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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

Corpo e arte são o mesmo: dança dos Estados Unidos no século XX1

 

Art and body are the same: U.S. dance in the 20th Century

 

 

Fernanda Sofio

Psicóloga e psicanalista. Doutora em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Autora de Literacura: psicanálise como forma literária (2015) e de Psicanálise na UTI: morte vida e possíveis da interpretação (2014)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na tradição de uma definição para cada arte, tenho pensado dança como um tripé: formas visuais produzidas por um corpo humano e suas transições ritmadas, que interpretam a música e/ou o silêncio.Tal formulação permite estabelecer um terreno comum para um diálogo sobre dança, e é a partir dela que discuto as poièses das coreógrafas Martha Graham, Lucinda Childs e Trisha Brown. Possibilita, também. pensar a dança, seja moderna ou pós-moderna, como pós-meio, no sentido discutido por Rosalind Krauss (1999) na sua releitura de Clement Greenberg (1960/1993).A ideia de Krauss é que a arte pós-moderna se torna pós-meio, o que ela investiga a partir de Marcel Broodthaers, cuja obra inaugural é de 1964. Entretanto, tal característica se observa distintamente nas danças de Martha Graham, a partir dos anos 1930. E inclusive antes dela.

Palavras-chave: Dança. Arte. Martha Graham. Lucinda Childs. Psicanálise brasileira.


SUMMARY

In the tradition of a self-definition for each art, I consider dance as a tripod: visual forms produced by a human body and rhythmic transitions, which interpret the music and/or silence. Such a definition establishes a common terrain for many dialogues about dance, and it is from this perspective that I discuss the poïeses of choreographers Martha Graham, Lucinda Childs and Trisha Brown. It also permits to think about dance, both modern and postmodern, as post-medium, in the sense discussed by Rosalind Krauss (1999) in her reading of Clement Greenberg (1960/1993). Krauss's idea is that postmodern art becomes post-medium, which she investigates in Broodthaers - his inaugural visual work dates of 1964. In fact, this characteristic may be observed in U.S. dance productions since Martha Graham.

Keywords: Dance. Art. Martha Graham. Lucinda Childs. Brazilian psychoanalysis.


 

 

Prosseguindo na tradição de se definir cada arte, cujo desenvolvimento remonta à crítica literária2 do século XIX, mas que praticamente se tornou hegemônica nos Estados Unidos a partir de Clement Greenberg (1960/1993), tenho pensado em dança como um tripé: formas visuais produzidas por um corpo humano e suas transições ritmadas, que interpretam a música e/ou o silêncio. As transições são fundamentais para se distinguir técnica - e, mais vulgarmente, até mesmo aptidão física - da arte propriamente dita. Entretanto, os três descritivos estão intimamente inter-relacionados e são centrais. O tripé não sustenta outra coisa, ele é a própria dança.

Vale ressaltar que uma dança pode ou não funcionar esteticamente. É característico das artes não haver fórmula prévia para que a obra funcione3 . Podemos apenas analisá-la a posteriori, visto que, quando bem-sucedida, ela própria inaugura seu campo de reflexão4 . Tanto o dançarino quanto o coreógrafo, que muitas vezes coincidem na mesma pessoa, são fundamentais para que uma dança seja criada e interpretada com sucesso. (Um segundo momento interpretativo da obra é o da recepção pelo espectador, momento no qual a arte se realiza e, nesse sentido, completa-se.)5 Criei essa definição da dança por constatar que não é suficiente descrevê-la como arte do movimento, o que se tem feito com frequência. O motivo é simples: movimento não é exclusividade sua. Toda apresentação artística, em qualquer meio6 - e, se formos radicais, a fatura de qualquer obra de arte -, implica alguma medida de tempo, espaço e movimento. Ou seja, esse último é atributo da vida em geral. A afirmação de que dança é movimento tem a aparência de uma definição, mas não a diferencia de qualquer ação (do homem) no mundo. "Definição" que não define qualquer coisa faz um desfavor ao objeto, insinuando-o como banal. No caso específico, revela que mesmo o leigo busca uma definição para a dança. O que impressiona é essa formulação ter se tornado frequente.

