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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.40 Belo Horizonte dez. 2013

 

 

Das relações entre o empobrecimento psíquico e o empobrecimento material

 

About the relations between the psychic impoverishment and material impoverishment

 

 

Valéria Wanda da Silva Fonsêca

Conselho Municipal de Assistência Social de Juiz de Fora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta a pesquisa sobre as contribuições da psicanálise junto aos brasileiros oriundos da população de baixa renda, pouco escolarizada e não familiarizada com o discurso psicanalítico. Atualiza os questionamentos a respeito da prática da psicanálise: quais as contribuições da psicanálise nessa investigação? O tratamento dessas relações exige um analista avisado, sabedor do seu ofício. Não é uma prática para iniciantes. Nessa clínica as preocupações freudianas são com a formação dos psicanalistas e com o tratamento, que precisa ser oferecido nas instituições de analistas e ou financiadas pelo Estado, tal como um projeto público para combater a tuberculose.

Palavras-chave: Psicanálise aplicada e pobreza; Pobreza; Pobreza e psicanálise, Brasil e psicanalise; Melancolia e pobreza.


ABSTRACT

The objective of this paper is to present research about the role of psychoanalysis with the Brazilian population that has arisen from poverty, with low educational levels and which is not familiar to the psychoanalytic discourse. We updated questions about the practice of psychoanalysis: what are the contributions of psychoanalysis to this investigation? The treatment of this relationship requires an experienced analyst, knower of its craft. It's not a practice for beginners. At that clinical setting the freudian concerns are with the academic formation of psychoanalysts and the treatment itself. Those conditions need to be offered at psychoanalytical institutions and or state financed as it would be at a public project to combat tuberculosis.

Keywords: Aplied psychonalysis, psychoanalysis and poverty, psychoanalysis in Brazil.


 

 

A psicanálise: a responsabilidade social

Na pesquisa de doutorado (FONSÊCA, 2013) sobre os efeitos subjetivos da pobreza material e consequências materiais do empobrecimento psíquico, uma proposta de teorização em psicanálise sobre os complexos fenômenos que se entrelaçam: o empobrecimento psiquico e o material. Hoje testemunho à experiência de ter desenvolvido um projeto de tese em teoria psicanalítica. E isso só se fez possível porque o saber exposto traduziu uma experiência de articulação subjetiva do desejo de saber sobre a castração, explicitado através da temática sobre os efeitos subjetivos da pobreza.

A nossa responsabilidade clínica nos permitiu pesquisar e avançar no propósito de delimitar quais as especificações teóricas da psicanálise que precisariam ser analisadas para aplicação nessa temática. Não somos todos iguais. E a abordagem clínica dessa população exigiu reflexões sobre estrátegias de superação no que se refere a um modelo funcionalista que reduz a complexidade e a multidimensionalidade de tal fenômeno.

O olhar não pode ser ingênuo, o ideal de verdade do conhecimento cientifíco não coube nesse trabalho, e optamos por investigar e reunir os estudos da antropologia, das ciências sociais, da filosofia, da literatura e da Biblia sobre a realidade da pobreza brasileira. São diversas as definições de pobreza. Todos os pobres são iguais? Todos são deprimidos e melancólicos? Não. Não é disso que falamos.

O objetivo da pesquisa foi delimitar a aplicabilidade da psicanálise com brasileiros oriundos da população de baixa renda, pouco escolarizada e não familiarizada com o discurso psicanalítico. O acesso dessa população ao tratamento psicanalítico ainda é restrito. Investigar a constituição do eu e as consequências para os sujeitos no laço social exigiu suspender a condição de generalizações das ciências sociais sobre a constatação de que a pobreza material está presente desde sempre na sociedade. Assim, foi possível analisar e diagnosticar quem são os sujeitos que experimentam os diversos estágios da pobreza, inclusive os pobres que vivem entre os ricos. Todos, que definimos como aqueles sujeitos que precisam ser protegidos pelas benesses do Estado e ou das famílias abastadas, caso contrário padecerão de uma total incompetência para gerir a própria vida.

