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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016
EM PAUTA | CORPO REFLEXIVO: O EU E O OUTRO
Enfrentando e celebrando o corpo em suas ambiguidades. Proposta da filosofia madura de Nietzsche1
Facing and celebrating the body in its ambiguities. A proposal of the mature philosophy of Nietzsche
Caio César Souza Camargo Próchno
Professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Psicologia Social e do Trabalho pelo Instituto de Psicologia da USP. Pós-doutorados feitos na Alemanha: Leipzig, em 2007, e Greifswald, em 2011
RESUMO
O artigo tenta mostrar como Nietzsche em sua filosofia da maturidade ultrapassa a visão tradicional de corpo estabelecida dogmaticamente na história da filosofia ocidental. O corpo é entendido por ele como uma multiplicidade de forças em constante luta por acréscimos de poder. Configura-se como uma unidade de organização e não como uma unidade substancial. Nesse sentido, aquela unidade evidencia uma permanente ambiguidade, pois as configurações de domínio sempre se revezam na ordem do tempo. Não afirmar uma unidade substancial, e sim o movimento contínuo de instâncias de poder, é motivo de intensa celebração.
Palavras-chave: Corpo. Poder. Ambiguidade. Força.
SUMMARY
The article attempts to demonstrate how Nietzsche, in his philosophy of maturity, goes beyond the traditional view of the body dogmatically established in the history of Western philosophy. The body is thus understood as a multiplicity of forces in constant struggle for increases of power. It is an organizational unit rather than a unit of substance. In this sense, the body exhibits permanent ambiguity since the domain settings change throughout time. To profess the body as an organizational unit is, therefore, strong cause for celebration.
Keywords: Body. Power. Ambiguity. Force.
Se remontarmos à história da filosofia ocidental desde as primeiras reflexões dos chamados filósofos pré-platônicos, tais como Thales de Mileto, Anaxágoras, Anaxímenes, veremos que a abordagem do cosmos, que eles denominavam Physis, não se dava sem uma forte dose de espanto diante daquilo que se mostrava enquanto um aparecer. Não era efetiva nenhuma separação entre o observador e a coisa observada os gregos desse período festejavam a própria interrogação acerca das coisas que se davam ao seu olhar. Em Thales de Mileto, considerado o primeiro dos filósofos, há o grande espanto inicial de tudo que se move na efetividade, segundo ele: a Arché é água e o sentido do verbo aguar. O que esses filósofos chamam de corpo está, necessariamente, inserido numa ambiguidade fundamental de todas as manifestações da realidade. Heráclito, outro dos primeiros filósofos, afirma que tudo está num devir incessante, num devir absurdo, o tempo fluindo sem qualquer interrupção ou descanso. Nessa transformação eterna, não se pode considerar o corpo constituído de uma unidade, nem mesmo o corpo pode se dar numa totalidade, a não ser na imaginação e para a constituição das necessidades do dia a dia dos viventes. Precisamos acreditar que o corpo existe sendo algo palpável para podermos seguir vivendo são as chamadas ilusões necessárias em termos de conhecimento. Demócrito, filósofo posterior a Heráclito, afirma que a Arché é o átomo, ou seja, unidade indivisível, que seria, então, a unidade fundamental da matéria e do próprio cosmos. Nisso acreditamos até os nossos dias, que todo e qualquer corpo é constituído por um sem número de unidades microscópicas, células, átomos e, a partir do século xx, também prótons, nêutrons, elétrons, léptons, quarks, neutrinos. As unidades permanecem, embora agora não sejam mais indivisíveis, e novas descobertas sempre nos levarão a novas unidades ainda menores, mas sempre unidades. Com isso, da luta entre Heráclito e Demócrito, o último sai vencedor. Acredita-se até hoje que o corpo é uma unidade, uma totalidade de partes relacionadas entre si.