Minha hipótese é de que a ausência de uma definição mais sólida tenha obstruído o reconhecimento da dança enquanto arte, sendo relevante como as outras. Mesmo antevendo que não seja a única possível e, de fato, incentivando que se criem outras, sugeri essa definição, suspeitando que grandes imprecisões quanto ao objeto da crítica de dança tenham coibido pesquisas mais sofisticadas sobre e a partir dela. Também o fiz para partilhar com o leitor uma linguagem comum, lembrando que a pergunta o que é a dança? tem ocupado filósofos, de Novèrre (1760) a Marcia Tiburi (2012), passando por André Levinson (1925), Paul Valéry (1936/1976), Susan Langer (1953), entre muitos outros7 .

Claro que outro aspecto que tem impedido seu integral reconhecimento no âmbito da crítica e da história da arte8 está relacionado com o mercado, com o fato dela não constituir ou ter como resultado um produto que se possa comercializar diretamente, o que acontece nas artes visuais, por exemplo. Não adentrarei no mérito dessa questão, por julgar que diz respeito mais à nossa sociedade do que à obra de arte propriamente dita - implicaria uma compreensiva análise sociológica, ou de sociologia da arte, que escapa ao alcance deste artigo9.

Entretanto, um problema fenomenológico interessante se delineia: conforme indico no título deste artigo, em dança, corpo e arte são o mesmo. Nesse sentido, o poeta William Butler Yeats (1933/1997) criou o verso que, removido de seu contexto original, tem sido citado no mundo da dança, embora no geral sem a devida atenção às suas consequências crítico-teóricas: "Como você pode diferenciar o dançarino de sua dança?" (p. 92)10. A questão aponta para a mortalidade do corpo, aliás, lamentada na maioria dos memoriais de coreógrafos, assim como para a efemeridade da dança em si. Pode-se pensar na fotografia ou na filmagem como alternativas, mas elas já não são a dança, e sim sua reprodução pela transformação em outro meio.

Ainda com o propósito de partilharmos uma linguagem comum, explicito pesquisar dança no sentido em que se convencionou chamá-la, de dança teatral11- isto é, em sua tradição no mundo ocidental e a partir do século XVI, quando ela passa a ser considerada uma arte autônoma (Faro, 1986/2011, p. 5). Lembro-me das palavras do crítico inglês Arnold Haskell (1938/1951): "O balé é uma arte moderna; a dança é pré-histórica. A história do balé é apenas um momento de toda a história da dança" (p. 16). É sobre esse momento que me debruço; ainda mais especificamente, sobre a dança estadunidense no século XX, tomando como emblemáticas as obras da chamada "mãe da dança moderna", Martha Graham, e das coreógrafas pós-modernas Lucinda Childs e Trisha Brown.

Antecipo a crítica de que minha definição está mais relacionada ao caráter visual que musical da dança. É fato. Entretanto, parece-me suficiente para identificarmos nosso objeto e fazê-lo trabalhar do ponto de vista crítico-teórico. O componente visual da dança é extremamente forte, o que é particularmente notável nas poièsis das coreógrafas pós-modernas que escolhi - considere-se, por exemplo, as colaborações de Trisha Brown e Donald Judd12. Paralelamente, são possíveis outros estudos relacionados ao caráter musical da dança. Minha análise em grande medida dialoga com a crítica de arte estadunidense que, por sua vez, responde à interpretação de Clement Greenberg, cujo principal meio artístico de referência é a pintura. Entendo que tal crítica contextualiza a dança norte-americana, assim como o pensamento sobre ela.

 

Por que as três coreógrafas dentre tantos?

Antes de explanar um pouco sobre as descobertas específicas das coreógrafas que destaco, farei uma breve reflexão sobre a controversa questão o que é um autor?, que a meu ver é próxima de o que é um coreógrafo? Como no caso da teoria da recepção, aludida anteriormente, tomo aqui autores de outras áreas do saber para iluminar o campo da dança. Tal licença me parece possível e, sobretudo, frutífera.

