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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.55 Belo Horizonte jan./jun. 2021

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

Ensaios psicanalíticos: articulando delírios em prol de uma subjetividade ativa

 

Psychoanalytical essays: articulating delusions in favor of an active subjectivity

 

 

Luana Felippe Monteiro de Oliveira

I Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com este trabalho, pretendo apresentar com pormenores, um pouco do que pude apreender sobre o lugar que ocupei – onde, em um acordo psicopedagógico, porém com o olhar psicanalítico intrínseco, experienciei através de veredas desconhecidas e permeadas de delírios, os proveitos e os descontentamentos inerentes rumo às possibilidades de ser quem somos. Ao aceitar esta proposta, me disponibilizo enquanto psicopedagoga para ocupar uma função não menos preciosa que a função do analista – eu que ali, ainda não era. Mas que tão somente a captura e o desejo contribuíram para que minha chegada se transformasse em uma intensa e instigante estadia. Como fio condutor, parto da impossibilidade de escuta e confiança ao que pudemos usufruir de mais concreto e valioso enquanto debruçadas e imbuídas nesta incitação – árdua, mas com muito amor e esperança de um devir diante da possibilidade de ser quem somos.

Palavras-chave: Desejo, Brincar, Psicose, Delírio, Vir a ser.


ABSTRACT

With this work, I intend to present in detail, a little of what I could learn about the place I occupied – where, in a psycho-pedagogical agreement, but with an intrinsic psychoanalytical perspective, I experienced, through unknown paths, permeated with delusions, the benefits and discontents inherent towards the possibilities of being who we are. By accepting this proposal, I make myself available as a psycho-pedagogue to occupy a role no less precious than the role of the analyst – I was not there yet. But that only capture and desire contributed to my arrival turning into an intense and exciting stay. As a guiding thread, I start from the impossibility of listening and trusting to what we could enjoy more concrete and valuable while leaning and imbued in this incitement – arduous, but with a lot of love and hope of becoming in the face of the possibility of being who we are.

Keywords: Desire, Play, Psychosis, Delirium, Becoming.


 

Nascer: fincou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
A dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
Sem alma, no regaço
do cofre maternal, sombrio e cálido.
Agora,
na revelação frontal do dia,
consciência do limite,
o nervo exposto dos problemas.
[...]
A explicação rompe das nuvens,
Das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou Eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino.
Em outro alguém estou nascendo.
A minha festa,
O meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.

Carlos Drummond de Andrade

 

Introdução

Neste trabalho, me permito mais uma vez refazer este roteiro. Um roteiro que, assim como no processo analítico, se dá no a posteriori, se faz em seu dia a dia. Porém, como um comprimido efervescente, deixa os seus derivados – que reverberam, à medida que o tempo passa.

Com o passar desse tempo, refiz o caminho inúmeras vezes, na tentativa incansável de justificar os retrocessos e as parcas – porém significativas – conquistas que obtive durante o ofício que realizei.

A princípio podem os senhores achar, que os métodos que por mim foram utilizados não tinham nenhuma relação com a teoria e a práxis psicanalítica. Ao contrário, compartilho desta experiência para mostrar o quanto a criança é intratável como indivíduo e como não se mostra manipulável pelos métodos mais eficazes da terapia, mas exige de maneira absoluta que a sua própria singularidade seja tratada para além de um modo adequado – um modo sobretudo respeitoso.

Constatei, no decurso desta caminhada, que podemos nos ater à criança sob vários aspectos: ensino, educação, processo analítico propriamente dito. Mas de nenhum modo obteremos êxito se, antes de tudo, não estabelecermos um relacionamento emocional com ela.

O estabelecimento desse laço segue as suas próprias regras determinadas pela natureza não apenas infantil mas também da criança em questão – e, temporariamente, independentes da teoria e da técnica analítica.

Resgatei a minha criança interna, me disponibilizei enquanto adulta e seguimos por trilhos desconhecidos. De um fazer psicopedagógico à escuta psicanalítica intrínseca, que já me saltava aos olhos, compartilho.

 

Consentindo a proposta: fluxo e gente

Há aproximadamente seis anos, fui convidada a realizar um trabalho psicopedagógico como mediadora de uma criança de oito anos em uma escola metodologicamente dinâmica e construtivista situada na cidade do Rio de Janeiro.

O convite me foi feito através uma amiga, devido a minha experiência e trajetória com educação especial adquirida até então.

A proposta consistia em mediar Isa, uma criança que a priori era portadora de retardo mental – cujos desdobramentos a levam a um considerável distanciamento de seus colegas de turma e, consequentemente, a dificuldades de compreensão e aprendizagem.

