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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

Psicanálise e cinema: o ser humano como um ser cinematográfico

 

Psychoanalysis and cinema: the human being as a cinematographic being

 

 

Verônica CatharinI; Josiane Cristina BocchiII; Érico Bruno Viana CamposIII

IPsicóloga, estudante de pós-graduação na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Bauru
IIPsicóloga, mestre em psicologia e doutora em filosofia. Professora assistente doutora na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Bauru
IIIPsicólogo, mestre e doutor em psicologia. Professor assistente doutor na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus Bauru

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A sétima arte, inventada no final do século XIX, estabeleceu-se como uma das experiências sociais mais intensas do século XX. O poder de tocar os espectadores que o cinema possui pode explicitar sua vinculação extremamente comum com a psicanálise. O alcance da arte para fascinar, surpreender, interrogar e também angustiar só se concebe a partir da audiência cativa de outrem. Pretende-se encaminhar questões como: é possível conceber o ser humano como um ser cinematográfico? Os mecanismos de produção do filme e da cena cinematográfica são comparáveis à estrutura do funcionamento psíquico? Além dessas questões, optamos por defender o argumento da identificação como um suporte para a fruição estética. Propõe-se ainda entender os processos que constituem o sonho e tecer considerações a respeito das similaridades com a obra cinematográfica.

Palavras-chave: Cinema. Sonhos. Identificação. Psicanálise.


SUMMARY

The seventh art, invented in the late nineteenth century, established itself as one of the most intense social experiences of the twentieth century. The power of touching the viewers that the cinema possesses can make explicit its extremely common connection with psychoanalysis. The reach of art to fascinate, surprise, interrogate and also distress is only conceived from the captive audience of others. It is intended to address issues such as: Is it possible to conceive the human being as a cinematographic being? Are the mechanisms and elements of cinema comparable to the structure of psychic functioning? In addition to these questions, we have chosen to defend the point of identification as a support for aesthetic enjoyment. It is also proposed to understand the processes that constitute the dream and to make considerations about the similarities with the cinematographic work.

Keywords: Cinema. Dreams. Identification. Psychoanalysis.


 

 

Introdução

A sétima arte, inventada no final do século XIX, estabeleceu-se como uma das experiências sociais mais intensas do século XX. Seria inimaginável prever o que aquela primeira sessão pública, em 1895, durando vinte minutos e projetando dez filmes, iria suscitar. Desde aquele momento, as experiências propiciadas pelo cinema relacionam-se à dimensão do sensível, que atinge de algum modo o sujeito e muitas vezes não pode ser traduzida, nem mesmo por palavras.

O poder de tocar os espectadores que o cinema possui pode explicitar sua vinculação extremamente comum com a psicanálise. O alcance da arte para fascinar, surpreender, interrogar e também angustiar só se concebe a partir da audiência cativa de outrem. A obra cinematográfica só ganha vida desde que olhada, assistida e consumida por seu público. Talvez essa necessidade de ter um outro seja um dos pontos que fazem da aproximação entre cinema e psicanálise algo tão caro aos estudiosos desses campos de saber.

Esses dois mundos parecem compartilhar uma mesma questão: ambos fazem com que as palavras e vivências sejam constantemente reinventadas, seja pelas emoções suscitadas ou pela técnica de construção da cena cinematográfica e seu efeito no espectador, seja por mecanismos engendrados no seu inconsciente. A psicanálise e o cinema podem despertar no homem o que há de mais contundente e essencial, na medida em que trazem à tona o que faz do homem realmente um ser com subjetividade.

Tecidas essas considerações a respeito do cinema e da psicanálise, o presente artigo pretende encaminhar os seguintes questionamentos: é possível conceber o ser humano como um ser cinematográfico? Os mecanismos e elementos do cinema são comparáveis à estrutura do funcionamento psíquico? Além dessas questões, optamos por defender a tese da identificação como um suporte para a fruição estética.

Promover o sonho, no sentido de uma experiência de imagens, sons, impressões, ilusões, devaneios, tem sido a razão de ser do cinema desde seu início. Será esse um dos motivos que o relaciona com a psicanálise? O homem pós-moderno, sujeitado a uma compressão temporal e esmagado pelas condições postas na sociedade, busca as salas de cinema para invocar seus conteúdos internos. Essa busca assemelha-se muito à procura pelas salas dos psicanalistas, com o mesmo intuito de revolver os fantasmas interiores.

