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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016
LITERÁRIAS
Luciana Estefno Saddi
Membro efetivo da SBPSP
Assisti ao filme Indochina quando meu marido ainda era vivo - não me lembro se ele já estava doente, pois foram muitos os anos de hospital a confundir pensamentos apavorados com a vida. O terror dá um nó no tempo e embaralha tudo à sua volta, inclusive ele mesmo. Talvez seja por isso que a cena do casal, formado por Catherine Deneuve e um militar, fumando ópio, não me sai da lembrança. Uma senhorinha vietnamita prepara o narguilé, esquenta numa colher de prata uma bolinha da droga que se liquefaz, talvez vire fumaça, não me recordo como a droga entra no narguilé, mas aposto que é fumada pelo casal. As imagens não são claras, mas remetem ao prazer extremo de estar voando e trepando ao mesmo tempo. Eles estão deitados, vestidos com roupões de seda, são livres como pássaros, são leves como pássaros, e sorriem. O tempo se transforma em prazer. Foi uma trepada inesquecível! Estavam apaixonados ou se apaixonaram graças à droga? Já não me lembro. Mas tenho certeza de que novamente fumam numa casa longe do lugar onde vivem e de novo voam. O amor deles é leve, se parece com véus, os corpos suaves atravessam paredes, grudam-se sem o peso típico dos corpos, e na foda não há esforço nem sequer a lei da gravidade atrapalha. Há o sorriso dela e o dele, um sorriso que não deforma os rostos, que não altera a voz, que não expõe a força exasperada do sexo. O ópio esconde o atrito, o riso esganiçado, o descontrole, e transforma o amor num voo de garças.
Meses pensando na leveza dos corpos entorpecidos e extremados pelo sexo compulsivo - era tudo que queria para mim. Não sou do tipo que se droga, nem sou do tipo que bebe descontroladamente (salvo exceções), nunca me arrisquei na seara dos entorpecentes, pois sempre considerei próximo demais o perigo da dependência. Fumei cigarro por muitos anos, deu muito trabalho me livrar do vício, ainda fumo esporadicamente - não quero me tornar um chinês pobre, morto e esquecido numa casa de ópio dos anos 1920. É para fumar uma vez, só uma vez, não mais que uma vez e flutuar.
Assim resolvi ir ao Vietnã, turismo radical. A preparação da viagem foi longa. É preciso conhecer antes o que vai ver depois. Afinal é longe, é asiático e lembra a maldita guerra - os filmes com os vietnamitas pequenos e perigosos explodindo os americanos encharcados de maconha e heroína. Meu Vietnã é radical, mas não é a guerra. Eu quero a leveza sem limites.
Passados alguns meses de intenso estudo, percebi que era muito esforço viajar por causa de uma droga, mais fácil fumar no conforto de minha terra, no seio de minha família, na segurança de meu lar. Pena que meu marido está morto, ele seria a companhia ideal para a experiência tanto do sexo como do ópio. Pensando bem, melhor para o sexo do que para o ópio, pois vai saber a reação dele com o entorpecente, e se ficasse muito louco? E eu sozinha e louca sem poder ajudar nem a mim nem a ninguém? Nossos últimos anos juntos foram assim: a doença tomou o lugar de tudo. Nada poderia ser mais perigoso do que a UTI, a septicemia, a anemia e a falência renal. O ópio do povo é minha prece de amor.
Infelizmente, não encontrei a droga para fumar. Nos hospitais há morfina, mas é sintética. Prefiro os produtos orgânicos, sementes de qualidade em plantações protegidas e regulamentadas. Já tive uma reação alérgica significativa com a morfina, de modo que precisei descartar a mais fácil e talvez a única opção disponível na categoria. Tentei com filhos de amigos, com pequenos traficantes do bairro, com anestesistas, com biólogos, químicos e neurocientistas. Não há em nosso país o perigo do ópio esgarçar o tecido social, foi a conclusão que cheguei, pois não só o cultivo das papoulas é complicado, também sua rentabilidade é pequena se comparada à das drogas sintéticas. Ópio hoje em dia é coisa de gente muito rica, luxo do mercado de luxo. Teria que me resignar ao Vietnã.
A passagem é cara. A viagem é mais que longa, mesmo quando regada à bebida e tranquilizantes. Alguns especialistas haviam me advertido de que era muito mais seguro usar uma droga com alto teor de vício em circunstâncias totalmente inabituais. Fumar uma vez e partir, esse era o lema.
