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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.41 Belo Horizonte jul. 2014

 

 

Momentos de colapso: psicose e testemunho

 

Moments of collapse: psychosis and testimony

 

 

Kristina Valendinova

Tradução: Luís Gustavo Burza

Revisão da tradução: Marília Etienne

IUniversité de Paris Diderot Sorbonne Cité
IICercle Freudien
IIICentre for Freudian Analysis and Research

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O voto de autenticidade do testemunho levanta a questão do que acontece com os indivíduos cujo sofrimento não permite reivindicações para a considerada objetividade histórica, mas que também afirmam o seu direito de servir de testemunhas sobre a verdade de sua experiência. Logo no início, Freud aborda a psicose como um regime especial de verdade, onde o material psíquico revelado pelo sintoma ou é sujeito a pouca elaboração simbólica (alucinação), ou, pelo contrário, é ofuscado pelas intervenções brutais do ego (em delírio). Neste texto, discuto duas das proposições de Lacan sobre testemunho. Em primeiro lugar, a sua ideia do psicótico como “um testemunho do inconsciente” no Seminário III, onde também comenta sobre o discurso testemunhal como um discurso marcado pela relação do sujeito a um determinado objeto, aterrorizante em sua alteridade e ameaçando-o com a dissolução. Em segundo lugar, sua sugestão no Seminário XX, de que a tarefa do testemunho é uma demanda de que “o gozo [jouissance] seja declarado, precisamente na medida em que for inconfessável”. Parece que só se pode testemunhar se quisermos insistir nesse verbo como uma atividade que envolve a dimensão do sujeito do inconsciente; algo que teve, paradoxalmente, o efeito da própria ruína do sujeito devido ao encontro com o enigma do gozo do Outro, pela primazia do corpo sobre a linguagem.

Palavras-chave: Psicose, Testemunho, Primo Levi, Schreber, História.


ABSTRACT

Testimony’s vow of authenticity raises the question of what happens to subjects whose suffering can make no such claims to so-called historical objectivity, but who nevertheless assert their right to stand witness to the truth of their experience. Early on, Freud approaches psychosis as a particular regime of truth, where the psychic material revealed by the symptom is either subject to little symbolic elaboration (hallucination) or, to the contrary, obfuscated by the brutal interventions of the ego (in delusion). In this text, I discuss two of Lacan’s propositions regarding testimony. First, his idea of the psychotic as “a witness of the unconscious” in Seminar III, where he also comments on the testimonial discourse as a speech marked by the subject’s a relationship to a particular object, terrifying in its otherness and threatening him with dissolution. Secondly, his suggestion from Seminar XX, that the testimonial task is a demand that “jouissance be avowed, precisely insofar as it may be unavowable.” It would seem that one may only testify, if we are to insist on this verb as an activity engaging the dimension of truth, to something which has had the effect of one’s undoing: to an encounter with the enigma of one’s jouissance, of the body’s primacy over language.

Keywords: Psychosis, Testemonial, Primo Levi, Schreber, History.


 

 

Psicanálise e testemunho, novamente?

No decorrer das últimas duas décadas, a questão do testemunho tanto quanto um gênero quanto como uma prática se tornou tema de interesse de uma série de disciplinas (direito, história, filosofia, psicologia, Science Studies [estudos científicos] e vários estudos de “área”) e levou ao reconhecimento da “escrita testemunhal” como um gênero literário próprio.1

Alguns desses campos partilham uma abordagem comum para a história essencialmente como um movimento de narração, um arranjo contínuo e seletivo de elementos singulares da experiência passada em pontos nodais significativos, que organizam o presente e estruturam a antecipação do futuro. Por outro lado, a sua compreensão do testemunho como prática muitas vezes difere, em termos de sua força motriz, do posicionamento epistemológico e do significado social e psicológico.

Embora apenas uma parte dessas obras siga uma orientação psicanalítica (muitos agora encaram trauma principalmente como transtorno de estresse pós-traumático [Post Traumatic Stress Disorder]). Trabalhos com base em conceitos psicanalíticos têm sido particularmente comuns na área de crítica literária e cultural agora conhecida como estudos de trauma (vide Ball, 2000): Testimony, Crises of Witnessing in Literature, Psychoanalysis and History [Testemunho, crises de depoimento em literatura, psicanálise e história], de Shoshana Felman e Dori Laub, Unclaimed Experience: Trauma, Narrative and History [Experiência não reclamada: trauma, narrativa e história], de Cathy Caruth, Representing the Holocaust: History, Theory, Trauma [Representando o Holocausto: história, teoria, trauma], de Dominick LaCapra, ou The Longest Shadow [A sombra mais comprida], de Geoffrey Hartman, para listar apenas algumas das obras fundamentais.