A partir de Sócrates, na interpretação de Platão, veremos que o estatuto do corpo, unidade constituída de átomos, recebe novos predicados, e, agora, negativos, isto é, como aquele que é algo menor, um universo atravessado pela ambiguidade, pois o mesmo está constantemente na ordem do tempo, da finitude, da mortalidade. Ou seja, o corpo desaparece, o corpo morre. Ele é condenado a não ter qualquer estatuto filosófico ou a ter um estatuto bem inferior, se comparado com o da alma. Sendo assim, a linha predominante da filosofia ocidental, nesse momento, passa a ser aquela que em seu desenvolvimento nunca teve preocupações com as ambiguidades do corpo, porque isso seria uma preocupação com algo menor, com algo que necessariamente está repleto de ambiguidades, pois sofre com o desenrolar do devir, ou o desenrolar da aparência, o movimento do vir a ser. Nada é estável, tudo se transforma no tempo - é absolutamente intolerável o fluxo contínuo de toda a realidade. A filosofia de Heráclito não pôde ser absorvida, tornou-se um filósofo marginal, um pensador perdedor. Para dizermos de maneira mais direta, as linhas hegemônicas da filosofia ocidental jamais toleraram a própria vida, esta sempre precisou ser ignorada, vilipendiada, condenada. E tudo isso era feito em nome de outro mundo, o chamado mundo verdadeiro, o mundo das essências, onde a alma deveria chegar ou alcançar. Teríamos, então, a visão da eternidade e o convívio com a divindade. Mundo totalmente incorpóreo em que reina a equação Verdade = o Bem = o Belo.
Talvez o primeiro filósofo a adentrar um caminho diferente das posturas dominantes na história da filosofia ocidental tenha sido Espinosa (1915/1974), o qual nos alertava:
Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o corpo pode fazer e o que não pode fazer. (Espinosa, 1915/1974, p. 180)
Ou seja, ao sentido que Espinosa quer nos remeter, não podemos pensar o corpo a partir de qualquer instância transcendental, a partir de uma abstração, através de um a priori: o corpo como uma substância pensada em sentido primeiro e por meio do qual faríamos inúmeras comparações e medições. O corpo só se revelará nas diversas relações que ele mantiver no decorrer de sua história, de seu devir. Não há uma condenação do corpo, em que ele seria inferior à alma. Pelo contrário, tanto a alma quanto o corpo agiriam simultaneamente: o que a alma faz repercute no corpo e vice-versa:
[...] a alma e o corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão. Daí resulta que a ordem ou encadeamento das coisas é a mesma, quer se conceba a Natureza sob um atributo, quer sob o outro; e, consequentemente, que a ordem das ações e das paixões do nosso corpo é, de sua natureza, simultânea à ordem das ações e das paixões da alma. (Espinosa, 1915/1974, p. 180)
Diante disso, aquilo que se pode fazer é a tentativa de, na medida do possível, agendar bons encontros entre os corpos para que eles se tornem cada vez mais potentes, ou seja, o engendramento de um corpo ativo. Mesmo assim, entre os pensadores discutidos até aqui, o corpo ainda permanece na ambiguidade, pois não temos como saber de todo o seu potencial, de tudo aquilo que ele pode provocar. Tal incerteza seria a incerteza de sua própria potência. Para Espinosa, tal corpo ativo ultrapassaria todo e qualquer ressentimento e seria um corpo, antes de tudo, alegre. A ambiguidade está presente, como evitá-la? Os nossos encontros se estabelecem muito ao acaso, não sabemos como e onde se dará o nosso próximo encontro e como agendá-lo para ser um bom encontro. Na visão racionalista de Espinosa há a indicação de que num certo nível poderíamos domar essa ambiguidade, seguindo o roteiro de uma razão geométrica. No século xvii, o otimismo da Razão era predominante.