Fiquei encantada com Hanói. Um lugar onde se pode comer cachorro laqueado em vez de pato. Onde há flores tropicais e muitas motos. As bucólicas bicicletas antes vistas com pequenos vietnamitas vestidos de cores pastéis e chapéu de cúpula de abajur foram substituídas por motocicletas barulhentas. A comida é levemente picante, a hospitalidade é levemente desconfiada e tudo brilha em cores fortes. Não foi difícil encontrar a casa mais elegante de ópio da cidade. Aparentemente, cresce o turismo discreto e chique ao redor da droga e algumas casas destinadas ao consumo funcionam sob a proteção da lei - somente para turistas. Foi o concierge do hotel Imperial, um homem esquisito com cara de mordomo inglês misturada a de provável espião francês, quem fez a indicação. Madame Blanche me receberia no sugestivo salão de chá: chuva doce e amarela. Um pequeno salão de madeira e bambu situado na parte da frente de uma casa simples e discreta pintada de amarelo-claro. Um salão decorado com pequenas mesas e cadeiras típicas de bar - almofadas brancas. No fundo do salão havia aquelas cortinas de pedrinhas separando ambientes - não era possível ver além disso. A garçonete me ofereceu um chá. Pedi o de ópio. Imaginei que fosse como o chá de coca dos nossos amigos latino-americanos, um produto pré ou pós-droga. Lamento dizer que o chá de ópio é amargo e tem uma cor amarelada, a experiência não foi boa, não produz nenhum efeito além do amargor grudado nos dentes.
Madame Blanche saiu de trás das cortinas de pedrinhas, veio em minha direção como se com ela viesse uma luz mortiça iluminando o caminho, vestia uma túnica branca. Me chamou pelo nome, e fez um gesto para acompanhá-la. Senti um frio no estômago. Era medo.
Passamos a cortina de pedrinhas e andamos alguns passos num corredor estreito e escuro, ao final havia um salão em formato de corredor largo, dividido em seis baias com cortinas de seda e motivos florais pintados à mão. Ela abriu a cortina pintada com papoulas amarelas, eu estava curiosa, havia um catre de bambu entalhado com pequenos pedaços de madeira e um colchão macio exalando um perfume adocicado e discreto. Me deu um roupão de seda, seus gestos eram leves, eram de gueixa - talvez Madame Blanche não passasse de um véu. Ela saiu com seus passos de garça e consigo levou a luz que emanava de seus olhos negros. Ao lado do catre havia uma mesa e uma linda vela amarela. Tirei minha roupa, toda ela, não havia motivo para fumar ópio de calcinha e sutiã. Vesti o robe, era como se um delicado carinho percorresse minha pele, meus pelos eriçaram. Será que havia ópio entranhado na seda? Minha pele estava sendo levemente drogada, não havia dúvida quanto a isso, minha pele estava morna, excitada e eu podia jurar que se despregava do meu corpo, eu já estava flutuando na maciez do tecido que me envolvia. Talvez aquele roupão tivesse sido confeccionado com pele humana, a pele de veludo de uma gueixa vietnamita lembrava a pele fina e macia com que meu marido me envolvera por tantos anos. Eu começava a gemer aturdida diante da inesperada surpresa, quando Madame Blanche voltou trazendo um narguilé decorado com as mesmas flores da cortina, uma colher de ouro e uma bolinha seca feita de erva. Ela me indicou o catre, deitei obediente e excitada. Ela pegou a vela com tamanha graça e leveza que me deu vontade de rir, mas gargalhei sem parar. Confesso que me surpreendi comigo tão solta - havia alguma droga no ar daquele salão de chá. Não sei como a droga foi preparada, eu ria tanto que não prestei atenção. Não me lembro quantas vezes fumei o narguilé largada no catre, rindo solta. Nem me lembro quando Madame Blanche saiu da baia, se é que saiu. O riso foi dando lugar a pequenos espasmos, de início pensei que eram provenientes de meu clitóris, talvez fossem, mas depois percebi que vinham de quase todas as regiões de meu corpo, fossem elas zonas erógenas ou não. Eu ria mais ainda ou talvez pensasse que estivesse rindo por conta de um espasmo menor no cotovelo esquerdo, mas em seguida um tremor agitava todo meu corpo. Os espasmos se multiplicaram e já era possível senti-los em dois ou três lugares ao mesmo tempo. No pescoço, na coxa e no quadril, por exemplo. Meu corpo grudava no catre como se fosse uma fina folha de papel-arroz. O efeito relaxante era arrasador. E vieram os orgasmos múltiplos que se estendiam desde os fios de cabelo até as pontas dos pés. Minha língua parecia estar solta da boca. Minha língua lambia Madame Blanche. Minha língua se multiplicava em mil línguas que lambiam o pescoço de um homem de barba aparada que me lambia o pescoço de volta. Minha língua gozava estremecendo meu corpo. O homem de barba aparada me lambia e me chupava. Acho que estava gritando. Eu pedia socorro, em nome de Deus aquilo tinha que parar. Meu coração era fraco. Os orgasmos continuavam cada vez mais fortes e extensos. Eu precisava de um refresco. Madame Blanche apaga as luzes do meu corpo! Maldito ópio. Socorro. Foi quando os versos finais do poema de Symborska apareceram no teto como se fossem holografia. Nada mudou. Além do curso dos rios, do contorno das costas, matas, desertos e geleiras. Entre essas paisa-gens a pequena alma passeia, some, volta, chega perto, voa longe, estranha a si própria, inatingível, ora certa, ora incerta da sua existência, enquanto o corpo é, é, é e não tem para onde ir.
Endereço para correspondência:
LUCIANA ESTEFNO SADDI
Praça Morungaba, 66
01450-090 São Paulo SP
tel.: 11 99983-7195
lusaddi@uol.com.br
Recebido 11.04.2016
Aceito 07.05.2016