Meu trabalho era adaptar as atividades para Isa. O ponto de partida era uma extensa conversa com a professora regente, com a finalidade de obter os conteúdos com uma assegurada antecedência. A partir daí, esses conteúdos eram decodificados, ressignificados, de modo que Isa tivesse a possibilidade de apreender paralelamente a sua turma, porém de outras maneiras.

O acordo trabalhista durante esse período só poderia ser feito através dos pais da criança demandante. A mediação ainda não era um ofício regulamentado, não era visto como algo necessário nas escolas do município do Rio de Janeiro, nas instituições tanto públicas quanto particulares. Logo, o mediador e o infante que precisava de um acompanhamento com maior acuidade ficavam sob a responsabilidade dos pais, os contratantes.

Permanecendo em sala com minha mediada, fui me adaptando às dinâmicas da turma, aos desdobramentos que algumas atividades reverberavam em Isa e até mesmo os ritos que a escola propiciava aos alunos anualmente. Todas essas propostas requeriam uma interação e participação de modo mais fecundo por parte dos educandos. E estar inserida não apenas nas atividades cotidianas mas também em todos esses festivais era o que Isa mais desejava e precisava para se sentir parte, para ser inclusa, para ser amiga e aluna.

Os dias se passavam, as atividades individuais e em grupo eram solicitadas e com a minha inserção na turma de Isa, meu vínculo com as outras crianças também se construía.

Viva, porosa, um sonho falante, sem beira, pele que sentia – que eu senti e consenti, assim descrevo Rosa. Criança pungente, caótica, que vagava em seus delírios soltos... Pleiteando uma escuta, gritava e ali acabara de ser colhida, acolhida por meu gosto, sem culpa, sem desculpa. Naquele instante a neblina me calava os olhos. Apenas meus ouvidos falavam.

Rosa me fisga justamente por seu desconhecido. No sem-nome somos qualquer força. E eu, investida que já estava, tinha de arranjar um jeitinho de trazê-la para perto. Ela, que estava ali, nascendo, sem margem.

Sua inquietude me saltava aos olhos, circulava pela sala como se não tivesse pouso. Gritava, passava na mesa dos colegas, levava alguns recortes e verbalizava palavras até então indecifráveis. Seu material ficava sobre a mesa. Mas para Rosa, era impossível se ater aos comandos de sua professora. Foi quando, com muita acuidade, perguntei à menina se não gostaria de se sentar ao lado de Isa, para que, assim, pudéssemos fazer um trio.

Meu convite foi aceito e, mediante ao meu combinado com Dulce, a professora da turma, me foi concedida a possibilidade de assim permanecer durante todos os dias. Claro, se, desse modo, Rosa conseguisse estar.

 

Potência delicada: nascer (se)mente

Com essa nova configuração, foi possível perceber que Rosa estabelecia um contato mais contínuo com Isa e, consequentemente, comigo. Eu, que havia sido a ponte para que essas novas possibilidades pudessem advir.

A partir daí, me disponibilizo para o trabalho não apenas com Isa mas também com Rosa, com quem, pelo meu mais genuíno desejo, consinto o uso de mim.

Os trabalhos já podiam ser entregues de outras maneiras e o que precisava ser dito chegava, mas apenas aos que, com ternura, se disponibilizavam a ouvir.

Aos pouquinhos, à medida que a confiança de Rosa permitia, fomos construindo nosso vínculo. A interação favorecia Rosa e Isa. De formas distintas as duas lidavam com a exclusão experimentando a mais completa penalidade por ser quem eram.

À medida que elas conseguiam ser escutadas pela turma, a sensação de capacidade e a potência ia ganhando espaço.

E é Green, em Brincar e reflexão na obra de Winnicott (2013, p. 53) quem endossa:

[...] é somente aqui, nesse estado não integrado da personalidade, que pode aparecer aquilo que chamamos de criativo. Isso se for refletido de volta, e somente assim, se torna parte da personalidade individual organizada e, por fim, quando somado, permite ao indivíduo se encontrar e postular a existência do self.

Isa tinha questões menos complexas do que Rosa. Psiquicamente seu atraso cognitivo comparecia, mas não era impedimento para que ela se enturmasse. Mesmo com toda a sua dificuldade, muitas vezes em compreender até mesmo o que as colegas diziam, Isa se esforçava para fazer suas próprias escolhas. O processo de identificação já podia ser feito e Isa já era a mais nova integrante de um desembaraçado grupo de amigas.