Michel Foucault (1969/1977) descreve o autor como aquele cujo legado ultrapassou o valor de suas obras, porque instituiu a "regra de formação para outras obras" (p. 804), instaurando formas originais de discurso. Nesse sentido, autores não formam parte de tradições: eles as engendram. No século XX, Foucault (1967/1998) designa Marx, Nietzsche e Freud, respectivamente, como autores do pensamento sociopolítico, filosófico e psicológico. Engendrar uma tradição não é algo frequente, como mostra a enxuta lista de Foucault: é raro nos depararmos com um autor desse tipo, que produz uma transformação na maneira como os seres humanos se relacionam uns com os outros e no mundo em que vivemos. Isso foi atingido, indiscutivelmente, por Marx, Nietzsche e Freud.

Paralelamente, e guardadas as diferenças, Fabio Herrmann13 (1979), no campo da psicanálise, identificou o que chamou de ruptura de campo. Também difícil de ser produzida, a ruptura de campo é, no entanto, mais facilmente encontrável do que as formas de discurso originais de que falou Foucault. A própria leitura dos textos de Herrmann evidencia, literariamente, que ele produz continuamente ruptura de campo. A ideia é que, mesmo sendo pouco frequentes, muitos textos, conversas, obras de arte e/ou mesmo a tecnologia etc., ampliam e modificam a perspectiva do homem no mundo e os produtos por ele criados, estabelecendo novas possibilidades para o pensamento e para a existência. O conceito designa o engendramento de novos discursos que subvertem nossa sociedade como um todo, as transformações pontuais e, é claro, a gama de possibilidades entre esses dois extremos. Essencialmente, ruptura de campo é o cerne de qualquer processo interpretativo que funcione. Não é observável, no sentido das ciências duras, mas tem efeitos imprevisíveis que eventualmente podem ser percebidos e referenciados.

Tomar emprestadas essas duas formulações auxilia no pensamento sobre dança. A coreógrafa norte-americana que chega mais perto de produzir o que Foucault descreve é, indubitavelmente, Martha Graham. Não se pode afirmar que ela seja autora no sentido descrito por Foucault, pois extrapolaríamos a intenção dele. Mas podemos pensar que é efetivamente Graham quem estabelece e promove a dança teatral no século XX, que a partir dela a dança moderna se torna reconhecida, floresce e se desenvolve, principalmente entre os anos 1930 e 196014. Assim, usando a terminologia de Herrmann, podemos dizer que Graham produziu uma ruptura no campo da dança, e é por meio dessa que ela inaugurou a dança moderna norte-americana.

Lucinda Childs (1978) e Trisha Brown (1998) também produziram rupturas de campo importantes nesse âmbito, concretizando um projeto que se delineava desde o Judson Dance Theatre, entre 1962 e 1964. Tal projeto teve como protagonista, principalmente no que concerne à sua retórica, a também coreógrafa Yvonne Rainer15. Ou seja, a dança pós-moderna já nasce plural, diferentemente do caminho de Graham.

 

A poiesis de Martha graham16

Na fase experimental de sua arte, entre meados dos anos 1920 e início dos 1930, Graham fez sua grande descoberta. Digamos que, na linguagem mais ampla da dança, o idioma que ela criou carrega sempre, com mínimas exceções, essa assinatura: o movimento pélvico por ela chamado de contração e release17. Esse movimento simples, mas de difícil maestria, é usado para iniciar frases coreográficas, seja no chão, de joelhos ou de pé: a intenção do movimento em Graham nasce metaforicamente do ventre e se expande para o espaço, o que traz, além de expressividade, uma forma dramática inédita à dança. Com as inúmeras formas do corpo dele derivadas, caracteriza a grande contribuição dessa coreógrafa no âmbito técnico e formal (Ver imagens 1 e 2).

 

 

 

 

 

Além disso, entre 1926 e 1991, Graham criou 108 coreografias, das quais um grande número permanece até hoje no repertório da Martha Graham Dance Company. Outras continuam sendo recuperadas na medida do possível. Ao longo dos anos, tal recuperação contou principalmente com a memória dos dançarinos da época em que foram idealizadas, ou dos que aprenderam com estes, além de vídeos, quando disponíveis, e das extensas anotações da própria Martha Graham, publicadas em 1973. Claro que no decorrer dos anos muitas coreografias foram perdidas, principalmente quando, de início, a recepção do público foi negativa. É o caso, por exemplo, das danças de meados de 1950, The Voyage e Theatre for Voyage, duas variações de uma mesma ideia, às quais o crítico e historiador da dança Mark Franko (2012) dá grande importância.