Herdeiro direto das filosofias de Heráclito e de Espinosa, Nietzsche (1885/2002) enfatiza a pergunta de Espinosa - sobre o nosso estado de ignorância a respeito do corpo - e tenta dar a ela outro encaminhamento:
O mais espantoso é antes o corpo; não se pode admirar até o fim como o corpo humano se tornou possível: como uma tal imensa reunião de seres vivos, cada um dependente e submetido e, todavia, em certo sentido, de novo comandando e agindo por vontade própria; como pode, enquanto totalidade, viver, crescer e subsistir por um lapso de tempo: tudo isso, visivelmente, não ocorre por meio da consciência. Para esse "milagre dos milagres", a consciência é justamente apenas uma "ferramenta" e nada mais, de igual modo que o entendimento, o estômago, são uma ferramenta. (Nietzsche, 2002, p. 200)
Nietzsche (2002) explora a ideia de que aquilo que costumeiramente chamamos de corpo, na verdade, é uma unidade de organização de diferentes seres vivos que entram numa luta constante por graus de poder, por elementos de supremacia e domínio. Tais seres vivos seriam forças a disputar poder, ou melhor, forças agenciadas por diferentes vontades de poder em disputa por mais poder. Nessa interminável luta, a consciência só pode ser entendida como algo menor, secundário, como ele afirma, "uma ferramenta". Mesmo assim, esses seres vivos que constituem o corpo são, igualmente, outras tantas pequenas consciências tentando se expressar. O que denominamos consciência maior se mostra, todavia, importante, pois aquela ferramenta acaba por implementar uma certa ordem naquelas lutas por poder entre as inúmeras forças que se medem. O corpo em Nietzsche adquire um estatuto de pluralidade agonística: seria como diferentes corpos em luta, engendrando um corpo plural mais geral, que dá a aparência de ser algo maior:
[...] uma tal prodigiosa síntese de seres viventes e intelectos, que se chama "homem", só poderia viver quando aquele sofisticado sistema de ligação e mediação estivesse criado e, por meio dele, um entendimento instantaneamente rápido entre todos esses seres superiores e inferiores [...]. (Nietzsche, 2002, p. 200)
Mas, por que ainda pensamos o corpo como unidade substancial, como totalidade rígida? Ele nos conduz:
Pois antigamente se acreditava na "alma", assim como se acreditava na gramática e no sujeito gramatical: dizia-se que "eu" é condição, "penso" é predicado e condicionado - pensar é uma atividade, para a qual um sujeito tem que ser pensado como causa. Tentou-se, então, com tenacidade e astúcia dignas de admiração, enxergar uma saída nessa teia - se não seria verdadeiro talvez o contrário: "penso", condição; "eu", condicionado; "eu" sendo uma síntese feita pelo próprio pensar. (Nietzsche, 1992, p. 58)
Advém disso que ainda pensamos o corpo enquanto uma unidade substancial, pois ainda acreditamos na gramática, no sujeito gramatical. Caso tenhamos sobre este último uma convicção enraizada acreditaremos em toda e qualquer unidade, em partículas, em átomos, em matéria, em espírito, em alma, em substância. Acreditaremos no eu que comanda todo o processo da subjetividade. Corpos são dados como unidades substanciais. Nesse sentido, Demócrito, ligado intimamente à língua grega, que está diretamente relacionada com o tronco linguístico indo-germânico, em que a categoria de sujeito gramatical é extremante importante, nos diz que o princípio de todas as coisas, a Arché primordial, é o átomo - partículas minúsculas indivisíveis -, unidades primordiais. Se insistirmos em acreditar no sujeito gramatical, sempre pensaremos o corpo como unidade substancial. O que também é feito a partir de Descartes, com a alma sendo uma substância pensante em que o núcleo da subjetividade se identifica como uma unidade simples da consciência. Mera ficção lógico-gramatical que induz o pensamento de forma inconsciente.