 

A pobreza material e o empobrecimento psíquico

A concepção de que a pobreza material tem como um dos efeitos uma precariedade da subjetividade, foi tratada nesta pesquisa com muito cuidado e muitas restrições. Há um fato sociológico que indica a desigualdade social e econômica como fator embaraçador e ou até impedidor de muitos brasileiros no que diz respeito ao acesso a determinados bens de consumo, inclusive saúde e educação. A psicanálise, ao pensar os efeitos subjetivos do laço social, afirma a importância de tal relação, porém toma para si analisar as especificidades de como cada sujeito se constitui independentemente da classe social a que pertence.

Questiona-se a possibilidade de a psicanálise afirmar sua hipótese sobre o conceito de inconsciente e seus efeitos na subjetividade dos sujeitos que sofrem com a precariedade social e econômica. Cabe à psicanálise demonstrar que o homem, ser de linguagem, só pode ter acesso ao que é da ordem da necessidade, do Real, pelo viés do simbólico e do imaginário. A oferta de cuidado proporcionada, em geral, pelas figuras parentais à constituição dos meios para formulação de demanda dirigida ao outro, outro do laço social atualiza o que é da ordem pulsional — todos através da ação de cuidar, alimentar e transmitir as regras do pacto civilizatório, ou seja, exercitar a capacidade de amar. Desde sempre, há que aprender a contornar os impasses mediante a experiência da castração e da partilha dos sexos.

Porém, em alguns sujeitos, a pobreza de recursos sociais e econômicos para gerir a própria vida em seu grupo social está associada à precariedade subjetiva e é o indício de uma posição do sujeito com o seu desejo. Ao atualizar a condição ser da falta, eles desmascaram também a precariedade do outro social, que, por ser marcado pela castração, geralmente vacila na transmissão simbólica do saber o que fazer com a falta, que é constitucional.

Teorizando sobre o mal-estar da civilização, Freud reconheceu a gravidade da epidemia que se espalha: a miséria neurótica e o empobrecimento material decorrentes da dificuldade de muitos de aderir ao modelo capitalista, à ciência e ao processo de individualismo que se desenvolviam. Freud declarou a contribuição que a clínica psicanalítica poderia proporcionar a esses sujeitos da modernidade. Simultaneamente, registrou suas preocupações com a formação dos analistas para tal prática da psicanálise. Para ele, não era uma prática para iniciantes, e sim, para analistas experientes que, com o domínio da teoria, poderiam se adequar ao necessário ao tratamento que deveria ser oferecido nas instituições de psicanálise e financiado pelo Estado, tal como um projeto público para combater a tuberculose. A descrença nos ideais de mestria, encarnados em Deus e nas figuras de autoridades da sociedade, significou para muitos o desamparo, o abandono e, consequentemente, a ausência de proteção.

Freud demostrou que, desde as sagradas escrituras até literatura em geral, o homem vem se servindo das metáforas para testemunhar e narrar o valor do processo civilizatório no que diz respeito à estruturação e ao funcionamento do aparelho psíquico. A expressão dos conteúdos conscientes e inconscientes só é possível a partir da instalação de uma ordem simbólica, que se engendra no campo da linguagem. Lacan verticaliza o estudo sobre as relações e as fronteiras entre a psicanálise e a ciência. Apropria-se do modelo da banda de Moebius, a partir da ideia de um dentro e de um fora que se confundem, para demonstrar a hipótese freudiana sobre o funcionamento do aparelho psíquico, elaborando conceitos tais como conscientee inconsciente; enunciado e enunciação, e o pressuposto teórico de que a consciência moral é o cerne da realidade psíquica.

A satisfação pulsional não se submete à lei e ao desejo. Faz-se necessária a instituição de uma realidade moral, de crença em ideais para que se controle a força pulsional que age sobre o eu como um imperativo categórico e que medie as experiências de privação e sofrimento desencadeadas mediante a realidade da castração.

O dinheiro, enquanto objeto fálico, passou a representar o poder que uns têm sobre os outros, bem como representa o que há de pior e ou de melhor no caráter das pessoas. Ter ou não ter dinheiro, mais que o necessário, sempre foi sinônimo de prestígio e inteligência. Ser pobre era uma punição, que só foi redimida, a partir da história de Jesus Cristo, que era pobre e o filho de Deus.

