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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.42 Belo Horizonte dez. 2014

 

 

A construção da realidade através do brincar

 

The construction of reality through play

 

 

Sabrina Barbosa Sironi

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo teórico e clínico no campo psicanalítico instiga os impulsos criativos e se constitui a matéria-prima do brincar que conduz à experiência cultural. Mas isso é possível pelo doloroso reconhecimento pelo lactente de que seus sentimentos de amor e ódio se dirigem à mesma pessoa, permitindo que a introjeção e a projeção se manifestem nas relações objetais desde o início, bem como à capacidade de superar os limites externos, o que leva à sublimação pulsional. Se o bebê suporta a frustração, ele pode usar o aparelho psíquico para produzir representações, simbolizações sem o incremento dos sentimentos persecutórios. Isso favorece a criatividade e a capacidade para brincar, tolerar e modificar os efeitos da pulsão destrutiva. Nesse processo do brincar, crianças e adultos se tornam criativos, espontâneos e acessam o verdadeiro self, ressignificando as limitações externas, o sentimento de abandono e o uso de defesas como a onipotência e a negação para construir uma realidade significativa a partir da existência de um eu.

Palavras-chave: Brincar, Criatividade, Eu (self).


ABSTRACT

The psychoanalytic process provides opportunity for developing experiences and creative impulses, constituting the prime material of playing and leading cultural experience. But this is possible through the painful recognition by the infant that his feelings of love and hate are directed to the same person only, allowing the introjection of good objects leading to sublimation of instinct. If the baby tolerates frustration, he uses his psychical apparatus to ward off persecutory feelings. This favors the symbolic, creativity and the ability to play and to bear and rework effects of the destructive drive. At the playing process, children and adults can be creative, use their full personality to discover their true self, to support and accept limitations, to abandon omnipotence and build a meaningful reality trough the the existence of a self.

Keywords: Laying, Creativity, Self.


 

 

Nesse semestre de 2014 pensei em iniciar supervisão à medida que escutava casuísticas relatadas por colegas e por coordenadores nos seminários de formação. Ao ler alguns casos expostos nos textos, percebi a difícil e instigante prática psicanalítica. O quanto aquilo que constitui o mundo interno influencia e transforma a percepção do mundo externo, assim como altera e influencia nosso mundo interno sob a ação das fantasias inconscientes. Cito alguns casos para ilustrar essas questões.

O livro O brincar e a realidade, de Winnicott (1971), traz o caso de uma mulher de meia-idade que só podia se adaptar numa base de submissão, representando o papel que lhe fora atribuído em brincadeiras da infância. Enquanto fantasiava dessa forma, mantinha-se dissociada e alimentava uma série de frustrações na tentativa de se tornar uma pessoa total. Com o tempo ela começou a se assustar em sua análise ao perceber que sua onipotência a mantinha nas coisas maravilhosas que só podiam ser alcançadas em um estado de dissociação. Assim que essa paciente começou a pôr em prática coisas como pintar ou ler, descobriu algumas de suas limitações e acabou abandonando sua onipotência, lidando melhor com suas frustrações e construindo uma realidade.

Outro exemplo é uma paciente que se deu conta de que queria fazer coisas que agradassem o analista, desabafando do inferno de ter recebido uma educação religiosa: “malditas sejam as boas meninas!” Desabafa também do desejo de parar de procurar e somente ser. A procura é a evidência de que existe um eu (self), pois, a partir do buscar, a partir da pergunta, seria possível postular a existência de um eu.

Esses casos mostram a importância do brincar, da transicionalidade que está no encontro entre o mundo psíquico e o mundo socialmente construído.

Segundo Winnicott (1975, p. 92-93), a transicionalidade só pode vir a partir do brincar, uma zona intermediária entre a fantasia e a realidade, uma área de ilusão, de ludicidade. É nessa condição que a personalidade caminha à integração, na qual a criatividade, tal como o descrevemos, pode emergir. A ação e a deflexão das pulsões tornam-se parte da personalidade e permitem que postule a existência do eu (self). Isso nos dá indicação para o procedimento terapêutico: propiciar oportunidade para a experiência e para os impulsos criativos, sensórios e perceptivos que constituem a matéria-prima do brincar. É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem.

