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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016
CONTRAPONTO 2: TATUAGEM, MARCAS CORPORAIS
Escrevendo em mim - me inscrevo e me descrevo1
By Writing on me; I subscribe myself and describe myself
Ana Maria Stucchi VannucchiI; Josefa Maria Dias da Silva FernandesII; Andreza RibasIII; Danielle Batista Bounassar ChumanIII; Fabíola Augusta Januário MartinIII; Ligia Mara de Carvalho OrtolonIII; Luis de Paiva SilvaIII; Patrícia Elena Bertini Scomparin RossettiIII; Regina Lucia da Silva Vicente PereiraIII; Rosimari Boer AntônioIII; Silvana BressanIII
IPsicanalista, membro efetivo e didata da SBPSP. Mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo
IIPsicanalista, membro associado da SBPSP. Em formação no curso de psicanálise de crianças e adolescentes da SBPSP. Formação em psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae. Membro associado do Espaço Psicanalítico de São José do Rio Preto/SP
IIIMembro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
O presente trabalho visa apreender o corpo pensado como um espaço de inscrição simbólica. O trabalho é resultado da interlocução entre psicanalistas que, estudando as vicissitudes da adolescência, tomaram como viés a investigação acerca de diferentes modalidades de inscrições e marcas corporais. Como crivo das nossas elaborações psicanalíticas, enfocamos as tatuagens, que se apresentam como formas de linguagem e expressão. Nessa fase da vida, o corpo passa a ocupar espaço privilegiado de manifestações e comunicações de conflitos psíquicos. A investigação aqui proposta reflete sobre as contribuições da psicanálise ao que se refere ao ato de ferir o corpo, como também reflete sobre as inscrições corporais pigmentadas na pele, como possíveis formas identitárias e integradoras, que estabelecem a comunicação entre mundo interno e externo, corpo e mente.
Palavras-chave: Psicanálise. Corpo. Mente. Linguagem. Tatuagens.
SUMMARY
The present study aims to apprehend the body conceived as a space for registration mark. The work is a result of the interlocution between psychoanalysts who, by studying the vicissitudes of adolescence, took as a bias research about different modalities of inscriptions and marks. As sieve of our psychoanalytic elaborations, we focus on the tattoos, which present themselves as forms of language and expression. During this phase of life, the body is to occupy a privileged area of manifestations and communications of conflicts. This research proposed here reflects the contributions of psychoanalysis on both that refers to the act of injuring the body, as well as the inscriptions pigmented body in the skin, as possible forms of identity and integrative, establishing communication between the world inside and outside, between body and mind.
Keywords: Psychoanalysis. Body. Mind. Language. Tattoos.
Introdução
O presente trabalho sobre tatuagens e self cutting (nome em inglês que significa "cortando a si mesmo") se desenvolveu a partir dos ecos que esses temas tiveram ao longo dos estudos referentes à adolescência, em um grupo de psicanalistas em formação, no Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Pretendemos apreender o corpo como um espaço de inscrição simbólica, observando diferentes modalidades de inscrições corporais. Essas investigações refletem sobre as contribuições da psicanálise acerca do ato de ferir o corpo, dos transbordamentos e direções que podem ter as pulsões e sua relação com o processo de automutilação, bem como refletem sobre as inscrições corporais pigmentadas na pele como possíveis formas identitárias e integradoras que estabelecem a comunicação entre mundo interno e externo, entre corpo e mente. É possível observar a corporeidade como conjunto simbólico, como fenômeno psíquico, sociocultural, e como representação/ expressão dessas transformações da psique que emanam do corpo. As tatuagens e marcas corporais que pretendemos abordar tocam nessa interação em busca de transformações possíveis, como ilustraremos com casos clínicos.
I - Tatuagens e marcas corporais
Quero ficar no teu corpo
Feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem...
E também pra me perpetuar em sua escrava
Que você pega, esfrega nega, mas não lava
("Tatuagem" - Chico Buarque)
A prática da tatuagem possui uma complexidade em si mesma que percorre a história da humanidade, por isso sua vinculação com aspectos culturais e grupais. É também uma prática que revela algo do sujeito como indivíduo em busca de um símbolo ou uma espécie de inscrição com valores e necessidades próprios.
A pele coberta de tatuagens pode ser pensada como uma nova cobertura que funciona como um envoltório psíquico, não sendo necessariamente consciente. A tatuagem implica uma alteração na pele e uma mudança na exterioridade do sujeito, que pode significar uma profunda alteração na constituição do próprio self.
Nossa inquietação foi em busca do sentido e da expressão que a tatuagem - essas marcas pintadas na pele ponto a ponto, com tinta e agulha, como tapeçarias, transmitindo a ideia de um "quadro vivente" - traz e representa na vida dos indivíduos que a usam, podendo ser, talvez, um recurso para deixar uma marca viva na pele. Aposta-se, assim, numa certa indestrutibilidade da marca e também do corpo, como aqueles que vivem com a legenda indelével: For Ever.
As tatuagens se apresentam como um caminho em direção à possibilidade de expressar as experiências vividas em busca de elaboração. Podem ser pensadas como a tentativa de existir pela dor de se tatuar, comunicando algo que pode vir de dentro do sujeito em busca de uma simbologia, e podem ser pensadas como uma assinatura individual diante do apagamento identitário e massificado da cultura contemporânea.