O sonho, segundo Rivera (2009), é um domínio de quimeras, um imaginário fértil, uma tela onde as fantasias são projetadas. Dessa forma, torna-se importante entender os processos que o constituem e também tecer considerações a respeito das similaridades com a obra cinematográfica, visando sempre responder às questões norteadoras do presente artigo.

 

Figuração: a constituição onírica e cinematográfica

No que diz respeito aos sonhos, seu conteúdo e sua interpretação, a psicanálise introduz um novo conceito na relação entre conteúdo manifesto do sonho e seu entendimento, o conceito de conteúdo latente e "pensamentos do sonho". Para Freud, seria desse pensamento do sonho, e não do seu conteúdo manifesto, que nós compreenderíamos seu sentido:

Os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho nos são apresentados como duas versões do mesmo assunto em duas linguagens diferentes. Ou, mais apropriadamente, o conteúdo do sonho é como uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir, comparando o original e a tradução. Os pensamentos do sonho tornaram-se imediatamente compreensíveis tão logo tomamos conhecimento deles. O conteúdo do sonho, por outro lado, é expresso, por assim dizer, numa escrita pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente transpostos para a linguagem dos pensamentos do sonho. Se tentássemos ler esses caracteres segundo seu valor pictórico, e não de acordo com sua relação simbólica, seríamos claramente induzidos ao erro. (1900/2001, p. 236)

O que nos interessa é a forma como se dão os processos pelos quais os conteúdos oníricos se transformam em conteúdo manifesto. Nesse sentido, Magalhães (2008) propõe uma semelhança entre cinema e psicanálise em que o primeiro utiliza as leis da linguagem descritas por Freud como mecanismos fundamentais na elaboração psíquica, quais sejam, condensação e deslocamento. A figurabilidade também será utilizada na medida em que propicia o movimento de transformação das ideias em imagens visuais.

No texto freudiano sobre a interpretação dos sonhos, a figurabilidade aparece relacionada à "[...] atração seletiva das cenas visualmente recordadas e com as quais os pensamentos oníricos entram em contato" (Freud, 1900/2001, p. 542). Mais especificamente, diz respeito aos artifícios que permitem às fantasias inconscientes atuarem em seu regime de representações de objeto, de forma puramente imagética e através da regressão de pensamento em percepção (Freud, 1900/2001; Laplanche & Pontalis, 1971/1998). A figurabilidade pode então ser considerada a demonstração de figuras das imagens primeiras - visuais, auditivas ou táteis - ocorridas no aparelho psíquico, a partir de conteúdos e mecanismos inerentes ao inconsciente, produzindo cenas subjetivas singulares na passagem para o sistema pré-consciente e percepção-consciência. Nesse sentido, a atividade onírica se-ria, segundo Martins (2003), caracterizada pela expressividade visual do mecanismo de figurabilidade.

A figurabilidade, enquanto processo de transformação de conteúdos latentes em imagens visuais, tem no cinema um fenômeno análogo, quando da passagem da escrita de um livro ou roteiro para as cenas cinematográficas. O conteúdo tem de se tornar figura, estampa. Essa transformação é complexa, levando-se em conta que o processo de reproduzir a palavra através de imagens coloca exigências específicas tanto à linguagem cinematográfica quanto ao trabalho onírico.

Há uma aproximação ainda mais pertinente entre as imagens construídas no cinema e as formações de imagens engendradas no psiquismo. Nos casos de psicose, a figurabilidade tem um caráter mais plástico e concreto devido ao regime de funcionamento das representações mentais em uma simbolização mais concreta, em que as representações de palavra têm o estatuto de representação de coisa (Freud, 1915/2006), em um registro mais imagético. Martins (2003) afirma que os conteúdos inconscientes desses sujeitos adquirem realidade no mundo exterior, ocupando espaço nesse mundo, interagindo com o sujeito, de forma a influenciar e ser influenciado por ele. Tais conteúdos inconscientes passam a ganhar concretude para o mundo do psicótico e, de modo análogo, as marcas do inconsciente do roteirista e do diretor de cinema ganham caráter de objeto real, externo. São imagens sólidas, visíveis, que são vistas e intuídas pelos seus autores e além deles, pelo público na sala de cinema.