Com o tempo, a expressividade em Graham revela-se uma faca de dois gumes: por um lado, lhe garante o lugar de "mãe" da dança moderna18, e esse reconhecimento se traduz em diversos prêmios, conferidos inclusive por presidentes dos Estados Unidos, entre eles o mais prestigiado prêmio civil, a Medal of Freedom, concedida pelo presidente Ford em 1974. Por outro lado, sua investigação corporal - que, principalmente nos anos 1950, passa a explorar e reconfigurar temáticas conhecidamente psicanalíticas e/ou jungianas - torna-se cansativa para grande parcela de seu público. Para alguns grupos, em alguns momentos, isso se exacerba.

Com relação às temáticas psicanalíticas reinterpretadas por ela, é modelar Night Journey (1958), que reconfigura o enredo original da tragédia grega sobre Édipo Rei: somos apresentados à perspectiva de sua mãe, Jocasta, que depois de descobrir que se deitou com o próprio filho é atormentada pelos demônios da culpa. O tempo narrativo é subjetivo, e o tema central é justamente a culpa de Jocasta, personificada como coro. Jocasta está no palco, e seus tormentos, desdobrados dela e transformados na figura do coro, apresentam-se por contrações e releases, contorções e movimentos angulares, que no conjunto produzem um efeito dramático impactante. Ao fim da dança, Jocasta se suicida com uma corda, descrita pela crítica como o cordão umbilical que a ligava a Édipo. Ninguém fala dessa dança, ao contrário do que acontece com outras coreografias de Graham.

A dramaticidade, nesse exemplo, é evidente, e observa-se em dois sentidos: as contrações e os releases são dramáticos, como dissemos, e, além disso, uma nova versão da tragédia grega nos é apresentada, ou seja, uma história nos é contada. Embora a trama e a ação no palco sejam sumárias, o drama psicológico é intenso. E vai num crescendo, até culminar no suicídio. Estas duas características, a expressividade da forma e o enredo apresentado como dança, compõem o que a crítica passou a descrever como teatralidade em Graham.

Percebe-se tal característica ganhar força justamente nos anos 1950. Em danças anteriores, como Panorama (1935), não se vê a teatralidade em nenhum dos dois sentidos, muito menos de maneira excessiva. Aliás, isso faz pensar na possibilidade dessa tendência ao teatral estar relacionada não só a Graham ir estabelecendo seu estilo ao longo das décadas, mas também ao fato de que ela, até quando deixou os palcos em 1970, aos 76 anos de idade, coreografava papéis principais para si própria. É possível que quando seu corpo não tinha a mesma força e dinâmica, ela tenha encontrado na fórmula dramática a maneira de compensar a diminuição de sua forma física. Afinal, mesmo quando o corpo não respondia como antes, o público que a assistia era unânime: ela interpretava Jocasta como ninguém, ou seja, seu carisma prevalecia.

Em todo caso, é contra a dramaticidade em Graham que críticos norte-americanos começam a se posicionar nessa época. Uma espécie de onda antiexpressionista se estabelece, e ela impregna, aliás, as artes em geral. Reage também a Jackson Pollock19 na pintura, por exemplo, e divide opiniões: Graham mantém grande parcela de seu público admirador, mas perde outra20.

Além disso, uma ideia errada impregna o imaginário do meio da dança, a de que haveria uma espécie de teleologia que vai do moderno ao pós-moderno, indicando a superação daquele por este, o que interfere na apreciação do estilo de Graham. Mesmo hoje, o sentimento antiexpressionista em dança é forte em Nova York, onde as três coreógrafas que destaco produziram a maior parte das suas obras21. Apesar de tudo isso, o prestígio de Graham se mantém22.