O brincar conduz naturalmente à experiência cultural, e isso acontece se a internalização segura do objeto bom se torna o núcleo do ego.

Segundo Spillius (2007, p. 110), psicanalista de orientação kleiniana, o bebê vive num mundo em que ele e alguns objetos são muito maus, enquanto outros objetos e outros aspectos seus são muito bons. Ele vive num mundo de objetos parciais orientados por fantasias inconscientes e ansiedade de aniquilamento, uma singular sensação de desamparo.

Por volta de três a seis meses, as relações com o cuidador mudam e se tornam menos ameaçadoras, o que favorece a integração do ego e a diferenciação, ou seja, o bebê se abastece e sacia a demanda de atendimento por outras vias, nas quais o exercício, o corpo, a sensação e a percepção se tornam visíveis.

A pessoa que gratifica também frustra, e isso fortalece a tolerância, o surgimento dos limites, as fronteiras entre o cuidador e o bebê. O doloroso reconhecimento pelo lactente de que seus sentimentos de amor e ódio dirigem-se à mesma pessoa mais tarde serão sentidos em relação ao pai, aos irmãos e outras pessoas. Especialmente na análise serão endereçados ao analista. Mas tudo isso depende da capacidade do bebê de suportar a ausência. Se sua capacidade de lidar com a frustração for suficiente, ele usa o pensamento e suporta os sentimentos persecutórios. Isso favorece a simbolização, a criatividade e a capacidade para brincar e amar, pois o medo pode ser modificado.

Spillius (2007, p. 239) afirma que a projeção de sentimentos amorosos – subjacente ao processo de ligação da libido ao objeto – é uma precondição para encontrar um objeto bom. A introjeção de um objeto bom estimula a projeção de sentimentos bons para fora, e isso, por sua vez, através da reintrojeção, reforça o sentimento de posse de um objeto bom.

O brincar permite a introjeção dos bons objetos e precisa ser estudado como um tema em si mesmo, suplementar ao conceito da sublimação do instinto.

O brincar e a experiência cultural podem receber uma localização: o denominado ‘espaço potencial’. Esse espaço potencial é uma área hipotética que existe entre o bebê e o objeto (não eu), isto é, ao final da fase de estar fundido ao objeto. O espaço que o brincar ocupa não fica dentro nem tampouco fora da subjetividade, fica na fronteira. Onde isso foi bem construído há confiança e segurança, tornando-se uma área infinita de separação, preenchendo-se criativamente com o brincar, que com o tempo se transforma na fruição da herança cultural.

Winnicott (1975, p. 142) argumenta que o espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo depende da experiência que conduz à confiança. Pode ser visto como sagrado para o sujeito, porque experimenta nele o viver criativo.

O brincar, tão evidente nas análises de adultos quanto o é no trabalho com crianças, manifesta-se na escolha das palavras, nas inflexões de voz e no senso de humor. Em termos de associação livre, significa que se deve permitir ao paciente que tenha acesso às lembranças, memórias da infância, brinquedos – espalhados no chão – e brincadeiras para que comuniquem uma sucessão de ideias, impulsos e sensações por meio das associações. É ali onde há tensão, ou ansiedade, ou escassez de confiança que o analista deve reconhecer e apontar a conexão entre os comportamentos e as narrativas do paciente.

Spillius (2007, p. 100) escreve que Klein considerava o brincar da criança como a contrapartida da associação livre. Quando Klein começou a analisar crianças, tentou fazê-las deitar no divã e associar livremente, porém percebeu que esse método não era adequado. Buscou, então, brinquedos dos seus filhos e foi desenvolvendo a tese de que o brincar, assim como o sonho, era uma via de acesso ao inconsciente.