Fora desse fato, ao longo da história, as rivalidades, os ódios e até os processos de destruição em muitas sociedades foram associados ao prestígio que o dinheiro daria, inclusive para corromper famílias e indivíduos na sociedade. Mata-se por dinheiro, para ter o que é do outro ou por se sentir menosprezado pelo fato de ter mais ou menos posses que o outro no grupo social.

A psicanálise surge com a ciência e a modernidade. Do modelo patriarcal ao modelo individualista temos no Brasil ainda uma longa caminhada, mesmo que as leis já tenham sido alteradas. Alguns grupos instituem as mudanças sociais, por conta das mudanças de mentalidade. Mas não há milagres, todos não mudam simultaneamente ou, melhor dizendo, alguns nem percebem que o mundo está em movimento. E isso provoca um descompasso entre os modelos familiares de resolver os problemas e os orientados pelas leis. Muitos grupos romperam com padrões tradicionais de família, de trabalho, da relação com capital e com a diferença sexual, e se perderam no âmbito subjetivo, no que diz respeito à constituição de uma realidade psíquica orientada por uma consciência moral. São muitos que testemunham a dor de existir. Os graus diferenciados de pobreza material anunciam que milhões de brasileiros se sentem desadaptados e incapazes de garantir a própria existência. Muitos não reagem por se sentirem miseráveis e injustiçados no laço social e precisarão para sempre do amparo do Estado. Alguns outros, tendo o apoio adequado, poderão se desenvolver e ter uma vida digna. E há ainda poucos que definitivamente sairão da pobreza, pois através de outros fatores sociais conseguiram restabelecer vínculos amorosos que recuperam a tessitura do eu, e sendo orientados para demonstrar sua competência pessoal.

Reconstruímos a rota insistentemente descrita nos últimos textos de Freud no que diz respeito à constituição do Eu, indicação que ressalta a hipótese de que ele tomou o Eu como conceito central na sua obra.

Temos uma equação lógica: o quanto de pressão das exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos da civilização, que tem como consequência os diferentes graus de "debilidade" do eu.

 

Campo da ética: satisfação das necessidades - rede da linguagem - discurso

Para relacionar o empobrecimento do Eu e o empobrecimento econômico e social, partimos do pressuposto de que toda ação humana, particularmente a satisfação das necessidades, se desenrola na rede da linguagem, em discurso, e no campo da ética. O universo simbólico é transmitido por meio dos enunciados primordiais, dos códigos e das leis. As necessidades nunca se apresentam em estado puro, uma vez que não se tem acesso à ordem natural. Elas precisam ser faladas e sempre perpassadas pelo desejo e pela demanda. Para Lacan, o que tem status de necessidade e torna possível a existência do homem é a diferença sexual: masculino e feminino.

A subjetivação da diferença sexual é decorrente dos (diferentes) diversos graus de investimento libidinal nos objetos e do posicionamento do sujeito (mediante a referida diferença). O complexo de castração é o motor da renegação, que institui o conflito constitucional do Eu. Quanto maiores as exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos provindos da civilização, maiores as dificuldades na eficácia da renúncia pulsional e, consequentemente, maior 'debilidade' do Eu. Essa precariedade seria fator de adoecimento psíquico, presente nas neuroses, nas psicoses e na melancolia, que tomamos nesta tese, tal como fez Freud com os estudos sobre o sentimento de culpa e o criminoso. A melancolia foi abordada detalhadamente na tese, pelo status que Freud lhe conferiu — revelar a constituição do Eu humano — o que lhe possibilitou definir os limites entre o normal e o patológico no que diz respeito ao investimento libidinal e à escolha de objetos, e que a melancolia teria como uma característica peculiar o medo do empobrecimento. O desenvolvimento de tal patologia foi associada ao descrédito na moral social, e a pobreza se alastra nas cidades, tal como uma epidemia social.

Tais conclusões são resultantes de uma pesquisa detalhada no texto freudiano. Resgatamos suas recomendações sobre a prática da psicanálise junto aos pobres. Freud acreditava que a teoria psicanalítica, ao lado de sua significação científica, apresentava seu valor como procedimento terapêutico, e demonstrou as possibilidades de ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização. Somos cientes da pertinência da psicanálise em auxiliar a grande multidão, particularmente aquelas demasiadamente pobres para reembolsar um analista por seu trabalho. Trata-se de uma decisão politica, particularmente em nossos tempos, quando os estratos intelectuais da população, sobremodo inclinados à doença mental, em geral, e estão mergulhando irresistivelmente na pobreza.

