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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Transferências: uma tela cubista?1

 

Transferences: a cubist painting?

 

 

Raya Angel Zonana*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Após trezentos anos, em 1957, Picasso, sob as disruptivas luzes do cubismo, traça variações da tela de 1657, As Meninas, de Velázquez. Com uma série de 58 telas, Picasso estabelece um criativo e fecundo diálogo com Velázquez. Numa sessão de análise, a mudança de luz, energia pulsional, evoca no paciente uma lembrança que rompe a cena e provoca variações na transferência. Estas duas experiências estéticas sugerem à autora uma correlação entre as várias faces da transferência surgidas entre a dupla analítica e as múltiplas visões que uma tela cubista propõe.

Palavras-chave: Transferência, Experiência estética, Cubismo.


ABSTRACT

After three hundred years, in 1957, Picasso, under the disruptive light of Cubism, sketches variations of the 1657 painting The Maids of Honour, by Velázquez. With a series of 58 paintings, Picasso established a creative and fertile dialogue with Velázquez. In a psychoanalytic session, the change of light, drive-related energy, evokes in the patient a memory that breaks the scene and provokes variations in the transference. These two aesthetic experiences suggest to the author a correlation between the many facets of the transference that emerge between the analytic pair and the multiple visions proposed by a Cubist painting.

Keywords: Transference, Aesthetic experience, Cubism.


 

 

A história se fragmenta em imagens, não em histórias.
W. Benjamin (2007, p. 518).

Cena I – Museu

No Museu do Prado, em Madri, a sala na qual está exposta a tela As Meninas, pintada por Velázquez, pintor espanhol do século XVII, está sempre repleta. Uma grande quantidade de pessoas, ao admirar a obra, vira-se de costas para vê-la através de espelhinhos numa simulação da própria cena retratada. É uma tela emblemática e que provoca curiosidade pela forma como é tratado seu motivo, pela expressão inspirada na face do pintor ali também retratado, pelo olhar curioso e interrogativo da infanta Margarida que ocupa o primeiro plano. A luz que emana do quadro é intensa, fascinante. Imagino que também por isso atrai e atraiu vários artistas que se inspiraram neste trabalho de Velázquez. Um deles foi Picasso, que, de agosto a dezembro de 1957, dedicou-se a pintar uma série de mais de 50 telas com esse tema. A história deste período, da feitura destas obras, e a maneira pela qual este projeto toma Picasso são exploradas por vários autores e críticos de arte, mas o que me pareceu mais instigante foi uma frase que o pintor disse a seu secretário e amigo, Sabartés, ao qual dedicou estas telas expostas no Museu Picasso em Barcelona.

Sabartés relata que Picasso, numa conversa informal, falando sobre esta tela, As Meninas, havia dito:

Se alguém se pusesse, pensemos por acaso, a copiar As Meninas, com todo cuidado e boa vontade, ao chegar a um certo ponto, e se o copista fosse eu, me diria: Que tal seria colocar esta [personagem] um pouquinho mais à direita ou à esquerda? E eu experimentaria fazê-lo à minha maneira, esquecendo Velázquez. A tentativa, certamente, me levaria a modificar a luz ou a trocá-la, pelo fato de haver trocado de posição um personagem. Assim, pouco a pouco, iria pintando umas Meninas que pareceriam detestáveis ao copista de ofício; não seriam as que ele acreditava ter visto na tela de Velázquez, mas seriam as minhas Meninas. (Fox, 1959, p. 1)

O diálogo fecundo de Picasso e Velázquez através de suas telas, e a frase de Picasso a propósito da mudança de luz e da torção da cena, fez vir à minha memória uma sessão de análise acontecida já há algum tempo.

 

Cena II – Memórias

"Que dia foi esse?" Pergunta-se F.

Se, como diz Pontalis (1988, p. 145), o instante precisa de um lugar para que não se apague inteiramente, é esse lugar e esse instante que F. parece estar buscando em sua memória.

Não, não foi só um dia, era assim quase todos os dias. Eu chegava da escola, almoçava e ia fazer a lição de casa. Quando terminava, no final da tarde, tinha essa luz, como essa que entra agora pela janela e faz este desenho de persianas na parede.