Spillius (2007, p. 100) esclarece que nas brincadeiras Klein estava absolutamente preparada para desempenhar os papéis que a criança lhe sugeria, a fim de compreender suas motivações e sentimentos. Em 1927 criticou Anna Freud por introduzir elementos educativos na análise de crianças, ao incentivar a transferência positiva, por não interpretar a transferência negativa e, principalmente, por fazer uma psicanálise adaptativa, educativa.

É muito importante que o sujeito receba de volta a comunicação feita ao analista. Nessas condições pode agregar os aspectos cindidos de si mesmo e existir como unidade, sem o uso excessivo de defesas contra a ansiedade, mas como expressão do ‘eu sou, eu estou vivo, eu sou eu mesmo’.

Spillius (2007, p. 169) afirma que os sentimentos agressivos são fonte de ansiedade e, se bem conhecidos, há possibilidade de conviver com eles modificando-os ou utilizando-os da maneira mais construtiva possível. Nesse posicionamento tudo é criativo!

A construção da confiança se sustenta na fase da dependência absoluta, antes da fruição, da separação e da independência. Quando se percebe a outra pessoa separada, sente-se que ela tem uma vida própria que o sujeito não controla. A relação com um terceiro objeto é a essência da “vida própria” do objeto primário da pessoa.

Winnicott (1975, p. 188) defende que o meio ambiente facilitador e suficientemente bom no início do desenvolvimento constitui algo muito importante. A independência relativa é um princípio que se alterna gradativamente e de maneira ordenada. Há genes que determinam padrões e uma tendência herdada a crescer e a alcançar a maturidade, mas nada se realiza no crescimento emocional sem que esteja em conjunção com uma provisão ambiental suficientemente boa.

A brincadeira é própria da saúde; facilita o crescimento e conduz aos relacionamentos grupais; está a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros.

É no brincar que a criança e o adulto podem ser criativos e utilizar sua personalidade integral e descobrir seu verdadeiro eu (self).

Mas há um grau de ansiedade que é insuportável e destrói o brincar. Isso vem da época em que o ser imaturo está continuamente à mercê de sofrer uma ansiedade inimaginável que é a essência das ansiedades psicóticas. Esse bebê não teve cuidados suficientemente bons no estágio precoce, antes de ter distinguido o “eu” do “não eu”. Isso leva a uma condição patológica em que o sujeito sofre as ameaças dos elementos persecutórios dos quais não consegue se livrar, pois não dispõe de meios para tanto. Partindo das doenças psiconeuróticas e das defesas do ego, há saúde quando essas defesas não são rígidas.

O sentimento do eu (self) surge na base de um estado não integrado, não é observado, recordado e pode se perder, a menos que a criança seja olhada e cuidada por alguém que tolere suas exigências e estabeleça laços seguros desde o início da vida.

Spillius (2007, p. 239) afirma que, no desenvolvimento favorável normal, o sujeito se torna capaz de aceitar a responsabilidade por aquilo que sente e reconhecer a existência de seus objetos. Os objetivos da projeção mudam. Em vez de excindir aspectos de si, perdendo contato com eles, e agir como se eles fossem aspectos do objeto, ele pode ficar em contato com as partes que tende a atribuir aos outros. A projeção continua, mas se torna menos onipotente, rígida e a base da empatia.

Em termos clínicos, o paciente se apresenta com menor rigidez e fixação, enfrenta a ansiedade e a incerteza, consegue viver criativamente e constituir um estado saudável, onde a submissão não é mais base para a vida.

O impulso criativo é necessário ao artista na produção de uma obra de arte, mas também algo que se faz presente quando qualquer pessoa se inclina de maneira saudável para o que faz ou realiza. Está presente no viver momento a momento, frui no respirar, como na inspiração de um arquiteto ao descobrir subitamente o que deseja construir.

