de pânico e transtorno do uso do álcool).

No entanto, de acordo com Tavares (2000), a estrutura modular da SCID permite uma fácil adaptação para uma série de situações e contextos. Uma situação freqüentemente encontrada em pesquisas é quando se deseja somente avaliar a presença de transtornos específicos, neste caso é permitido ao pesquisador utilizar a SCID parcialmente, selecionando apenas aqueles módulos de interesse.

Neste trabalho foi utilizado apenas o módulo para diagnóstico do Transtorno do Pânico que é composto por 24 questões, que verificam tanto sintomas físicos como psicológicos, e também excluem a possibilidade do Transtorno do Pânico ser conseqüência de outra doença ou de uso de medicação. Muitos dos sintomas físicos avaliados na SCID, também fazem parte do Inventário de Ansiedade de Beck.

b) Inventário de Ansiedade de Beck (BAI- Beck Anxiety Inventory)

O BAI foi criado por Beck, Epstein, Brown e Steer em 1988. Cunha (2001) traduziu o teste, sendo esta versão utilizada neste estudo. A escala foi construída com base em vários instrumentos de auto-relato, usados para medir aspectos da ansiedade, dos quais foram selecionados os itens que passaram a compor o Inventário. O BAI é uma escala de autorelato, que mede a intensidade de sintomas de ansiedade.

O Inventário é constituído por 21 itens, que são “afirmações descritivas de sintomas de ansiedade” e que devem ser avaliados pelo sujeito com referência a si mesmo, numa escala de quatro pontos, que, conforme o Manual, reflete níveis de gravidade crescente de cada sintoma: 1) “Absolutamente não”; 2) “Levemente: não me incomodou muito”; 3) “Moderadamente: foi muito desagradável”; 4)ravemente: dificilmente pude suportar”.

O escore total é resultado da soma dos escores dos itens individuais. O escore total permite a classificação em níveis de intensidade da ansiedade. A pontuação total é classificada da seguinte maneira: escores de 0 a 7, nível mínimo; escores de 8 a 15, nível leve; de16 a 25, nível moderado e de 26 a 63, nível grave.

c) Método de Rorschach

Composto por manchas de tinta a respeito das quais a pessoa deve dizer com o que se parecem, o Rorschach é um instrumento que, em parte, se constitui em uma tarefa de solução de problemas, permitindo uma exploração objetiva do estilo de estruturação cognitiva do sujeito e, em parte, representa um estímulo à fantasia, que permite a exploração subjetiva de imagens temáticas (Weiner, 2000).

O Sistema Compreensivo foi desenvolvido por Exner (1999) com o objetivo de integrar as contribuições dos principais autores americanos sobre essa técnica e desenvolver estudos de validade e de precisão que conferissem maior credibilidade ao método. Embora não exista na literatura um conjunto de sinais no Rorschach, que permita identificar um paciente com Transtorno do Pânico, são conhecidas diversas variáveis relacionadas com as vivências de ansiedade e modos de lidar com a mesma. Para este estudo, foram destacadas as variáveis no Sistema Compreensivo que pudessem auxiliar na compreensão da sintomatologia dos pacientes com Pânico.

a) m (movimento inanimado), Y (sombreado difuso) - variáveis que melhor refletem a presença de experiências de desconforto psicológico associado a circunstâncias externas.
b) D ajustada (nota D corrigida) - indicador da capacidade do indivíduo para manter o controle e a direção das condutas em condições habituais.
c) EA (experiência efetiva) - informações sobre a adaptação, eficácia, modulação e ajustamento do sujeito frente às exigências reais das situações.
d) es (estimulação sentida) - estímulos que agem no interior da pessoa, sem que esta deliberadamente os inicie ou possa fazê-los parar de modo direto.
e) Food (respostas de alimento) - revela desamparo.
f) MOR (conteúdo mórbido) - indica desamparo e destrutividade.

Procedimento

Os participantes foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de participação voluntária. Cada indivíduo respondeu individualmente aos instrumentos, aplicados pela primeira autora, na seguinte seqüência: SCID, Escala de Ansiedade de Beck e Método de Rorschach.

Para que a análise das variáveis do Rorschach pudesse ser desenvolvida com maior confiabilidade, os protocolos foram classificados pela primeira autora, revisados pela segunda autora e, só então, foram sorteados para recodificação de um juiz independente. De acordo com Exner (1999), é adequado desenvolver uma análise do grau de acordo de codificações entre profissionais habilitados, mas a re-codificação de todos os protocolos não é necessária. Recomenda que 25% a 35% de casos devem ser sorteados ao acaso para serem re-codificados por profissional independente, que deve ser às cegas quanto ao grupo de origem do protocolo. Esse procedimento foi adotado de modo a permitir a confiabilidade dos resultados dessa pesquisa.