Por padrão, esses textos tomam o testemunho como crucial tanto para a libertação individual quanto para a memória coletiva, ainda que mantenham foco em seus paradoxos e impossibilidades, na sua necessária incompletude, nas derrapagens que ocorrem no processo de lembrança e construção narrativa e no fato de que, pelo menos potencialmente, a produção do testemunho pode ser consideravelmente difícil e dolorosa para todas as partes envolvidas. Finalmente, junto com o altamente influente O que resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben, muitas das obras canônicas se concentram principalmente nas narrativas testemunhais do Holocausto dando, assim, origem a críticas da perpetuação de valores e perspectivas eurocêntricas.2

No entanto, a noção de trauma está na própria origem da teoria de Freud, e a centralidade da divisão do sujeito na psicanálise (lacaniana) a torna uma estrutura conceitual eminentemente adequada e produtiva para discutir o testemunho. Eu gostaria de contribuir para uma análise dessa noção do ponto de vista que subverte radicalmente qualquer ideia de conhecimento autotransparente, que postula a narração como sendo sempre não só limitada (pelo que não se sabe), mas como excluindo o que deve permanecer desconhecido, para que o discurso possa emergir. Essa é uma ideia um tanto preocupante, que atinge o cerne do problema do discurso testemunhal e, enfim, frustra qualquer teoria do testemunho como um empreendimento para a construção de significado. Além disso, agradeço a sugestão de Karyn Ball de que o trauma se torna um assunto de interesse precisamente porque nos permite (exige) falar do que na sua opinião tem sido eliminado de uma certa vertente do pensamento acadêmico “pós-humanista” (BALL, 2000), a saber: o sujeito da experiência. Nesse sentido também, eu acho, a psicanálise tem ainda mais a dizer.

O texto fundamental de Felman e Laub aborda a dificuldade do testemunho como a incapacidade do sujeito de narrativizar totalmente a experiência traumática, argumentando que o “remanescente desconhecido”, pode e deve ser recriado no processo analítico (FELMAN; LAUB, 1992, p. 204-205). O testemunho, Felman argumenta, é uma prática de desenhar a fronteira entre o que ela chama de testemunho “dentro” e “fora”, ou seja, o cenário passado de violência e o presente cenário de sua narração, atravessando-o e, ao mesmo tempo, deixando aparecer “uma forma particular de olhar”. Crucial para isso é a figura do ouvinte simpático; no entanto, apesar de sua ênfase na centralidade do lugar do O/outro na situação de testemunho, o comentário de Felman e Laub, em última instância, não oferece respostas para o que torna essa reconstrução possível. Somado a isso, o modelo de trauma, o qual Felman parece derivar de Freud, aparece essencialmente dessexualizado, no sentido de que o evento psíquico não é contaminado pela fantasia inconsciente do sujeito.3 A esse respeito ela não está por certo sozinha: dada a dimensão social e humana dos crimes nazistas, averiguar as particularidades íntimas de tal trauma é um assunto mais do que delicado. Em seu ensaio sobre o escritor italiano e sobrevivente de campo de concentração Primo Levi, cuja escrita eu discuto mais adiante neste texto, o psicanalista Jean-Jacques Blévis admite a posição de alguns,

[...] entre eles muitos psicanalistas, que se opõem à própria ideia de que o trauma de sobreviventes deve ser concebido para além da própria experiência do campo de concentração (BLÉVIS, 2004, p. 1754).

Em um movimento que visa combater essa tendência “sacralizadora”, O que resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben, também discute a representatividade do trauma e seu papel nas origens do testemunho. Agamben considera a ideia do Holocausto como “o evento indizível” eticamente falha e argumenta que o paradoxo do discurso testemunhal está não do lado da própria linguagem nem do lado do “conteúdo” fatual do evento, mas na presença de algo que confronta o sujeito com a impossibilidade radical de conhecimento. Essa impossibilidade é representada pela figura de Górgona, também evocada no texto de Levi, como a impossibilidade de apreender uma imagem que continua simultaneamente a invadir o campo visual, a se mostrar (AGAMBEN, 1999, p. 57). Na leitura de Agamben sobre Levi, o testemunho toma forma no ponto de interseção entre a linguagem faltante do sobrevivente e a ausência de discurso do lado da vítima. O “humano” não é mais que o mandante do discurso não realizável do “desumano”, e o surgimento do testemunho é “um processo ou um campo percorrido incessantemente pelos fluxos de subjetivação e dessubjetivação” (AGAMBEN, 1999, p. 132, [T.L.T.].

A minha própria compreensão da origem do testemunho está perto da noção de Agamben sobre “uma divisão radical entre saber e falar” (AGAMBEN, 1999, p. 134). No entanto, eu entendo essa divisão por meio das categorias do Real e do Simbólico de Lacan (que a discussão de Agamben contorna, mas não faz referência), como um racha entre o não simbolizável e o simbolizável. Eu também entendo isso como uma divisão entre a fala simultânea da testemunha a um outro como sujeito e audiência, e falando sobre um outro como um objeto enigmático e perturbador cuja presença invasora contínua a ser sentida de forma aguda.

 

Testemunho e psicose

Fiquei interessada no problema do testemunho por meio do que é liminar à psicanálise em si: as chamadas psicoses, especialmente paranoia e esquizofrenia. Minha investigação gira em torno de duas questões: primeiro, o que acontece à nossa compreensão do testemunho se alargarmos o seu escopo à psicose; segundo, como a noção do discurso e da escrita testemunhais pode elucidar a relação complicada e ambivalente entre a neurose e a psicose na teoria freudiana. O voto de autenticidade no coração do testemunho levanta a questão do que acontece com os indivíduos cujo sofrimento não pode fazer reivindicações para o que é considerado objetividade histórica, mas que também afirmam, por vezes, muito ardentemente, o seu direito de servir de testemunhas para a verdade de sua experiência. Se concedermos a eles esse status, que tipos de perguntas devemos fazer sobre a nossa compreensão do testemunho, para que tipo de autenticidade e para que tipo de verdade possivelmente eles podem depor?5 Sugiro que em sua exteriorização radical do que é tão íntimo mas profundamente sentido como outro, devemos entender o relato do paranoico como um limite para o esforço testemunhal, e não como uma prova de seu colapso total. Além de que, narrativas em primeira pessoa sobre a psicose podem e devem problematizar o nosso pensamento sobre outros tipos de testemunho.

