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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dez. 2018

 

EDITORIAL

 

Easy rider: sem destino

 

 

João A. Frayze-Pereira

Editor da Ide: psicanálise e cultura

 

 

Ao pensarmos no tema para a Ide 66, fomos remetidos, por livre associação, ao seriado televisivo Route 66 (ide: vá em frente, siga seu caminho...). Em seguida, lembramos do campo cultural relacionado a ele, desde o livro de Jack Kerouac, On the road, escrito nos anos 1950, até o filme Easy rider, um road movie norte-americano de 1969, escrito e realizado por Peter Fonda, Dennis Hopper e Terry Southern, assim como outros que o sucederam, inclusive o recente Pé na estrada, uma produção de Francis Ford Coppola da década de 1990, que se concretizou em 2012, dirigido pelo brasileiro Walter Salles. Enfim, nesse trajeto, nota-se que o grito libertário de Kerouac se faz ouvir até hoje... E, com efeito, nesse campo cultural que envolve os riscos e as tensões do mundo pós-guerra, entre as décadas de 1950 e 1970, sobretudo nos Estados Unidos - com a Guerra do Vietnã, a ascensão e a queda dos movimentos beat e hippie, a criação de novas formas estéticas e manifestações artísticas, especialmente na música e na moda, a livre expressão da sexualidade e o uso de drogas, o estilo de vida comunal e o existencialismo filosófico, entre outras tendências que fizeram parte de um movimento maior, denominado "contracultura" -, as ideias de "liberdade" e de "destino" se impõem como questões a serem elaboradas.

Por um lado, do ponto de vista teórico-conceitual, essas questões são tratadas de modos diversos, desde os antigos gregos, antes mesmo do advento da filosofia, no campo formado pelas tragédias. E, posteriormente, antes da invenção da psicanálise, com espaço garantido na reflexão de filósofos e escritores, tais questões continuaram a ser tematizadas. No entanto pode-se reconhecer que, após Freud, há vários pensadores que as elaboraram de uma tal maneira que o diálogo com os psicanalistas não pode ser evitado, tornando-se muito profícuo.

Por outro lado, fica a pergunta: como nós, psicanalistas, poderíamos pensar o ser humano livre, descomprometidos com a filosofia, a literatura e a cultura? E, mais ainda, alheios ao pensamento crítico, ensimesmados com suas doutrinas teórico-clínicas que supostamente lhes forneceriam modelos predefinidos para conhecer, até que ponto os psicanalistas não estariam condenados à não-liberdade e à eterna repetição do mesmo? Ou, dito de outro modo, até que ponto seria possível para nós, psicanalistas, o livre exercício da psicanálise no sentido de uma arriscada aproximação ao que não é nós, isto é, o desconhecido, na condição easy rider, sem a escuta dos sons ao redor, ainda que não pensados (Bollas, 1992), num sentido amplo?

Entendendo essas perguntas apenas como provocações para uma reflexão mais aprofundada, reunimos neste volume 66 um conjunto de escritos, assinados por autores diversos, com passagens pela filosofia, literatura, artes e ciências humanas, com o propósito deliberado de atravessar certos marcos culturais da contracultura, contextualizando o movimento que deu origem a um modo de ser instituído no pós-Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, com essa reflexão pretendemos sinalizar que o "pé na estrada" nos tempos contemporâneos, era dos migrantes ou refugiados ou exilados, como têm sido chamados, ganhou o sentido de um mal-estar, nada romântico, extremamente cruel, que demanda um diálogo necessário com a psicanálise. Nesses trabalhos, os temas da liberdade, do destino, das relações entre eles ou, ainda, do sem destino como abertura ao desconhecido são elaborados. E lembremos que a mediação pela filosofia e pela cultura não deve nos levar a ignorar que o modo de pensar psicanalítico se ancora na clínica, sem a qual ele perde a sua especificidade, a sua razão de ser. Entretanto em que medida seria possível o encontro entre a perspectiva crítica, de raiz filosófica e cultural, e a perspectiva psicanalítica, baseada essencialmente na clínica?

Esperamos que os leitores apreciem mais este resultado do compromisso que assumimos desde o instante em que fomos convidados a editar a Ide. Entendemos tal compromisso no sentido da integração de contribuições muito diferentes, como se pode ver neste volume, com um único propósito: procurar definir com eles um poliedro de inteligibilidade (Deleuze, 1988) que, de nosso ponto de vista, deve definir o campo multifacetado de uma revista destinada criticamente a tratar das possíveis articulações entre a psicanálise e a cultura, o que tem exigido de nós um trabalho de reflexão e articulação conceitual. Nesse sentido, segue uma palavra de agradecimento à colaboração da comissão editorial, em particular à Lila Schwartz, que foi a Los Angeles e fotografou trechos da Rota 66, trazendo lindas imagens, algumas das quais selecionamos para serem impressas neste volume da Ide, inclusive a que reproduzimos na capa, com a autorização do autor, o fotógrafo Ian Bowen, a quem também agradecemos.

 

REFERÊNCIAS

Bollas, C. (1992). A sombra do objeto. Psicanálise do conhecido não-pensado. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Deleuze, G. (1988). Foucault. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

 

 

Comissão editorial: João A. Frayze-Pereira (editor), Eliane Saslavsky Muszkat, Lecy Cabral, Leda Barone, Lila Schwartz, Maria da Penha Lanzoni, Marilsa Taffarel, Regina Rahmi e Rodrigo Lage Leite

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