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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

João A. Frayze-Pereira

Editor

 

 

Caro leitor,

Tendo em vista o bom número de artigos que recebemos em resposta ao convite da ide 61, "Corpo: mistério, ambiguidade", decidimos realizar dois números dedicados ao tema "corpo". Nesse sentido, definimos a temática deste número da revista, "Corpo reflexivo: o eu e o outro", aprofundando o tema do número anterior. É um tema suficientemente amplo para abarcar as múltiplas perspectivas psicanalíticas existentes, desde a conhecida proposição de Freud - o ego é corporal - até uma proposição mais recente, como a de Bollas, que afirma ser a experiência estética (corporal) uma recordação existencial da época em que o comunicar-se ocorria através da ilusão de profunda harmonia entre sujeito e objeto.

É o estar-com, como uma forma de diálogo, que capacita ao bebê o processar adequado de sua existência, antes de habilitá-lo a processá-la por intermédio do pensamento.

Ora, o que se sabe por intermédio de outras disciplinas, no campo das humanidades, que dialogam com a psicanálise, é que a experiência do corpo consigo mesmo, corpo que é ao mesmo tempo sensível e sentiente, é ambígua e revela o embaralhamento da relação sujeito-objeto, mistura que também se verifica, ontologicamente, não apenas na relação do corpo com as coisas, mas também com os outros. Afinal, como escreveu Paul Valéry,

Assim que os olhares se prendem já não somos totalmente dois e há dificuldade em ficar só. Esta troca, a palavra é boa, realiza em muito pouco tempo uma transposição, uma metátese: um quiasma de dois "destinos", de dois pontos de vista. Ocorre, assim, uma espécie de recíproca limitação simultânea. Tu tomas a minha imagem, minha aparência, eu tomo a tua. Não és eu uma vez que me vês e eu não me vejo. O que me falta é esse eu que tu vês.

E a ti, o que falta, é tu que eu vejo. E por mais que avancemos no conhecimento um do outro, quanto mais refletirmos, mais seremos outros.

Com efeito, os argumentos desenvolvidos por uma filosofia da percepção, do corpo e da relação entre corpos (Merleau-Ponty), resumidamente, nos permitem dizer que, abertos um para o outro, os corpos se entrelaçam e que, instaurando-se entre eles o circuito reflexionante, abrem a possibilidade da intercorporeidade. Nessa medida, o outro se torna acessível a mim se ele for tomado não como representação, mas como experiência. Assim, a paisagem que vejo se cruza com a dele: torna-se nossa e não minha. E para confirmá-lo, basta que ao contemplá-la fale dela com alguém - então, graças à operação concordante de seu corpo com o meu, o que vejo passa para ele, o verde da paisa-gem sob meus olhos ocupa a visão do outro sem abandonar a minha. Reconheço em meu verde o seu verde, convicto de que eu e outrem comungamos sobre um mesmo panorama que vemos por dois pontos de vista diferentes. Ou seja, vejo que ele vê. Reconheço que meu mundo visível é também o dele, pois assisto a sua visão. Meu verde passa nele e o seu em mim - experiência iminente que vejo na tomada do espetáculo por seus olhos. No entanto, a visão dele não é a minha. E isso quer dizer que, como não há visão que seja ontologicamente acabada, pois o sensível é superfície de uma profundidade inesgotável, cada visão está sempre sujeita a ser descentrada por outras visões. E que, ao se realizarem tais visões, os limites de nossa visão de fato são acusados. A referência ao outro já é implicada desde a mais simples atividade perceptiva, pois o perspectivismo da percepção - sua inerência a um ponto de vista localizado espacial e temporalmente -, que torna possível falar de um mundo de experiência privado, pressupõe a presença de um mundo intersubjetivo como campo aberto para outras possíveis experiências no qual justamente uma perspectiva particular poderia se recortar. Ou seja, sem precisar cometer qualquer violência epistemológica, pode-se admitir que a minha perspectiva e a do outro são perspectivas diferentes e simultaneamente possíveis. E que, antes de ser subjetivo ou objetivo, o mundo é intersubjetivo, ou melhor, intercorporal, e que a transitividade de um corpo a outro se torna teoricamente possível, concreta e definitivamente fundada: há um círculo do palpado e do palpante, o palpado apreende o palpante; há um círculo do visível e do vidente, o vidente não existe sem existência visível; há, enfim, propagação dessas trocas para todos os corpos do mesmo estilo que vejo e toco. Portanto, a possibilidade de existência do outro se dá abaixo da ordem das representações, pois percebo primordialmente outra sensibilidade e só depois outro pensamento. Antes de ser espiritual, portanto, a intersubjetividade é corpórea. Mais do que isso, como não podemos confundir o visível com a camada superficial do ser, o que o outro vê em mim, lá do seu lugar no mundo, não é apenas a película superficial de minha pele, mas uma interioridade inesgotável que aí se expressa e exterioriza, sendo possível aos corpos, enlaçados um ao outro, como um Corpo Geral atravessado pela diferença (corpo que é visível-vidente), fazerem seu interior seu exterior e seu exterior seu interior. Porém, na relação com o outro não apenas eu o percebo e ele me percebe, dialogamos. E, com o diálogo, surge uma nova instância, a instância da comunicação e do pensamento. O que se pode ter em mente é que, sendo a palavra viajante ou errante, como pensava Maurice Blanchot, ela bordeja os seres sensíveis sem nunca tocá-los e por isso desvia-se de um caminho preciso, alcançando uma ambiguidade inquietante. No campo da linguagem e do pensamento, a ambiguidade que emerge no/do corpo implica consequências surpreendentes. Mais profundamente, o diálogo nos recorda que somos seres sonoros porque temos um corpo que é capaz de produzir sons - o grito e a voz. Trata-se de um ser sonoro incomparável, pois reflete sobre si próprio. Como no nível do visível, no plano da linguagem, o dentro é também o fora. Isto é, as ideias não existem separadas das palavras. Afinal de contas, como sentenciou Roland Barthes, no fim dos anos 1960, apoiado na linguística estrutural, o signo linguístico é uma ideia sensível. Ou seja, a intersubjetividade encontrada no nível da experiência perceptiva alarga-se com a linguagem, como se a visibilidade que anima o mundo sensível emigrasse da carne do corpo para o corpo da palavra. Mas se com o aparecimento da linguagem há metamorfose do mundo visível, essa metamorfose não significa ruptura e abandono do sensível. Ao contrário, a ambiguidade aqui é mais radical ainda, pois não há mais esses fetiches que são o fato puro e a representação pura, mas mescla confusão e reversibilidade entre carne e idealidade.

