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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017
EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA
Freud and the music
Francisco A. Duarte
Filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
Este trabalho estuda a relação de Freud com a música, e qual seria a influência dessa arte na vida pessoal e na obra do psicanalista vienense. Na busca de qual seria a cantiga de ninar mencionada por Freud a Fliess, o autor recupera a partitura e a letra de uma cantiga folclórica tcheca, e grava uma interpretação. Conclui com uma proposta de o que a música infantil pode ter significado para o Freud adulto.
Palavras-chave: Música. Cantiga de ninar. Hajej, müj andilku. Freud. Resistência.
SUMMARY
This work looks into Freud's relationship with music, and how it would influence the Viennese psychoanalyst's personal life and work. In his search for the lullaby mentioned by Freud to Fliess, the author recovers the score and lyrics from a Czech folks song, and records a version of it. The work ends with a theory of what children's music may have meant to a grown up Freud.
Keywords: Music. Lullaby. Hajej, müj andilku. Freud. Resistance.
Este trabalho estuda a relação de Freud com a música e a influência dessa arte na sua vida pessoal e na sua obra. Por um lado, apoia-se na sua afirmação de que "todas as teorias erradas contêm uma parcela de verdade" (Freud, 1908/1969, p. 218). Por outro, vale-se da definição de outro psicanalista, o brasileiro P. C. Sandler, para quem "Música é o modo ímpar de dizer o que não pode ser falado - e ouvir o inaudível" (2000, p. 92).
O estudo levou o autor deste trabalho a pesquisar qual seria a cantiga de ninar tcheca mencionada por Freud a Fliess (como será visto adiante), bem como a recuperar sua partitura e letra, depois gravar uma interpretação com piano e voz.
Muito se sabe das predileções de Freud na literatura e nas artes. Em seu texto de 1914,"O Moisés de Michelangelo", afirma:
Posso dizer de saída que não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo. Tenho observado que o assunto obra de arte tem para mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora, para um artista, o valor dela esteja nestas. Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte...
Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura, e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber por que sou assim afetado e o que é que me afeta. (Freud, 1914/1987, p. 253; grifo nosso)
Pouco se ouviu ou leu de Freud em referência à música. Algumas pessoas até arriscavam dizer que ele simplesmente detestava música. Seu filho Ernest conta que isso é um exagero, que "Freud gostava de Mozart e que cantarolava melodias quando estava só" (Mannoni, citado por Ribeiro, s/d.).
Além de Mozart, o que mais Freud ouvia? O que a música despertava nele? É possível pensar em uma não musicalidade de Freud? É difícil até mesmo conceber como seria possível alguém não apreciar música tendo se mudado, por volta de 1859, aos 3 anos de idade, para Viena - cidade que foi, por boa parte dos séculos XVIII e XIX, considerada a capital europeia da música. Seria mera falta de tempo ou teria ocorrido algo que o impedisse de apreciar a musicalidade vienense?
Muitos músicos de renome viveram em Viena antes e durante a permanência de Freud na cidade, e isso certamente fez parte da musicalidade do dia a dia vienense. Compositores como Wolfgang Amadeus Mozart, Johannes Brahms, Franz Joseph Haydn, Ludwig van Beethoven, Franz Peter Schubert, Johann Strauss, Franz Lehár e outros. Diante de tantos expoentes e de todo o desenvolvimento musical da cidade, parece difícil o não envolvimento de Freud com a música.
O terceiro encontro: Freud e gustav Mahler
Gustav Mahler nasceu em Kalischt, na Boêmia, então Império Austro-Húngaro e hoje República Tcheca, em 7 de julho de 1860. Mudou-se para Viena com 15 anos de idade, após ingressar no Conservatório, e nessa capital adquiriu prestígio e reconhecimento. Em 1902 casou-se com Alma Schindler. Apesar de muitos percalços, o casamento trouxe-lhe também, até certo ponto, segurança e benefícios para a sua vida criativa.
Em 1910, Mahler vai a uma consulta com Freud, após marcar por três vezes e desmarcar (na última tentativa, Freud dera-lhe um ultimato, deixando claro que, se voltasse a marcar e não comparecesse, não teria mais chance de ser consultado). Sofria de folie de doute, neurose obsessiva. Embora fosse avesso a interromper suas férias para qualquer trabalho profissional, Freud não poderia recusar-se a atender um homem com o valor de Mahler (Jones, 1989, p. 91).