Os dados foram armazenados no banco de dados específico do Rorschach, RIAP 4 PLUS (Exner e Weiner, 2001). Após ter inserido todos os dados, os mesmos foram exportados para o SPSS (Statistical Package for Social Sciences - versão 9.0; Nie, 1984) e, a partir disso, foram realizadas análises estastísticas. Estas foram desenvolvidas a partir de testes de Mann-Whitney, Correlação de Pearson e curva ROC, com nível de significância de 0,05.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

De acordo com os objetivos desta pesquisa, foi possível verificar quais variáveis do Método de Rorschach tiveram presença significativa no grupo de pacientes, quando comparado ao grupo de não pacientes. A Tabela 1 mostra as médias e desvios padrão e o Teste de Mann-Whitney de cada variável nos dois grupos.

Tabela 1. Média e desvio padrão, Mann-Whitney e significância das variáveis do Rorschach nos dois grupos

 

 

* p<0,05 ** p<0,01

Dentre as variáveis inicialmente destacadas para análise verificou-se, pelo teste de Mann- Whitney que apenas o movimento inanimado (m) apresentou diferença estatisticamente significativa (p < 0,05) no grupo de pacientes. Já as respostas de alimento (Food) tiveram uma diferença marginalmente significativa entre os pacientes, quando comparados com o grupo de não pacientes.

A Tabela 2 mostra os resultados das correlações entre as variáveis estudadas no Rorschach e a BAI. Pode-se verificar que a única variável que apresentou correlação significante foi o m, que também diferenciou os dois grupos.

Tabela 2. Correlação de Pearson (r) entre as variáveis do Rorschach e a BAI (N=48)

 

 

** p<0,01

Os resultados indicaram que o grupo com pânico teve média maior do que o grupo controle nas respostas de movimento inanimado (m) e nas respostas de alimento (Food). Com relação ao m, Exner (1994) afirma que esta variável supõe a vertente ideacional do desconforto situacionalmente provocado, representando um tipo de atividade cognitiva não deliberada que implica certo sentimento de perda de controle emocional. É uma variável claramente reativa e, quando aparece aumentada, indica que o indivíduo está sendo afetado por circunstâncias externas que lhe estão causando sérios incômodos e mal-estar, revelando também que o sujeito está vivendo uma situação estressante, à qual reage com um aumento da atividade ideativa periférica.

Exner (1999) argumenta também que o m é uma das variáveis que melhor refletem a presença de experiências de desconforto psicológico associado a circunstâncias externas, ou seja, ao estresse situacional. O seu aumento assinala que o indivíduo está submetido a uma maior tensão do que a habitual, revelando a vivência de desamparo provocada pelo estresse.

Se o m é uma variável que está relacionada à ansiedade num nível ideacional, podemos relacionar esse dado com a conceituação de Craske e Barlow (1999), que identificam no Transtorno do Pânico o medo aprendido de certas sensações corporais associadas a ataques anteriores e não necessariamente uma existência crônica da ansiedade.

Outro dado da literatura sobre o Transtorno do Pânico, condizente com a interpretação do m, refere-se ao fato de que, com a freqüência dos ataques, começa a surgir a ansiedade antecipatória e, neste caso, o medo de ter outro ataque pode levar o paciente a evitar algumas situações, ocorrendo nesse momento a agorafobia. O fato do m ter diferença estatisticamente significante, pode estar relacionado ao medo de ter medo, a não credibilidade em si mesmo, nos próprios controles. Esse medo e desconfiança de si mesmo podem levar à evitação de algumas situações, o que costuma também caracterizar a agorafobia.

No que se relaciona à variável Food (Fd), cujo aumento foi marginalmente significativo, de acordo com Exner (1999), ela é pouco freqüente e surge em protocolos de pessoas que apresentam mais condutas de dependência do que se esperaria. Trata-se de indivíduos que concebem com uma certa ingenuidade suas relações interpessoais, esperando que os demais atendam a suas demandas e procurem soluções para seus próprios problemas.

Este dado pode estar relacionado com as afirmações de Kaplan e Sadock (1997) a respeito da tendência que os pacientes com pânico têm de supervalorizar o perigo, subestimando suas próprias capacidades de enfrentarem as ameaças percebidas. O fato de não enfrentarem as ameaças pode eventualmente levar à expectativa de que outras pessoas atendam às suas necessidades, estabelecendo então um vínculo de dependência. Estes dados da literatura também podem ser relacionados ao aumento do movimento inanimado (m), pois segundo Weiner (2000), o m indica pensamentos angustiantes quanto à própria impotência e afirma que, quanto maior o número de respostas m, maior o nível de preocupação que o indivíduo experiencia por se sentir impotente e à mercê de forças que estão fora do seu controle.

