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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.48 Belo Horizonte jul./dez. 2017

 

PAINEL TEMÁTICO - POLÍTICA, PSICANÁLISE E BIOPOLÍTICA

 

 

O que a psicanálise tem a dizer sobre política?

 

What does psychoanalysis have to say about politics?

 

 

Cibele Prado Barbieri1

I Círculo Psicanalítico da Bahia
II Círculo Brasileiro de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora argumenta que a experiência psicanalítica determina um campo que influi nos outros campos da cultura e com eles se articula. O discurso da psicanálise é uma das quatro modalidades dos discursos radicais propostos por Lacan para matematizar a experiência psicanalítica, determinando seu próprio campo. O campo da política, assim como o da arte e outros, não está excluído de uma leitura e uma interferência fundada no saber da psicanálise desde sua origem, no texto freudiano, essencialmente político.

Palavras-chave: Política, Psicanálise, Esquerda lacaniana, Capitalismo, Democracia, Melancolia.


ABSTRACT

The author argues that psychoanalytic experience determines a field that influences and articulates with other fields of culture. The psychoanalytic discourse is one of the four modalities of the radical discourses proposed by Lacan to mathematize the psychoanalytic experience, determining its own field. The field of politics, like that of art and others, is not excluded from a reading and an interference, based on the knowledge of psychoanalysis since its origin, in the essentially political Freudian text.

Keywords: Politics, Psychoanalysis, Lacanian left, Capitalism, Democracy, Melancholia.


 

Algumas vezes ouvi de psicanalistas que temas como gênero, etnia, raça e arte não deveriam ser discutidos, pensados ou articulados por psicanalistas, como se a psicanálise se restringisse a um saber teórico e técnico sobre a neurose, e não houvesse nada que ela pudesse dizer a respeito de outros assuntos.

Entretanto, as formulações que se produziram ao longo da constante releitura da obra freudiana revelam que a psicanálise não apenas inaugurou, mas também introduziu na própria cultura uma nova perspectiva que leva tantos outros saberes a incorporar seus princípios, transformando seus discursos.

Mesmo não sendo uma visão de mundo, temos que admitir, sem nenhuma paixão, que a psicanálise subverte a visão ingênua de um mundo humano previsível, adaptável, perfeito e de verdades absolutas. E isso muda tudo.

A política já foi tratada com algum pudor entre os psicanalistas, como se estivesse fora da sua alçada, e o psicanalista devesse se abster de pensar e participar ativamente ou nada pudesse dizer a respeito. Ocupar o lugar do objeto na relação transferencial é um ato do analista que não implica, de modo algum, tornar-se inanimado ou indiferente, abstendo-se de elaborar as questões ideológicas e políticas que a ele se apresentam.

Em sua vocação subversiva, a psicanálise continua caminhando junto com a humanidade, e não há como desprezar as reflexões sobre as possibilidades e impossibilidades que ela desnuda nos convocando a ir além, a avançar influenciando e sendo influenciados.

Ela nos ensina que a fantasia fundamental norteia a posição do sujeito no laço social que estabelece, e isso afeta diretamente tanto o analisante quanto o analista que, a partir de sua análise pessoal, deve estar prevenido em relação ao lugar que ocupa e aos efeitos que isso integra em seu ato como analista, nas instituições psicanalíticas e na polis também. Aí está a política, sempre. Ser falante é ser político.

Não podemos negar o fato de que as instituições sofrem do mal-estar das diferenças ideológicas que as estruturam e nelas reinam, mesmo que já se tenha experimentado estabelecer dispositivos que tentaram dar conta desses efeitos. Nem sempre deu certo. Ainda que subjacentes, os discursos políticos são operantes nos vários grupos e tendências das instituições psicanalíticas, pois não há como evitar que o laço social seja político.