Finalmente o encontro acontece em Leiden, Holanda, no mês de agosto. Freud interrompe suas férias e espera a chegada de seu famoso paciente. Embora Mahler não tivesse nenhum contato anterior com a psicanálise, Freud disse que nunca havia encontrado alguém que parecesse compreendê-la tão rapidamente. O encontro acontece em um hotel, onde Freud improvisa um setting analítico fazendo uso até mesmo de um divã portátil improvisado.
A queixa inicial de Mahler, já mencionada por carta a Freud, era de que vinha tendo problemas conjugais com sua esposa. Alma Schindler era uma bela mulher, 19 anos mais nova que o marido; artista, célebre beldade, acostumada com o glamour de uma vida social - e ele, desapegado de coisas mundanas, acostumado a ficar sozinho. Mahler tinha 50 anos, e Alma, 31. Casaram em 1902 e, na ocasião do encontro com Freud, haviam perdido a filha mais velha, Maria, vítima de escarlatina, o que os deixou em profunda desolação e foi determinante para a piora na relação (Sadie, 1994, p. 566).
No filme Mahler auf der Couch [Mahler no divã], de Felix Adlon e Percy Adlon, de 2010, na cena do encontro inicial, Freud pergunta a Mahler qual a diferença de idade entre ele e Alma. O músico fica um tanto defensivo, acha tal pergunta desnecessária. Freud insiste, criando no paciente mais repulsa, associada a uma falta de ar momentânea. Assim, Malher sai apressadamente em busca de ar, ignorando o apelo de Freud para que continuasse ali; no caminho para a porta, andando apressadamente, Freud lhe pede que responda uma única pergunta:
Freud - Crê realmente que um velho, fraco, deve se ligar a uma jovem faminta?
Essa fala incomoda Mahler, que para, volta-se para Freud e começa a responder dizendo o quanto eles eram felizes, que Freud não tinha ideia de tamanha felicidade, de quanto se amavam, e dá ênfase à música. Daí por diante eles saem em caminhada, e enquanto andam por uma praça, Freud pergunta:
Freud - Tem relação sexual com sua esposa?
Mahler - O senhor está se repetindo.
Freud - Então, nenhuma relação.
Mahler - O quarto não era convidativo. Na casa de veraneio, tentei compor.
Freud - Sua Quinta? [sinfonia]
Mahler - Estou na minha Décima. E há tempos ela não houve nada de mim.
Freud - Eu nunca ouvi nada absolutamente do Senhor.
Mahler - O quê?
Freud - Não. Preciso de silêncio, sobretudo no trabalho.
Mahler - O senhor deve me ouvir, pelo menos uma vez. Toda manhã, acabo com todo tipo de barulho. Os fazendeiros [jardineiros], por mim, andam nas pontas dos pés em volta da casa e as paredes tremem. Mas, música? Música não é barulho.
Freud - A mais perigosa de todas.
Mahler - O que o senhor quer dizer?
Freud - O senhor sofre de enxaqueca?
Mahler - Sim, tive ataques terríveis. Extremamente desagradável.
Freud - Síncope?
Mahler - Eu amo síncopes1.
Freud - Não, não. Como síncope descrevemos na medicina curtos ataques de inconsciência. Provocados por certa disposição por causa da música. Eu mesmo tive três desses ataques. No Parkhotel, em Munique, no hall da entrada, tinha um piano. Minha autoanálise diagnosticou uma epilepsia musicogênica.
Mahler - Musicog...? Não!
Freud - Sim. Tenho medo de música. [Por que Freud disse tal frase?]
Mahler - E agora, não mais?
Freud - Eu descobri Don Giovanni.
Mahler - Não lhe causa nada?
Freud tenta cantarolar uma melodia e indaga:
Freud - O senhor reconhece isso?
Mahler - Desculpe. E balança a cabeça em negação.
Freud então começa a cantarolar a letra, logo Mahler a entende e continua cantando com Freud. Cantarolam por segundos, um tempo razoável e em aparente boa sintonia. Até que param e fazem um profundo silêncio. Freud pede-lhe que continue a cantar, mas Mahler passa a relatar a história sobre sua esposa, Alma.