Buscamos suporte em alguns autores e suas concepções sobre o tema. Paul Schilder (1958) diz que a imagem corporal se constrói sobre a base de uma experiência social - de como nos percebemos e somos percebidos -, sobre o interesse dos outros pelo nosso corpo e as sensações que temos quando nos tocam.
Silvia Reisfeld (1999) afirma que olhar outras tatuagens e ser olhado pelos outros remete não só ao prazer de ver e exibir-se como também àquilo que permite construir uma identidade: "eu sou minhas tatuagens".
Lévi-Strauss (1968), também citado por Gusmán (1992), nos fala da tatuagem como uma tapeçaria do corpo e abre outra questão importante, a relação da tatuagem com aquilo que ela representa. Para Lévi-Strauss, as tatuagens não cumprem unicamente a função de ornamentar, também funcionam como marcas de nobreza e hierarquia social, de tal maneira que a maioria das tatuagens não está destinada exclusivamente a gravar um desenho na carne, mas, sim, imprimir no espírito a marca de todas as tradições de uma raça.
Os dois últimos autores aproximam suas concepções quanto às funções da tatuagem, ou seja, uma função mágica (de proteção, amuleto), uma função mística (comunicação com os deuses), uma função identificatória (como símbolo de iniciação, de guerra) e outra estética, em que a incisão é uma marca de adorno no corpo.
Em o "Eu e o id", Freud define que "[...] o Eu é sobretudo corporal, ele é não somente um ser de superfície, mas é ele mesmo a projeção de uma superfície" (1923, p. 40).
O conceito de "segunda pele", de Ester Bick (1970), sustenta que a falha na aquisição da função psíquica de contenção, cuja origem remonta ao início da relação do bebê com sua mãe, "[...] em sua forma mais primitiva, pode ter como consequência a vivência de que as partes da personalidade são sentidas como não tendo nenhuma força de ligação entre si e que, portanto, devem se manter unidas de um modo que vivenciem passivamente a unidade, com a pele funcionando como limite" (Bick, 1970, p. 194). Mas essa função interna de conter partes do self depende inicialmente da introjeção e da posterior identificação com a função de contenção do objeto, o qual origina a "fantasia do espaço externo e do espaço interno" (Bick, 1970, p. 194).
Há registros de casos de adolescentes com várias tatuagens. Podemos esboçar algumas hipóteses para pensá-los, como o déficit da capacidade de construir uma representação mental - a não ser por meio do uso de um veículo como a tatuagem - e sua conexão com uma falha na aquisição da função primária de contenção na relação mãe/bebê. Nesse intercâmbio de experiências, observamos não ser incomum, no dia a dia do trabalho clínico, especialmente com adolescentes, pensar o uso de tatuagens como modo de expressão e elaboração de experiências, angústias e conflitos.
Tais formulações são hipóteses observadas nas experiências clínicas que apresentaremos a seguir.
Mateus2, um jovem rapaz, faz uso da tatuagem na tentativa de elaborar experiências que está vivendo e que ainda não puderam ser representadas. Tatuar-se foi a maneira que encontrou de experimentar a dor de se sentir abandonado. Sentir a dor poderia ser um primeiro passo para existir e ligar-se. Após a separação dos seus pais, vagava, ainda criança, da casa do pai para a casa da mãe, a qual sofria de uma grave depressão. Como conjectura, esse arranjo familiar dificultou a construção de uma base familiar sólida para um desenvolvimento psíquico mais favorável a ele.
Desde jovem, fazia uso de maconha e tatuava o corpo com imagens representando passagens de sua vida. Dos vários exemplos, destacamos a tatuagem de um átomo que ele acreditava ser uma expressão do seu ateísmo, representando, ao mesmo tempo, aspectos de um possível conflito edípico deslocados para um sistema religioso (próton, elétron, nêutron); a folha da maconha aludindo ao seu consumo e indicando aspectos de confrontação ou conflitos geracionais, a tão sonhada "liberdade" das amarras da dependência infantil; gueixas representando a descoberta da feminilidade e sensualidade. Destaca-se nessas tatuagens uma linguagem comum a um grupo, e por isso mesmo elas comunicam um sistema de crenças e valores.
Já outras tatuagens traduzem aspectos pessoais desse jovem. Destacamos a tatuagem do personagem do jogo eletrônico Mario Bros3, representando uma espécie de elo com a infância e a puberdade; e grades de uma prisão indicando, a cada grade, uma experiência de namoro e um vínculo experimentado como cárcere.
Alguns jovens chegam à idade adulta com áreas de seu corpo cobertas por tatuagens, formando uma segunda pele pictórica. Poderíamos pensar nesses jovens como pessoas que não encontraram na esfera psíquica uma simbolização e essas tatuagens seriam representantes de algo que transbordou, como um possível caminho para poder pensar/metaforizar/sonhar? Algo como uma corporeidade afetiva ou mesmo símbolos ainda em gestação?