Lembro-me da cozinha onde eu esperava o lanche. Ficava meio encantado e em silêncio, olhando para minha mãe que trazia um prato cheio de bolinhos de chuva. Sempre fiquei intrigado com este nome: bolinhos de chuva. Não entendia, tentava decifrar a razão, a origem do nome. Por que de chuva, se o dia é de sol? Essa lembrança é cheia de sol. Engraçada a memória. Minha mãe e a Maria faziam os bolinhos de chuva e eu ficava pensando no sítio do Picapau Amarelo, na Tia Nastácia e D. Benta fazendo os mesmos bolinhos. Agora, aqui, com esta luz, esta cor, quase sinto o sabor dos bolinhos.

Hoje, então, estou de D. Benta... – digo-lhe após alguns segundos, envolvida na história transferencial que me oferece com sua fala.

F. me olha de esguelha desde o divã, surpreso. Após um tempo em silêncio, diz, pensativo: – É verdade, tem razão, mas é estranho pensar assim. Sempre te vi de outra maneira, mas hoje, estranhamente, estou sentindo assim. Tem algo diferente com a luz, com o que sinto. Uma calma.

Lembranças, como sabemos, se fazem de ficções dos esquecimentos. E os esquecimentos necessitam de ficções para serem lembrados, certamente pela carga traumática que deles emana.

Dona Benta e Tia Nastácia são personagens de ficção de histórias infantis escritas por Monteiro Lobato a partir de 1920 e, mais tarde, série de televisão que animou a fantasia de várias gerações de crianças brasileiras. No sítio do Picapau Amarelo morava D. Benta, avó de Pedrinho e Narizinho, crianças da cidade, que para lá iam durante as férias. Local mágico, onde viviam aventuras fantásticas através das histórias que a avó contava. Tudo podia acontecer: uma boneca de pano curiosa e falante, Emília, casada com um guloso porquinho, o marquês de Rabicó, uma espiga de milho sábia, o Visconde de Sabugosa, e até um peixinho príncipe Escamado que se apaixonava por Narizinho. Tia Nastácia, cozinheira de mão cheia, fazia delícias como os bolinhos de chuva que alimentavam os sonhos vespertinos de F. em sua infância.

F. está na faixa dos 40 e em análise há alguns anos. Em muitas sessões expressa, com cuidado, por vezes com constrangimento, mas também com curiosidade, fantasias e sonhos com tons de erotismo, que resvalam das mulheres com as quais se envolve para o espaço transferencial analítico. São situações nas quais fica mais tenso. É um tema difícil mas constante. Aproximar-se de uma mulher, que por alguma razão o atrai, o leva quase sempre à ideia e desejo de buscar concretamente encontros amorosos. Por vezes tem histórias rápidas, mas intensas, com algumas destas mulheres, para em seguida afastar-se. É casado e bastante ligado à sua mulher.

Ao contar esta cena de sua infância, F. percebe que sua história se transforma. Cria-se um espaço no qual as disposições afetivas de F. encontram repercussão na escuta da analista e passam a fazer parte de uma cena representacional vivida por ambos. Naquela sessão, algo diferente acontece. Seu tom é mais livre, mais ameno do que nas outras situações nas quais falamos da experiência de estarmos a sós na sala. Há uma leveza diversa da sensação mais tensa quando são evocados sentimentos com colorido erótico. Essa sessão ocorre num horário diferente do usual e a luz – energia pulsional – que domina a sala e traz as lembranças esquecidas de F., provoca uma mudança de posições transferenciais.

Quem fala pela voz de F. nessa sessão, será o mesmo sujeito que se apresentou em outras sessões? A quem se dirige essa fala, e por que agora, aqui? Assim como surgem essas questões para o paciente, surgem também para o analista. Com que escuta pude captar o discurso de F.? A quem dirigi minha fala desde o lugar que pude ocupar, naquele momento, como D. Benta?

A transferência tem várias nuances que, em instantes, podem se alternar. Penso neste avatar sobre o qual se funda a psicanálise, a transferência ou transferências, como cenas, imagens que se formam e tomam coloridos diversos na dupla, coloridos matizados por lembranças e pelas pulsões que dominam o momento e traçam histórias transformadoras que são o próprio processo analítico.