Outro ponto de contato entre esses dois mundos refere-se a suas linguagens características. Há uma sintaxe própria à sétima arte que se estabelece, segundo Setaro (2009), pelo relacionamento dos planos, das sequências e cenas. Os elementos fundamentais da linguagem cinematográfica, denominados "determinantes", são a planificação, os movimentos de câmera, a angulação e a montagem, havendo também os elementos componentes, como a fotografia, os intérpretes e a cenografia (Setaro, 2009). Assim, entende-se que o cinema comunica utilizando-se de uma linguagem especial que organiza o que se deseja expressar. O enquadramento, por exemplo, indica onde e como posicionar a câmera para gravar as cenas. Ele define quem aparecerá na cena e qual será o ponto de vista expresso. Esse componente da linguagem cinematográfica tem a capacidade de enfatizar intenções e sentimentos na cena. Outro determinante cinematográfico refere-se ao plano. Este se relaciona com a proporção de personagens enquadrados, influenciando diretamente os espectadores e destacando emoções na cena.

Pode-se dizer que há o plano geral - que mostra todos os elementos da cena -, o plano americano - responsável por revelar os indivíduos do joelho até a altura da cabeça - e, por fim, o primeiro plano - que mostra apenas a cabeça da personagem. Por último destaca-se a montagem como determinante cinematográfico que propicia o sequenciamento dos planos. A união dos planos fomentada pela montagem atribui ainda mais significado ao filme (Setaro, 2009).

Do mesmo modo, nas formações oníricas também há o estabelecimento de narrativas imaginárias em uma linguagem própria. Garcia-Roza defende que "A tese central de 'A interpretação dos sonhos' é que o próprio sonho é uma linguagem" (1995, p. 96), assim o autor sustenta que o sonho é uma escritura psíquica, cujas imagens não devem ser consideradas em seu valor de imagem, mas sim em seus sentidos verbais. O sentido deve ser então decifrado, ainda segundo Garcia-Roza (2008), o psicanalista não atua com boa-fé, mas com suspeita. O inconsciente não se oferece de bom grado à escuta, mas insiste em ocultar-se e em se oferecer de modo distorcido nos sintomas, nas lacunas do discurso e nos sonhos. Dessa forma, pode-se tecer mais pontos de contato entre sonho e cinema, visto que ambos possuem lingua-gem própria e expressa sob forma de imagens, além disso, o sentido transmitido pode ser obtido para além da imagem expressa, fato evidenciado pelos sentidos verbais das imagens oníricas e dos sentidos obtidos pela união de planos e cenas.

Além do mecanismo de figurabilidade já explicitado, cabe descrever também outros mecanismos de elaboração psíquica e qual a sua ligação com a passagem de textos literários às obras do cinema. Pode-se evidenciar nesse momento dois processos, deslocamento e condensação, como fatores essenciais na atribuição da forma assumida nos sonhos. O processo de condensação se dá a partir de expressões da realidade que são lembradas no material onírico, permanecendo o enunciado idêntico, mas com um ou mais significados atribuídos, ou então aglutinado a outros termos cuja relação é de contiguidade, pelo fato de terem sido experimentados numa mesma ocasião ou em ocasiões muito semelhantes.

É possível ter como exemplo do processo acima descrito a utilização de palavras e nomes formando neologismos.Alguns dos processos de condensação incluem a preferência por elementos que se repetem nos pensamentos do sonho, a formação de novas unidades sob forma de figuras coletivas e estruturas compostas, e a construção de entidades intermediárias comuns (Freud, 1900/2001). No cinema podemos identificar o mesmo mecanismo de condensação da psicanálise quando, por exemplo, temos um objeto que contém em si vários elementos significativos para a personagem, quando um lugar encerra em si vários significados ou quando uma personagem ou aspecto do filme indica outro significado.