A instabilidade da imagem do próprio corpo supõe a fragilização dos processos de simbolização (Birman, 2007). A prática da tatuagem também nos levou a considerar a hipótese de que, por meio de imagens impressas na pele ou mesmo do próprio processo de tatuar-se, pode haver a vivência de conter e transformar a agressividade. Isso nos faz considerar o teor de vulnerabilidade, a necessidade de proteção e contenção, bem como a necessidade de discriminação entre interno e externo que a pele propicia. Po-demos também considerar as tatuagens associadas a perturbações psíquicas, como as que caracterizam as subjetividades atuais, com um declínio de investimento do narcisismo de vida, que cria um vazio na economia psíquica, com preocupação excessiva pelo corpo.
Essa prática também pode ser concebida como uma arte na pele, revelando-nos um universo complexo e rico de significado. O ato de tatuar-se, para além das práticas de moda ou comportamento imitativo de grupos, apresenta-se como um modo privilegiado de construir uma identidade diferenciada, como vemos em jovens que têm ou desejam cobrir quase todo o corpo com tatuagens. Nesses casos, a primeira tatuagem sugere ser um disparador ou ativador de conflitos psíquicos. Tornam-se mais severos toda vez que o ato de se tatuar transforma-se em uma compulsão, que, por sua vez, pode ser comparada a um vício, mais do que a motivação de fazer um desenho e seu significado.
Mateus vive seus relacionamentos amorosos intensamente, como paixões avassaladoras, porém, em seguida, opera total ruptura sem deixar lastro aparente daquele intenso vínculo. O analista usou como metáfora para significar essa forma de se relacionar a imagem de lindas tatuagens, contudo, pintadas com tinta de henna, por isso, pouco a pouco, desbotavam sem deixar sequer um contorno daquela experiência. Pensou na metáfora como um exercício, permitindo e construindo acesso em direção a uma vida simbólica. Certa ocasião chega à sessão com uma nova tatuagem em seu braço; faz comentários breves e vagos de suas férias e, logo depois, conta que tem se encontrado com Gabriela. Fato novo, visto que ele nunca se interessava em retomar relacionamento com suas ex-namoradas. Quando o analista indaga se Gabriela era a sua ex-namorada, responde: - "Não é nada especial, mas está bom ficar com ela". Nesse momento, surpreende-se, percebendo em seus devaneios lembranças de um filme sobre a vida de um psicopata e a razão traumática vinculada àquele transtorno. No filme, o protagonista assistiu em sua infância à morte acompanhada de canibalismo de seus dois irmãos, e, já adulto, ao longo de sua vida, submetia pessoas à mesma tortura. Na medida em que o escuta, o analista se indaga a respeito desse devaneio e pensa em investigar as bases que sustentam seus relacionamentos amorosos, inclusive o vínculo entre analista e analisando.
O analista fala sobre o fato de sentir que ele se beneficia da análise como também de seus outros relacionamentos, mas que os interrompe de forma súbita como que para "matar" o vínculo. Em seguida, o jovem rapaz mostra uma tatuagem que fez na parte interna de seus lábios: cinco grades, como as de um presídio, e cada grade representando, então, uma de suas cinco ex-namoradas. Explica que esse tipo de tatuagem necessita de retoques constantes, mas que não está disposto a fazê-lo.
A capacidade do analista de sonhar e metaforizar traz à vida de seu analisando novos recursos psíquicos, permitindo-lhe experiências de continuidade afetiva, como mais um recurso disponível para viver sua experiência de vida. Nesse sentido, as tatuagens demonstraram ter, como função, o registro de experiências que aparentemente pareciam ser vividas como inócuas, porém, paradoxalmente vitais para a manutenção de uma espécie de identidade pictórica e um signo em busca de simbolização.
Segundo Uta Karacaoglan (2014), as tatuagens projetam uma imagem visual na transferência para constituir o pano de fundo para os conflitos inconscientes que emergem na análise. A necessidade de se tatuar pode também ser desencadeada por uma ameaça à estabilidade interna, quando o medo de abandono e de fusão torna-se insuportável. Talvez nas crises de adolescência ou em outros momentos de regressão, as pessoas se tatuem para restabelecer alguma perda da simbolização, antes acessível. Des-se ponto de vista, a tatuagem pode ter uma função antipsicótica. Karacaoglan considera a tatuagem uma simbolização visual do tabu da transgressão. O ato de autolesão lembra os rituais mágicos dos indígenas, conferindo à tatuagem uma função totêmica; esse ato não pode ser considerado uma tentativa bem-sucedida de construir um Objeto Transicional (Winnicott, 1965), pois o objeto criado em forma de tatuagem fica permanente no corpo. Nesse caso a imagem pode funcionar como um "remendo" para reparar e reconstruir os buracos no "espaço potencial".
Fábio nos oferece um exemplo do uso catártico da tatuagem. Desde jovem ele inscreve no corpo letras, palavras, frases e imagens coloridas, expressando seus sentimentos em situações diversas de sua vida, seja como reparação referida a situações de conflito - amoroso, nascimento, morte, sentimento de culpa -, seja para celebrar união ou mesmo cobrir outras tatuagens das quais se arrepende.
Dentre as diversas funções de uma tatuagem, observamos que a produção de uma tatuagem memorial após uma perda significativa é um fenômeno cada vez mais frequente, principalmente entre jovens ocidentais.