Deixando de ser uma mera consequência de ficções de ordem gramatical, o corpo revela-se outro tipo de unidade - uma unidade de organização, uma unidade da multiplicidade. Essa seria, então, a nova unidade subjetiva, uma noção que rompe com a tradição cartesiana da res cogitans, a coisa que pensa. A subjetividade se dará por meio de uma organização de vontades de poder que lutam entre si, estabelecendo hierarquias temporárias, pois as nuances de poder, os jogos de poder, alternam-se constantemente. A síntese do eu torna-se uma ilusão necessária que percorre a multiplicidade corporal. Esta é entendida pelo filósofo como um si-próprio, um si-mesmo, traduzindo-se o termo alemão Selbst, o elemento de comando central da multiplicidade de forças em ágon. Zaratustra (1885/1980) nos ensina que esse si-próprio, enquanto corpo, é uma grande razão:
O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento do teu corpo é também tua pequena razão, meu irmão, que tu denominas "espírito", uma pequena ferramenta e um brinquedo de tua grande razão. "Eu", dizes tu, e estás orgulhoso dessa palavra. Mas aquilo que é maior, em que não queres crer - teu corpo e sua grande razão - não diz eu, porém faz eu. Aquilo que os sentidos sentem e que o espírito conhece, não tem neles mesmos seu fim. Porém sentido e espírito te convencem de que eles são o fim de todas as coisas - tão vaidosos são eles. Ferramenta e brinquedo são sentidos e espírito: atrás dele se encontra ainda o si-mesmo. O si-mesmo procura com os olhos dos sentidos, escuta com os ouvidos do espírito. (Nietzsche, 2001, pp. 208-209)
O Selbst, rompendo com a chamada unidade nuclear da consciência, faz parte de uma interpretação global da existência que Nietzsche elabora com o intuito de ultrapassar definitivamente o platonismo. O Selbst não se confunde com uma essência do próprio corpo, algo como um elemento interior ao próprio corpo, ele se configura como a multiplicidade de pulsões em relação a um devir plural a se manifestar. De maneira ousada, o filósofo partirá daquilo que está mais evidente à percepção, ou seja, o reino de nossas pulsões, impulsos, afetos e paixões - o mundo orgânico que nos habita, ou melhor, o devir orgânico que nos agencia. Neste último, aquilo que se verifica é a luta entre diferentes impulsos por domínios crescentes, por acréscimos de poder. Nietzsche tenta, na sequência, generalizar o conceito de vontade de poder, ampliando seu âmbito igualmente para o chamado mundo inorgânico, alcançando com isso a interpretação global da existência, pois todo e qualquer evento no cosmos, toda e qualquer ação que se efetive na realidade, será vista por meio de manifestações de vontades de poder em luta contínua por mais poder. Mas isso para Nietzsche (1886/1993) não se torna uma posição dogmática de seu pensamento, pois tal generalização, que para alguns abusa de antropomorfismos, não se evidencia como um texto, mas enquanto uma interpretação, ancorada numa perspectiva. É uma abordagem acerca da efetividade parcial, não se alia a uma pseudoneutralidade científica:
Perdoem este velho filólogo, que não resiste à maldade de pôr o dedo sobre artes de interpretação ruins; mas essas "leis da natureza", de que vocês, físicos, falam tão orgulhosamente, como se - existem apenas graças à sua interpretação e péssima "filologia" - não são uma realidade de fato, um "texto", mas apenas uma arrumação e distorção de sentido ingenuamente humanitária, com a qual vocês fazem boa concessão aos instintos democráticos da alma moderna! "Igualdade geral perante a lei: nisso a natureza não é diferente nem está melhor do que nós" - uma bela dissimulação, na qual mais uma vez se disfarça a hostilidade plebeia a tudo o que é privilegiado e senhor de si, e igualmente um segundo e mais refinado ateísmo. "Ni Dieu ni maitrê" [Nem Deus, nem Senhor] - assim querem vocês também: e por isso "viva a lei natural!" - não é verdade? Mas, como disse, isso é interpretação, não texto, e bem poderia vir alguém que, com intenção e arte de interpretação opostas, soubesse ler na mesma natureza, tendo em vista os mesmos fenômenos, precisamente a imposição tiranicamente impiedosa e inexorável de reivindicações de poder - um intérprete que lhes colocasse diante dos olhos o caráter não excepcional e peremptório de toda "vontade de poder", em tal medida que quase toda a palavra, inclusive a palavra "tirania", por fim parecesse imprópria, ou uma metáfora debilitante e moderadora - demasiado humana; e que, no entanto, terminasse por afirmar sobre esse mundo o mesmo que vocês afirmam, isto é, que ele tem um curso "necessário" e "calculável", mas não porque nele vigoram leis, e sim porque faltam absolutamente as leis, e cada poder tira, a cada instante, suas últimas consequências. Acontecendo de também isto ser apenas interpretação - e vocês se apressarão em objetar isso, não? - bem, tanto melhor! (Nietzsche, 1992, pp. 28-29)
Nietzsche dá a entender que tudo se mostra por meio de um conflito de interpretações sem interrupção, mas para ele não existe propriamente uma equivalência entre essas interpretações, pois haveria um critério para a adesão ou não a uma delas. Qual seja, aquela interpretação que se sabe como interpretação seria mais consistente e abrangente: ela, autoconsciente de sua parcialidade, de seu elemento perspectivo, não teria a pretensão de ser dogmática. Outro critério bem claro para o filósofo é o do enriquecimento para a vida, a potencialização da existência. Adotaríamos aquela perspectiva que mais enriquece o movimento de expansão vital.