Como se uniram os retalhos de rememorações da sessão de F, que descrevi acima, com a lembrança das telas e da frase de Picasso? Passo a trilhar o caminho da associação de ideias que se fez em minha mente.

 

Cena III – As Meninas

A tela de Velázquez retrata uma cena, provavelmente o ateliê do artista, no Palácio de Alcázar, na corte do rei Felipe IV. A infanta Margarida e seu séquito de damas de companhia parecem ter entrado repentinamente na sala e, numa pausa, observam os soberanos que posam para o pintor, ele mesmo também pintado no quadro que descrevo. O rei Felipe IV e sua esposa Mariana da Áustria são visíveis como modelos somente por seu reflexo brilhante no espelho colocado na parede do fundo da sala, e parecem observar a cena que com uma espontaneidade realista se formou à frente deles e que é exatamente a cena retratada na tela que vemos. Uma pausa em um movimento espontâneo de um dia na corte2.

Será que a descrição acima permite ao leitor ver a tela que vejo e lhe apresento?

Foucault, em seu ensaio sobre este quadro de Velázquez, após uma descrição poética e detalhada da tela, que a transforma em uma cena com movimento e vitalidade quase palpáveis, em seu livro As Palavras e as Coisas, escreve não ser possível com essa descrição apreender o sentido da tela, pois "a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita" (Foucault, 1992, p. 25).

E continua Foucault, "São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões das sintaxes definem. [...] é preciso... meter-se no infinito da tarefa. É, talvez, por intermédio dessa linguagem nebulosa, anônima, sempre meticulosa e repetitiva, porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá suas luzes" (Foucault, 1992, p. 25).

A imagem não se faz ver nas palavras, mas as palavras apresentam a tela de uma maneira muito particular.

Neste quadro, segundo Foucault, exibem-se duas dimensões, já que o pintor se envolve em duas visibilidades: o espectador vê aquilo que Velázquez pintou, contudo não vê a tela que o pintor pinta. Cria-se um jogo de opacidade e transparência e o quadro é a representação representando-se em si mesma; o quadro se mostra enquanto se esconde.

O pintor, tendo à sua frente a tela na qual supostamente trabalha, parece interromper por alguns instantes sua ação de pintar e dirige seu olhar para "fora do quadro", para o lugar "ocupado" pelo espectador. O olhar do espectador e do pintor cruzam-se num mesmo ponto, exterior à tela que, não por acaso, é também o lugar no qual se supõe estar o modelo da tela que o pintor tem à frente e da qual só se vê o verso no canto esquerdo do quadro. Os personagens retratados olham em sua maior parte para o ponto onde estão os modelos e o espectador que os olha.

Quem olha quem? A tela é reciprocidade, visto que ela vê uma cena para a qual ela é a própria cena. O espectador da obra a vê e vê os monarcas através do espelho, no qual também, ele próprio, observador, se veria, se a representação não fosse somente uma pura representação. Haveria nesta obra um convite ao observador para participar da representação dentro de outra representação? Também a perfeição estética desta tela, o mistério que se insinua através da porta que se abre para uma luz intensa capturam Foucault.

É a harmonia desta tela que fascina ou o mistério que dela emana que nos interroga? A "entrada em cena" do espectador e a reciprocidade que se faz entre o observador e a obra de arte (tema caro a filósofos, artistas, psicanalistas), é o que nos seduz?

 

Cena IV – Um certo encanto

Arnheim, estudioso de psicologia da arte, reflete sobre a necessidade que o olhar humano tem do equilíbrio pictórico. Para ele, "o equilíbrio é o estado de distribuição no qual toda a ação chegou a uma pausa. A energia potencial do sistema, atingiu o mínimo" (Arnheim, 2008, p. 12). O estudioso propõe que para esta condição todos os fatores da composição determinam-se mutuamente e nenhuma alteração parece possível.