 

A dança pós-moderna e o pós-meio descrito por Rosalind Krauss

A dança pós-moderna surge em Nova York entre 1962 e 1964, no já mencionado Judson Dance Theatre23, liderada, principalmente do ponto de vista retórico, por Yvonne Rainer. Em 1965, ela põe suas ideias no papel, publicadas na forma de um artigo: "NÃO ao espetáculo não à virtuosidade não a transformações e mágica e faz-de-conta não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela não ao herói e ao anti-herói não a imagens trash não ao envolvimento do performer ou do espectador não ao estilo não ao campo não à sedução do espectador pelo artista não à excentricidade não a mexer ou sentir-se mexido" (p. 178)24.

Essa frase de muitas negações e poucas vírgulas é batizada como "Manifesto do não". Resume o discurso antiexpressionista, antipsicologista e, nesse sentido, antimoderno, que influenciou todos os membros do Judson, grupo do qual fizeram parte desde o início Childs e Brown. Embora posteriormente a própria Rainer busque minimizar o impacto de sua frase escrita, chamando de infame a ideia de um "Manifesto do não" (Rainer, 2006, p. 264), o fato é que sua pungente citação é tão repetida pela crítica de dança pós-moderna, assim como pelos próprios dançarinos, que passou a ser considerada como o manifesto que caracteriza o período.

Décadas depois da experimentação, digamos, pluridisciplinar artística que aconteceu no Judson Dance Theatre, Childs (1978) e Brown (1983, 1987 & 1998) produzem obras coreográficas que incorporam elementos da estética pós-moderna, e trazem aspectos realmente inovadores para a arte de uma maneira geral. Convidada a criar a coreografia do filme Dance, Childs ouve a música de Phillip Glass para o filme e cria não só uma coreografia, mas também um muito bem-sucedido efeito audiovisual de simulacro entre o dançarino vestido de branco e sua imagem em branco e preto, que é o registro anterior da mesma coreografia projetado simultaneamente enquanto o artista está no palco. O chão é quadriculado também em branco e preto, o que se mistura com a imagem do chão projetada. O efeito que isso causa no espectador é como se ele entrasse em transe ou numa dimensão paralela do mundo, uma espécie de realidade virtual. Além disso, a composição é formalmente muito bela. (Um pouco do que descrevo pode ser observado na imagem 3.)

 


Imagem 3 - Clique para ampliar

 

Já Brown explora a vivacidade de cores fortes em relação com as formas produzidas pelo corpo que dança. Ela integra o design das vestimentas, as esculturas no palco, o cenário minimalista e o corpo que dança, também de maneira muito bem-sucedida. Produz a impressão de uma espécie de quadro minimalista coreográfico, em que as personagens como que se destacam do todo ao dançar. Não é bem um quadro, por ser tridimensional, mas uma espécie de escultura em movimento que integra todos esses elementos. (Na imagem 4, perde-se a força das cores. As vestimentas são azul chumbo e o cenário minimalista, criado por Donald Judd, cor vinho.)

 


Imagem 4 - Clique para ampliar

 

Desde muito cedo em sua obra (1983 & 1987) e ao longo dela, Brown explora também a relação do corpo do dançarino com a gravidade, o que também produz um efeito de irrealidade quando, por exemplo, as dançarinas literalmente caminham nas paredes. Na ópera L'Orfeo (1998), ela dá um passo além, e a protagonista "voa" sobre o palco. Para isso, outro elemento tipicamente pós-moderno é incorporado: o acaso. A dançarina é suspensa por cordas que, de forma bastante surpreendentemente caseira, são manipuladas por uma equipe no solo, como se a moça fosse uma marionete. O elemento acaso é forte, pois as cordas nem sempre são fáceis de manipular. Tampouco é inteiramente previsível o efeito da manipulação.

Em 1999, Rosalind Krauss descreve a arte de Marcel Broodthaers25 como pós-meio. Sempre na esteira de Greenberg (1960/1993), ela identifica que a arte de Broodthaers caracteriza-se não mais pela singularidade de um meio artístico, e sim pela fusão de diversos meios, o que seria uma novidade no campo da arte. De fato, a observação de Krauss aplica-se às obras do artista, conforme confirmam exposições recentes de Broodthaers, que aconteceram no MoMA, na Michael Werner Gallery e na Paul Kasmin Gallery em Nova York, em 2016. O uso quase que indeterminado da escultura, da fotografia, da projeção, do filme, da instalação e da pintura nas obras desse artista indicam que nenhum desses meios é autônomo ou suficiente para produzir o efeito desejado.

