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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017

 

MEMÓRIA

 

A cultura do psicanálista

 

 

Fabio Herrmann

 

 


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1. A cultura artificial

O psicanálista precisa de cultura? Se a resposta for sim, procurarei refuta-lá, se for não, afirmarei enfaticamente o contrário; pois sim e não formam o patamar indispensável e prévio para se responder qualquer pergunta séria.

Primeiro, o sim. O psicanálista deve ser culto, porque exerce uma profissão elevada, de alto conceito, porque deve ser um bom exemplo para seus amigos e pacientes. Cabe-lhe então prover-se da cultura conveniente, decorosa, assim como lhe cabe decorar com dignidade o consultório. Decerto, tal resposta decorativa encerra alguma razão - o análista não deveria pelo menos dar o exemplo de ignorância cabal ou de analfabetismo superior a média da população - , mas peca por aquilo que Bachelard denomina "complexo de cultura". Há uma forma de ser culto que nada mais é senão o complemento indispensável do profissional de status, um saber extrínseco e apendicular tal qual os enfeites da árvore de Natal, nas palavras de Monteiro Lobato: um kit allpurpose de citações convenientes. Esse kit kitsch, em nosso caso, poderia compreender por exemplo: o Êdipo rei de Sófocles, a ser tratado, por sinédoque familiar, de "a tragédia", ou "o mito"; um segundo mito grego, para surpreender os colegas; o roteiro duma viagem turístico-cultural à Europa; três epígrafes potenciais para trabalhos científicos, que incluam um poeta contemporâneo brasileiro, um ficcionista latino-americano e um filósofo a gosto; ao menos 5 palavras estrangeiras intraduzíveis (ou pretensamente intraduzíveis) em português, para pontilhar frases de efeito; alguma especialidade colecionista (tapetes, vinhos, quadros de Volpi); uma cara-de-pau sobressalente, para substituir a própria, quando o uso exaustivo dos itens anteriores a tiverem gasto.

Ora, é evidente que a posse desse estojo de primeiros socorros cultural, ainda que algo enriquecido, não passa de simulacro. É um objeto, uma propriedade e mais, com que se pretende legitimar a posição dita intelectual do psicanálista. Para nos, da comissão socio-cultural da Sociedade, é ponto de honrar evitar o princípio segundo o qual um pouco é melhor do que nada. Não sonhamos oferecer um verniz cultural supletivo, que só visaria satisfazer a má consciência daquele que, eventualmente, tenha calçado um sapato em desacordo com o tamanho dos pés. Via de regra, em termos culturais, é preferível nada a um pouquinho, quando menos por suscitar a consciência do vazio, um pouco de modéstia, um grão de curiosidade.

 

 

2. O louvor da incultura

Por outro lado, o não. O análista pode e deve dispensar isto a que se convencionou chamar o acervo cultural. Sua profissão não requer formação cultural mais extensa, nem mesmo formação teórica completa, porém condições de personalidade, intuição, sensibilidade para captar a experiência psíquica.

Em São Paulo, de anos para cá, esse ponto de vista tem se convertido em moda. Desaconselha-se ao candidato a que forme um razoável cabedal psicanalítico - esses dez ou quinze anos de leitura afincada, mínimos para adquirir as noções fundamentais da própria Psicanalise, alicerçando-as na informação competente sobre as ciências naturais e humanas, filosofia e arte; interesse múltiplo que já Freud aliás reclamava para os aspirantes e análista. O trabalho teórico, o texto escrito e a reflexão original perdendo o valor, substitui-os, entre nos, uma espécie de fascínio pela opinião fundada no que se costuma chamar a experiência pessoal. Não que esta careça de importância, Mas, como a experiência em si mesma é muda, o arsenal teórico que lhe dá voz provém do ensino oral e acaba por ser atribuído ao próprio professor, quando o estudante desconhece as fontes. Resultam, então, uma considerável idealização do análista que funciona como porta-voz da experiência e a especialização excessiva do análista em formação, além de um estilo de comunicação algo esquisito.

Com efeito, nossas discussões científicas tendem, em geral, a ignorar a discussão, a argumentação pormenorizada e a exegese de texto, praticando uma comunicação impressionista, vazada em curtíssimos aforismas psicanalíticos. Ora, é impossível decidir entre experiências diversas - pois tudo o que digo vem de minha experiência. Ainda que da experiência de leitor -, quando expressas aforisticamente. Ganha, por conseguinte, a maior autoridade institucional ou a fórmula mais conhecida. A proposta que visava a prestigiar o pensamento original, o novo, inverte-se diametralmente: o novo e original não podem ser reconhecidos - como reconhece-los -, sucumbimos ao jargão que se declara sempre novo, sendo seu contrário.

Por fim, a própria sensibilidade, não educada pela formação cultural, começa a embotar. A produção intelectual sofre com isso, perde-se o manejo da língua e das idéias; no limite, os autores teoricamente originais, em nosso meio, tem, em sua obra, mais um obstáculo que um passaporte para as funções didaticas. Cria-se uma sorte de especialização negativa do psicanálista, não pelo excesso de leituras técnicas, mas pela recusa a conhecer outras coisas, já que se quer a análise pura, protegida de toda e qualquer contaminação. Nem e preciso dizer que Freud não pensava assim:os vinte e quatro volumes da edição standard revelam um espirito cultivado, um escritor excelente e um conhecimento universalista. Sem tal noção de contexto, o louvor à in cultura como facilitadora da experiência pode facilmente descambar para a comicidade: lembro-me de ter escutado, numa aula sobre Bion, que o teorema de Gödel provava a impossibilidade do saber completo a cerca do insconsciente - prova, alias, que era vagamente atribuída ao proprio Bion...