Embarcando em um projeto arqueológico como o que Mowitt pede e centrando na noção de psicose na própria obra de Freud, descobrimos que, embora a condição psicótica frequentemente estabeleça o limite de até que ponto o seu método pode chegar, ela nunca é pensada como simplesmente desrazão. Desde muito cedo Freud estabelece a psicose como um regime especial de verdade, fazendo com que o sintoma psicótico seja particularmente propenso a revelar a realidade do inconsciente. A psicose desempenha um papel fundamental em muitos pontos de virada da teoria freudiana (a escolha da neurose e o abandono da teoria da sedução,6 a conceituação de narcisismo (FREUD, 1914) ou o problema de fetichismo (FREUD, 1927) e seu acesso privilegiado ao funcionamento interno da psique é instrutivo à própria psicanálise, como evidenciado pelo incentivo de Freud à sua exploração psicanalítica, embora em geral ele permaneça cético sobre sua maleabilidade através da técnica psicanalítica. Esse acesso privilegiado pode ser pensado como um deslocamento de elementos internos fora da psique, de modo que o sujeito os encontra como externos e menos distorcidos pela força da censura. Vemos isso não só na leitura de Freud sobre Schreber, no caso de Frau P. no início dos trabalhos das neuroses de defesa, mas também em sua análise de Gradiva, de Jensen, onde a força convincente da ilusão reflete uma verdade perfeitamente articulada, mas impossível de ser assumida pelo sujeito. Adicionalmente, Freud às vezes também sugere que os sintomas psicóticos revelam elementos mnêmicos que foram inscritos na psique num nível mais profundo e permanecem fora de qualquer tipo de organização semântica, consciente ou não. Isso é especialmente claro na teorização de Freud do mecanismo de alucinação e remonta a um de seus trabalhos iniciais no início do Projeto ou no capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900). Neste último caso, as alucinações são associadas com a força de atração de certos tipos especiais de memórias, que datam do início da infância e [estão] presentes na psique “meramente como encargos visuais, e não como uma tradução para os sinais dos sistemas subsequentes” (FREUD, 2006, p. 591 [T.L.T.]). Essas memórias como tal não têm significado para o sujeito; não são, poderíamos dizer, subjetivadas de qualquer maneira, e sua reapresentação através da alucinação do sonho ou o seu homólogo mórbido na psicose constitui uma forma de satisfação em si mesma. Apesar das reviravoltas teóricas, o sujeito psicótico é, portanto, constantemente reconhecido como tendo (ou melhor, sendo exposto a, uma vez que não pode ser reconhecido como o próprio) um certo conhecimento liminar que interessa profundamente à psicanálise e da qual ele ou ela se torna um meio especialmente vocal.

Isso é patente na leitura de Freud do presidente Schreber, cujo livro Memórias de um doente dos nervos eu discuti em detalhes na minha tese de doutorado (VALENDINOVA, 2010).7 Para Freud, os delírios de Schreber – como resultado de uma conspiração divina, ele deve ser transformado em uma mulher e usado como um recipiente reprodutivo para uma nova raça humana – representam o retorno do recalcado, de uma vontade-fantasia erótica dirigida fundamentalmente para o pai de Schreber. Isso foi radicalmente destacado do ego e agora retorna ao sujeito como se [viesse] do lado de fora (“O que foi abolido internamente retorna por fora” (FREUD, 1911, p. 70). A ilusão, mesmo assim, só se cristaliza após um período de retirada libidinal – o “fim-do-mundo” de Schreber, em que o mundo objetal não desaparece completamente, mas se torna morto para o sujeito, esvaziado de toda presença humana.

A convicção de Schreber de sua própria “morte” enfatiza essa descontinuidade radical da experiência. Seu testemunho só começa a tomar sua forma fantástica uma vez que os cerca de três meses de período de estupor alucinatório, situado cronologicamente em algum momento na primavera de 1894, foi encerrado. Esse “tempo sagrado”, rico em todos os tipos de produção milagrosa, era também um tempo “em que era impossível fazer anotações” (SCHREBER, 2000, p 70). A missão do livro de Schreber é, portanto, em primeiro lugar reconstruir os eventos que levam a essa narrativa anti/clímax, sua transformação atual e em curso em uma mulher. O resultado é uma mistura fantástica, um livro de memórias de uma conspiração divina, lembrando, como o título alemão Denkwürdigkeiten sugere, coisas que das quais “valem vale a pena lembrar” e que, por sua vez, ajudam a elaborar e fixar as coordenadas básicas da visão de mundo delirante de Schreber.