Segundo as autoras Pinho e Rosa (2014), a produção da tatuagem memorial, entre outras, responde, para muitos jovens, a essa busca por um rito mais de acordo com os gostos e costumes das novas gerações. Essa intervenção recoloca a função do público no luto, pois houve um declínio das crenças religiosas e uma ascensão da interdição da morte no Ocidente, que contribuíram para a decadência ou mesmo supressão dos ritos fúnebres.
Fabio, por exemplo, nos oferece um modelo emblemático da tatuagem memorial, pois, após a morte de sua mãe - que se suicidou -, acredita ter endereçado suas tatuagens a ela. Tatuou o nome dela no peito e mensagens de saudades, como uma oferenda. Foi uma tentativa de elaborar a experiência do luto (que ainda não pode realizar), o sentimento de traição e também uma forma de "fazê-la existir e durar pra sempre", marcada mais no corpo do que na mente.
Diante da sociedade, parece importante encontrar uma resposta possível, inventar um modo singular de rito em que o luto público tenha de novo seu lugar. Uma convocação que visa, entre outras coisas, retirar o enlutado do desamparo, da solitária e vertiginosa experiência de perder um ser querido.
Tatuadores, em depoimentos, revelam como as pessoas costumam agir durante a produção da tatuagem memorial: "Cada pessoa traz pelo menos uma outra, com quem pode falar e se lembrar da situação. Geralmente, enquanto estão falando e sendo tatuadas, elas só se lembram das coisas engraçadas, boas". De modo geral, podemos dizer que elas apreciam o quão catártico é a tatuagem quando, no final, "ficam com os olhos marejados de lágrimas".
No clássico ensaio "Luto e melancolia", Freud considerou o luto "uma reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar [...]", e que, por vezes, "[...] ocasiona um sério afastamento da conduta normal da vida" (Freud, 1917/1969, p. 172). O luto realizaria o trabalho - "trabalho de luto" - de retirar toda a libido investida no objeto amado que falta. Cada um dos elos que ligamos ao objeto, às recordações, expectativas, são invocados e superinvestidos, tendo em vista o desligamento libidinal. Porém, tal operação desperta uma intensa oposição, uma vez que não se abandona de bom grado uma posição libidinal satisfatória e a renúncia ao objeto se dá de forma dolorosa e lenta. O luto exprime uma exclusiva devoção à memória do objeto perdido, em que nada mais resta para outros intuitos e interesses, "[...] o mundo se torna pobre e vazio" (Freud, 1917/1969, p. 176). E é o trabalho de luto que "[...] leva o Eu a renunciar ao objeto, declarando-o morto e oferecendo ao Eu o prêmio de continuar vivo" (Idem, ibidem, p. 192), de forma tal que, quando o luto chega ao fim, o Eu está livre para investir novos objetos.
A tatuagem memorial, portanto, pode ser pensada como um símbolo. O corpo serve como suporte tanto para inscrever a existência do ente querido falecido quanto para marcar o seu não aparecimento, ou seja, o seu desaparecimento. Convocar para esse ser inefável o simbólico, por meio da produção de uma tatuagem, apresenta-se como uma tentativa de fazê-lo existir, durar, subsistir, preservando-o como humano.
Outro aspecto bastante interessante a respeito da tatuagem é a busca do vínculo com o tatuador - aquele que "tatua-a-dor" -, que pode se aproximar daquele que desempenha o papel do parceiro dominante em uma relação sexual sádica, pois o self regula a dosagem e estabelece a triangulação com a figura do tatuador. Mas diferentemente do cenário da perversão, o ato de se tatuar é significativamente distinto em sua dinâmica, na medida em que representa uma tentativa de superação por meio de recursos mágicos, como a penetração forçada na superfície da pele com imagens simbólicas do avassalador medo de abandono e aniquilação.
No processo analítico de Fabio, observou-se sua vinculação à analista e uma busca da possibilidade de transformar suas frustrações e perdas em sentimentos de luto e tristeza, que anteriormente só podiam ser expressos por meio das tatuagens. Tatuou-se exageradamente após a morte de sua mãe e, entre tantas, num impulso, fez um tribal e um dragão. Em uma das sessões, apresenta-se inquieto e conta que a saudade da mãe está muito forte, que, para ele, naquele momento, nenhum lugar está bom, pois se estivesse viva faria quarenta e oito anos. "Tem horas que eu não vejo graça na vida, porque tudo acaba e de uma hora para outra tudo evapora", diz.
Esse analisando está se aproximando dos seus sentimentos, está podendo chorar a sua dor, junto da analista. Hoje os seus sentimentos estão vivos na sua mente. Relata sentir um misto de raiva, amor, ódio pelos pais, além de saudades e um grande amor pelos filhos. Sua filha bebê lhe dá vida; adora cuidar dela. Quando lhe dá banho sente que fica feliz, mas quando a retira da água e coloca a roupa nela, "Ah! Que show! Ela grita e esperneia". A analista comunica que ele também tem gostado de banhar-se nas águas dos encontros da dupla analítica.