Essa necessidade de homeostase me remete ao princípio da constância que Freud em alguns textos mais iniciais de sua obra aproxima do princípio do prazer, e que após 1920 passa a relacionar ao conceito de pulsão de morte. Pensa, então, a constância e o silêncio mais ligados à pulsão de morte. Trata-se de uma diminuição de estímulos que é desejada para manter em equilíbrio o aparelho psíquico, sem aportes de energia livre, sem necessidade de descarga. Nessa tela de 1656 existe um equilíbrio pictórico que agrada, apazigua e que, como diz Arnheim, não permite alterações de seus componentes sob pena de tornar-se desequilibrada esteticamente, o que provocaria incômodo ao observador, uma sensação de transitoriedade, de algo inacabado, em movimento. A própria obra retrata uma pausa, um levantar do pincel do artista que se mantém suspenso. Mas, nesta pausa, mantém em suspensão o observador. Qual será o desenho, qual será a próxima pincelada? A homeostase é frágil. A pulsão insiste.

As sombras, as cores são suportes para efeitos de ilusão e mistério. A perfeição pictórica da obra sugere uma narrativa e solicita uma continuidade. O contexto em aberto impõe ao espectador uma atitude ativa, interpretativa e interrogante, que ao longo dos anos permitiu as diversas interpretações sobre o seu significado.

A tela dá existência a quem a observa, e ao se observar a perfeição, nela se é transformado. Como toda arte, esta obra traduz-se em espelho. O encontro com o espelho é sempre ambíguo, desde nosso primeiro espelho: o olhar materno (Winnicott, 1975), aquele no qual nos miramos para nos perceber existentes.

Em cada espelho vemos o visível e o invisível que surpreende. Essa reciprocidade de olhares é pensada por Meltzer (1995) como um momento gerado no contato precoce do bebê com sua mãe, no qual surgem encantamento, adoração, mas também inquirição. Há o visível da mãe e o visível do bebê, mas há muito mais além. O invisível interior, misterioso, insondável e temerário. No cruzamento destes olhares cheios de ambiguidade, curiosidade, mistério, se faz a reciprocidade estética, ponto de suspensão, de êxtase.

 

Cena V – Variações

E Picasso? Como entra em cena com seu espírito e estilo disruptivos que não dão espaço à homeostase?

Estudante, em Madri, em 1898, Picasso faz alguns desenhos baseados nesta e em outras telas de Velázquez. Seus estudos iniciais com características convencionais rigorosas (seu pai era professor de artes) e seus primeiros trabalhos bastante acadêmicos são muito distantes das obras de vanguarda com que romperia padrões artísticos poucos anos mais tarde. Muito jovem, deixa de ir às aulas que considera obsoletas. Seu tema são as ruas de Madri e seus habitantes, assim como o Museu do Prado e as telas de pintores espanhóis que reproduz em seus desenhos iniciais. Em um destes desenhos ele escreve: "Greco, Velázquez / INSPIRARME!" (Planas, 2001, p. 25).

Já consagrado, em 1957, Picasso tem seu ateliê no térreo de sua casa em Cannes. Em agosto deste ano, ele muda seu ateliê para o sótão da casa, lugar de difícil acesso, onde pouquíssimas pessoas têm permissão para entrar. Leva consigo uma foto, um postal em preto e branco da tela de Velázquez, e aí se encerra até dezembro deste ano. Neste período, Picasso, em sua fertilidade, pinta uma série de variações sobre As Meninas de Velázquez, e, entremeadas a esta série, algumas telas da paisagem que se abre através da janela do ateliê. E, por fim, sua mulher, Jaqueline, sua menina, em um quadro dentro de um quadro. Picasso dialoga longamente com Velázquez.

A relação de Picasso com os artistas que o inspiravam era bastante cambiante. Se em 1957, em conversa com Penrose, biógrafo e amigo do pintor, seu tom a respeito de Velázquez e de As Meninas era de admiração, "Que quadro, que realismo, que execução maravilhosa!" (Catálogo da exposição, 2006, p. 363), em 1975, para Otero, outro amigo, diz que não há nada admirável em Velázquez. Diante da surpresa de Otero, Picasso diz: "Eu também pintei As mulheres de Argel pensando em Delacroix, que por sua vez pensou em Rubens. Às vezes me ocorre que talvez Delacroix nem gostasse tanto de Rubens, mas gostava de pensá-lo" (Catálogo da exposição, 2006, p. 364).