Além disso, esses meios se misturam, tornando complicado distinguir ou identificar cada um deles. Colagens e readymades resistem às classificações como pintura ou escultura, como se vê, por exemplo, na obra Carte du Monde Poétique (1968), de Broodthaers, um mapa-múndi em que foram alteradas algumas letras do original Carte du Monde Politique. Tomadas individualmente, algumas fotografias resistem por completo a qualquer denotação artística. Dentre as inúmeras obras na retrospectiva do MoMA, havia, por exemplo, uma fotografia literal do urinol de Duchamp. Onde está o artista nessa obra? A ideia veiculada é mais relevante que o valor formal da obra, nesse caso praticamente nulo. Nessa fotografia, estão implicadas as questões da reprodução, de uma obra por outro artista, e da autoria: a famosa obra de Duchamp se perdeu, mas foi fotografada por Stieglitz, e agora temos a fotografia da fotografia, produzida por Broodthaers.

Vale lembrar que Broodthaers incorpora no âmago de suas obras seus poemas completos, que não atingiram qualquer celebridade. Agora finalmente serão consumidos, mesmo que apenas visualmente e que mesmo assim permaneçam desconhecidos. Essa é uma crítica ao mundo em que vivemos, que se tornou e continua se tornando crescentemente visual e consumista. A grande ironia é a poesia de Broodthaers permanecer desconhecida, confirmando o sentido da obra.

A ideia de uma arte pós-meio, como descreve Krauss, indicaria uma novidade nas artes visuais. Entretanto, é de se considerar que no campo da dança tal característica sempre esteve presente, embora ela seja ainda mais elaborada na dança pós-moderna. Considerando as coreógrafas em questão, Graham, Childs e Brown, nota-se imediatamente que nelas se fundem diversos meios artísticos. Uma relação se estabelece desde o início, com a música ou sua ausência, na definição de o que é dança. Além disso, nas produções apresentadas no palco, essa relação é ultrapassada e são implicados outros meios que, com a dança, produzem um todo: a escultura, o design de roupas e o cenário, além da música (e/ou o silêncio). Tais produções tendem a ser chamadas nos EUA, simplesmente, de danças, mas uma vez definido o que é dança, vemos que elas ultrapassam a exclusividade de seu meio: já no início do século XX, podemos pensar que a dança é pós-meio. É de se considerar a possibilidade de a dança nascer à frente do seu tempo, sobretudo se aceitamos as definições greenbergianas ou se as consideramos relevantes. Seria mais um motivo, paradoxalmente, para ela nem sempre ter atingido o prestígio meritório.

Corpo e arte são o mesmo: eis o problema e a singularidade apresentados pelo meio da dança. Paradoxalmente, sua força pode ter diminuído seu valor perante a crítica. O lugar da dança entre as artes é semelhante ao da psicanálise entre as ciências. E entre as artes. Duas disciplinas meio bastardas ou tidas como tal. A psicanálise opera por interpretação: esse invariante garante-lhe um lugar entre as ciências, embora se faça necessário constantemente explicitar isso, mesmo explicar. Sempre criativas, as psicanálises produzem e desvelam novos impensados, isso garante-lhes um lugar entre as artes26.

Como acontece no meio da dança, é com o corpo que o clínico psicanalista trabalha, produzindo atos falhos a dois com seu "paciente"27, seja ele alguém no consultório, seja algum aspecto da cultura analisado pelo psicanalista. Acontece um exercício constante de mistura e separação, do psicanalista com esse "paciente", um entra e sai do campo, por assim dizer. Isso é trabalho da psique, e psique, é claro, está no corpo - no analista, no mundo, no "paciente". Em poucas palavras, na dança, como na clínica psicanalítica, é assim: corpo e arte são o mesmo.