Freud, a meu ver, deixou em sua obra – implícita e explicitamente – uma inequívoca opinião sobre as relações políticas. Mesmo assim, foi questionado e acusado de ser apolítico, de não se definir politicamente; foi interpelado e acusado expressamente de ser “nem preto, nem branco”, ou seja, nem fascista, nem socialista, nem de direita, nem de esquerda, mas a isso respondeu, segundo Jones, que: “Não mesmo, temos que ser da cor da carne” (JONES, 1976 apud GOLDENBERG, 2015).

Significa que ele tenha dito que temos que ser vermelhos, comunistas ou que ele fosse apaixonado pelo PT? Nada garante, mesmo sendo ele um trabalhador nato, incansável e decidido.

Ricardo Goldenberg considera que Freud quis dizer, nessa ocasião, que deveríamos ser esfolados, sem pele.

Não acho que se trate de uma postura neutra, oportunista e suíça. Penso que Freud estava realmente esfolado pela Grande Guerra e pela escalada totalitária local e global como para acalentar esperanças nos ideais e nas bandeiras. Por isso, não era nem patriota nem progressista, contentando-se com ser “humanista”, querendo com isso significar que os seres humanos mereciam um respeito que eles mesmos não tinham feito por merecer. Será que isso significa ser apolítico? (GOLDENBERG, 2015, grifo do autor).

Muito pelo contrário. Penso que é justamente no que toca diretamente a carne que nos tornamos essencialmente políticos e adotamos uma posição subjetiva – a partir da esquerda ou da direita, inclusiva ou excludente – que é sempre permeada pelos nossos modos de laço social e, em última instância, pelos nossos modos de gozar.

Quando Freud se refere ao “mal-estar” na civilização e às formações do inconsciente como processo social revelado no chiste, podemos articular sua resposta em conformidade com a proposição lacaniana de que “O inconsciente é a política” (LACAN, 1966-1967).

Na medida em que o inconsciente é o discurso do Outro, a política está inexoravelmente articulada ao laço social que se produz e se orienta no âmbito do discurso, que precede e acolhe o sujeito e os gozos que restam e participam de nossos compromissos sintomáticos. Diria que ‘nos tornamos’ políticos, assim como ‘nos tornamos’ psicanalistas, pois, a partir de uma experiência com o Real, elaboramos uma resposta a respeito do que fazer com os nossos impossíveis.

Lembro que Freud teorizou três impossíveis: governar, educar e psicanalisar, pois não é possível governar para todos, educar integralmente nossas pulsões e transmitir todo saber, ou esgotar o Inconsciente tornando-o consciente através da análise.

O alcance político da obra de Freud não pode ser ignorado, tampouco as consequências críticas e ideológicas que ela produz no caminhar da humanidade. Como psicanalistas – avisados e cidadãos – não há como nos eximirmos de questionar e intervir no entendimento dos processos políticos, nos quais estamos imersos.

Esse viés político não pode ser mais claro do que em alguns dos seus últimos textos onde ele fala das relações econômicas e políticas – que ainda hoje vigoram e se exacerbaram. Cito dois pequenos trechos para fundamentar minha afirmação.

Há incontáveis pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou praticar incesto, mas que não se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos ou seus desejos sexuais e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira, da fraude e da calúnia, desde que possam permanecer impunes; isso, indubitavelmente, foi sempre assim através de muitas épocas da civilização. Se nos voltarmos para as restrições que só se aplicam a certas classes da sociedade, encontraremos um estado de coisas que é flagrante e que sempre foi reconhecido. É de esperar que essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios das favorecidas e façam tudo o que podem para se liberar de seu próprio excesso de privação. Onde isso não for possível, uma permanente parcela de descontentamento persistirá dentro da cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas.

Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seus participantes depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior – e esse é o caso em todas as culturas atuais –, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma quota mínima (FREUD, 1927, cap. II).