A tatuagem, no caso clínico aqui demonstrado, tem sentido de permanência, como que para lidar com a falta que sente de sua mãe, buscando, assim, registrar no corpo sua ausência/presença; como nos versos da música Tatuagem, "Quero ficar no teu corpo/ Feito tatuagem/ Que é pra te dar coragem/ Pra seguir viagem/ Quando a noite vem/ [...] Quero ser a cicatriz/ Risonha e corrosiva/ Marcada a frio/ Ferro e fogo/ Em carne viva...".
O limite territorial e automutilação
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros. É feia.
Mas é realmente uma flor.
("A flor e a náusea", Carlos Drummond de Andrade)
Na segunda parte deste trabalho, temos como objetivo apresentar algumas reflexões sobre cutting e suas manifestações. As marcas corporais se expressam como um território privilegiado para as demarcações identitárias. Utilizaremos material clínico que ilustra a alta incidência da destrutividade, no que tange ao funcionamento psíquico, direcionada ao corpo. As indagações que circundam essa temática - as questões do corpo psicanalítico, as pulsões intrínsecas, a relação mãe-bebê, o corte, a dor - ajudaram na realização deste trabalho. Algumas hipóteses estão aqui delineadas no sentido de compreender os caminhos que levam ao self cutting e observar que inscrições psíquicas ficam na mente do analista.
As conjecturas que levam o indivíduo ao ato de ferir-se com cortes são diversas, entretanto, fica evidente a predominância de sintomas de depressão, de um corpo recusado, as tatuagens denunciam a cisão, as psicopatologias do vazio, estados-limites, os fronteiriços ou borderlines (Birman, 2007). Em nossa experiência clínica, também são observados atos como ataque, exibição, angústia, desejo de rupturas ocasionadas por sentimentos de invasões, tentativa de elaboração de suas vivências, precária capacidade para absorver o impacto de suas próprias emoções, imensa dificuldade para encontrar um sentido para experiências de isolamento e retraimento. Por fim, a utilização de modalidades defensivas denominadas por Steiner de refúgios psíquicos, usando o termo organizações patológicas da personalidade para designar "uma família de sistemas defensivos que são caracterizados por defesas extremamente rígidas, que funcionam para ajudar o paciente a fugir da ansiedade evitando o contato com outras pessoas e com a realidade" (1977, p. 17).
Buscamos nos fundamentar em diversos autores e experiências de nossa clínica. Para Ana Costa (2003), o repertório de traços que suportam o olhar de nosso corpo é bastante variado e se modifica conforme a cultura. Esse olhar não pode ser somente exterior, ele precisa compor uma espécie de coluna vertebral que mantenha todo equilíbrio do corpo, sustentando seu lugar. Nesse sentido, o olhar precisa ultrapassar a derme, tornando-se ao mesmo tempo interior e exterior, ele não vem somente de fora, mas é aquele que produz em nós a experiência de sermos olhados como um objeto diferenciado de outros, produzindo simultaneamente dor e prazer.
Entrar na pele e estar na pele de alguém são expressões da linguagem de domínio semântico e fazem referência à maior parte das funções conjuntas da pele e do Eu. São ressonâncias subjetivas das coisas sobre nós, dizem respeito em sua origem a um contato com a pele; o sentir e as impressões, a partir de uma membrana, uma casca, um envelope, armadura, película, pleura... pele que cobre o corpo, pele que constitui, pele que envolve, pele que nos dá sinal de vida e de dor. A pele é, aliás, o lugar das sensações proprioceptivas. Pensar em termos econômicos (acumulação, deslocamento e descarga da tensão) pressupõe o Eu-pele a que Anzieu (1989) se refere.
Uma contribuição significativa desse autor é a "pia-máter", que envolve os centros nervosos. É a mais profunda das meninges, contém os vasos destinados à medula e ao encéfalo; etimologicamente o termo designa "mãe-pele". A linguagem transmite bem a noção pré-consciente de que a pele da mãe é a pele primeira. J. D. Nasio (1997) aborda a questão da intensidade da pulsão e o que estaria em jogo é a quantidade e não a qualidade. Para Sapoznick, cortes na pele podem representar "o resultado de uma descarga pulsional do tipo evacuativo, de uma angústia insuportável que culmina em um ato motor" (2008, p. 107). De acordo com Phillipe Jeammet (2005, p. 83), busca-se a dor para controlar a sensação de ineficácia do ego. Talvez sem esses cortes, o ego sucumbisse a uma dor impossível de ser experimentada. Ele fala também da frágil autoestima e da necessidade de ser diferente, aspectos que podem ser associados ao cutting.
Os cortes na pele, aparentes no corpo ou sutilmente cobertos pela roupa ou acessórios, percorrem a ideia de uma autopunição, merecedora de um castigo, um sacrifício, uma dor que tem como pano de fundo um profundo desamparo e muita raiva. A imagem do corpo ferido revela um ato existencial marcado pelo desamparo, dessa vez, carregado de dor. Essas fendas marcadas no corpo muitas vezes têm caráter silencioso, feitas em momentos de profundo isolamento. São fendas da inconsciência, diante de um superego massacrante (Sapoznik, 2008), que apresentam como características do seu funcionamento psíquico a insegurança do que sentem e a preocupação com o que supõem ser os desejos e os afetos dos outros.