Assim, pode-se dizer que a corporeidade adquire filosoficamente um novo sentido, sentido que possui intrínseco caráter estético, conforme elaborado por uma reflexão sobre a experiência originária do sensível. E que, no plano da cultura moderna, é a arte que pela primeira vez exprime essa experiência com uma profundidade que não é passível de exibição objetiva. Tal foi a ambição da pintura moderna que, aderindo ao enigma do corpo, acabou se deixando levar por ela até produzir um espaço autofigurativo, fragmento da espacialidade originária, parte que é emblemática do todo (Merleau-Ponty; Francastel). É nesse sentido que a pintura desejou, como propunha Paul Klee, não reproduzir o visível, mas torná-lo visível, quer dizer, não representá-lo, mas apresentá-lo. E, nesse movimento de apresentação, descobriu perspectivas jamais vistas e reencontrou o caos originário, descentrando o espectador com relação a si mesmo e ao seu pequeno mundo, abrindo-o como seu outro para novas dimensões do Ser. Muitos artistas modernos aprofundaram, plasticamente, a arte nessa direção, criando contexto para a sua transformação, depois da Segunda Guerra, em arte contemporânea. Nesse contexto, interior-exterior, corpo-obra, mesmo-outro são dualidades que a Estética considera para pensar o enigma do envolvimento recíproco do que vê e do que é visto, da impossível coincidência consigo mesmo do vidente e do visível, do advento do mesmo à prova do outro. E, nesse enfrentamento, subverte e amplia a questão da identidade, facultando, ontologicamente, o advento da intersubjetividade como intercorporeidade, dimensão essencial da experiência clínica análoga à que acontece, psicoesteticamente, no campo das artes.

É em direção a esse campo reflexivo que os autores enviaram seus artigos, encorpando a complexidade do pensamento sobre a temática proposta, desde a sua posição na aurora da filosofia contemporânea, com Nietzsche, até o seu extermínio em Auchwitz, segundo Primo Levi. E, entre esses limites, a intercorporeidade, gradualmente, aparece, segundo diferentes perspectivas, entre os campos da cultura e do modo de pensar psicanalítico. Mais ainda, harmonicamente integrados a essa pauta, seguem-se dois capítulos - Contraponto 1 e 2 - que reúnem vozes diferentes sobre temas interessantes - tatuagem e marcas corporais; sexualidades, gênero e abjeção - que nos permitem interrogar os seus sentidos na sociedade atual. E, continuando o espírito que norteou os números anteriores da ide, seguem os capítulos - Literárias e Resenha -, que desdobram o campo de reflexão proposto, cuja marca principal é a liberdade crítica.

Esperamos que os leitores apreciem o que lhes oferecemos. E que a figura dos gêmeos especulares, elaborada por Paul Klee, sirva de emblema desta reunião de textos, motivando os leitores a uma leitura prazerosa, tal como a concebeu Roland Barthes, isto é, aquela que promove a elaboração de um saber com sabor.*

 

REFERÊNCIAS

Bollas, C. (1992). A sombra do objeto. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Valéry, P. (1943). Tel quel. Paris: Gallimard.         [ Links ]

 

 

* As ideias contidas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

 

 

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