Imaginemos um país no qual uma pequena facção é contrária a uma medida proposta, cuja aprovação contaria com o apoio das massas. Essa minoria obtém o controle da imprensa e com o auxílio desta manipula o árbitro supremo, a ‘opinião pública’, conseguindo, assim, que a medida não seja aprovada (FREUD, 1925, cap. II).2

Não há como escapar do fato de que, na medida em que somos engendrados nos impasses que a cultura tece, somos instalados numa posição filosófica e ideológica em relação ao Outro que nos precede e nos constitui enquanto sujeitos. Somos torneados, esfolados e lapidados desde o início e continuamente. Se concordarmos que a ética da psicanálise é, como propõe Lacan, não ceder do desejo próprio, isso aponta para uma política que se funda no inconsciente. Isso implicaria uma democracia baseada no desejo, embora todos saibam que sustentar um desejo singular não é tarefa simples e que não há garantias de que seja sempre possível e até conveniente. Mesmo que se adotasse um sistema plenamente democrático que teoricamente tentasse respeitar e atender ao desejo de todos, temos que concordar com Rancière,3 que isso corresponderia ao caos, pois imaginem como seria possível satisfazer aos desejos e gozos de cada um, sempre (RANCIÈRE, 2014).

Mesmo que a maioria dos países hoje adote o regime democrático, os sinais de anarquia sobram na sociedade globalizada, vandalizada pela manipulação perversa das normas e regras instituídas, em benefício da satisfação de interesses privados, minoritários, do desejo de acumular riquezas, dominar e tiranizar. A psicanálise nos ensinou que, quando a lei é subvertida através da torção perversa do discurso, o poder assim adquirido já foi corrompido em sua essência e torna-se ilegítimo. Subtraído do pacto à custa da operação do desmentido, promovido por manobras discursivas que subvertem a regra celebrada como acordo, anula o poder pacificador da lei e acarreta a anarquia, a desordem e o retrocesso ao estado de barbárie e crime que a lei deveria regular e interditar.

Mas muito mais que isso podemos aprender acerca deste tema. Vou tomar apenas alguns recortes de elaborações que vêm sendo produzidas, em meio a tantas outras.

Éric Laurent (1999), trabalhando sobre a inserção do psicanalista na política, propõe um reposicionamento do analista na utilização e na transmissão da psicanálise enquanto ferramenta capaz de libertar dos significantes mestres o sujeito submetido, rendido, a-sujeitado.

Em artigo publicado em 1999,4 ele reivindica a responsabilidade dos analistas em influir na cultura, mais do que têm feito, ir além de uma posição intelectual puramente crítica; ir mais além da função de agente de desidealizações.

Laurent (1999, p. 11) chama a atenção para um novo papel do analista, neste século, quando “[...] o tempo de Sartre, o tempo de Lacan, já não são o nosso tempo”, chamando essa nova posição de “analista cidadão”.

Abdicando da cômoda posição de neutralidade protetiva, os analistas são instados a assumir participação nos fatos que os rodeiam como cidadãos que têm algo a dizer sobre o que acontece no mundo fundamentados no saber da psicanálise.

O analista argentino Jorge Alemán – apoiado em Gramsci, Deleuze, Lefort, Negri, Badiou e Laclau, entre outros –, nos convida a pensar sobre a possibilidade de o saber da psicanálise exercer uma função de operador de transformações nos discursos políticos. Para ele, só se poderia pensar um projeto coletivo eficaz levando em consideração a maneira como o sujeito está constituído. Além disso, considera a articulação entre algumas formulações filosóficas atuais e a psicanálise para elaborar um novo entendimento que propicie a construção de um novo sistema que ele denomina “esquerda lacaniana”.