O trabalho do mediador é semelhante ao de um criador de pássaros, que, ao acolher, nutrir e cuidar, contribui para a revoada. Assim eu sentia Isa: um passarinho confiante de suas potencialidades, planando por veredas distintas e carregando consigo toda a bagagem que juntas concebemos.

Permanecendo em sala, eu observava nossas conquistas. Isa já me buscava muito pouco e minhas intervenções eram cada vez menos ativas. Isa estava cada vez mais perto de alcançar sua autonomia, o que àquela altura significava o vislumbre do encerramento de nossa parceria.

Com os avanços percebidos, a escola enuncia as possibilidades de Isa continuar sua jornada sem o auxílio de um mediador. E com o advento desse novo horizonte, passa a ser de única e exclusiva responsabilidade da instituição escolar o suporte ao aluno com necessidades especiais. A contratação desses profissionais deixa de ser valência da família da criança e passa ser de competência da escola.

Com a transição dos combinados e perante a nova configuração exposta, passo a auxiliar qualquer criança que de mim precisar. E tão somente por almejo, tenho a permissão justificada para me manter ao lado de Rosa.

 

Nesgas da possibilidade de existir: descomeços

Era preciso descomeçar para se fazer gente. Se despir de certezas e ressignificar as feridas. É ali no sem-forma que tudo tem a possibilidade de ser. É naquilo que não tem nome que podemos nos deparar com o possível.

Nossos dias eram caóticos. Não havia possibilidade de planejamento já que Rosa era por si só a queda abrupta de todas as certezas. O momento era de estreitar ainda mais nosso vínculo.

As atividades eram propostas pela professora, e eu conduzia Rosa à medida que, dentro de suas possibilidades, ela conseguia reproduzir. Muitas vezes o que era devolvido não era compreendido tão facilmente por aqueles que liam. Mas tudo fazia parte de uma costura que dava sentido ao que Rosa sentia, vivia e precisava declarar.

Os dias se passavam e eu sentia que, para me comunicar com Rosa, precisava não apenas estar perto, não apenas estar atenta nem apenas ouvi-la. Era preciso adentrar em seu mundo, ser seu par em seu universo delirante e alucinatório.

Assim que chegávamos em sala, tratávamos de fazer alguma atividade conforme o planejamento de aula de sua turma: leituras, rodas de conversa, desenhos livres a partir de algum conto. Dentro desse contexto, Rosa era capturada de forma lancinante por palavras que a remetiam a paragens muito dolorosas. E fugia.

A geografia era uma temática delicada. Com suas fronteiras manifestas, era para Rosa de escassa compreensão, decerto por sua dificuldade em se situar. Saía de sala correndo pelos corredores da escola como se estivesse sendo perseguida. E tudo era deixado para trás.

Era claro que esse atravessamento de Rosa desconsertava toda a turma. Naqueles instantes a minha preocupação estava longe de ser os desarranjos da rotina. Eu pensava numa maneira de encontrá-la, não a priori para trazê-la de volta à classe, mas sobretudo para compreender os alvéolos de seu desconforto.

Algumas coisas não cabiam nas palavras e o impossível estava quase sempre nos rondando. Foi então que me dei conta de que, para além de entender, era preciso ser com Rosa, sentir com Rosa.

Em seu Seminário 3: As psicoses, Lacan nos fala que não devemos temê-la. E ressalta:

A promoção, a valorização, na psicose, dos fenômenos de linguagem é para nós o mais fecundo dos ensinamentos. (LACAN, [1956-1957] 1988, p. 167).

Passei a levar, além de minha vestimenta, outras peças de roupa para a escola, para que juntas pudéssemos gozar do chão sujo, das tintas, dos galhos finos das plantinhas cortantes, dos lanches que comíamos com as mãos. Destoando de todas as crianças com bons modos, dos trajes que construíamos com pedacinhos de panos velhos para dar corpo a esse ser fragmentado no qual pairava o imaginário de Rosa.

A cada escapada repentina de um possível ambiente invasor, eu saía à sua procura, simulando com minhas próprias mãos um radinho transmissor que me colocava em contato com a fugitiva, não com o intento de clausura, mas para dar concretude, reeditando uma busca por aquele que anseia ser encontrado.

Àquela altura eu já estava profundamente envolvida com essa criança que me desvelava. Já não havia mais engano, já não havia mais disfarce. Sabia que o amor que ela me demandava não poderia preencher seus vazios. Mas daria contorno a eles.