De acordo com Exner (1999) a análise do m deve acompanhar a análise da variável Y, pois de acordo com alguns autores esta indica ansiedade no nível emocional. No entanto, como não houve diferença no Y entre os grupos, pode-se dizer que o m representa o estado de sobrecarga nos indivíduos com Pânico, apresentando maior impacto sobre o pensamento. Revela-se, portanto, como uma intensa atividade de ideação periférica que irrompe constantemente nos pensamentos deliberados e produz sérias dificuldades nas atividades que requerem o uso da atenção-concentração.

Apesar de muitos autores relacionarem as respostas de sombreado difuso (Y) à ansiedade, Exner (1994) comenta que pouco se sabe a respeito do tipo de ansiedade e quais os efeitos que ela produz, por isso, algumas divergências precisam ser consideradas. Beck (1945, apud Exner, 1994) sugere que as respostas de sombreado difuso revelam uma “carência dolorosa de atividade” e posteriormente amplia esta explicação afirmando que esta variável reflete um sentimento de paralisia.

Exner (1994) afirma que vários estudiosos não têm encontrado nenhuma relação entre as pontuações da Escala de Ansiedade Manifesta de Taylor e as respostas Y. O mesmo ocorreu neste estudo quando foi correlacionada a pontuação no Rorschach dos pacientes com pânico e a Escala de Ansiedade de Beck, pois apesar de apresentarem altos resultados no nível de ansiedade, não apresentaram o aumento de Y no Rorschach. Os dados da BAI revelam que 15 sujeitos do grupo controle apresentam nível de ansiedade entre mínimo e leve e os outros nove, entre moderado e grave. Em relação aos pacientes do grupo experimental, todos apresentaram um nível de ansiedade grave.

Um outro dado investigado que não obteve diferença significativa do ponto de vista estatístico, foi o Código Especial MOR (mórbido). Durante as codificações, algumas respostas classificadas com este código chamaram tanto a atenção porque possivelmente indicariam um claro aumento nos pacientes. Dada a não confirmação estatística desta hipótese foi realizada uma análise qualitativa das respostas.

Nesta análise foi possível observar que, quando os pacientes com Transtorno do Pânico dão respostas classificáveis como MOR, apresentam verbalizações muito mais destrutivas que os não pacientes. De acordo com as respostas dos dois grupos, é possível afirmar que existe uma grande diferença na qualidade das mesmas. Para outros códigos especiais presentes no Sistema Compreensivo (Verbalização desviante (DV), Resposta desviante (DR), Combinação incongruente (INCOM), Combinação Fabulada (FABCOM) e Contaminação (CONTAM) esta diferenciação é feita de acordo com o grau de bizarria utilizando-se o nível 1 e o nível 2 para codificar as respostas. Se fosse adotado o mesmo procedimento seria possível destacar as diferenças quanto à morbidez das respostas.

Considerando que existem indícios de maior morbidez no grupo de pacientes e que este índice representa as atribuições desagradáveis que o indivíduo acrescenta ao estímulo, bem como a percepção interna dos elementos disfóricos, (que o sujeito atribui aos objetos), pode-se concluir que estes dados convergem com as evidências da literatura. As pessoas que apresentam respostas MOR tendem a estar convencidas de que tudo irá mal, independentemente dos seus esforços e que realizarão profecias de maus augúrios e tenderão a gerar condutas antecipatórias para prevenir os desastres esperados (Exner,1999). Novamente este dado pode ser relacionado à ansiedade antecipatória experenciada pelos pacientes com Pânico, pois esses sujeitos parecem não acreditar que terão recursos internos suficientes para enfrentar a angústia, podendo perder o controle da situação a qualquer instante (Trinca, 1997).

Numa análise mais qualitativa das respostas ao Rorschach verificou-se sinais de que o conteúdo destas respostas está relacionado ao sentimento de esvaziamento desses pacientes, em decorrência de um continente destruído como por exemplo: “esmagado”, “perdendo a vida”, “espremido”, “explodiu”, etc. Mais uma vez, tais respostas se relacionam à afirmação de Trinca (1997) de que a ansiedade vivida no Pânico associa-se ao caos e à desestruturação interna, fazendo a noção de realidade desaparecer, causando uma sensação momentânea de inexistência de tempo, espaço e identidade, vivenciando uma paralisação e uma sensação de pavor e morte.

As outras variáveis estudadas, EA, es, nota D, Dajustada, não apresentaram diferenças significativas do ponto de vista estatístico, considerando o nível de significância de 0,05. A estratégia de se destacar variáveis para realizar as análises é útil, pois focaliza o trabalho em hipóteses plausíveis do ponto de vista teórico, diminuindo o risco de se perder no meio de grande quantidade de variáveis e com isso supervalorizar resultados fortuitos.