O texto mostra um esforço em localizar as fontes das dificuldades de Schreber, mas também a sua luta para encontrar um compromisso entre a consciência dolorosa de uma grande mudança interior e o (re)emergente mundo de objetos. É seguro dizer que tudo o que induz o processo de escrita coincide com a realização de Schreber de seu “erro” em pensar que o mundo acabou. No entanto, se de fato a composição do texto ajuda a elaborar uma ilusão estável o suficiente, esse processo está longe de ser autoevidente e, naturalmente, levanta a questão de o que vem primeiro: a relação entre o processo de escrever (o que, no caso de Schreber é explicitamente reivindicado como um testemunho, produzindo conhecimento de interesse praticamente mundial: científico, religioso, psicológico...) ou a impressionante estabilização psíquica que foi atingida depois que o sujeito havia de fato chegado muito perto de sua aniquilação psíquica. Que tipo de conhecimento esse tipo de escrita elabora? Podemos pensar nele como testemunho? E se é verdade, como Geoffrey Hartman argumenta, que “o testemunho não é uma história com desejo narrativo”,8 o que mais pode impulsioná-lo?

A leitura de Lacan do presidente Schreber no Seminário III, As psicoses ([1955-1956]1993) retorna a Freud; no entanto, ela enfatiza fenômenos linguísticos entre os sintomas de Schreber, no esforço de trazer para o primeiro plano a diferença conceitual entre os três registros do Simbólico, o Imaginário e o (ainda subdesenvolvido) Real. Ele então trata o sintoma psicótico como o efeito de uma falha na inscrição do sujeito na rede da linguagem, uma falha em admitir (e recalcar) o significante primordial em um momento lógico particular da infância do sujeito (Bejahung). Lacan tenta mostrar que a ausência desse significante no plano simbólico resulta em seu retorno “no Real”, como fala alucinatória. Isso levanta questões sobre o status do inconsciente (sem Bejahung, pode haver recalque?), do trauma e da historicidade na psicose, e sobre a preocupação do paranoico com a questão da origem, que se manifesta singularmente na criação de uma ilusão.

Curiosamente, no Seminário III, Lacan se refere repetidamente ao psicótico como a testemunha do inconsciente:

Em suma, pode-se dizer que o psicótico é um mártir do inconsciente, dando a este termo mártir o seu significado, que é a de ser uma testemunha (LACAN, [1955-1956] 1993, p. 132 [T.L.T.]).

O discurso testemunhal é aqui abordado em seu duplo movimento de falar para – falar com o Outro, para a audiência, que é convidada a reconhecer o discurso como verdadeiro testemunho – e falando sobre – sobre si mesmo como um objeto, sobre aquilo a que se foi exposto. Lacan nos mostra que, na psicose, ambos os vetores são problemáticos. Porque todo discurso implica passar através da linguagem como o campo do Outro, [nesse sentido] a relação simbólica entre dois sujeitos é fundada sobre a possibilidade generalizada de um mal-entendido. Ao mesmo tempo, a relação do sujeito para com o outro como um objeto (incluindo o ego como um objeto de seu testemunho) tem suas origens na ordem imaginária, onde o ego é alienado no outro.

Para ilustrar isso, Lacan (1993) usa uma vinheta clínica de uma paciente psicótica que, quando entrevistada, foi capaz de “manter-se no limite da ilusão”, na medida em que ela não só foi capaz de falar para um outro, mas estava zombando dele e tentando enganá-lo. Lacan afirma que é somente em seu discurso para o outro que o psicótico existe como um sujeito no sentido próprio. Mas, então, há um outro nível: ela também fala sobre si mesma como um outro como um objeto, e um muito especial, o objeto comum de interesse tanto do entrevistador quanto do entrevistado. Aqui ela desliza para a posição delirante. Ainda é ela a falar, mas uma dimensão diferente do objeto é revelada, como algo muito interessante e envolvente (Lacan diz que o objeto é brûlant, queimante [burning hot], e aqui, diz Lacan, um pouco inesperadamente, ela está testemunhando. Testemunho não é, ele acrescenta, simplesmente comunicação, mas um discurso que revela a dimensão subjacente da relação imaginária, onde o ego é pego pelo seu duplo. Lacan acrescenta que tudo ao que

[...] atribuímos valor como comunicação é da ordem de testemunhar. Comunicação desinteressada é, em última análise, só testemunho falho, isto é, algo sobre o qual todos estão de acordo (LACAN, [1955-1956] 1993, p. 38).

Ele, então, retoma brevemente o conceito de conhecimento paranoico, cunhado em sua tese de 1932, onde defendeu que a consciência paranoica é um modo radicalmente diferente de organização de representações psíquicas, com base na congruência dos temas de tendências inconscientes do sujeito. O termo também é usado em seu trabalho de 1946, Formulações sobre a causalidade psíquica, onde connaissance (ao contrário de savoir, que só diz respeito ao inconsciente) já está associada com a relação especular, e o conhecimento paranoico se torna crucial para a compreensão tanto da experiência psicótica quanto da gênese do ego, essencialmente alienado. Essa forma primordial da relação com o objeto nunca é totalmente eliminada do psiquismo e persiste como um “Urbild”, um desenho ou sintaxe originais. Dessa forma, no Seminário III Lacan é capaz de afirmar que todo conhecimento do objeto é originalmente paranoico e que o testemunho como expressão desse modo de relação de objeto, como a fala, tanto para quanto sobre, existe a meio caminho entre o aprisionamento imaginário e sua superação no discurso desinteressado.