Esse foi um encontro psicanalítico e musical entre Freud e Mahler. Depois de horas de conversação, Freud ficou admirado com a capacidade psicológica de compreensão de um compositor genial. A princípio disse que nenhum raio de luz conseguiria iluminar, penetrar nos escombros de tal neurose obsessiva; com o caminhar das horas, Mahler acalmou-se bastante e pôde perceber o que estava representando a ele, uma mulher tão mais jovem, e o que também poderia estar ele representando a ela, um homem tão mais velho. Alma representa a música para Mahler?
Mahler representava para Alma o homem de sucesso, de valor, como havia sido o pai da moça, ninguém menos que o pintor Emil Jakob Schindler. Alma representava para Mahler a procura desesperada de uma amargurada e sofrida mãe. Mahler praticamente proibia Alma de ser ela mesma, castrando toda condição de compositora e artista que nela existia, tentando torná-la apenas a esposa que serve, cuida dos filhos e no máximo ajuda a copiar algumas composições.
Essa condição mudou completamente depois do encontro com Freud: Mahler volta a amar Alma com mais intensidade e libido, começa a trabalhar com as composições de Alma, apresenta mudanças radicais em seu comportamento e dá constantemente repetidas provas de amor. Depois da visita ao Dr. Freud, dedica sua oitava sinfonia à esposa. Essa conversa analítica produziu efeito, pois Mahler recuperou sua potência. Foi feliz até que morreu, infelizmente apenas um ano depois (Jones, 1989, p. 92).
E para Freud, o que representou o encontro com Mahler?
O segundo encontro: Freud e a música "Dorme, anjinho"
Em uma passagem de A interpretação dos sonhos, "O material infantil como fonte dos sonhos", Freud analisa um sonho seu, já relatado em carta a Fliess datada de 3 de dezembro de 1897:
Um quarto sonho, que ocorreu logo depois do último, levou-me a Roma mais uma vez. Eu via a esquina de uma rua diante de mim e ficava surpreso por encontrar tantos cartazes em alemão ali afixados. Eu escrevera ao meu amigo na véspera, com uma visão profética, dizendo achar que Praga talvez não fosse um lugar agradável para as perambulações de um alemão. Assim, o sonho expressou ao mesmo tempo, o desejo de encontrá-lo em Roma, em vez de uma cidade na Boêmia, e um desejo que provavelmente remonta aos meus dias de estudante, de que a língua alemã fosse mais tolerada em Praga. Aliás, devo ter compreendido o tcheco nos primeiros anos de minha infância, pois nasci numa pequena cidade da Morávia com uma população eslava.
Uma canção de ninar tcheca, que ouvi quando tinha 17 anos, fixou-se em minha memória com tal facilidade que até hoje posso repeti-la, embora não tenha nenhuma ideia do seu significado. Assim, também não faltam ligações com meus primeiros anos de infância nesses sonhos. (Freud, 1900/1987, p. 201)
O que a música, com sua impressão auditiva, causava em Freud? O encontro com Fliess citado por Freud ocorreu em Praga, em fevereiro de 1897, e sua idade era de 40 anos. A carta enviada a Fliess em que relata o sonho ocorreu meses depois, em dezembro, aos 41 anos de idade. A lembrança da canção de ninar tcheca ocorre em 1873; se ouviu essa canção aos 17 anos, já havia ingressado na Universidade de Viena, no curso de medicina. O convívio de Freud com os povos de língua tcheca deu-se quando morava em uma cidade da Morávia que tem fronteiras com a Boêmia a oeste e com a Áustria ao sul. A distância de Viena, na Áustria, até Praga, hoje na República Tcheca, é de aproximadamente trezentos quilômetros. Entre Viena e Praga encontram-se as cidades da Morávia e Boêmia, no território tcheco.
Qual seria a cantiga de ninar que impregnou a mente de Freud fazendo com que jamais a esquecesse? O que dizia tal canção? Seria algo parecido com nossa famosa cantiga "Nana, nenê, que a Cuca vem pegar"? Ou algo parecido com "Boi, boi, boi / Boi da cara preta"? Nas leituras de trabalhos biográficos de Freud, nada encontrei que fizesse menção a tal cantiga de ninar.
Pesquisando composições da época, encontrei alguns grandes compositores tchecos, entre os quais destaco Bedrich Smetana, o gênio mudo da música tcheca, que nasceu em 1824 e faleceu em 1884, em Praga. Deu ao seu povo uma nova autoconfiança e identidade musical, através de sua firmeza técnica e da originalidade no tratamento dos temas musicais. Em suas óperas, valeu-se de lendas, histórias e ideias de seu país.