Neste movimento de interpretações em constante luta por mais poder existiria uma superação da velha dicotomia aparência-essência, pois todos os conflitos se apresentam no campo da aparência. Ou seja, não existiria nada por detrás desse aparecer em termos de conflito. Sendo assim, a verdade sendo algo a ser buscado enquanto essência seria da ordem da ficção. A interpretação que se torna hegemônica a partir de uma certa perspectiva impõe o seu sentido, a sua visão de mundo, a sua verdade. Sempre que se considera algo revelando uma verdade, tem-se em conta que é uma interpretação que adquiriu um poder suficiente para fazê-lo.
Não existem verdades, tão somente interpretações, ou como Nietzsche afirmou: "Não existem fatos, apenas e tão somente interpretações".
Voltando à história da filosofia ocidental, verifica-se que a busca da verdade sempre foi fundamental em termos do discurso da razão. Seria como uma verdade a qualquer custo, a qualquer preço. Ora, nesse momento do século xix, Nietzsche diagnostica que a vontade de verdade atinge o seu ponto limite e se autossuprime, se autocancela (Selbst-aufhebung):
Todas as grandes coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de "autossupressão": assim quer a lei da vida, a lei da necessária "autossuperação" que há na essência da vida - é sempre o legislador mesmo que por fim ouve o chamado: paterelegemquam ipse tulisti [sofre a lei que tu mesmo propuseste]. (Nietzsche, 1887/1998, p. 148)
Tentando-se alcançar a qualquer custo a verdade, chega-se à conclusão de que não existe qualquer verdade, ou que a única verdade é que não existe verdade alguma. Há uma consequência para o espírito ascético que ditava as regras absolutas para se atingir a verdade ao nível da filosofia e da ciência: a autossupressão da verdade. Com a derrota desse dever dogmático devido a suas próprias exigências, a efetividade transforma-se em algo mais suave ou mais leve, ao nível apenas e tão somente da aparência. Não há qualquer dever de atingir um alvo preestabelecido, nenhum dever moral de atingir uma verdade. Há uma grande liberdade para se transitar entre as diferentes perspectivas, entre as diferentes abordagens.