Não é à toa que, em Latim testemunho é chamado testis e que uma pessoa jura pelos seus culhões. Em tudo na ordem do testemunho há sempre algum compromisso por parte do sujeito, e uma luta virtual em que o organismo está sempre latente (LACAN, [1955-1956] 1993, p. 40 [T.L.T.]).

Conceitualmente, no Seminário III a polaridade entre o conhecimento paranoico do objeto “queimando” e a fala desinteressada, que mantém esse objeto ao largo, corresponde aos registros do Simbólico e do Imaginário, a distinção entre eles é, como eu já disse, uma das principais preocupações de Lacan aqui. No entanto, eu diria que sua linguagem já sugere uma colocação em primeiro plano, mais tarde, do registro do Real, considerando também as frequentes referências de Lacan ao corpo. Ao dizer que, na paixão de testemunhar, o objeto recupera o seu apelo primário aterrorizante, sua “alteridade primitiva” – nós somos lembrados da introdução, mais tarde, de ambos o Das Ding freudiano e do objeto a.

Nas Memórias, de Schreber, o ato de testemunho como falar para os outros só se torna possível quando o fascínio do objeto não é mais completo, quando já não comanda toda a atenção do sujeito. Embora a cronologia interna da narrativa de Schreber seja profundamente não confiável, o início do processo de escrever suas memórias está conectado ao reaparecimento do mundo dos outros como seres humanos (e não impostores imaginários), em que a sua mensagem pode ser recebida. Isso, por sua vez, depende do desvanecimento das vozes alucinatórias, da retirada de Deus como o não barrado, Outro predatório. No entanto, essa retirada nunca é completa. Apesar de, no momento da publicação de suas Memórias, Schreber estar muito preocupado com as chances de seu testemunho ser levado a sério, ele localiza o poder de conceder tal reconhecimento em uma posição que continua a ser ocupada por uma série de muito problemáticos outros. Entre eles está o vilão-chave de sua ilusão e o destinatário da Carta que introduz as Memórias, o doutor Flechsig, do Asilo de Leipzig para alienados. Nessa curiosa carta, Schreber acusa publicamente Flechsig de ter feito parte do plano original que visava a destruição de Schreber e, ao mesmo tempo, ele lhe implora para deixar de lado suas “suscetibilidades” pessoais no interesse da ciência e ter a “coragem da verdade” para confirmar a autenticidade do relato de Schreber. A entrada de Flechsig é aqui necessária apesar de Schreber estar pessoalmente certo da verdade de sua experiência: de fato, alguns de seus elementos (como a sua transformação em mulher) – funcionam como dispositivos de interpretação que não podem ser postos em questão.

Então, o psicótico testemunha para quê? No entendimento de Schreber, ele dá testemunho de um evento de proporções majestosas, um “aluguel” na estrutura do universo, e da sua própria posição no centro desses desenvolvimentos. De acordo com Lacan, ele testemunha para uma certa mudança na relação do sujeito com a linguagem própria à psicose (que poderíamos muito aproximadamente descrever tanto como uma erotização disso e uma submissão do sujeito a isso), onde o aspecto mais importante é que “isso fala” em todos os lugares do lado de fora: o objeto do testemunho é, portanto, “a estrutura desse ser que fala para o sujeito”, e seu status paradoxal pode explicar os vetores contraditórios desse tipo de testemunho. Vemos que, se a possibilidade de discurso testemunhal implica um certo abandono do objeto queimante, um afastar-se para o Outro social, no caso de Schreber, a natureza do vínculo com esse objeto é tal que o potencial da sua dissolução o ameaça com um colapso completo. Dessa forma, o objeto continua a ser o interlocutor mais importante e Schreber é incapaz de renunciar à sua posição privilegiada, pois sua consistência como sujeito continua a depender disso; o simbólico toma-lá-dá-cá, implícito no desejo de reconhecimento pelos outros, portanto, não pode ser concluído.

 

Testemunhos aberto e fechado

No entanto, até que ponto isso pode ser dito também de outros testemunhos e o que o exemplo da psicose pode contribuir para a nossa compreensão do processo do testemunho como tal? Lacan sugere que a relação do sujeito com o objeto de seu testemunho, um objeto aterrorizante em sua alteridade absoluta, é uma dimensão recuperada em todos os atos de testemunho: em todos esses atos, essa alteridade constitui um ponto de desintegração subjetiva, onde a temporalidade é momentaneamente abolida, apenas para ser lentamente remendada no trabalho de testemunhar. Esse aspecto se torna mais proeminente com a ênfase que Lacan (1964), mais tarde, coloca sobre o registro do Real. Na discussão dos sonhos traumáticos no Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ele designa certos fenômenos da vida mental (como o exemplo do despertar ou certos pesadelos traumáticos) como momentos privilegiados do sujeito ao se aproximar do Real além da linguagem, um encontro que coloca o sujeito radicalmente em questão. A função de um sonho como um processo de interpretação simbólica é, então, produzir um envelope significante, que pode encobrir esse além Real.9 Sua discussão do tema do sonho me parece muito útil na tentativa de compreender a posição subjetiva particular e altamente tênue da testemunha. No meu entendimento, o sujeito guiado pelo desejo de testemunhar deve também ser irremediavelmente marcado por tal encontro com o Real, e seu testemunho necessariamente surge, em certa medida, como uma instância de defesa, a partir desse momento muito liminar.