 

 

3. Sim e não-por uma política cultural

No livro A formação do psicanálista", J. P. Valabrega enuncia o sofisma inconsciente", que cai como luva em nosso meio: "Como o sábio se diz ignorante, o ignorante, ao proclamar sua ignorância, igualar-se-á portanto ao sabio e se tornará um seu igual". Vimos, acima, como a ignorância autentica se pode disfarçar de ignorância fingida. Nesse regime, cada frase enuncia seu contrário: "nada sabemos" significa "realmente ignoro, mas espero que voces pensem o contrário, pois me declaro ignorante; mas se voce disser que sabe, passará por arrogante, diante de mira que, de fato o sendo, afirmo não o ser". Ora, se não ha maior arrogância que a renúncia ao saber, o "não" à cultura , não há maior ignorância do que uma tinta de cultura postiça sobre a franca incultura. Como proceder?

Em primeiro lugar, não será a ação da comissão cultural que modificará, em essência, o trajeto da formação de nossos análistas. Aspiramos tão somente a estimular e encaixar-nos numa política cultural, que deve acompanhar a redemocratização da Sociedade. Para tanto, como o selo do autoritarismo é o desrespeito à produção crítica, tentamos não nos enquadrar na máxima segundo a qual o análista e antes de tudo um análista - ao contrário, o análista é análista depois e apesar de tudo, como bem sabia Freud. Por isso, nem queremos um programa cultural supletivo, gênero "ai, essa falsa cultura", nem propomos tampouco o culto da espontâneidade e da experiência irrefletida.

Nosso desejo é inicialmente incitar ao amor do texto, Quem assistiu, por exemplo, a conferência do prof. Roberto Schwarz, sobre as "Memórias póstumas" - e havia lá umas cem pessoas - há de se ter sen tido espicaçado pela precisão duma análise literária, de feitio sociológico, praticada com rigor e finura. É um desafio. Dos análistas e candidatos, vendo como uma avaliação precisa da submissão cultural brasileira do século XIX - no século seguinte a situação não mudou tanto... - pode iluminar o superrealismo paradoxal das confissões de Bras Cubas, espera-se que tenham recebido o choque critico: o mais oculto é a vaidade, não o interesse pecuniário, para o irônico Machado de Assis. Ou quando, o prof. Modesto Carone, da etimologia do "inseto nojento" kafkiana, retira o sentido de parasitismo revertido na família Samsa, de "A metamorfose", não estará fazendo o mesmo que Freud fazia na busca do sentido oculto - no artigo sobre "o sinistro", por exemplo? Tais confrontos, em meio a um público misto, não estritamente doméstico nem domesticado, servem menos para nos ilustrar' em literatura, e muito mais para aguilhoar o espírito crítico, para que reflitamos sobre o que vem a ser uma interpretação séria. Se promovemos agora um debate acerca da nova montagem do "Édipo Rei", é que esperamos ver superado o hábito de dar pseudo-interpretações psicanalíticas, esquemáticas e pobres, até mesmo no âmbito do mais conhecido cardápio da Psicanálise. Pensamos editar um livro autóctone sobre" "Literatura e Psicanálise", contendo leituras psicanalíticas de textos, com críticas literárias da interpretação psicanálitica realizada - no espírito do bate e debate, que desbaste os clichês e as petições de princípio que recheiam nosso discurso redundante.

Tais atividades, contudo, tem quase que só efeito simbolico. O passo decisivo para que uma política cultural se instale em nossa Sociedade é o que visaria a sacudir essa espécie de amortecimento da consciência, usual entre nós, que nos leva a admitir qualquer coisa dita ou escrita, ainda que se trate de um absurdo intencionalmente formulado, com a indiferença de quem conhece a ineficácia do discurso teórico em seu próprio meio. Esse passo implicaria uma articulação eficiente entre Instituto e Sociedade, num feitio mais livre e responsável, onde o valor propriamente intelectual se transformasse no critério decisivo para a escolha de professores e de candidatos, de currículo e de objetivos institucionais. No momento, isso talvez ainda seja inexequível: mas começa a despontar como uma possibilidade.

Numa palavra, à pergunta acerca da necessidade ou não de cultura para o psicanálista, devemos responder, afastando inicialmente a acepção de posse do objeto cultural, do estojo de primeiros socorros, negando depois o louvor da incultura, para chegar a política cultural, no sentido integrado em que cultura significa o meio adequado para a consecução de certos fins. Já que vivemos todos numa cultura, o conhecimento desta não e um movimento a mais, supletivo. O análista então precisa de cultura, em acepção agrícola; vale dizer, é preciso cultivar a terra do saber para que medre uma cultura analítica e uma safra mais rica de novos análistas. Nossa comissão desenvolve apenas o germe simbólico duma desejável reforma agrária, na monocultura das "Terras do sem fim" psicanalíticas.

 

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