As cantigas de ninar, na sua grande maioria, não têm data nem lugar de origem definidos, e pertencem à tradição oral mantida pelas mulheres. Algumas surgiram em uma região ou país e se difundiram por gerações; algumas se perderam no tempo e outras, por sorte ou por esforço de alguém, tornaram-se imortais. Para uma canção ser classificada como folclórica, deve atender a duas condições básicas: provir de transmissão oral entre as gerações e ser de autoria anônima.
A pesquisa que fiz se restringe à época do nascimento de Freud (1856), principalmente quando menciona a fixação da canção de ninar em sua mente (1873), e a lembrança de ter ouvido a canção quando andava pelas ruas de Praga, em relação ao sonho relatado a Fliess (1897). Outra referência dada por Freud é que tal canção de ninar era de origem tcheca.
Encontrei três canções importantes, sendo que uma, em especial, a mais famosa e melódica, comum a toda Europa Central, provém de canções populares ou canções nacionais das regiões de Praga e deriva de músicas folclóricas tchecas, chama-se "Hajej, müj andilku", que significa "Dorme agora, meu anjinho"; ela foi coletada primeiramente por Erben. O texto refere-se à mãe balançando o seu bebê.
Karel Jaromir Erben, nascido no Império Austríaco (18111870), foi escritor romântico, poeta, tradutor e historiador literário, além de coletor de canções populares e contos de fadas tchecos. Concentrou-se na poesia e coletou literatura popular, canções populares e contos de fadas principalmente no território da Boêmia e também na Morávia. Publicou essas canções populares e folclóricas tchecas com apurado trabalho de pesquisa. Na música, era visto como homem dos textos cantados, e também passou a se interessar pela melodia.
Karolina Svetlá, nome artístico de Johana Nepomuceno Rottova, nascida em Praga (1830-1899), era uma escritora tcheca, autora de contos, prosas e novelas. Um de seus contos, "O beijo", publicado em 1871, tornou-se muito popular e incluía trechos da canção de ninar que havia sido coletada e publicada por Erben, "Hajej, müj andilku".
Eliska Krasnohorska é o pseudônimo de Elizabeth Pechová, nascida em novembro de 1847. Escreveu obras de poesia lírica, críticas literárias e traduções das músicas infantis. Foi ela que, aproveitando-se do conto de Svetlá, escreveu o libreto da ópera Hubicka [O beijo], de Smetana, apresentada pela primeira vez em 1876. Boa representante da tradição popular tcheca, a ópera O beijo inclui uma ária marcante, com uma canção muito popular em sua época, "Hajej, müj andilku". Teria sido essa a canção melódica e tradicional, em seu tempo, a cantiga de ninar que Freud ouviu? O que diz essa canção?
São reproduzidos a seguir a partitura da melodia e os versos da canção popular, transcritos com a ajuda do maestro Ilso Muner Junior, seguidos da letra da ópera2.
O primeiro encontro: Freud e as recordações encobridoras
Freud era da opinião de que havia o perigo, ao se envolver com a música, de perder o controle racional, mas confirmara que a música também oferece, como os sonhos, uma via régia para o inconsciente. Para Peter Gay,
A atração da ópera sobre alguém tão pouco musical como Freud não é de forma alguma misteriosa. A ópera, afinal, é música com palavras, canção unida à ação dramática. Como a maior parte das leituras de Freud, ela podia lhe proporcionar o agradável impacto do reconhecimento; à sua maneira, extravagante e muitas vezes melodramática, a ópera tratava das questões psicológicas que preocupavam Freud durante toda a sua vida adulta: o amor, o ódio, a avidez e a traição. Além disso, a ópera também é um espetáculo, e Freud era particularmente sensível a impressões visuais. (Gay, 1989, p. 166)
O que a música, com sua impressão visual, causava em Freud?