Uma vez que o Real, por definição, resiste à simbolização, a formação resultante será necessariamente mista e inconsistente. O que Ellie Ragland (2001) chama de “conhecimento afetivo que cavou suas marcas na carne”, “empurra reconstruções imaginárias para longe”, revelando-se, assim, através de silêncios, imagens insistentes, quebras temporais... (RAGLAND, 2001). No trabalho de muitos dos teóricos associados aos “estudos do trauma [trauma studies]” essas lacunas e elementos “imobilizados” são reconhecidos como a própria fonte de trabalho simbólico e até mesmo criativo, que é realizado como uma reação a essa aproximação do limite, semelhante ao entendimento de Lacan do trabalho significante do sonho. Por exemplo, em sua discussão sobre The Prelude [O prelúdio], de Wordsworth, Geoffrey Hartman fala de “pontos de tempo [spots of time]” – momentos em que o olhar do poeta está como/se preso por um elemento altamente carregado e singular, geralmente uma imagem visual. No comentário de Hartman, essas imagens marcam momentos de falha ou “bloqueio” do processo simbólico, que é então reiniciado precisamente em resposta a eles, e consiste em seu “desbloqueio”, ou “perda”. Em seu entendimento, que eu compartilho, é precisamente a dimensão figurativa da linguagem que é mais apta a transmitir o que ele chama de “cognição traumática” (“conhecimento afetivo” de Ragland) e o que podemos entender como a insistência do Real além da linguagem.

Hartman (1995, p. 552, [T.L.T.]) conecta “o poder formativo e deformativo de tais fixações com a “fome de realidade, ou um desejo compulsivo pelo ‘Real’”. Embora nessa passagem particular, ele não pareça estar usando a palavra “real” na mesma forma que Lacan em sua discussão do trauma, seu argumento é interessante no que diz respeito à minha leitura de Se isto é um homem, The Awakening [O despertar] e Os afogados e o sobreviventes, de Primo Levi.10 Levi não só fala de uma “necessidade patológica de escrever”, que ele sentiu logo após seu retorno de Auschwitz, mas seu texto frequentemente se posiciona próximo a uma ideia particular de escrita científica, que adere aos rigorosos códigos de legibilidade, compreensão, escolhas de léxico tecnicamente precisas e neutralidade afetiva. Seu ideal de comunicabilidade reside na autoanulação da testemunha em face dos objetos e eventos descritos, bem como sendo, como Hayden White (2004, p. 115) coloca, “esvaziado de uso figurativo e totalmente expurgado de tropos ‘retóricos’”. Todavia, paradoxalmente (e felizmente), a linguagem própria de Levi falha completamente em efetuar tal “purga”. A narração de seu primeiro livro de memórias de Auschwitz, Se isto é um homem, faz muitas alusões inteligentes e elegantes à história do Inferno, de Dante (ver também GUNZBERG, 1986; KELLY, 2000; WHITE, 2004; PORTNOFF, 2009). Ele tem um carinho manifesto pelo imaginário da mitologia grega antiga, e seu texto geralmente está repleto de metáforas e alusões.

O relato de Levi inclui vários sonhos e fragmentos de sonhos, onde encontramos elementos que se assemelham aos “pontos de tempo”, de Hartman, mais conhecidamente no caso de um sonho descrito em ambos Se isto é um homem e The Awakening, que mais tarde é trabalhado no famoso poema de Levi Réveille. Aqui, cada uma das estrofes, descrevendo alternadamente cenas pacíficas de regresso à casa e o pesadelo de um campo de concentração, é pontuada com a palavra “Wstawac”, um comando polonês que significa “levanta” e era usado pelo guarda de campo ao acordar os prisioneiros todas as manhãs. Na segunda versão do sonho (supostamente sonhado depois do retorno de Levi para casa), a palavra é ouvida depois de uma cena de sonho de uma calma vida pós-acampamento, que se dissolve em um vórtice de um “nada acinzentado”, um buraco cheio de angústia, do qual o sonhador emerge para a realidade do campo, uma realidade à qual ele parece ter sido condenado para sempre. Estou interessado no uso que o sonho faz dessa palavra estrangeira – tão cheia de significado e ao mesmo tempo opaca e esquisita. Aqui também poderíamos falar de um “ponto”, um colapso momentâneo de significado e uma antecipação da voz em sua alteridade alucinatória. Além disso, qual é a relação entre o anúncio de “Wstawac”, o senso de convicção do sonhador (“Eu sempre estive no campo”) e a ansiedade profunda que antes havia interrompido o curso do sonho, abolindo temporariamente todos os meios de representação? De um espaço a outro, um registro do sonho acaba (a cena metafórica do ambiente familiar) e outro assume, em que as cenas não mais mantêm sua polida distância. Se o sonho pode efetivamente ser pensado como uma tela, aqui a tela certamente se rompeu.

Podemos considerar esse momento liminar como sendo de alguma forma “estruturante”, de forma semelhante ao “desfazer [perda]” (no sentido de Hartman [2002]) da imagem através de um trabalho simbólico? Em primeiro lugar, no nível do sonho, a cena do acampamento e de sua rede de significações surge como um efeito dessa invocação. Não importa o quanto aterrorizante, “Wstawac” marca claramente uma tentativa de segurar a ansiedade, uma instância de “segurar as pontas do sujeito” no sentido mais literal, de deixar o terreno da não representação em favor da representação, de uma economia psíquica diferente? A partir dessa perspectiva, o sujeito que está sozinho no “nada acinzentado” não é o mesmo que aquele que crê estar de volta no campo.