A tela de Velázquez, de 1656, havia acabado de completar 300 anos quando Picasso, em 1957, decidiu pensá-la. E o fez de uma maneira própria, com sua assombrosa capacidade inventiva. Como artista entende e pensa as obras alheias através da criação de novas obras. Picasso sempre foi ligado ao seu tempo histórico, político. O artista sempre o é.

Velázquez retrata a intimidade do pintor em seu ateliê no Castelo de Alcázar, numa atmosfera luminosa de cores brilhantes, mas sob o olhar do rei Felipe IV, absolutista, que não por acaso é seu modelo nesta e em várias outras telas. É uma época de conflitos espirituais e religiosos revelados pela arte barroca, uma arte política de retórica e propaganda religiosa. O estilo barroco procura conciliar forças antagônicas: bem e mal; Deus e Diabo; céu e terra; pureza e pecado; espírito e matéria. Na pintura, estes opostos surgiam na forma de fortes contrastes de luz e sombra, escuridão e claridade, visível e invisível (Argan, 2004). O rei absolutista cobra presença: ainda que através do espelho, ele reina.

Penso se na tela As Meninas a pouca luz que incide sobre o artista e que se faz intensa sobre a infanta não evoca o lugar do artista neste momento da história, subordinado aos desejos e mandos do rei, subvencionado por um "patrão" com pouca ou nenhuma liberdade para escolher seu objeto. Pergunto, no entanto, se Velázquez, por sua vez, como chefe de cerimonial, como pintor da corte com a tarefa de executar mais um dos muitos retratos dos soberanos da Espanha, não realiza essa tarefa de uma maneira nova. Com um olhar transgressivo transpõe a luz de seu modelo, os reis da Espanha, para a infanta tomada em cores vivas e brilhantes com intensa realidade. A infanta Margarida, naquele momento herdeira do trono de Espanha, é o novo, o que virá. Segundo Tolnay, historiador de arte do século passado: "As Meninas são como um manifesto sobre a pintura como arte liberal" (Disponível em: http://comartecultura.wordpress.com/2012/04/26/as-meninas-de-velazquez-e-de-picasso/. Acesso em: 16/06/2013).

 

Cena VI – Outros tempos

A primeira tela que Picasso pinta sobre o tema é uma interpretação muito própria e extremamente diferente de As Meninas de Velázquez, ainda que seja inspirada nessa3. Picasso usa tons de cinza, preto e branco, e constrói uma iluminação ampla que invade a sala por todas as janelas escancaradas. O artista retratado é enorme, do tamanho da tela na qual trabalha, e a Cruz de Santiago, comenda católica, toma todo seu peito. Tem duas faces que se olham a si mesmas e talvez se indaguem uma antiga questão: qual é a função da arte? É um trabalho que inspira movimento criando uma sensação de desordem. Os rostos dos personagens velazquianos são transformados pela geometria de Picasso em formas que praticamente flutuam na tela, como um sonho, ou, quem sabe, um pesadelo. Pelas janelas e portas abertas, tudo se vê. Não há segredos possíveis. Dois pequenos ganchos que na tela de Velázquez são prováveis suportes de candeeiros, tornam-se enormes ganchos que pendendo do teto sugerem a transformação do ateliê do artista em uma sala de torturas. A Espanha vivia sob a ditadura do general Franco. A intimidade é proibida. A tela de Picasso não é harmônica, questiona. Não há homeostase possível.

Nas obras seguintes desta série, a cor entra e o movimento se faz mais intenso. A ideia de Velázquez é quebrada em pequenas peças colocadas na tela, e, apesar de manterem mais ou menos as mesmas posições, criam um efeito de desdobramento um pouco caótico ao olhar do observador. É o mesmo tema, a mesma cena, mas as telas são outras. São As Meninas de Picasso, no tempo histórico de Picasso.