Cortar-se é um ato transgressor, e o prazer desse ato traz um alívio para novos e repetidos cortes. Marina Miranda (2008), a partir de sua experiência na clínica com meninas bulímicas, relata:
Cortar-se e assistir ao sangramento podem ser considerados como movimentos purgativos no cenário da bulimia. Estar "limpa e magra", "ver o sangue, e sentir-se viva", noticiam a precariedade do self, ancorado num Eu que se liquefaz e que mistura e confunde a vida e a morte, a energia libidinal e a depressão. (Miranda, 2008, p. 11)
A pele, segundo Birman (2007), adensa-se como tela e o corpo se avoluma como matéria-prima escultural, desdobrando-se, assim, em múltiplas camadas de inscrições. O adolescente impõe sua singularidade de forma marcante. A palavra passa ao corpo sob a forma de assinaturas e signos pictóricos e esculturais. Algo de enigmático se apresenta nessas práticas corporais, exigindo de nós, analistas, um trabalho efetivo de deciframento.
Diante da conduta de automutilação, Sapoznik (2008) é motivada a se interrogar sobre o sentido dessa inscrição voluntária na pele, tão presente nos corpos e nos discursos contemporâneos. Seu trabalho clínico com mulheres que apresentam perturbações alimentares possibilita o contato com questões acerca dessa automutilação. A autora liga tais sintomas à "percepção instável do próprio corpo e da própria imagem", refletindo que "a dor dos cortes tem uma função defensiva, de proteger a paciente contra outra dor, esta sim, de natureza insuportável, que pode ser traduzida pela sensação de um profundo vazio e desamparo de viver" (Sapoznik, 2008, p. 107). A autora busca em alguns autores ajuda para dar sentido às suas experiências: Maria Helena Fernandes (2006) chama a atenção para o excesso pulsional, fazendo pensar nas falhas da função materna de paraexcitação, o que faz com que o bebê sinta-se pouco protegido dos estímulos, tanto internos quanto externos, tendo a estabilidade do seu aparelho psíquico perturbado. Paola Miele (2002) chama de landmark o estabelecimento de uma marca para designar os limites de um território, enquanto o poeta Paul Valéry nos faz pensar na superfície do corpo (a pele) como algo tão importante quanto o seu interior, ao afirmar que o mais profundo é a pele. A pele, aliás, é a zona de fronteira por excelência no momento mais precoce da vida. Ela é o limite "entre o interno e o externo, entre o eu e o outro, entre o corpo da mãe e do bebê, funcionando como uma envoltura psíquica" (Sapoznik, 2008, p. 104).
Na contratransferência - contemporaneamente vista como uma produção do campo analítico que pode se manifestar de vários modos: afetos, sensações, palavras e figurações como parte do diálogo analítico (Urribarri, 2012) -, aparecem sentimentos de impotência, ansiedade e desamparo, que muitas vezes surgem na mente do analista, que tem expectativas de vincular-se com seu analisando para ter a chance de lhe oferecer continência e a possibilidade de reconstruir boas experiências emocionais. A análise pode ser uma segunda chance na vida, como já dizia Freud desde o princípio da criação da psicanálise. Na reflexão da experiência clínica de Rosa, em análise há três anos, esses sentimentos contratransferenciais são frequentes, trazendo desânimo e desalento.
Ela se corta no quadril, sangrando na pele o que não pode sangrar pela vagina, porque interrompe a menstruação com medicamentos, como se pudesse transformar o corpo em algo sem existência, na tentativa de aplacar a angústia de esvaziamento, que traz a fantasia de escoar sua substância vital pelos cortes. Pode-se pensar que o impacto das transformações corporais tenha sido muito grande por ocasião da puberdade, o que dificultou a aceitação desse corpo por parte da mente. Existe a hipótese de que a anorexia dessa moça também possa ser pensada como ataque à sua feminilidade. Muito bonita e de longos cabelos, ora pintados de ruivo, ora descoloridos, mimetiza uma pessoa adulta, porém refugiada do mundo externo e das relações sociais. Tem anorexia de amigos, de contato social, de afetos. Sua atitude em relação à alimentação passa por um ideal que considera a abstinência como uma virtude; reduz suas necessidades alimentícias ao mínimo para garantir a sobrevivência e rejeita o prazer físico, o descanso e a diversão, expressando certo puritanismo.
Em nenhum momento mostrou seus cortes à analista (aprendidos com amigas em sites específicos), embora tenha revelado o local onde os faz, deixando cair o papel absorvente que estancava o sangue entre a pele e a roupa. Sempre que possível se mantém refugiada, sem "tocar" nesse assunto explicitamente, outras vezes, muito sofridamente, diz que são atos de penitência, em resposta à culpa que sente por algo que julga que deveria ter feito e de alguma maneira deixou de fazer.