Um paralelo intrigante aparece entre a invocação do sonho de Levi e um episódio especial nas Memórias, de Schreber, onde Schreber descreve um evento excepcional e único, uma instância de chegar perto da “onipotência de Deus em sua pureza total.” Aqui também o anúncio é pessoal e absoluto, ligado ao que mais tarde é reconhecido como a mais pura verdade do sujeito – a sua condenação e seu “destino de ser destruído” pelo Outro.

A impressão foi intensa, de modo que qualquer pessoa não endurecida para aterrorizantes impressões miraculosas como eu estava, teria sido abalada até o coração. Também o que foi dito não parecia amigável, por nenhum meio; tudo parecia calculado para incutir medo e terror em mim, e a palavra “miserável” [Luder] era frequentemente ouvida – uma expressão bastante comum na linguagem básica para denotar um ser humano destinado a ser destruído por Deus e a sentir o poder e a ira de Deus. Ainda tudo o que foi falado era genuíno, e não frases aprendidas de cor como foram mais tarde, mas a expressão imediata de sentimento verdadeiro (SCHREBER, 2000, p. 131, [T.L.T.]).

Em sua ressonância estranha, tanto o “Wstawac”, de Levi, e o “miserável”, de Schreber, chegam perto do que na última palestra do Seminário XI Lacan ([1964] 1998) designa como o aspecto real do significante: “sem sentido, irredutível, traumático” um significante para além de todo significado, ao qual “o sujeito está sujeito”.11 É nesse sentido que entendo a surpreendente proposição de Lacan no Seminário XX, Mais ainda (1972-1973), onde ele retorna brevemente para a questão do testemunho. Evocando a “inteira verdade” que uma testemunha é habitualmente pedida a professar, Lacan contesta:

Como, infelizmente, poderia? Exigimos dele toda a verdade sobre o que sabe. Mas, na verdade, o que se pretende – especialmente em um testemunho legal – é aquilo com base em que se pode julgar o seu gozo (LACAN, [1964] 1998, p. 92).

Parece que só se pode testemunhar se quisermos insistir nesse verbo como uma atividade especial que envolve a dimensão do sujeito do inconsciente, algo que teve paradoxalmente o efeito da própria ruína do sujeito devido ao encontro com o enigma do gozo do Outro, pela primazia do corpo sobre a linguagem.

Isso, então, seria o caso em todos os atos de testemunho. No sonho de Levi também somos confrontados com um devastador e sádico Outro, cuja invocação detém temporariamente um controle absoluto sobre o sonhador. No entanto, podemos argumentar que o trabalho simbólico e figurativo que Levi então se compromete é tentar canalizar o gozo do Outro nele contido, ao solicitar o significante matriz da castração,12 no sentido de abrir seu depoimento para o equívoco de interpretação, algo que a testemunha psicótica é incapaz de fazer.

No Seminário III, Lacan insinua uma distinção similar, no nível textual, entre o testemunho “fechado” do neurótico, que deixa os elementos da narrativa abertos para elaboração e deve ser decifrado, e o testemunho “aberto” do psicótico, organizado em torno de dejetos textuais imutáveis demarcando a erupção do enigma para dentro da vida consciente do sujeito. Como mais tarde ele acrescenta, nem o relato de Schreber, nem na sua poesia são capazes de forjar novas metáforas.13 No episódio descrito acima, as conotações nitidamente eróticas do Luder alemão determinam completamente o destino delirante de Schreber: a ameaça da condenação absoluta, a “miséria” implícita pela possibilidade de Deus se afastar e o imperativo de seu suspenso prazer voluptuoso como sua noiva devem ser entendidos muito literalmente. O evento supostamente acontece dentro do estado crepuscular profundo de seu mais intenso período psicótico, mais que um ano antes da data que ele aponta como sua “reconciliação” com o plano divino e o início de suas anotações. Ainda assim, nós certamente podemos pensar no insulto como introduzindo algo crucial: uma total identificação, em torno da qual toda a vocação delirante é posteriormente organizada. O testemunho de Schreber nos oferece um conhecimento já largamente sistematizado que, apesar de suas muitas incongruências, não “está em discussão”, um conhecimento que ele quer que recebamos e reconheçamos. O apelo do psicótico pode, assim, ser visto como uma necessidade de um endereçamento: nesse sentido, o imperativo de Lacan de que o analista deve ser “um secretário do louco” soa cada vez mais verdadeiro.

 

Referências

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Endereço para correspondência
76 Pellerin Rd, London N168AT, United Kingdom
E-mail: kvalendin@gmail.com

Recebido: 28/03/2014
Aprovado: 07/04/2014

 

 

SOBRE A AUTORA

Kristina Valendinova
PhD em História da Consciência, University of California Santa Cruz (2010.Pesquisadora associada à Université de Paris Diderot Sorbonne Cité. Membro do Cercle Freudien em Paris. Trainee no Centre for Freudian Analysis and Research em Londres.