Em um trabalho que Malraux (Planas, 2001, p. 48) chama de demiúrgico, Picasso assimila, decompõe, destrói, e recompõe a tela de Velázquez criando novas ideias desta cena de um artista em seu ateliê. São variações, não têm portanto a ideia de superação, de sequência, mas sim de justaposições, simultaneidade. Não são esboços que caminham para uma finalização. Trata-se mais de formas de olhar, formas de interpretar as questões que este trabalho de Velázquez lhe propõe. Podemos falar em associações como me parece que ocorre claramente com uma das telas que Picasso denomina O Piano. No quadro velazquiano, o movimento de Nicolassito, que ao chutar o mastim, para equilibrar-se, abre os braços, sugere a Picasso a visão de um piano, que o faz pintar a tela O Piano. O espaço ilusório, os vazios deixados por Velázquez em sua tela, criam uma narrativa que permite muitas interpretações, e são estes ocos que incitam Picasso a preenchê-los. Ele diz:

Ali vi um piano...

Vi um menino ao piano. O piano estava ali, pendurado. Este tipo de imagens me vêm e eu incorporo. São parte da realidade do tema. A realidade está em como as coisas são vistas. (Catálogo da exposição, 2006, p. 381)

A destrutividade do absolutismo, velada na tela de 1656, fica à vista e exposta em tons cinzas encardidos da tela de 1957. A arte do século XX, e principalmente após a segunda grande guerra, não tem mais compromisso com o belo (Argan, 2004).

Velázquez foi um dos muitos artistas nos quais Picasso colheu percepções para elaborar seu trabalho. Ingrés, Goya, Manet, Coubert, Delacroix e muitos outros faziam parte das "Obras mestras antigas em um museu imaginário" que Rafart i Planas dizia ter o pintor em sua mente (Disponível em: http://www.youblisher.com/p/66072-Analisis-estructuralista-LAS-MENINAS-DE-PICASSO/. Acesso em: 16/06/2013). Trabalha com ritmo, cor, movimento e sua imaginação criando outras identidades para personagens que toma emprestado de seus antecessores.

 

Cena VII – Transferências

Não é assim que ocorre a cada indivíduo? Cada um, a seu modo, tem uma galeria imaginária na qual estão expostas de diversas maneiras, em diversas montagens, as lembranças e cenas que em vários momentos foram recolhidas, e são repetidamente visitadas? A cada instante há mudanças pulsionais e os quadros de cada história pessoal se dispõem de diferentes formas, traduzindo os fatos e inventando novas narrativas a cada vez.

Em 1905, Freud nota que se tivesse alterado a luz de sua escuta no tratamento da adolescente Dora, talvez a análise pudesse ter se desenrolado de maneira diversa. A transferência, descoberta "fundante" da psicanálise, foi tomando ao longo dos anos várias formas nos escritos freudianos, transformando-se sob novas luzes de seu olhar e de sua experiência, assim como na de seus discípulos, seguidores e dissidentes, mas manteve sempre a posição primordial para mediar o encontro entre o analisando e o analista. "A transferência é um tema quase inesgotável..." (Freud, 1912/2010a, p. 134).

Em um primeiro momento, numa nota de rodapé do Caso Dora, Freud se dá conta de que não havia visto algo que seria fundamental para esclarecer esta análise e escreve: "Quanto maior o intervalo de tempo que me separa do fim desta análise, mais provável me parece que a falha em minha técnica esteja nesta omissão. Não consegui descobrir a tempo nem informar à paciente [...]. Eu devia ter imaginado que [...] Era preciso que eu tivesse decifrado esse enigma..." (1905/1972b, p. 116).

A análise de Dora foi um dos muitos enigmas que se impuseram a Freud. O que se vive na transferência revelada na análise são os momentos perdidos, os restos, os vestígios de lembranças esquecidas que ali se tornam atuais e surgem em novas edições. De outra maneira, o que se quer na transferência é "dar corpo às paixões" (Freud, 1912/2010a, p. 146).

Freud volta constantemente a seus textos anteriores revendo-os sob novos prismas, reinventando-se. Em 1939, em Análise terminável e interminável, o enigma da transferência se tinge de resistências cristalizadas, rígidas, inundadas de pulsão de morte, por vezes pouco passíveis de transformação. Refere-se à reação terapêutica negativa, transferência mortífera.