Siempre he vivido en esa tensión entre el psicoanálisis, que se mueve en el campo del sujeto, y la izquierda, que piensa el colectivo. Lo que el psicoanálisis dice de la condición humana no encaja en ciertos sueños y anhelos de la izquierda. Sin embargo, pienso que tiene que haber ya un giro dentro de la izquierda, que no puede seguir pensando en proyectos emancipatorios sin admitir cómo está hecho el ser humano.5

Ideológica e politicamente, a posição de direita é definida como uma visão que aceita como desejável a desigualdade e a hierarquia social baseada no direito natural e na tradição; o que, na prática, exclui o coletivo, a não ser que seja no sentido de ‘para nós’, excluindo ‘eles’, os ‘outros’, as outras classes, as outras raças, o diferente; por isso é excludente. A esquerda, ao contrário, dirige-se ao coletivo independentemente das diferenças, incluindo a todos.

A psicanálise visa o campo do sujeito em suas especificidades e singularidades. O coletivo, desde esse ponto de vista, apaga as individualidades, a singularidade do sujeito, massifica e não encaixa com as suas peculiaridades.

Para Alemán, se há algo em comum que pode ser aplicado a todos os sujeitos, é o que ‘não há’. Do pensamento lacaniano, ele extrai três impossibilidades, três “não há”: não há a relação complementar entre os sexos (não há relação sexual), não há metalinguagem (não há Outro do Outro), e não há universal que não se sustente pelo limite de uma exceção (não há o para todos, pois existe ao menos um que não está submetido à regra da castração). O que implica que somos todos sexuais, falantes e mortais.

O capitalismo, em seu objetivo de acumulação de bens e de consumo, rechaça essas impossibilidades pretendendo integrar em seu discurso a premissa de satisfação plena, para todos; a promessa de preencher as faltas; a produção de objetos que despertem desejo e a ilusão de satisfação. Oferece objetos ao consumo como aquilo que supostamente falta ao sujeito e, portanto, a certeza de pacificação dos conflitos psíquicos e de felicidade. Sua natureza financeira produz subjetividades funcionais, especialistas, empresários de si mesmos que, ao mesmo tempo, tornam-se mercadorias e se vendem como personal trainners, coatchings, tipos funcionais de subjetividade, talhados para personalizar a satisfação de acordo com o freguês.

Isso implica uma incompatibilidade fundamental entre o modo como o pensamento psicanalítico concebe o ser falante e o projeto capitalista neoliberal que corresponde a uma especificidade estrutural desse mesmo discurso. Ao contrário do discurso do psicanalista, o discurso capitalista tem como efeito o impedimento da experiência do inconsciente, já que se propõe a preencher qualquer falta. O resultado disso é não apenas a exposição a novas formas de gozo fora do laço social mas também o fomento à servidão compulsória aos objetos de gozo e fetiches.

O capitalismo neoliberal atropela a castração. Anula os três tipos de falta produzindo indivíduos que não querem saber do preço que deverão pagar para possuir e consumir. Gera o “sujeito endividado”, segundo Alemán, e isso leva às compulsões de todos os tipos que vemos proliferar.

O sociólogo alemão Wolfgang Streeck prevê a morte trágica do capitalismo em livro lançado no fim do ano 2016. Faz sentido pensar essa possibilidade de colapso desde quando ele não dá conta dessa condição básica humana, que não pode ser assimilada, integrada, absorvida pelo circuito do capital e produz tantos efeitos sintomáticos pertinentes nas narrativas dessa sociedade global.

Entretanto, essa previsão não assegura nossas esperanças de alcançar um sistema menos escravizador. Por isso, Alemán trabalha para articular a possibilidade de uma esquerda que possa operar a partir do que “não há”, pois é o que fundamentalmente temos em comum; mas isso exige um giro ideológico.

Talvez nem todos se deem conta do quanto a civilização precisa de um giro ideológico que solucione uma clara contradição que acontece no dia a dia. Uma contradição entre a evolução tecnológica, científica, econômica e a evolução dos atos violentos, destrutivos, de selvageria.