A respeito do tempo, Santini expõe, utilizando conceitos psicanalíticos, a forma de um diretor surrealista trabalhar o tempo:

[...] não será com o tempo cronológico, tal qual se tem o hábito de medi-lo, quantificá-lo, seriá-lo, um tempo técnico e tecnizado que vamos nos deparar. É todo um outro tempo... De repente, graças à essência, mesma, do médium cinematográfico, e de seu brilhante realizador, somos mergulhados em um outro mundo, imersos no inconsciente. O relato preciso que David Lynch nos propõe, se articula, exatamente, da mesma maneira, segundo a mesma lógica narrativa, tecida da mesma matéria imajada e sonora que é a dos sonhos, com os seus procedimentos de condensação e deslocamento, suas superposições de espaços, (já que não há mais o tempo), seus desvios e seus contornos e suas inversões (porque o inconsciente tampouco conhece a negação). (2007, citado por Magalhães, 2008, p. 3)

Assim como os filmes, e principalmente os filmes surrealistas, o inconsciente é atemporal, propiciando num mesmo sonho imagens da infância, traumas adolescentes marcantes e questões vivenciadas no cotidiano do sonhador. No cinema, de acordo com Aumont e Marie (2003), há vários tipos de duração fílmica: o resumido - duração da narrativa inferior à duração da história -, a dilatação, sendo o inverso do tempo resumido, o tempo equivalente - em que o tempo de narrativa é praticamente igual ao da história -, e elipse - o tempo de narrativa é igual a zero e o da história indefinido. Dessa forma, pode-se dizer que essas temporalidades características da sintaxe cinematográfica muitas vezes se apoiam no tempo do inconsciente, no qual a duração absoluta não condiciona o valor e a significação para a subjetividade.

Quanto ao deslocamento, Freud (1900/2001) afirma que se dá quando o conteúdo do sonho não se assemelha mais ao núcleo dos pensamentos do sonho. Isso acontece por meio de uma transformação na trama de associações representacionais, produzindo uma distorção do pensamento latente na passagem para o conteúdo manifesto. A sensação de estranheza e de falta de sentido no sonho é, em grande parte, conseguida por meio desse mecanismo. No trabalho do sonho se faz presente uma força psíquica que retira os componentes com alto valor psíquico, ao mesmo tempo que cria, por meio da sobredeterminação e a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores que se manifestam no conteúdo do sonho. Pode-se dizer que o que ocorre é a transposição e o deslocamento de intensidades psíquicas no processo de formação onírica, resultando numa diferença entre a forma expressa efetivamente no sonho e os pensamentos e fantasias inconscientes que o produzem. Esse mecanismo assemelha-se à técnica cinematográfica de se utilizar cenas com conteúdos mais leves, com elementos mais positivos, para simbolizar algo de significado mais forte, pesado. Recurso esse muito usado para adequar a obra aos parâmetros do órgão de classificação etária de conteúdo midiático. O mecanismo de deslocamento se assemelha com a distribuição de cargas dramáticas e tensões entre personagens e, também, entre as cenas componentes do enredo.

Nesse ponto, podemos fazer um paralelo entre cena cinematográfica e sonho, na medida em que os mecanismos acima citados são utilizados também na cena cinematográfica, com suas superposições de espaços, seus desvios, seus contornos e inversões. Mas a aproximação é parcial, pois eles, no seu fim último, visam objetivos diferentes. Enquanto o sonho é uma expressão cujo determinante fundamental são as fantasias e desejos inconscientes de um único sujeito, o filme é determinado majoritariamente por intenções conscientes dos sujeitos nele envolvidos - atores, diretor, roteiristas etc. -, além de condições socioeconômicas mais amplas - demandas de mercado e exigências de produção - que condicionam a livre manifestação de seus determinantes inconscientes. No entanto, ainda assim, o produto final é uma obra, que configura uma experiência estética e organiza um campo de sentidos na forma de uma narrativa e de uma linguagem cinematográfica. Dessa forma, expressa dimensões inconscientes, tanto de sua própria articulação dos sentidos e fantasias veiculadas pela cultura quanto de eventuais fantasias dos autores (as) e atores (as).

Contudo, é importante salientar um ponto de divergência entre a formação onírica e a formação cinematográfica. A primeira não é feita com a intenção de ser entendida, ela busca escapar da censura imposta pela resistência, enquanto a segunda é feita intencionalmente, a partir do ponto de vista que o cineasta pretende utilizar para causar as emoções que deseja no público.