Abre-se, assim, um campo para a ambiguidade, em que o corpo terá um papel relevante, pois ele é o modelo principal no qual Nietzsche se inspira para a sua teoria sobre as diferentes interpretações em luta. Pelo corpo, diferentes pulsões ou diferentes impulsos entrarão em disputa por predomínio em instâncias de poder. O corpo se configura como uma grande razão em que o dinamismo das forças não cessa de se engendrar. Uma totalidade em movimento, um vir a ser recorrente. Nesse sentido, ele não pode ser visto como uma unidade acabada, perfeitamente idêntica a si própria. Isso significa que ele não perfaz uma identidade, constituindo-se como um devir, um trânsito, o qual não deveríamos propriamente chamar de corpo, na medida em que ele que é um conjunto de forças em relação, está sempre em relação com outros corpos-relação. Produz-se, por meio desse processo, aquilo que denominaríamos intercorporeidade, pois o que importa de fato são os corpos que se produzem no entre, no interstício entre os diferentes corpos. A intercorporeidade que se esboça nessas relações se dá como um devir dinâmico. Ora, tal postura afronta o pensamento da unidade substancial corporal, o atomismo da alma e do corpo. Mesmo assim, Nietzsche compreende muito bem o porquê dessa crença tão arraigada na unidade substancial do corpo: é um preconceito lógico-gramatical. Nós acreditamos no sujeito da gramática, seguindo outras línguas que estão ancoradas no tronco linguístico indo-europeu, no qual a categoria de sujeito é muito importante. Acreditando que esse sujeito gramatical é uma verdade sólida, não temos como nos desvencilhar de suas projeções no âmbito do conhecimento. Nele tendo fé, teremos a certeza da existência de toda e qualquer substância e, em seguida, acreditaremos igualmente na alma, no espírito, no corpo, no eu, na matéria, no átomo e, finalmente, em toda e qualquer unidade. Ter crença em unidade corporal, submetendo-se à filosofia de Demócrito e sua arché, é concretizar um preconceito de ordem lógico-gramatical. Uma ficção linguística.
Libertando-se desses entraves linguísticos teremos um maior distanciamento em relação à nossa linguagem, embora sabendo que ela é imprescindível à manutenção de nosso cotidiano. Tal inserção no âmbito de preconceitos lógico-gramaticais está plenamente ancorada no próprio nível de funcionamento da consciência. A resolução de todos os processos sempre acontecerá no âmbito das relações intra e intercorporais, no movimento das pulsões e dos impulsos, na luta ininterrupta dessas vontades de poder entre si. Mesmo assim, existe um papel reduzido e limitado da consciência que pode pelo menos direcionar ou indicar perfis para aquilo que está se dando nos níveis dos corpos ou das intercorporeidades. O resultado final será decidido pelas configurações de domínio das pulsões em luta:
[...] a nossa consciência toma partido por certas pulsões contra outras e define, em abstrato, certos fins ou metas ou propósitos para a nossa ação - mas nunca é mais do que uma "causa catalítica" da nossa ação. Quando muito, os nossos propósitos conscientes "dirigem" a nossa ação, dão-lhe uma direção - mas não a impulsionam e, sobretudo, não a controlam. Nunca são mais do que uma "superfície" das nossas pulsões e afetos e, portanto, nunca são mais do que um "instrumento" destas pulsões e afetos - um instrumento da sua "vontade" de "explodir" ou "descarregar-se". (Constâncio, 2014, p. 187)
A tradição ocidental, tratando-se de filosofia, entenderia tal divisão em termos de alma e corpo. O corpo seria o terreno das pulsões que acabam predominando no sujeito, e o campo da consciência seria a figura adequada para a alma. Ou seja, continuaríamos a trabalhar em função de duas substâncias independentes. Frezzatti Jr. (2014) avança, em termos de interpretação da filosofia nietzschiana, ao dizer que seria bem mais abrangente entendermos o campo das pulsões a partir dos conceitos de inconsciente e consciente, as instâncias que sugerem ou direcionam o movimento pulsional. Nesse sentido, o conceito de Selbst seria o próprio movimento pulsional, ou melhor, a agonística entre essas mesmas pulsões. O Selbst se evidencia como uma unidade de organização e não como uma unidade substancial. Ele, que é a grande razão, aproxima-se daquilo que a psicofisiologia da segunda metade do século xix entendia como o inconsciente, principalmente nos trabalhos de Théodule Ribot. Explicando melhor, Nietzsche, ao estabelecer que o Selbst se dá em um campo quantitativo de quanta de poder em luta contínua, evidencia a influência do fundador da psicologia científica francesa no que se refere à interpretação daquilo que Ribot chamava de inconsciente.