Porém, pelo fato de que apenas uma das variáveis selecionadas apresentou valor estatístico significativo e outra um valor marginalmente significativo, foi feito um estudo exploratório, utilizando o teste de Mann-Whitney entre os grupos e a Correlação de Pearson entre todas as variáveis que não tinham sido destacadas anteriormente com a BAI, para verificar a presença de outros dados que pudessem ser compreendidos à luz das teorias psicopatológicas sobre o Pânico. Nesta análise exploratória, o SumC e o WSumC também obtiveram diferença estatística significativa nos dois testes estatísticos, conforme a Tabela 3.

Tabela 3. Teste de Mann-Whitney entre grupos e correlação de Pearson (r) com a BAI das variáveis SumC e WsumC.

 

 

Segundo Exner (1999), as respostas de cor cromática (SumC) têm relação com as descargas afetivas bruscas e não moduladas, nas quais não há nenhum tipo de controle. Esta situação pode se produzir por graves dificuldades de controle (a descarga não é amortecida cognitivamente, dada a intensidade da experiência afetiva) ou por uma imaturidade psicológica, uma espécie de infantilismo psíquico que faz com que se atribua a devida importância à modulação dos afetos.

Mesmo tendo poucos dados significativos, do ponto de vista estatístico, foi possível observar nas coordenadas da curva ROC (Tabela 4) um grau de sensibilidade de 62,5% no diagnóstico do Transtorno do Pânico e uma especificidade de 8,3%. A curva ROC resulta do cálculo de probabilidade de se diagnosticar corretamente pacientes com um determinado quadro diagnóstico-neste caso, presença ou ausência de ansiedade, portanto a probabilidade de se identificar verdadeiros positivos e verdadeiros negativos. Revela a sensibilidade e a especificidade de certos indicadores para o diagnóstico em questão.

Tabela 3. Coordenadas da Curva ROC

 

 

Cada ponto da curva indica o número de indivíduos que, no eixo vertical seriam verdadeiros positivos (sensibilidade) e no eixo horizontal verdadeiros negativos (especificidade) com base naquela variável (Figura 1). O pesquisador faz a escolha que lhe parece a melhor intersecção entre os dois eixos. Estes dados em negrito indicam que a probabilidade diagnóstica para Transtorno do Pânico, quando aparecerem as variáveis m e Food, é de 62,5%, entretanto, sendo sua especificidade baixa, pode-se encontrar inúmeras outras situações onde tais indicadores podem aparecer (falsos positivos).

 

 

Figura 1. Curva ROC

Pode-se concluir que a seleção das variáveis feita inicialmente possibilitou a identificação de duas variáveis importantes no Rorschach de pacientes com Pânico, mas não destacou elementos que posteriormente se mostraram relevantes. A análise qualitativa das respostas MOR mostrou ser um caminho fértil, apontando para a possibilidade de se empreender igual procedimento e abordagem para outros aspectos do protocolo de cada sujeito. Sabe-se que tanto os fenômenos gerais das manifestações de certo grupo (de caráter nomotético), quanto às observações que buscam compreender a singularidade de determinado indivíduo (de caráter idiográfico), são de extrema importância para a avaliação psicológica (Güntert, 2001).

Para trabalhos futuros, buscaremos realizar análises de natureza qualitativa de cada protocolo do Rorschach, para então observarmos quais nuances das respostas e tipo de conteúdo identificam melhor os sujeitos com Transtorno do Pânico.

 

CONCLUSÃO

O estudo realizado permitiu identificar as variáveis m, SumC e WsumC, significativamente aumentadas no grupo de pacientes com Pânico, e a variável Fd como marginalmente significativa. O aumento de m sugere a presença de pensamentos não deliberados que interferem no funcionamento cognitivo e possivelmente estão relacionados com a antecipação do perigo e ao medo da perda do controle, características presentes nos pacientes com Pânico, de acordo com a literatura.

O alto índice de SumC aparece em pessoas que tendem a apresentar expressões emocionais muito intensas dando a impressão de serem impulsivas. Já o WSumC aparece em indivíduos que costumam ser mais lábeis nas trocas e descargas emocionais, preocupandose menos em modular suas experiências afetivas. Esses dados também se mostram condizentes com os descritos na literatura a respeito das descargas afetivas bruscas e não moduladas nestes pacientes.

A análise qualitativa das respostas MOR revelou intenso sentimento de vazio emocional e destrutividade a que os pacientes com Pânico estão sujeitos e esse dado pode auxiliar bastante a compreensão do indivíduo durante o tratamento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 13/09/07
Revisto em 04/12/07
Aceito em 10/12/07

 

 

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