 

Experiência estética e identificação

A experiência estética do espectador, segundo Loureiro (2005), compreende um estado transitório do eu, em que há um contato "osmótico" entre interno e externo. O ego então se afeta emocionalmente e cognitivamente, alterando sua economia. Ainda segundo a autora, a imagem atua de maneira a seduzir e "distrair" a atenção do público, propiciando o afrouxamento das repressões. A partir da constituição desse estado transitório, a experiência estética torna-se cara à subjetividade. Morel, remetendo-se ao texto "A interpretação dos sonhos", de Freud, expõe que

[...] a imagem é rainha: nele [filme] vamos encontrar o plano fixo da fantasia colocada em movimento, lembranças encobridoras traduzidas em imagens, uma figuração crua do desejo, deformações devastadoras de censura, onipotência do que Freud denominou wunsch - anseio -, onipotência da criança em nós, as estranhas formulações do "não", uma lógica absurda represada, chistes colocados em rebus ou desenhos animados... a beleza fascinante das mulheres no coração do trágico revisitado (Édipo ou Hamlet), lutos antecipados, inclusive, melancolicamente desejados... (2007, citado por Magalhães, 2008, p. 87)

Defende-se aqui como esses conteúdos expressos na película são tão familiares a nós e, dessa forma, como a identificação pode ser um mote imprescindível para entender o caráter cinematográfico do psiquismo humano, ou seja, entender os sujeitos que, a partir de conjuntos de conteúdos inconscientes e mecanismos inerentes a esse lugar, produzem cenas singulares a respeito do seu mundo. Assistindo à película, o espectador pode ser entendido como uma dupla testemunha: ele é testemunha ocular do que acontece na imagem e do que acontece consigo mesmo, assim o sujeito assiste ao filme e, ao mesmo tempo, assiste conscientemente às imagens suscitadas em seu psiquismo. É uma vivência que invoca a receptividade do sujeito, engendrando a experiência do espectador em cada pensamento provocado.

Assistir a um filme, segundo França (2007), é estar sujeito à ocorrência de identificações com personagens, colocando-se no lugar daquele que aparece na tela e, desse modo, ainda no plano consciente, passando a assistir às suas aventuras como se fosse o protagonista. Desse lugar, o espectador pode angariar os aprendizados conquistados pela personagem da história. Essa posição traz uma maneira segura de experienciar de forma indireta os percalços e glórias de um outro. Através das identificações estabelecidas ao assistir a um filme, o espectador é capaz de uma espécie de interpolação, de introjetação das experiências das personagens com as quais se identifica (França, 2007). Essa vivência, bem como conhecimentos das experiências do outro gerados pela sétima arte, sugere um olhar para si próprio, revelando conteúdos internos ainda não percebidos.

O processo destacado pelo autor, mesmo que de modo muito automático e despercebido, acontece no plano consciente. Contudo, o que interessa a essa discussão é a identificação inconsciente propiciada pela experiência cinematográfica. A imagem em movimento, de acordo com Maranhão (2001), possibilita que o espectador se projete para realidades vindas de outra cena, aquela pertencente ao inconsciente, identificando-se ao que no primeiro momento parece ser de um outro lugar, mas que surge como "estranhamente" familiar. Assim, torna-se relevante apresentar alguns aspectos básicos do mecanismo identificatório a partir da visão freudiana.

Esse ponto que compõe a vivência da arte, em especial da sétima, pode ser entendido como processo psíquico por meio do qual os atributos do outro são apreendidos. Tais atributos podem modificar-se total ou parcialmente de acordo com o modelo introjetado. O mecanismo identificatório é importante na constituição da subjetividade à medida que o eu se constitui mediante as identificações engendradas pelo indivíduo ao longo da vida (Pedrossian, 2005). Laplanche e Pontalis também definem o mecanismo de identificação, elaborado por Freud, como um processo psicológico pelo qual "um indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desta pessoa. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações" (1971/1998, p. 295).