Acrescentamos a leitura lacaniana do contemporâneo, estudo que nos permitiu refletir que cuidados temos de ter na clínica, na direção do tratamento. O limite da psicanálise reside no tratar do que está submetido à linguagem e, parafraseando Lacan, ter o cuidado de não encher de sentidos e fazer ideologias tal como as do mercado e ou da religião, o que por muitas vezes é melhor calar. Saber que a estratégia do sujeito, que faz do "seu corpo" um lugar do engano, da possibilidade de unidade ao atender a demanda do Outro, inclusive do Outro do laço social indica uma desconsideração, e até uma negação da castração. Que sujeitos são esses que se encharcam de sentidos e fazem sintomas que apontam um corpo mortificado pelo significante, que mesmo que também atrelado ao simbólico, se orienta prioritariamente pela via do imaginário, por um gozo fantasmático, um gozo com os objetos parciais.

São muitos excessos que os sujeitos expõem em seu corpo: pobreza, obesidade, alcoolismo, as drogadicções em geral, e uma série de adoecimentos que exacerbam desafio entre a vida e a morte — campo de conflito da sexuação e da castração. Testam os limites do "corpo vivo", mesmo que o sujeito afirme seu horror à morte. São milhares de coisas que se passam num corpo e que não se traduzem em sensações psíquicas. Para Lacan, o humano não goza do seu corpo; ele é uma representação imaginária, mesmo que essa imagem dependa de uma amarração simbólica. Antecipadamente propomos um resumo: a pulsão é a letra incorporada ao soma, mas é através do sintoma que temos acesso à sexuação. A pulsão como demanda do impossível, só ao encontrar a castração, é que pela via do desejo pode ser resgatada.

 

A disposição política dos analistas

Encerramos este artigo falando da proposta inicial: quem é o analista que se preocupa com as questões da constituição do laço social? Problematizar a posição do psicanalista — que transpõe os muros de seu consultório e oferece sua escuta na cidade e nas instituições de saúde, escolares e jurídicas para estender os benefícios da experiência analítica à população de baixa renda — é reconhecer que há o risco de que tais práticas se coloquem a serviço de ideais opositores à civilização. Acreditamos, porém, que o investimento na formação e na análise sejam decisivos à abertura de espaços para a prática do psicanalista com outros profissionais e, além de possibilitar a verificação dos efeitos terapêuticos positivos, mesmo que o ato do analista não tenha, a priori, nenhuma garantia.

O eixo central da pesquisa está na formação do analista. Preocupações permanentes relatadas nas obras de Freud e de Lacan. Chamou-nos atenção a exigência que Freud fez ao se referir ao tratamento da população pobre, que fosse feito por analistas experientes. Declarou seu projeto de que se construíssem clínicas de psicanálise para atendimento dessa população e que nessas instituições se primasse pela formação dos analistas. Tal exigência de formação foi considerada como fundamental, pois seria a única proteção possível contra o dano causado aos pacientes por pessoas ignorantes e não qualificadas, sejam leigos, sejam médicos.

 

Referências

FONSECA, V.W.S. Os efeitos subjetivos da pobreza material e consequências materiais do empobrecimento psíquico. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. 182 f. Disponível em: http://www.psicologia.ufrj.br/teoriapsicanalitica.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Rio Branco 2721/1209 - Centro
36010-012 - Juiz de Fora/MG
E-mail: valeriawanda@uol.com.br

Recebido: 10/09/2013
Aprovado: 18/09/2013

 

 

SOBRE A AUTORA

Valeria Wanda da Silva Fonsêca
Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Mestre em Letras UFJF. Especialista em psicanálise Teoria e Clínica e em Psicologia Escolar e Infantil CES-JF. Graduada em Psicologia UNICAP. Representante do Conselho Regional de Psicologia no Conselho Municipal de Assistencia Social de Juiz de Fora/MG.