Sendo assim, a própria noção de corpo acaba sendo ultrapassada, pois o que de fato existe são elementos pulsionais em combate - a totalidade corporal é uma ficção. O melhor termo, então, seria intercorporeidade. Ficaríamos ainda cerceados com a duplicidade corpo/espírito, corpo/alma, se insistíssemos na palavra corpo, não se desvencilhando das grandes estruturas metafísicas platônicas que ainda hoje persistem.
Mesmo assim, Nietzsche ainda utiliza a palavra corpo, quando nos diz:
Nesse "milagre dos milagres", a consciência é um instrumento, nada mais - no mesmo sentido que o estômago é um instrumento.A esplêndida coesão dos seres vivos mais múltiplos, o modo pelo qual as atividades superiores e inferiores se ajustam e se integram umas às outras, essa obediência multiforme, não cega, menos ainda mecânica, mas seletiva, inteligente, cuidadosa, até mesmo rebelde - todo esse fenômeno "corpo" é, do ponto de vista intelectual, tão superior à nossa consciência, ao nosso "espírito", aos nossos modos conscientes de pensar, de sentir e de querer, quanto a álgebra é superior às tabelas de multiplicação. [...] Guiados pelo fio condutor do corpo, [...] aprendemos que nossa vida só é possível graças ao jogo conjunto de inúmeras inteligências de valor muito desigual, ou ainda graças a uma perpétua troca de obediência e comando sob inumeráveis formas. (Nietzsche, 1885/2014, p. 82)
Todo este movimento de impermanência que percorre o inconsciente por meio desses inúmeros seres, de todas essas microconsciências em luta eterna, contínua, indica-nos que há uma indeterminação original naquilo que nós nos acostumamos a chamar de corpo. O que Nietzsche tem a dizer é que os eventos se dão ao nível das relações, nos elementos intersticiais. E tudo isso nos mostra o quanto a história da filosofia no ocidente precisou elaborar certezas, convicções, para se defender do devir, dos fluxos da existência. Para o filósofo alemão, todos esses processos devem ser celebrados e abençoados naquilo que ele denomina de amor fati:
Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo - todo o idealismo é mendacidade ante o necessário - mas amá-lo... (Nietzsche, 1908/1995, p. 51)
Afirmar incondicionalmente o devir e todos os processos intrínsecos a ele. Nossos corpos só podem estar em interstícios, em ambiguidades. Não se mostra qualquer substância metafísica unificadora e apaziguadora. Não se sabe das futuras configurações que virão, das intercorporeidades que poderão emergir.
REFERÊNCIAS
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Espinosa, B. (1974). Ética III. In Obras (Col. Os Pensadores, J. Carvalho, trad., 1a ed.). São Paulo: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1915. Título original: Etica). [ Links ]
Frezzatti, Jr., W. A. (2014). Consciência e inconsciente no discurso "Dos desprezadores do corpo" de Assim falava Zaratustra: uma perspectiva psicofisiológica da crítica nietzschiana do sujeito. In S. Marton, M. J. M. Branco & J. Constâncio (Orgs.). Sujeito, decadência e arte: Nietzsche e a modernidade. Lisboa: Tinta da China. [ Links ]
Nietzsche, F. W. (2002). Fragmentos Póstumos de junho-julho de 1885. In O. Giacóia Jr. Resposta a uma questão: o que pode um corpo? In D. Lins & S. Gadelha (Orgs.). Nietzsche e Deleuze - que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará [ Links ].
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______. (1995). Ecce homo: como alguém se torna o que é. (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1908. Título original: Ecce homo: wie man wird, was man ist). [ Links ]
______. (1998). Genealogia da moral: uma polêmica. (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1887. Título original: Zur Genealogie der Moral: eine Streitschrift). [ Links ]
Endereço para correspondência:
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c.prochno@uol.com.br / caioprochno@terra.com.br
Recebido 08.04.2016
Aceito 30.04.2016
1 Artigo advindo de um segundo pós- -doutorado feito na Alemanha, na Universidade de Greifswald, sob a orientação do professor Werner Stegmaier, no ano de 2011.