Para Freud, o conceito de identificação atesta a impossibilidade de conceber a subjetividade desvinculada de uma concepção de psicologia coletiva e de um laço social. Em "Psicologia das massas e análise do ego" (1921/1976), destacam-se os motivos que levam os indivíduos a se combinarem organicamente em uma unidade grupal, o que também será abordado por Freud em outras obras, tais como "O mal-estar da civilização" (Freud, 1930/1990), "Totem e tabu" (1913/1990) e "O futuro de uma ilusão" (Freud 1927/1990). Ao defender a continuidade entre psicologia do indivíduo e psicologia social, Freud fala da regularidade com que o outro se apresenta na vida psíquica, desde muito cedo, como objeto amoroso, como modelo, rival etc., e isso graças à identificação, pensada a partir de 1921 como o modo mais precoce de ligação afetiva e sendo estruturante para o sujeito, pois é um mecanismo que altera o próprio ego: "a identificação é a forma mais originária de ligação afetiva com um objeto; em segundo lugar, passa a substituir uma ligação libidinosa de objeto pela via regressiva, mediante introjeção do objeto no ego, por assim dizer" (Freud, 1921/1976, p. 101). Não se pode esquecer que, em "O ego e o id" (1923/1990), Freud também aponta que o caráter e o superego nascem da sedimentação das primeiras identificações com as figuras parentais, sobretudo no desfecho do complexo de Édipo. Sendo assim, a identificação vem ao encontro da sugestão de Loureiro (2005) sobre o estado transitório do eu diante da cena cinematográfica. O valor regressivo da identificação permite que o espectador transite pelo papel do protagonista e de outras personagens, mas retorne ao seu lugar sem deixar de ser ele mesmo, diferente de estados delirantes em que o senso de realidade do eu é temporariamente suspenso, a angústia domina a fruição prazerosa e o sujeito tem uma identificação totalitária com a cena.

O conceito de identificação ganha, então, evidência como categoria central de análise dos processos grupais, na medida em que Freud (1921/1976) vai sugerir que a libido e a identificação são responsáveis pelo que produz o enlace na massa. A identificação, portanto, nos parece fundamental para pensar a experiência de fruição estética do espectador do filme.

Freud refere-se a autores que sugeriram que esse processo psíquico ocorreria através da "sugestionabilidade"; contudo, ele acredita haver lacunas teóricas que deveriam ser preenchidas, descartando o fenômeno da sugestão como uma possível resposta: "era necessário protestar contra a opinião de que a própria sugestão, que explicava tudo, era isenta de explicação" (Freud, 1921/1976, p. 114).

Ressalta-se que, pautando-se na psicologia coletiva desenvolvida por Freud, pode-se falar de um modo de identificação em que o sujeito tece relações entre seus próprios objetos com os objetos de outro sujeito, ou de um grupo de sujeitos. Esse mecanismo é engendrado por imitação e contágio, apartado do laço libidinal direto (Bergeret, 2006).

É interessante destacar que os modelos ideais submetidos aos processos de identificação correspondem às necessidades e às aspirações do sujeito. Fica evidente que tais mecanismos estão ligados diretamente aos ideais do eu, aquele que desejo ser. "Po-demos apenas ver que a identificação esforça-se para moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto dele que foi tomado como modelo" (Freud, 1921/1976, p. 134).

Assim, retornando à sétima arte, os filmes são lugares fecundos de exposição de sujeitos que extrapolam a normalidade, possuindo características que despertam necessidades e aspirações do espectador. Nas crianças, que já passaram pela identificação primária, no sentido de um descolamento do par parental e, dessa forma, da constituição da identidade narcisista basal, percebe-se como algumas personagens provocam tanta inspiração.

Trejeitos, vestimentas, comportamentos são assimilados pelas crianças por meio das identificações secundárias. Nos sujeitos adultos, tais identificações também acontecem suscitando efeitos subjetivos sobre as pessoas, que se veem identificadas e mobilizadas.