 

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Set and Reset (originalmente produzido em 1983, colaboram T. Brown, R. Rauschenberg, L. Anderson); Present Tense (originalmente produzido em 2003, colaboram T. Brown, E. Murray, J. Cage); Newark (Niweweorce) (originalmente produzido em 1987, colaboram P. Zummo, D. Judd, K. Tabachnick) Trisha Brown Dance Company, 28 a 30 de janeiro de 2016, Brooklyn Academy of Music, Nova York.         [ Links ]

Tiburi, M. & Rocha, T. (2012). Diálogo/Dança. São Paulo: Senac.         [ Links ]

Valéry, P. (1976). Philosophy of the dance. In Salmagundi, 33/34 (pp. 65-75). (Trabalho original publicado em 1936).         [ Links ]

Yeats, W. B. (1997). Among school children. In The Yeats reader: a portable compendium of poetry, drama, and prose. Nova York: Scribner Poetry. (Trabalho original publicado em 1933).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
FERNANDA SOFIO
Av. Eng. Luís Carlos Berrini, 1748/1608
04571-000 - São Paulo - SP
tel.: 11 98101-0363
fernanda.sofio@usp.br

Recebido 09.06.2017
Aceito 06.08.2017

 

 

1 Pesquisa pós-doutoral apoiada pela Fapesp (programa BEPE) e supervisionada pelo professor João A. Frayze-Pereira (IP-USP, SBPSP).
2 Krauss identifica a origem em Matthew Arnold, conforme analisado por T. S. Eliot. Em suas palavras, essa é "uma tradição que vê arte essencialmente como uma forma de posicionamento moral, assumindo uma absoluta e clara separação entre as artes" (1977, p. 203, tradução livre).
3 A obra de arte funciona esteticamente, no sentido que investigo (Sofio, 2015) e apoiada em Antonio Candido (1957), quando há harmonia entre função (o que a obra tem a dizer) e estrutura (como ela diz).
4 Na história da arte, existe o problema da crítica que por vezes torna-se prescritiva, como alerta Cavell (1969). As obras das coreógrafas a que me referirei neste artigo não têm essa característica.
5 Refiro-me a Wolfgang Iser (1972), para quem a obra de arte requer o olhar do espectador para se concretizar. Iser falava da crítica literária, mas sua observação pode ser pensada também para outros meios artísticos.
6 Baseio-me na crítica de arte norte-americana porque discuto dança norte-americana e há algum diálogo mínimo entre os dois. (Nas artes plásticas esse diálogo é muito mais claro e forte.)
7 Uma excelente antologia sobre este tema foi compilada por Roger Cope-land e Marshall Cohen (1983). Na introdução, assim como na escolha dos capítulos do livro, os editores fazem relações - ou seja, dão a sua interpretação - de quem discutiu dança como imitação, expressão e forma.
8 Se esta afirmação parece exagerada, basta fazer um levantamento das referências à dança em qualquer livro de história da arte.
9 Tampouco irei tratar, por exemplo, da questão do lugar da mulher na sociedade e na história da dança, que é igualmente relevante para esta discussão.
10 Tradução livre.
11 A dança teatral foi descrita como distinta das formas consideradas pelo cânone como externas a ele: as danças étnica e folclórica. As danças teatrais estadunidenses pós-moderna e contemporânea frequentemente se desenvolveram longe dos palcos: em galerias, museus, espaços privados de todos os tipos. Diversas vezes, a partir dos anos 1960, a dança de vanguarda se disseminou em igrejas, onde não era necessário pagar aluguel. O que faz parte da dança teatral e o que não faz torna-se a partir daí o mais difícil de discernir. (Incluo a dança pós-moderna norte-americana como parte da dança teatral porque, a meu ver, o discurso antiteatral implícito e explícito que ela propõe tem a paradoxal consequência de mantê-la nessa tradição, dialogando com ela.)
12 Esse da composição visual na obra de Brown foi estudado a fundo por Susan Rosenberg (2012/2016).
13 A obra de Herrmann é psicanalítica, o que não é o caso da de Foucault. Herrmann faz uma interpretação complexa da psicanálise, e estou tomando o que considero ser o cerne de seu pensamento sobre a interpretação do homem no mundo e na cultura.
14 Embora a dança moderna nasça na Europa, ela perde força com as guerras mundiais e se desenvolve plenamente nos EUA.