Nas suas transformações projetivas (Bion 2004), desloca sua narrativa para fora da relação com a analista, dizendo que "quer estudar nos Estados Unidos, mas tem receio de ter que procurar sozinha os meios para prestar o exame de certificação do inglês". Intuitivamente, a analista a escuta dizendo: - Como será meu "estado" de vida "cortado" pela distância que nos imporá o fato de estar em outro país? Estaremos ainda "unidas"? Ela percebe que fendas e cortes na pele, e, ainda, alargadores nos lóbulos das orelhas (que deseja colocar após completar 18 anos), aliviam momentaneamente suas angústias, mas não dão conta de tudo que sente que precisa construir em sua vida.
Diante da fase estudantil, de dar sua virada e ir em busca de sua tão desejada carreira acadêmica, a ideia de ficar sem análise é também ficar em anorexia mental, trazendo à tona terror e desespero. Esses sentimentos ficam muito mais depositados contratransferencialmente como identificação projetiva na analista (Klein, 1946), não podendo ainda ser utilizados para pensar e ter consciência de si própria. O narcisismo negativo (Green 1988), ativado pela função de desligamento, pode estar impedindo essa moça de perceber que pode contar com o outro, impelindo-a a acreditar que pode viver sem vínculos. Será que a analista tolera vê-la, à flor da pele, em carne viva? Será que fica também temerosa de sua paciente não aguentar e adoecer ainda mais diante de um desastre possível? Como transformar essas angústias em intervenções psicanalíticas, sem moralidades e sugestões?
O estado de morte em vida a habita, fazendo seu corpo desaparecer. Será que viver, para ela, não tem encanto? Ela tem consciência que pode se colocar em risco, principalmente quando busca na sensorialidade uma prova de que ainda não morreu, que está viva, porém, murchando como uma flor.
Fazer escoriações serve a uma área da mente que precisa se realizar a partir de uma área sensorial como se pudesse confirmar que ainda não morreu. Do mesmo modo, seus refúgios psíquicos funcionam como um canal obstruído, como numa veia que seca sem o fluir do sangue. A analista vai sendo submetida sutilmente a essas "cortadas" defensivas que sua analisanda lhe impõe, porque ela não acredita que a analista possa compartilhar todo seu terror junto dela. Assim como a comida tem a ver com o recebimento, o tratamento que ela recebe de sua analista é que pode vir a ter um caráter transformador. O "que se mostra em termos narcísicos é que ela fantasia ser capaz de se alimentar e cuidar de si dando a vida a si mesmo" (Rosenfeld, 1961, p. 250).
"Por não ter capacidade mental de suportar a dor, busca sua concretização no corpo", diz Gordon (2005, p. 269). Não tendo um espaço mental, como afirmam Ganapol e Hacker (1988) a respeito das tatuagens, o corpo passa a ser cenário de violência, uma vez que a experiência não pode ser metabolizada. Entrar em contato com todos esses sentimentos que se manifestam como função de comunicação, e, ainda, ser capaz de nomeá-los, é o desafio da clínica psicanalítica. Podemos considerar que aí encontramos pacientes com experiências difíceis de separação, mais precisamente pacientes que experimentam alternâncias paradoxais precoces e repetidas - de agarramentos excessivos e de desprendimentos bruscos e imprevisíveis -, que foram no passado uma violência ao seu eu corporal e/ou ao seu eu psíquico, como mostrou Anzieu (1989).
Retornando à experiência clínica com Rosa, em seu mito pessoal, ou a analista a vê ou ela morre, pois ela precisa ser vista para se sentir existindo. Está num processo de morte e vida, mas vive na morte. Essa é a dor e o terror de viver que ela experimenta com sofrimento. Na vida se vive para depois morrer, mas na situação dessa adolescente, no estado de morte em que se encontra, pode florescer alguma vida, e, em sua análise, está trabalhando para ter a possibilidade de escolher uma vida sem cortes. Como diz o poema de Drummond, "A flor e a náusea", uma flor precisa romper as pedras e concretos para poder nascer, para acreditar que a vida e a morte ficam sempre muito juntas. "Uma flor nasceu na rua!... Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros... É feia. Mas é realmente uma flor... Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio".
Podemos considerar que essa analisanda corre riscos se não tiver de sua analista um continente de afeto que a "toque", que desperte confiança e que lhe permita construir a alteridade. Que riscos podemos imaginar? Vai cravar a lâmina um pouco mais funda e fazer uma hemorragia? Vai parar de comer e ficar sem resistência e desaparecer? As mutilações da pele são tentativas dramáticas de manter o limite do corpo e do Eu, de restabelecer o sentimento de estar intacto e coeso. Ela tem "mão boa", sendo muito habilidosa nos traços, que, aliás, quando feitos no papel - um talento seu - se confundem entre um desenho e uma fotografia. Os cortes na pele também estão associados à sua identidade pessoal, que está desfigurada. É na análise que ela poderá aprender a narrar em vez de cortar, escolher o que vai fazer consigo, com sua existência. Ela tem um "vestibular anterior" a fazer com a analista para, juntas, desmontarem seu falso self, sem que ela precise desaparecer, e, assim, irem construindo e aprendendo pela experiência vivida pessoal, segundo a expressão de Bion (1963), a representar essa experiência dela e criar uma perspectiva nova, trabalhando "unidas" nesse vestibular da vida.