Pensando o brincar e as suas mais variadas formas de expressão através daquilo que ainda não possui maturação para ser verbalizado, pude perceber que o mundo da fantasia desempenhado por uma criança no campo da neurose é apenas uma parte da sua realidade. Através de seu brincar, cria condições de novos arranjos, combinando percepções e elementos para o advento de um novo mundo.

Na psicose, o brincar nos convoca a dimensões distintas e a fantasia marca sua insistência naquele que brinca ao delirar.

A fantasia do psicótico não é somente um substituto para o brincar, como na neurose, mas também pretende ser a realidade, mais apropriadamente chamada de uma nova realidade. Não é mais uma questão de brincar, mas de um substituto para a realidade perdida. (GREEN, 2013, p. 38).

Nossas raízes já eram fortes. Juntas já podíamos avoar. A segurança que foi construída nos possibilitava o caminho de volta, quando necessário. Com essa plasticidade conseguíamos que Rosa permanecesse em sala seja fisicamente, seja subjetivamente.

Já conseguia arcar com algumas responsabilidades inerentes às tarefas de casa, se comprometia em trabalhos de grupo, participava de apresentações teatrais e saraus literários onde o destaque enaltecia tudo o que na percepção de Rosa já fora desajeitado um dia.

Como para todos que habitam a condição humana, havia dias bons e outros nem tanto.

Construímos uma rotina que fazia com que Rosa escoasse sua tensão. Já era possível estar mais tempo em sala, na companhia dos coleguinhas de turma, mas nem por isso os "pensamentos inimigos" – como costumava dizer – a deixavam em paz.

Seus delírios pareciam sair pelos poros... Excrementos, diabo, nua na banheira transbordante em lodo. Fazia frio e sentia medo. Num piscar de olhos sumia, para me convocar novamente à sua procura.

Desta vez não havia ido tão longe. Estava mais acessível, dentro do armário onde era guardado todo o material da turma. Fez de lá seu esconderijo. Naquele canto luminoso do sem-fim, forjou seu eterno retorno.

Por muito tempo eu a busquei. Por muito tempo Rosa precisou ser encontrada, desejada. E enquanto esse repeteco (eco, eco) se refazia, não me recordo de um só dia em que por Rosa não fui recebida com um sorriso a cada achado que lhe ocorria.

Em dias mais amenos, com uma pitada nos dedos, provávamos juntas o mural da sala, que, como uma cascata de chocolates, Rosa via derreter. Uma forma de simbolizar os desconfortos e os contentamentos de seus dias. Se estivesse o chocolate meio amargo, já era possível aspirar o devir.

Sempre aos finais de tarde, após seu resgate nos confins do armário-esconderijo, dançávamos. E livres das ideias, éramos apenas vento... Após o encontro, um baile. As palavras liberam o inconsciente. Mas eu sentia, intuía que Rosa precisava ‘desnomear' o seu sentir, para só então genuinamente sentir, ‘con-sentir'.

Consolidando a nossa parceria, anos se passaram, permeados de muito afeto, confiança e cuidado. Rosa guarda nos cantos de si tudo o que juntas tecemos. E se adorna: novas melodias, cheiros, perfumes, batom vermelho, canto e letras desconhecidas.

Por uma determinante da instituição escolar, Rosa teria que continuar seu curso sem o acompanhamento de um mediador. Estava às bordas do ensino médio. E lá tudo se faz novo. Assustadoramente novo.

 

Ensino médio: o vórtice inescapável

Podemos pensar na crueldade que significa afastar uma criança, afastá-la do acompanhamento que ela sempre precisou.

Essa imposição se dava não apenas com Rosa mas também com todos os alunos que atravessavam o ensino médio naquela instituição.

A coordenação pedagógica do segmento entendia que, ao chegar ali, todas as muletas precisavam ser deixadas de lado. Era preciso crescer, independentemente das dificuldades e limitações que se tinha. Em apenas três anos, essas crianças se preparavam para enfrentar o mundo. Mas toda a bagagem adquirida até ali ficaria do lado de fora do vagão?

Em dó maior me mantive de prontidão. Rosa já dava alguns indícios da dificuldade que seria para ela não poder mais recorrer ao amparo que tinha, que sentia, ao me ter por perto – eu que por muitos momentos fui somente presença. Porque Rosa, em seu desabrochar, já conseguia se haver com seus repentes, aceitar algumas disjunções. E já estava tudo bem ser assim. Ser quem era. Quem conseguia ser.