A identificação é assumida como condição para a experiência estética, uma forma de matriz para a fruição das expressões artísticas, mas que ela não se fecha nisso, pois não se trata de uma simples colagem ou espelhamento dos sujeitos nas imagens projetadas pelos protagonistas dos filmes. Defende-se uma vivência muito mais complexa, em que as identificações se constituem como traços, em diversos níveis e em diversos elementos do filme, não se limitando a uma trama simples de sentidos e efeitos. É nesse sentido que o cinema representa um instrumento privilegiado de vazão dos desejos e vontades dos sujeitos de uma sociedade. Ele é soberano em capturar o desejo e, mediante o olhar, usar a cena cinematográfica como substituto desse desejo. A sétima arte utiliza jogos de identificação que regulam nosso psiquismo, nosso inconsciente (Bartucci, 2000). Para isso, a identificação é decisiva na medida em que transforma a experiência de assistir a um filme em algo parecido com olhar a própria imagem reflexa em espelhos. Sampaio (2000), indo ao encontro dessa problematização, propõe que não apenas o cinema é um espelho da alma humana, mas também que esta constitui-se um espelho do cinema:

É nesse campo de reciprocidades e transformações produzido entre a alma humana e aquilo que se produziu como uma espécie da alma no cinema, que é possível considerar que, se o cinema foi construído à imagem do nosso psiquismo, é preciso deduzir disso as suas consequências: nosso psiquismo passa a ser construído à imagem do cinema. (Sampaio, citado por Bartucci, 2000, p. 61)

Esse processo psíquico permite que a vivência na sala de cinema possa ser impetuosa, arrebatadora, seja causando desconforto ou propiciando agradáveis sensações. O cinema alcançou uma inserção tamanha no corpo social que pôde propiciar uma interação com as subjetividades como nenhuma outra arte conseguiu na atualidade.

 

Considerações finais

Há mais de uma forma para se conceber o homem como um ser cinematográfico. A primeira delas é sustentada por Rivera (2008), expondo que o homem, mais que cinematográfico, pode ser especular, porque só consegue compreender a realidade a partir do enquadramento dado pela sua fantasia. O exterior não seria realidade, mas sim ficção. Segundo a autora, a realidade só se sustenta pela fantasia, esta teria o poder de enquadrar o real, limitando-o, dando-lhe bordas. Dessa forma, psicanálise e elementos cinematográficos possuem relação estreita. No processo analítico, segundo Rivera (2008), o analisando trabalha um jogo de cenas e imagens relacionadas que não são necessariamente lembranças, mas sim fantasias. Assim, a ação psicanalítica se apresenta como uma obra de desvelar a história e o sentido oculto das fantasias inconscientes dos pacientes que se estruturam como um enredo de uma cena imagética. O setting analítico seria entendido, então, como um campo transferencial, onde ocorre o enquadre das fantasias e o jogo de identificações, assim como a sala de cinema. Imagens e conteúdos revelados nesses contextos possibilitam traçar um caminho mais curto para o inconsciente.

Análogo ao cinema, não importa se as imagens e cenas relatadas pelo analisando são lembranças ou fantasias, pois o que se mostra relevante é que as imagens marcam, perturbam, atraem ou afastam o cliente. Ainda de acordo com Rivera (2008), sempre existe uma "outra cena", que é "apresentada" pelo sintoma, contudo o foco de observação do analista encontra-se nessa "outra cena" que não se pode assistir.

Por fim, a outra forma de conceber o ser humano como um ser cinematográfico refere-se aos mecanismos de construção do sonho propostos pela psicanálise. Conceitos psicanalíticos, tais como figurabilidade, condensação, deslocamento, pensamentos oníricos, podem, guardadas as devidas proporções, aproximar-se dos cortes, flashbacks, enquadramentos, planos, montagem, fade-in, fade-out, fusão, sequências, entre outros.

Dessa forma, acreditamos que a compreensão da ligação cine-ma-sonho nos deixe mais próximos de entender por que existem filmes que nos acalmam, outros que nos despertam e ainda aqueles que, assim como diz Rivera (2008), nos olham e nos interrogam. É a forma como o inconsciente do outro se manifesta no filme e entra em contato com o nosso próprio inconsciente através da linguagem de imagens, sendo absorvido por ele e realocado, seja por meio da identificação ou do reconhecimento, que faz com que os filmes nos toquem de tantas formas diferentes para cada indivíduo. E é por isso que alguns nos tocam mais profundamente, eles mobilizam nossas representações que se modificam conforme as dinâmicas do psiquismo, mudando a economia psíquica. É como se ambos os inconscientes - relativo ao filme e relativo ao indivíduo que o assiste - entrassem em contato.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido 04.05.2017
Aceito 28.05.2017

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