Quem sabe, através da análise, estas paixões se tornem mais maleáveis deixando-se visitar e serem recordadas, não mais enclausuradas no eterno circuito da repetição. No processo de análise as imagos construídas e mantidas no museu particular do imaginário ganham plasticidade e movimento, propiciando espaços novos a partir de uma iluminação diferente que surge no trabalho da dupla analítica.

Reproduzem-se, na intemporalidade do inconsciente, os aspectos identitários vividos ou sonhados que são experimentados num jogo de máscaras sugerido ao analista. Este, ao entrar no jogo com sua singularidade e com um olhar e escuta analíticos, move-se, desloca-se e ocupa os espaços que lhe são designados pelo paciente traçando uma história a dois, uma intimidade. Seriam então transferências, como nas telas cubistas de Picasso, nas quais transparecem, em um plano único, fragmentos das várias faces dos objetos retratados.

Pontalis (1991) nos faz notar em sua leitura dos escritos freudianos sobre transferência que o que se transfere são moções pulsionais, fantasias, experiências psíquicas, que dão várias faces ao analista e à analise, por isso fala em transferências e não em transferência.

Para Herrmann (2001), o que se estabelece é um campo transferencial que engloba analista e analisando. Este par está sempre em crise representacional, ameaçado pela ruptura provocada por um discurso cujo sentido é inabitual, e faz circular afetos que se modificam, sem assento fixo.

Ogden (2010, p. 139) cita o poeta Heaney e fala da música de uma sessão, o que embala a dupla, e daquilo que no processo analítico transforma um gesto, um murmúrio, um silêncio, em uma frase interpretativa que, inserida na particularidade daquela dupla, tem um sentido de ruptura e transformação. Os fragmentos transferenciais, as notas diversas que compõem a música da sessão, são um elemento sempre transformador.

Naquela tarde, a luz diferente que vinha do exterior alterou a música daquela sessão e F. e eu tomamos posições que denunciavam ora momentos de uma relação de ternura protagonizada por um menino e uma avó, Benta (beatificada, santa), ora momentos de uma relação erotizada, mais tensa, que o tornava um homem frente a uma mulher que ele podia desejar.

Apropriar-se de uma reminiscência permite a F. tomar do passado o que ressoa no presente, porém sob uma nova luz, com um novo olhar construído na análise, que Freud entende como um playground no qual a experiência da repetição permite a criação do novo. Nesta região intermediária transcorre o processo analítico no qual experimenta-se uma vida real em um espaço ilusório no jogo transferencial, através da representação que fazem paciente e analista das representações mentais do paciente.

 

Cena Final

No movimento que pude traçar ao escrever, surgiu o ponto de encontro entre as duas vivências que relatei: a sessão de F. e a transformação promovida na dupla pela alteração da luz da sala, e o impacto que produziu em mim o diálogo artístico de Picasso com Velázquez. Dois momentos de transformação que se impuseram por meio de uma experiência estética.

Freud (1901/1972a) nos diz que sonhamos com a primeira vivência de satisfação, uma plenitude que talvez tenha sido somente fantasiada e jamais acontecida como tal, fonte de toda a harmonia, do bom e do belo. É com "algo" que foi perdido que se estabelece o desejo, uma vivência, um momento estético que norteará o olhar ao longo da vida. O que vemos e amamos é o que pensamos já ter visto e esperamos reencontrar. O que desejamos é retornar a um momento de sentir que nos impressionou esteticamente, pois, segundo as palavras de Freud, "por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir" (Freud, 1919/2010b, p. 275).

Seguindo essa linha de raciocínio, chego, mais recentemente, a Bollas (2009). Este autor propõe que o ser humano ao nascer, em sua precariedade, tem, em quem dele cuida, um objeto que o provê não só daquilo que lhe é necessário para a sobrevivência física, mas também para a criação de um entorno que garanta sua sobrevivência psíquica. A mãe, diz Bollas, é nesse momento menos identificada com um objeto (a simbiose é intensa nesse momento de vida) e mais percebida como um "processo" que promove transformações internas e externas no bebê. A essa primeira vivência subjetiva da criança, que altera a experiência de si, este autor denomina de objeto transformacional. A rememoração desta sensação de existir-com, é a primeira experiência estética humana.