Era por isso que ele olhava seus pacientes com a mesma atenção com que os ouvia. E mais, a ópera retrata o desenlace de agitados conflitos morais, desembocando em soluções morais satisfatórias; ela apresenta protagonistas com alta expressão verbal presos na luta entre o bem e o mal. Entre as cinco óperas favoritas de Freud, à exceção de Carmen, todas - e mais obviamente A flauta mágica e Meistersinger - decretam a virtude sobre o vício, desenlace que proporciona prazer ao ouvinte mais sofisticado, além de oferecer informações sobre as lutas que se travam nos espíritos de homens e mulheres. (Gay, 1989, p. 167)
Parece que a música, a princípio, estava associada à resistência em Freud. Bion, em Cogitações, assim se refere à resistência:
A que está resistindo? À investigação? À interpretação? À experiência emocional da investigação? À possibilidade de descobrir algo? Ao despertar das emoções? Aos elementos da posição esquizoparanoide? À junção do esquizoparanoide com o depressivo? À irrupção da posição depressiva? [...] O que leva então à resistência em música ou matemática? No meu modo de pensar, é a esfinge, a praga (de "elementos"?), o temor de experimentar o interjogo entre a posição esquizoparanoide e a depressiva. (2000, pp. 102-103)
Outras óperas também familiares a Freud eram As bodas de Fígaro e Don Giovanni. Em A interpretação dos sonhos, Freud comentou sua falta de ouvido musical, admitiu sua ignorância na matéria e disse não ser capaz de cantar. No filme de Adlon e Adlon, Freud, ao cantarolar para Mahler o desafio de Fígaro ao Conde Almaviva, do primeiro ato de As bodas..., comentou: "Outra pessoa talvez não reconhecesse a melodia". Algumas pessoas, que eram obrigadas a ouvi-lo trautear árias de óperas de Mozart, confirmam isso.
Segundo Anna Freud, seu pai não tinha por hábito procurar músicos e tampouco ir a concertos, mas admirava algumas óperas e gostava também dos libretos. Ela revela que, ao revirar suas lembranças, encontrou as cinco óperas favoritas. No livro Viena fin-de-siècle há um relato em que Freud, em um sonho, se expressa pela música:
No dia do seu Sonho Revolucionário, Freud estava saindo para passar férias com sua família em Aussee. Enquanto esperava o trem na Westbahnhof de Viena, ele reconheceu o conde Thun vindo altivamente para a plataforma [Franz Thun, ministro-presidente da Áustria desde 7 de março de 1898]. Como Freud corretamente supôs, o conde seguia para o retiro do imperador em Ischl, onde estavam sendo elaborados os acordos econômicos preliminares austro-húngaros. O conde Thun, em porte e política, era um "Feudalherr da cabeça aos pés": "Alto, magro, vestido com elegância requintada [parecia] mais um inglês do que um boêmio", lembrou um dos seus subordinados. "Seu monóculo nunca saía do olho." Agora, enquanto passava pela porta do trem, o conde mostrava seu modo aristocrático. Embora não tivesse bilhete, acenou ao bilheteiro ao lado e entrou numa cabine luxuosa. Todo o ressentimento de Freud contra a aristocracia veio à tona com o comportamento imperioso do ministro. Viu-se assobiando uma melodia subversiva do Casamento de Fígaro, de Mozart. "Se o conde quer dançar, eu dou o tom." (Schorske, 1988, p. 191)
Freud afirmou que se situam entre os 2 e 4 anos de idade os conteúdos das mais antigas lembranças do indivíduo. Os conteúdos mais comuns referem-se a situações de medo, vergonha, dor, nascimento de irmãos, mortes e doenças. Há três tipos de lembrança: as cenas que foram repetidas vezes descritas pelos pais; as cenas que não foram nem poderiam ser descritas; e o material que não pode ser compreendido. Dois conjuntos de fantasias foram projetados um sobre o outro e assim se constrói, partindo de ambos, uma recordação da infância (Freud, 1899/1987, p. 272).
Uma recordação encobridora tem seu valor por representar, na memória, as impressões e os pensamentos de uma data mais tardia, com conteúdo ligado ao conteúdo da lembrança encobridora por algum elo simbólico. A ideia da recordação encobridora deve seu valor de lembrança não apenas ao seu conteúdo, mas à relação que há entre esse conteúdo e algum outro que foi recalcado. Uma das classes de recordações encobridoras é a das regressivas, caracterizadas sempre que, numa recordação, o próprio sujeito aparece como um objeto entre outros objetos. O contraste entre o ego que age e o ego que recorda pode ser visto como uma prova de que a impressão original sofreu elaborações.
Meltzer, no texto "Mantendo o sonho: a natureza da apreciação estética", afirma que "no centro da apreciação estética está o problema de se poder manter ou reconhecer o gosto do sonho que fica evocado entre o sonhador e o objeto estético (independente da forma que assuma)" (1995, p. 238). No caso, aqui, é a música.