O vislumbre do bebê e da criança, vendo o eu (self) no rosto da mãe e, posteriormente, no espelho, proporciona um modo de olhar a análise que possibilita ao paciente a descoberta do próprio eu (self) e do sentido de existir, ou seja, o sentir-se real.

Sentir-se real é mais do que existir. É descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se com os objetos como consigo mesmo e ter um eu para o qual retirar-se para um relaxamento.

A neutralidade do analista é necessária. A interpretação fora do amadurecimento do material é doutrina e produz submissão, pois interpretar quando o paciente não tem capacidade para brincar não é útil ou causa confusão. A lentidão do processo analítico é a manifestação de uma defesa que o analista tem de respeitar, tal como respeitamos todas as defesas.

Reter interpretações possibilita que o paciente faça interpretações, permite a manifestação da capacidade do paciente de brincar, ser criativo no trabalho analítico, já que tem as respostas dentro dele.

Ao finalizar este trabalho debruço-me sobre a provocante arte de psicanalisar, de não se deixar influenciar pelas projeções do paciente, decorrentes do fato de as imagos internas dos pais serem muito mais ferozes do que os pais reais. O trabalho do psicanalista oferece sustentação no brincar do paciente em um espaço e um tempo construídos transferencialmente.

O mundo interno não é uma réplica do mundo externo. Experiências do mundo externo ajudam a moldar o mundo interno, ao mesmo tempo que o mundo interno afeta a percepção do mundo externo. Neste ponto lembro-me do encontro onde a coordenadora do seminário conta que

[...] ao abrir a porta do consultório, uma paciente sente um agradável cheiro de café e comenta: parece o perfume do café mineiro, mas falta o pão de queijo. A paciente ri e diz: incrível, lembrei-me disso quando passava pelo corredor, do café passado num saquinho de pano que todo dia minha mãe fazia antes de eu ir à escola, em BH. A sessão começa e transcorre num vaivém: passado e presente, perdas, exclusões, aspirações e enunciados de mudanças. Entre o velho e o novo, entre o que fica e a palavra dita (RAMOS, 2014).

A esperança é que, por meio da análise, ocorra a lembrança não só dos fatos históricos, mas de tomada de consciência das ansiedades, das defesas e das relações internalizadas. Com os fatos do passado transformados pelas projeções do paciente, ele próprio fará ligações, desde que a capacidade de brincar libere o sujeito para conectar partes de si mesmo e de sua vida. Penso que, num ambiente criativo e lúdico de análise, pode-se “chamar a criança para conversar” e se manifestar.

 

Considerações finais

A análise é para quem pode tolerar o retorno do recalcado – analista e analisando.

Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é (WINNICOTT, 1971, p. 59).

O analista dá apoio e, por vezes, desempenha os papéis que o analisando lhe atribui. O analista precisa permanecer orientado para a ‘realidade interna’ e ao mesmo tempo identificado com o paciente, desvelando as defesas para que emerja um sujeito menos rígido, que possa representar e brincar, pois os meios de expressão oriundos do brincar permitem a reparação.

É necessário tomar consciência da enorme complexidade das questões intrapsíquicas e intersubjetivas, tornando-nos conscientes de quão cautelosos precisamos ser para assumir que na análise a história pode ser diferente, pode ser desigual, ainda que igual na repetição.

 

Referências

RAMOS, M. B. J. Teoria e técnica psicanalítica III. Curso de formação psicanalítica do CPRS, Porto Alegre, mar.-jul. 2014. Notas de seminário. Manuscrito.         [ Links ]

SPILLIUS, E. B. Uma visão da evolução clínica kleiniana da antropologia à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2007.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1971.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Garibaldi, 780, sala 103 - Centro
95670-000 - Gramado - RS
E-mail: evoluir@via-rs.net

Recebido: 07/09/2014
Aprovado: 21/10/2014

 

 

SOBRE A AUTORA

Sabrina Barbosa Sironi
Bióloga. Arteterapeuta. Em formação psicanalítica no Instituto de Estudos de Psicanálise (IEP) do CPRS.

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