O filme Relatos selvagens, do diretor Damián Szifron, de 2014, é um exemplo de denúncia dessa aparente incoerência, mostrando a selvageria nas relações humanas contemporâneas. Seis relatos, histórias triviais, cotidianas, comuns ilustram a irrupção de atos aparentemente irracionais que são desencadeados nas pessoas em determinadas condições, acionando comportamentos similares aos de animais selvagens, quando o humano perde sua posição de sujeito.

Esse é o entendimento que formulo, já que o filme nos leva a concluir que é através de um ato criminoso, assassino, bárbaro, contrário à norma civilizatória representada na lei que o indivíduo pode resgatar sua condição de sujeito desejante, se impor e ser reconhecido. O rechaço à condição de vítima, a insubordinação a um poder escuso o convoca a agir violentamente para passar da condição de objeto à condição sujeito. De vítima a carrasco. De civilizado a bárbaro.

Podemos, a partir disso, nos remeter ao ato suicida que, em geral, visa essencialmente restabelecer a posição de sujeito, que o retire da mortificação promovida pelo Outro quando faz dele ‘objeto’ desmoralizado, como aconteceu recentemente com o reitor da Universidade de Santa Catarina.

A selvageria nas relações público-privadas, em um dos relatos do filme retrata a contradição que observamos nas próprias instituições da sociedade atual, que se pretendem democráticas, quando se orientam para o objetivo de angariar lucros financeiros. Criadas para atender o bem comum e garantir direitos iguais para todos, organizar e pacificar os laços sociais, elas mesmas se tornam agentes de injustiça, exploração e violação dos direitos do cidadão.

O filme mostra como isso pode provocar a emergência de atos violentos que chegam a ultrapassar o temor da morte física e até podem provocá-la na luta pela sobrevivência dos pilares da subjetividade6 e da dignidade do sujeito ameaçado de ser neutralizado, objetalizado e mortificado. O suposto instinto de sobrevivência, se é que alguma vez o tivemos, sucumbe em importância e eficácia diante da ameaça de perda da potência do sujeito.

Esse ‘fenômeno’, não necessariamente individual, pode ser observado nos grupos pequenos e nos grandes, declaradamente políticos ou não, em comunidades pequenas ou em países.

A mesma selvageria se expressa igualmente nos regimes totalitários chamados fascistas, onde o outro, o diferente deve ser exterminado física e moralmente, e nas ideologias que pretendem excluir as diferenças pela força da criminalização ou da dominação preconceituosa. Isso promove como resposta atos de cunho terrorista como forma de insubordinação e subsistência.

Mas nem sempre é pela via da ação e da insubordinação que o sujeito responde aos efeitos de dominação do poder.

Vladimir Safatle defende a tese de que

[...] o poder age em nós, não através de coerções físicas; basicamente ele age nos melancolizando. O poder age em nós através da melancolia, quando ele consegue nos sujeitar produzindo e gerenciando melancolia (SAFATLE, 2016).

A partir de uma leitura da melancolia em Freud, ele considera que o poder é capaz de produzir uma fixação melancólica a um objeto perdido e, assim, suscitar a paralisação dos sujeitos. A produção e a lembrança reiterada e contínua de um vínculo amoroso perdido, destruído ou destituído de seu valor promovem uma impossibilidade de ação no sujeito, uma resignação e ressentimento onde o eu, encoberto pela sombra do objeto amado internalizado, mergulha em culpa pela perda ou volta-se contra o objeto, ressente-se do objeto, agora transformado em seu oposto: enganador, mentiroso, decepcionante; objeto de ódio. Quando os ideais caem por terra, o sujeito fica desamparado, desnorteado, e torna-se muito fácil fazê-lo crer que foi iludido, ludibriado e passar do amor ao ódio do objeto.

Um dos eixos fundamentais de sustentação do poder [diz ele] são a produção e a lembrança contínua de um vínculo a um objeto que se perdeu: um ideal, uma promessa, uma representação perdida.