Manter o sonho tem a ver com uma congruência ou reciprocidade entre os objetos internos e objetos externos; com "pleno reconhecimento de espaço". E nos campos da arte e da literatura, por exemplo, a experiência do artista incorporada na forma artística serve de modelo para a mentalidade estética: não apenas por prover um objeto estético com uma coisa em si mesma, mas também por exemplificar o processo de formação simbólica que vai capacitar a audiência a manter o sonho em sua mente, sob observação, até que em um determinado instante ele se torne significativo. (Meltzer, 1995, pp. 238-239)
"Hajej, müj andilku", a canção de ninar que acredito corresponder à que Freud afirma ter fixado em sua mente aos 17 anos, remete a suas próprias lembranças encobridoras, que representavam suas vivências e impressões da infância, de alguma maneira transmitidas por sua mãe ou por outras pessoas de seu convívio e que, por motivos não sabidos e por vias naturais, foram recalcadas.
Durante muito tempo da vida de Freud, pelo menos até o encontro com Mahler, a música esteve a serviço da resistência. Seu envolvimento com a música e com músicos ou compositores não era comum, ao ponto de algumas pessoas pensarem em um Freud avesso à música. Porém, como comentou o editor de seus trabalhos no Brasil: "Muitas passagens em seus trabalhos dão prova de seu interesse pelas artes plásticas, e talvez sua atitude para com a música não fosse tão negativa como ele queria fazer crer" (1866/1897, p. 23).
Ao encontrar Mahler em uma condição de trabalho, quebrando uma "regra" por ele imposta de não atender paciente em suas férias, Freud fica admirado com a capacidade do artista quanto à compreensão psicológica, evidenciando a qualidade de um compositor genial - e enaltecer um paciente não era comum em Freud. Esse encontro e o atendimento prestado à Mahler devem ter sido muito proveitosos a ele, ao ponto de, ao mesmo tempo, sentir-se autorizado a entrar em contato com a música (Mahler) e todas as suas representatividades, lembranças, sonhos, significados e resistências.
Sandler (2002) afirma que os sonhos em psicanálise nos apresentam a nós mesmos. Os sonhos têm muitas outras funções: expressam fantasias inconscientes, um desses muitos nomes inventados por Freud. Ele inventou tantos que até ganhou um cobiçado prêmio literário por causa disso - para comunicar algo que já existia, mas não tinha nome e então não podia ser comunicado. Inventar nomes é algo muito factível na plástica língua alemã, mas o mesmo não se estende às contrapartes na realidade às quais os nomes se referem. Fantasias inconscientes são algo que temos para nos informar de nossos instintos.
Outra função do sonhar é negociar o movimento entre duas posições que a mente pode ocupar, chamadas por Klein de esquizoparanoide e depressiva. As posições são um tipo de constelação do funcionamento mental. Fantasias inconscientes e as posições, como os sonhos, parecem também meio esquisitas quando examinadas à luz do pensamento racional consciente e dos tabus e proibições sociais. Em parte por isso o sonho parece estranho ao sonhador, quando ele acorda (Sandler, 2002, p. 182).
O encontro psicanalítico e musical com Mahler possibilitou a Freud lidar com seus desencontros com a música e tudo o que ela poderia representar. Permitiu-lhe também lidar com os raros momentos em que dela se aproximava, após resistir por anos, evitando maior contato. A canção de ninar "Hajej, muj andilku" ofereceu uma ponte, uma linha condutora, constituindo o objeto estético que leva o sonhador a entrar em contato com "a sua criança e a sua mãe". Para nós, emerge a perspectiva de que a psicanálise (Freud) entrou em contato com seus sonhos através da música (Mahler), a partir do encontro do "profissional com seu mais notório paciente" em seu trabalho psicanalítico.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
FRANCISCO A. DUARTE
Av. Doutor Cardoso de Melo, 1450/ 209
05448-004 São Paulo SP
tel.: 11 5055-2427
franpsi@uol.com.br
Recebido 07.04.2017
Aceito 28.05.2017
1 Em música, "síncope" denomina o deslocamento regular de uma nota ou som em um padrão cadenciado, sempre com o mesmo valor, antes ou depois de sua posição esperada no compasso.
2 A canção pode ser ouvida em uma execução com o autor deste trabalho ao piano e Elisabeth Ratzersdorf, solista do Teatro Municipal de São Paulo, cantando os versos no original tcheco, no endereço https://youtu.be/0kQp9vunQgw.