15 Entre 1962 e 1964, o Judson Dance Theatre, de que Robert Morris fez parte, teve uma contribuição fundamental para o estabelecimento do minimalismo nos EUA. Não sabemos como se-ria a arte de Morris se não tivesse sido influenciada pela dança experimental do Judson Dance Theatre, pois o fato é que o foi. Vale lembrar, como já disse anteriormente, que Judd colaborou com Brown.
16 Procuro fazer uma análise na esteira de João Frayze-Pereira (2004 e 2009), investigando a poética de cada artista por meio do que ele chama de psicanálise implicada. Ou seja, não a partir de noções psicanalíticas consagradas e preestabelecidas, mas conduzindo a investigação interpretativa conforme solicitado pela obra. Isso cria uma possibilidade singular para a crítica de arte ligada à psicanálise. Trata-se de uma contribuição da psicanálise brasileira para a crítica de arte.
17 Há poucas excessões, mas há. Elas acontecem porque as coreografias assim exigem.
18 É certo que se pode datar a dança moderna a partir de Nijinsky, coreógrafo revolucionário. Entretanto, Nijinsky criou apenas quatro coreografias, das quais uma se mantém em repertório: é transmitida por dançarinos desde a década de 1910 até hoje. Mas vale lembrar que a carreira de Nijinsky encerrou-se precocemente, antes dele chegar aos 30 anos de idade, quando foi diagnosticado como esquizofrênico. (A maneira como tal diagnóstico foi feito é controversa e trouxe consequências trágicas.)
19 Se a arte de Pollock é ou não "expressionista", ou se esse termo o associaria erroneamente ao movimento germânico do início do século XX, que é insuficiente para compreendê-lo, é tema controverso. Por exemplo, podemos pensar que, no trabalho de Pollock, foi "preciso criar uma realidade que não pressupusesse a integridade de um sujeito agente - um expressionismo que, levado às raias do absurdo, rompesse com qualquer interioridade às voltas com a exteriorização" (Navas, 2007, p. 254). Nesse sentido, o artista americano rompeu radicalmente com o que já havia se convencionado chamar de expressionismo.
20 O Judson Dance Theatre foi uma espécie de residência artística multidisciplinar, em que os diversos meios artísticos não estavam assim tão diferenciados (Haskell, 1984).
21 Lucinda Childs, por exemplo, trabalhou muito por encomenda da Opèra de Paris.
22 Vale ressaltar, entretanto, que esta crítica a Graham é ambivalente. Por exemplo, é frequente dançarinos pós-modernos e contemporâneos norte-americanos treinarem na técnica de Graham. A grande idealizadora da dança pós-moderna, a já mencionada Yvonne Rainer, foi sua assídua aluna. Parece que se trata de uma questão identitária: falar contra Graham permite certa estruturação da identidade pós-moderna. Aliás, o sentimento antipsicanalítico norte-americano, também característico do surgimento do pós-moderno, é semelhantemente ambíguo - parece evidente que ele existe, mas, ao mesmo tempo, temas centrais da metapsicologia, principalmente freudiana, são até hoje continuamente implicados e retrabalhados tanto pela arte como pela crítica norte-americanas, frequentemente de maneira bastante caricata.
23 Um grupo de artistas talentosos pas-sou a se reunir na Judson Church, onde não era necessário pagar aluguel, e criaram uma espécie de residência artística. A realidade do mercado imobiliário, mas não só deste, era outra em Nova York. Artistas conseguiam se manter financeiramente mesmo sem renda fixa.
24 Tradução livre.
25 Nascido em Bruxelas, em 1924. Desistiu da poesia, que jamais lhe trouxe fama, e se tornou artista plástico. Sua obra seminal parte da destruição de seus poemas, uma crítica à cultura crescentemente visual e consumista, não mais literária. Fatídica e paradoxalmente, sua poesia tornou-se secundária e é a produção visual que lhe garante o prestígio.
26 Reúno neste e no próximo parágrafo diversas ideias e conceitos descritos pela psicanálise brasileira, em textos de Fabio Herrmann (1979, 1988/1989, entre outros) e de João Frayze-Pereira (2007).
27 Em meu livro Psicanálise na UTI: morte, vida e possíveis da interpretação, uso "paciente" entre aspas para indicar que pode ser uma pessoa, um aspecto da cultura ou mesmo, como naquele caso, o campo transferencial das UTIs de um hospital geral.

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