Como exemplificado por Freud no trecho de Inibições, sintoma e ansiedade, citado há pouco, vivemos neste momento esse sintoma de melancolização provocado pelos esforços e pelas tentativas de manutenção do poder, a qualquer custo, no nosso país. Essa forma patológica de impossibilidade de agir, essa mortificação que torna os sujeitos paralisados porque impotentes, não é uma estratégia nova; ela tem sido usada há séculos nas guerras, nos esportes, nos negócios, nas disputas políticas, no exercício do poder em todas as suas instâncias.

A perda desse vínculo com o objeto amoroso, a reiteração continuada da sua desvalorização forjada para destruir o oponente usando o recurso midiático – que hoje é capaz de mobilizar grandes massas através de imagens, mensagens diretas e indiretas, subliminares ou não, – tem por objetivo destruir nos sujeitos suas expectativas, suas esperanças e suas crenças, promovendo a imobilização e o desencanto com os ideais. A descrença que ouvimos vem de um desvelamento decepcionante da realidade, de um “[...] realismo desencantado? Na verdade isso é só melancolia”, diz Safatle (2016).

Esse contexto nos leva a pensar nessas duas vertentes possíveis para a destituição, a perda ou o apagamento do sujeito e de seus ideais, dependendo da incidência e da insistência através da qual o poder se exerce sobre ele quando o compele coercitivamente a esse estado de estagnação e aceitação da condição de submissão como “destino” inexorável. O falante pode trocar ações por palavras e palavras por ações; silenciar mortificado, melancolizado ou silenciar em favor da ação tornando-se selvagem.

Considero essa impotência melancólica o efeito resultante do ataque e da destruição reiterada do objeto amado, representação encarnada do Ideal do Eu. O sujeito responde a essa perda com a imobilização, pois é dele exigida uma reorganização. Mas quando a carne é tocada, quando o narcisismo do Eu Ideal é atacado, aí seria necessário e urgente responder com uma ação violenta, onipotente e oceânica para recuperar a potência de sujeito.

Em 1927 (O futuro de uma ilusão) Freud considera que o canibalismo, o incesto e a ânsia de matar nascem de novo com cada criança. Ele diz:

Soa estranho colocar lado a lado desejos que todos parecem unânimes em repudiar e desejos sobre os quais existe tão vívida disputa em nossa civilização quanto a sua permissão ou frustração; [...] Apenas o canibalismo parece ser universalmente proscrito e – para a opinião não psicanalítica – ter sido completamente dominado.

Parece realmente que não foi. Somos o que somos, pois não há como ser nada mais ou nada menos que da cor da carne que resta sob nossos ‘cobrimentos’. A metáfora é o mais longe que podemos ir. Como metáfora do canibalismo original, o capitalismo propõe, estimula e revela em si mesmo uma voracidade desmedida que costumamos chamar de ‘consumismo’. O canibalismo, supostamente recalcado, retorna e se manifesta como canibalismo político e econômico, aplicado ao social e ao individual.

A lei do lucro capitalista reina sobre o mundo porque o homem democrático é um ser de desmedida [diz Rancière] devorador insaciável de mercadorias, direitos humanos e espetáculos televisivos. A verdade é que nossos profetas não se queixam desse reino. Eles não se queixam nem das oligarquias financeiras nem das estatais. Eles se queixam, em primeiro lugar, dos que as denunciam. A coisa é fácil de compreender: denunciar um sistema econômico ou estatal é exigir que eles sejam transformados. Mas quem pode exigir que eles sejam transformados, senão esses homens democráticos que reclamam que esses mesmos sistemas não satisfazem seu apetite? (RANCIÈRE, 2014, p. 111-112).

O sujeito do século XXI, no que tange ao ser de desmedida, devorador insaciável, alimentado pela atitude e objetivo capitalista, não parece, em essência, diferente do revelado por Freud no século passado. O ideal democrático, adaptado às curvas dos objetivos elitistas de poder e usura de nosso tempo, mostra a face utópica do modelo que o concebeu. A ilusão imaginária de plenitude da equidade torna-se cada vez mais difícil de ser sustentada.