O prazer de estar "embalado" por uma pintura, por um poema, por uma mudança na luz, repousa na rememoração existencial (do sabido não pensado) dos momentos em que a mãe dava forma ao mundo interno da criança, pois esta não era capaz de fazê-lo.

Para concluir, penso que, tanto o artista, como o analista, pela arte da interpretação, com uma poética própria a cada um, evidenciam o que está presente porém encoberto. Anunciam a existência do estranho e o expõem, como leio numa frase de Freud, em um cartão, num outro museu, na sua casa em Londres, na qual passou os seus últimos dias de vida:

"Os artistas já conheciam o inconsciente. Eu inventei a forma de 'tratá-lo'".

Assim, a mudança de iluminação propicia a F. uma delicada lembrança da infância que sugere à analista uma interpretação desveladora de uma outra e nova história, da qual F. é também o ator principal, porém como um novo personagem em uma nova faceta das múltiplas faces que formam sua identidade (Herrmann, 1999).

Em 1957, Picasso cria uma nova história, ou muitas outras, com as variações que pintou ao interpretar, com seu olhar, a tela de Velázquez. As telas de Picasso sugerem, do meu ponto de vista, uma questão importante entre o que se repete e o que se recorda: implicam um sujeito passivo ou um sujeito ativo. A psicanálise, semelhante neste aspecto ao cubismo, exige um sujeito ativo ou cria este sujeito.

Argan (2010) nota que um dos princípios mais conhecidos do cubismo é o de que a verdadeira forma do objeto só pode ser revelada ao renunciar-se a um ponto de vista fixo e girar-se em torno do objeto. Descobrem-se, assim, suas faces fragmentadas e mais ainda, a relação entre os fragmentos e o espaço por eles criado. Não seria também esse um olhar psicanalítico? Perceber os vários fragmentos que constituem o sujeito e a relação entre estes aspectos que, no espaço analítico, cria transferências móveis e impõe movimento tanto ao paciente como ao analista? Nem um nem outro podem ser contemplativos.

Matisse, contemporâneo de Picasso e de Freud, amigo e "rival" de Picasso, tem um pensamento bastante diverso. Em 1908, em Notas de um Pintor, ele escreve que desejava uma "arte de equilíbrio, de pureza e serenidade, isenta de temas incômodos e depressivos", que exercesse "uma influência apaziguante... algo como uma boa poltrona" (Barr citado por Harisson, 1998, p. 147).

Um ano antes, em 1907, Picasso havia concluído a tela Les Demoiselles D'Avignon, pré-cubista, marco de uma ruptura na arte e que leva Braque, pintor que com Picasso, nos anos seguintes, dará início ao cubismo, a exclamar: "O que você quer com suas pinturas é obrigar-nos a comer estopa e beber querosene" (Mc Cully, 2011, p. 221).

Quem, nesta mesma época, se deitasse no aconchegante divã de Freud na Bergasse 19, encontraria uma explosividade semelhante àquela que Braque referia ter visto na tela de Picasso. Explosividade que surgia com a descoberta do inconsciente, da sexualidade infantil, e, um pouco mais tarde, da pulsão de morte, a nova luz, que obriga uma reinvenção do olhar freudiano.

A mesma sexualidade, a mesma pulsão que apontou e se revelou para F. sob a doce lembrança da vovó Benta.

 

Referências

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Endereço para correspondência
RAYA ANGEL ZONANA
Rua João Moura, 627/134
05412-911 – São Paulo – SP
tel.: 11 3064-7302
E-mail: rayaz@uol.com.br

Recebido: 15/04/2013
Aceito: 17/05/2013

 

 

* Psicanalista SBPSP
1 Versão modificada de trabalho apresentado no 29° Congresso da Federação Latino Americana de Psicanálise – FEPAL, SP, 2012.
2 Sugiro ao leitor que acesse www.sabercultural.com/template/obrasCelebres/AsMeninas.html para visualizar esta tela.
3 Sugiro ao leitor que acesse http://youtu.be/NFJ4YfHzZ2U, no qual, em uma visita ao Museu Picasso de Barcelona, poderá observar algumas das obras da série As Meninas das quais falo neste texto.