 

 

1Por testemunho me refiro ao esforço mais ou menos explícito do sujeito para dar conta de sua experiência e para ser reconhecido por um outro ou outros como uma versão autêntica e verdadeira, fornecendo uma perspectiva única e singular do que é pertinente ao coletivo, para se tornar, conforme Shoshana Felman define, “semanticamente pertinente” (FELMAN, 2002, p. 127). Neste artigo, minha discussão diz respeito apenas a testemunhos de vítimas sobreviventes que não somente declaram a si mesmos como vítimas, mas também que elaboram seu depoimento através da escrita. Como tal, está conectado à noção psicanalítica de trauma. Se alguma das conclusões que eu alcancei puder ser estendida para outros tipos de testemunhos – sejam legais, sejam científicos – como uma questão relevante, isso estaria além do escopo deste artigo.
2Embora eu tenha problema com algumas das suas interpretações da teoria e da prática psicanalítica (por exemplo, ela parece pensar que o objetivo da cura psicanalítica é uma “integração” do que o sujeito acha incongruente em si mesmo), para a crítica do racismo e do eurocentrismo em estudos de trauma, a discussão de Kali Tal é muito útil. Ver: TAL (1996), especialmente os cap. 2 e 3.
3Talvez isso também possa estar relacionado com o que Freud Mowitt chama em seu provocativo ensaio homônimo “inveja do trauma.” Especificamente, Mowitt critica “um apelo ao trauma como um conceito através do qual se obtém acesso ao Real”, de Slavoj Žižek, e argumenta que, ao fazer tal ligação entre o “vazio” do trauma e da “essência não essencial” do sujeito e, portanto, de qualquer agência subjetiva, a psicanálise lacaniana não apenas tenta “dar a última palavra” sobre a matéria traumática, mas esta mesma teorização é uma expressão de sua própria inveja do trauma, ou seja, a vontade de adquirir autoridade moral apelando para uma injúria. A solução de compromisso de Mowitt é a busca sistemática de uma “arqueologia da psicanálise”, incluindo o conceito de trauma, um projeto no qual o meu próprio trabalho visa se inscrever. Ver MOWITT, (2000).
4As versões em português das obras citadas no artigo foram traduzidas livremente pelos tradutores. Doravante, indicado apenas [T.LT.]: tradução livre dos tradutores.
5Juntar psicose e testemunho pode parecer menos intuitivo já que a perda ou interrupção da agência narrativa tem sido considerada uma das características da doença psicótica ou, mais recentemente, como o sinal da incapacidade do ambiente de entender e, teoricamente, abranger os tipos peculiares de histórias que pacientes psicóticos contam (BALDWIN, 2006; LYSAKER et al., 2007; LYSAKER et al., 2008; ROE; DAVIDSON, 2005).
6O fato de que “na psicose mais profunda a memória inconsciente não irrompe, de modo que o segredo das experiências de infância não é revelado nem mesmo no delírio mais confuso” é um dos quatro argumentos que Freud dá a Fliess em sua famosa carta de 21 de setembro de 1897, em que anuncia a sua desistência de sua Neurótica.
7Para outra análise de Schreber, ver, por exemplo, SANTNER, (1996); Prado de Oliveira, (1996); Mannoni, (1969); DEVREESE (1996).
8Ver CARUTH, (1996). Esse argumento certamente merece uma discussão separada. Hartman explica que o que ele quer dizer é, em primeiro lugar, que “os testemunhos não são histórias sobre superação de obstáculos por astúcia ou outras qualidades, de modo a sobreviver” e, em segundo lugar, “não havia nenhum futuro”, e as histórias refletem isso pela falta de elementos de suspense, presságio, etc.
9Conforme colocado pela psicanalista Colette Soler (1999, p. 176, tradução livre): “Não é que o sonho mente. Seria melhor dizer que ele porta a brutalidade do gozo à margem ou que submete o corpo na homeostase e divergência do princípio do prazer, o último não tendo outro objetivo que amortecer o gozo. Sonhar é então uma defesa: um caso particular de defesa contra o real”. [“It is not that the dream lies. We should better say that it holds the brutality of jouissance at bay or that it tames the body in the homeostasis and diversions of the pleasure principle, the latter having no other aim but to cushion jouissance. Dreaming is therefore a defense: a particular case of defense against the real.]”
10Para uma discussão extensiva, ver o cap. 5 de minha tese (VALENDINOVA, 2010). Embora ambos apresentem relatos de extremo sofrimento psíquico, o que estou tentando fazer ao ler em paralelo os textos de Levi e Schreber obviamente não é emparelhá-los em termos de sua fundamentação na atualidade histórica, mas a expectativa de levantar a questão acerca de sua posição subjetiva.
11Isto também prenuncia sua tardia designação da voz como uma das encarnações do objeto a, o produto [by-product] da operação de separação-alienação e uma lembrança do gozo perdido do sujeito. No Seminário XIII, O objeto da psicanálise, Lacan (1966) menciona o objeto a como o que solicita que o sujeito acorde.
12O uso da metáfora da Górgona feito por Levi (como uma figura cegante, castradora por excelência; ver o artigo de 1922, de Freud) in The Drowned and The Saved, para descrever o que ele imagina que deve ser "atingir o ponto", isto é, a experiência daqueles que pereceram nos campos, é outro caso em questão.
13O psicótico, no sentido em que ele é, numa primeira aproximação, uma testemunha aberta, parece preso, imobilizado em uma posição que o deixa incapaz de restaurar autenticamente o sentido do que testemunha e partilhar isso no discurso dos outros (LACAN, 1993, p. 127, [T.L.T.]).

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