Esquecida toda política, a palavra “democracia” torna-se então o eufemismo que designa um sistema de dominação que não se quer mais chamar pelo nome e ao mesmo tempo o nome do sujeito diabólico que toma o lugar desse nome obliterado: um sujeito compósito, em que o indivíduo que sofre esse sistema de dominação e aquele que o denuncia se misturam. É com os traços combinados de um e de outro que a polêmica desenha o retrato falado do homem democrático: jovem consumidor imbecil de pipoca, reality show, safe sex [sexo seguro], previdência social, direito à diferença e ilusões capitalistas ou altermundistas (RANCIÈRE, 2014, p. 112).

Não há como discordar dessa afirmação que tem sido desnudada e demonstrada por práticas de políticos e de indivíduos comuns que, eufemisticamente, se intitulam ‘democratas’ – mesmo que ela possa cobrir de perplexidade o que sempre pareceu tão meritório, ‘politicamente correto’, tão representativo. Revelar o avesso de dominação que o ideal democrático pode conter em si mesmo – principalmente quando articulado a um sistema econômico e de pensamento capitalista como o nosso – é tão estranho quanto descobrir que o Eu não está em sua própria casa, que há Inconsciente e que é ele que governa; que o sujeito é faltante porque é falante, sexual e mortal. Além disso, é diabólico, destinado aos gozos mortificantes, não apenas do outro, mas até de si mesmo. É tão estarrecedor quanto pensar que há um fascismo em nós, mesmo se nos afirmamos ‘democratas’.

De qualquer forma, enveredar por essas perdas e crises da credibilidade da representação, abismos entre representante e representado, partindo dos referenciais da psicanálise, mesmo não sendo tarefa isenta de surpresas, parece ser um caminho sem volta do qual devemos nos ocupar enquanto psicanalistas, com o mesmo propósito de encontrar perspectivas de um novo modo de laço social, político e econômico que, respeitando as limitações e impossibilidades, possa lapidar novos sistemas e menos sintomas na humanidade, quem sabe, no futuro.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: barbieri.cibele@gmail.com

Recebido em: 27/11/2017
Aprovado em: 17/12/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Cibele Prado Barbieri
Psicanalista.
Psicóloga.
Membro e atual presidente do Círculo Psicanalítico da Bahia - CPB.
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2006-2008.
Membro da Comissão Editorial da Revista Estudos de Psicanálise do CBP.
Editora da Revista Cógito, publicação anual do Círculo Psicanalítico da Bahia.

 

 

1 Presidente do Círculo Psicanalítico da Bahia. Texto apresentado no painel Política, psicanálise e biopolítica do XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise: Assim caminha a psicanálise .Indagações do século XXI . Salvador (BA), nov. 2017.
2 A BBC Brasil publicou em 8 de dezembro de 2017 uma matéria de Juliana Gagnani sobre a investigação que revela um exército de perfis falsos usados para influenciar as eleições no Brasil. Milhares de pessoas são contratadas para trabalhar via internet produzindo perfis fictícios no Facebook, Twitter e outras redes sociais, que disseminam conflitos e divulgam informações falsas para promover ideias e políticas encomendadas por partidos. Um dos investigados revelou que “ esses perfis foram usados ativamente para influenciar o debate político durante as eleições de 2014”. < http://www.bbc.com/portuguese/brasil-42172146?SThisFB >.
3 Jacques Rancière. Filósofo francês com vários livros publicados. Entre eles, O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.
4 LAURENT, É. O analista cidadão. Curinga - Psicanálise e saúde mental , Belo Horizonte, n. 13, p. 12-19, 1999. Publicação semestral da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Minas Gerais.
5 Entrevista a Cristina S. Barbarroja. Disponível em: <http://www.publico.es/politica/jorge-aleman-mas-facil-pensar.html>. Acesso em: 13 mar 2017.
6 “Subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 31).

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