Fomos nos preparando para essa ruptura. Eu sabia que seria dolorido. Mas de tão próximo que já estava nosso apartar, eu não podia mentir tampouco amenizar. Quando a mente nos mente, nossos poros confessam. Até que nos chega a hora.

A sensação que eu tinha era de que nunca mais nos veríamos, tão distante e separado que era o ensino médio das outras dependências da escola. Enquanto funcionária da escola, fui deslocada para acompanhar outra criança. E encontrava com Rosa nos intervalos para o lanche.

Assustada, seguia com uma certa estranheza por tantas novidades e diretrizes, mas vinha dando conta do que lhe era imposto pelo tão famigerado ensino médio – monstro ilustre, do qual não era possível escapar.

Não sabíamos quando, mas nos sabíamos onde. E saber disso era o nosso acalanto. Rosa continuou me buscando sempre que precisou. Estava certa de que nosso encontro não se deu pelas entranhas daqueles corredores. E meu desejo sempre que buscada e, por conseguinte, encontrada, era parcialmente satisfeito, assim como o de Rosa, em todas as vezes que a encontrara dentro do armário.

Não havia mais razão para se esconder. Tudo morre quando nasce, não é mesmo?

Segui o meu trabalho orientando outros alunos, solicitada a novos e instigantes encontros. E o que aconteceu com Isa?

Isa continuou na escola. Conseguia caminhar com suas próprias longas pernas, tão longas quanto as venturas que estavam por vir na cidade que não demoraria, que seria sua nova morada.

Saudade era saber que já tivéramos o mundo dentro de nós.

 

Considerações finais

É nesse contexto, ocupando o lugar em que estive, não somente na práxis psicopedagógica mas também como psicanalista, que lanço luz para alguns questionamentos no que se refere ao atendimento de pacientes psicóticos ou em estados muito regredidos de seu desenvolvimento.

Será que eles nada têm a nos ensinar? Serão apenas as instituições psiquiátricas o espaço potencial para que esses sujeitos tenham condições de emergir?

Pude constatar seja através deste trabalho que partilho, seja em outros atendimentos analíticos, que pode ser vão, determinista e pretenso nosso lugar de saber, a priori, sobre a clínica das psicoses. Refletindo particularmente sobre as falas delirantes de Rosa e a realidade psíquica que a imbuía, estaria o Outro excluído de seu discurso?

Examinando alguns clássicos da psiquiatria e me atendo a alguns postulados de Freud (1914), resisti em pensar na impossibilidade de trabalho frente às vicissitudes da psicose. Embora seja comum escutar sobre a dificuldade desses pacientes de entrar em transferência, o trabalho com Rosa e com alguns analisandos que tive a oportunidade de acompanhar me mostrou o oposto.

Observei que, na psicose, não lidamos com a fantasia – a mesma fantasia que propicia ao neurótico a possibilidade de simbolizar quando o real lhe bate à porta.

O que comparece e assombra o psicótico é a sua própria realidade que, provida de seu rombo, impera em sua comunicação ilógica e na mais embraçada desordem. Sendo assim, sofrem os psicóticos, assim como os neuróticos, de uma relação com a linguagem – categoricamente falando, de um ressoar do significante.

Rosa, pura angústia em estado bruto, flutuante e aparentemente sem sentido, me possibilita ser o encontro que a deixaria mais organizada... Livre afeto em sua nascente.

Em nossa parceria nos propusemos ao novo. Diante da sensação de vazio que tomava conta, diante das folhas de árvores picadas nas infindáveis tentativas de corporificar o que se passava internamente.

No que concerne à transferência estabelecida como suposição de saber no campo da neurose, constatei que, para além da transferência e de sua contraferramenta que nos serve de norte no setting analítico, lancei mão de um outro ‘contra', um contrário que de oposto só cabia apenas o nome. Uma espécie de contra-angústia, aliada que me possibilitou ir adiante e perceber que todo ser falante, assim como o psicótico, padece da linguagem e está às voltas, manifesto com a significação.

Vimos, ao remar contra a angústia, o próprio movimento que, desembestada, tinha para se fazer valer. Mas desta vez em favor de Rosa e do indivíduo, do sujeito que conseguia ser.

 

Referências

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LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J-B. Vocabulário de psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1992.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: luamontfel@gmail.com

Recebido em: 15/06/2021
Aprovado em: 30/06/2021

 

 

SOBRE A AUTORA

Luana Felippe Monteiro de Oliveira
Psicanalista pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Pedagoga pelo Centro Universitário Gama e Souza (UNIGAMA).
Pós-graduada em psicopedagogia institucional e clínica pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS).
Membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).

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