Anzier trabalhou o conceito de "eu-pele e suas funções de correspondência com a pele", em que a pele psíquica encontra correspondente na pele corporal. Sustentando essa teoria, diz ele:
A instauração do Eu-pele responde à necessidade de um envelope narcísico e assegura ao aparelho psíquico a certeza e a constância de um bem-estar de base... Por Eu-pele designo uma representação de que se serve o eu da criança durante fases precoces de seu desenvolvimento para se representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a partir de sua experiência da superfície do corpo... O Eu-pele encontra seu apoio sobre três funções: a pele, primeira função, é uma bolsa que contém e retém em seu interior o bom e o pleno aí armazenados com o aleitamento, os cuidados, o banho de palavras. A pele, segunda função, é a interface que marca o limite com o de fora e o mantém no exterior, é a barreira que protege da penetração pela cobiça e pelas agressões vindas dos outros, seres ou objetos. A pele, terceira função, ao mesmo tempo que a boca e pelo menos tanto quanto ela, é um lugar e um meio primário de comunicação com os outros, de estabelecimento de relações significantes; é, além disso, uma superfície de inscrição de traços deixados por tais relações. (Anzier, 1989, pp. 44-45)
Para a analisanda/flor enfrentar o mundo vasto daqui para frente, que certamente lhe alargará, precisará experimentar o que vem de fora com amorosidade, não com intrusão, e encorajar-se a confiar e contar com a analista. No artigo "Escrituras corporais", de J. Birman (2007), a transformação do investimento libidinal necessária para a estruturação da personalidade e da integração da identidade pode provocar nos jovens da nossa atualidade marcas profundas na autoestima e no reconhecimento de si. Um indicador disso é a preocupação excessiva com o corpo, transformado no bem supremo da pós-modernidade. As novas modalidades de perturbações psíquicas que caracterizam as subjetividades de hoje indicam um declínio de um investimento positivo do narcisismo.
Segundo Birman (2007), essa nova cartografia da economia da dor evidencia uma diminuição do investimento narcísico, e certamente uma contrapartida no registro dos laços sociais, provocando efeitos na imagem corporal. Ele afirma:
[...] é justamente a construção da imagem corporal que está em questão hoje, sem sua consistência ontológica. A precariedade dos investimentos narcísicos, pela relativa ausência do olhar nas novas condições sociais de figuras parentais, incide sobre a imagem do corpo próprio. Com isso, as angústias de despedaçamento e de fragmentação corpóreas se disseminam fartamente, pois a imagem corporal deveria fornecer um continente para a anárquica produção pulsional originária do corpo infantil. (Birman, 2007, pp. 47-53)
Esses pacientes, na experiência de Anzieu (1989), apresentam dificuldade de se desprender intelectualmente de um modo vivido, confundindo-se num misto deles próprios e de outros, sem reestruturar suas relações com o mundo ao redor de sua vista, sem alcançar uma visão conceitual das coisas e da realidade psíquica e um raciocínio abstrato; permanecem grudados aos outros em sua vida social, grudados às sensações - em uma pele tátil - e às emoções em sua vida mental.
Conclusão
Em nossas investigações, nos deparamos com a vastidão das interfaces tanto do universo da tatuagem quanto do ato de cortar-se, nos remetendo e nos conduzindo a ler a pele como o "espelho da alma".
A tela de fundo sobre a qual os conteúdos psíquicos se inscrevem tentam fazer dela uma "pele continente", num desejo premente de ser compreendido pelo objeto amado. Enquanto a tatuagem reveste de prazer certas zonas do corpo, os cortes e queimaduras autoimpostos remetem à busca por uma estimulação autoerótica que sugere um desligamento. Os cortes arriscam a vida, ferem a dupla analítica e percorrem perigos diferentes dos piercings e tatuagens.
Segundo Sapoznik (2008), a tatuagem e as condutas de automutilação são fenômenos que têm a superfície do corpo como base e tangenciam a questão do sentimento da existência e da identidade. Nos casos descritos pela autora e por nós neste trabalho, fizeram-se presentes uma provocação, uma convocatória do olhar do outro e um pedido de entendimento sobre este universo que se expõe sobre a pele. Buscamos compor uma "pele de palavras" para tecer uma escrita que pudesse oferecer esclarecimento, estímulo e conforto às nossas inquietações sobre esse tema, além de algum suporte, alguma proteção e alguma retaguarda para que esta intensa experiência emocional possa permanecer viva, forte e corajosa, como a flor que nasce do asfalto.
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Recebido 24.10.2016
Aceito 29.10.2016
1 Trabalho apresentado em Painel no 31º Congresso Latino-americano de Psicanálise: Corpo. FEPAL. Cartagena, dias 13 e 14 de setembro de 2016, no Hotel das Américas - Colômbia. Este trabalho foi apresentado em Reunião Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) no dia 10 de dezembro de 2016. Apresentadoras: Josefa Maria Dias da Silva Fernandes e Silvana Bressan. Comentadores: Ana Maria Stucchi Vannucchi e João Augusto Frayze-Pereira, sob a coordenação de Myrna Pia Favilli.
2 Fabio, Mateus e Rosa são nomes fictícios usados para preservar as identidades dos pacientes.
3 Super Mario Bros é um jogo eletrônico lançado pela Nintendo em 1985.