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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dez. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

São João da Cruz: a liberdade do vazio1

 

St. John of the Cross: the freedom of the emptiness

 

 

Helena Haenni Zimerman

Psicanalista, mestre em psicologia clínica e doutora em ciência da religião pela PUC-SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho visa articular psicanálise e mística a partir da biografia de João de Yepes (1542-1591). São apresentados alguns elementos do campo místico e do contexto histórico específico do protagonista que, em diálogo com a psicanálise, configuram o campo no qual ele pode ver reconhecida sua identidade.

Palavras-chave: Psicanálise. Identidade. Mística. Liberdade.


SUMMARY

The present work aims at articulating psychoanalysis and mysticism, based on the biography of João de Yepes (1542-1591). Some elements of the mystical field and the specific historical context of the protagonist are presented which, in dialogue with psychoanalysis, constitute the field in which he can see his identity recognized.

Keywords: Psychoanalysis. Identity. Mystical. Freedom.


 

 

A expressão da mística cristã trouxe, em seu auge no século XVI, a experiência como eixo norteador para o conhecimento de Deus. Aspectos meramente contemplativos e especulativos cedem lugar à busca por uma vivência mística que se entregue de corpo e alma à identificação com a vida, paixão e morte de Cristo. Por detrás dessa empreitada há fatores históricos que contribuíram para o seu incremento, no entanto a questão de fundo, e, talvez, mais significativa, refere-se à constatação do destino comum a todo ser humano: sua insondável finitude. Atualizada, ao longo dos séculos, conforme as vestes de seu tempo, a morte sempre assombra o homem, que se entretém em criar novos modos de lidar com ela.

Na mística, uma instigante forma de tratar o tema da morte foi colocá-la em seu horizonte de modo absolutamente consistente, cujo maior simbolismo revela-se pela cruz, uma vez que é necessário "adentrar-se na espessura da cruz" para poder gozar da "espessura da ressureição" da vida cristã (Herráiz, 2000, p. 355). O imaginário cristão se constituiu a partir da identificação com Cristo, engendrando a possibilidade de um destino outro para o homem. Nesse sentido, só a busca por Deus sustenta a esperança diante do inevitável, como bem expressou São João da Cruz:

Se me deleito, Senhor,
Com a esperança de ver-te,
Vendo que posso perder-te
Redobra-se em mim a dor;
Vivendo em tanto temor
E esperando como espero,
Morro sim, porque não morro.
(1988, p. 41)

Partindo de uma perspectiva diversa, Freud fez uma interessante observação em relação à influência duradoura da religião cristã sobre a humanidade ao longo dos séculos. Justamente pelo fato da possibilidade de identificação com Cristo proposta pela lógica da encarnação, em que Cristo se fazendo homem permitiu a divinização do homem. Segundo Freud, "a fé na sua natureza divina inclui também a fé na ideia de que por meio de uma passividade extrema podem se realizar os sonhos de atividade mais audaciosos" (1931/ 2017, p. 81). Em outros termos, submeter-se aos caprichos do Outro é vencer a morte e alcançar, ao mesmo tempo, uma participação em um gozo infinito.

 

O berço

Em uma cidade à margem dos acontecimentos rumorosos da Espanha do século xvi, em 1542, nasceu o terceiro filho de uma família pobre. Cresceu misturado aos rostos magros e aos corpos frágeis de outros meninos que brincavam pelas calles de Fontiveros - ele não chamava a atenção. João de Yepes, nascido envolto pelo contexto da pobreza e pelas perdas familiares, transfigurou o prenúncio de um destino nefasto em obra de arte, alçando voo a uma vida adornada pela literatura mística e poética.

Sua jornada vindoura teve início aos 10 anos, no Colégio da Doutrina, instituição religiosa que acolhia crianças órfãs e pobres da região para inserção nas primeiras letras e na doutrina cristã. No mesmo período, João de Yepes exerceu pequenos trabalhos no Hospital da Conceição, como mensageiro, executor de pequenos trabalhos manuais, além de dar assistência aos doentes. Aos 17 anos, começou a frequentar o Colégio Jesuíta, onde estudou latim, retórica e humanidades. Aos 21 anos, decidiu-se pela vida religiosa e ingressou no convento carmelitano de Santa Ana, em Medina do Campo, adotando o nome de João de São Matias, e, em 1564, com 22 anos, professou na ordem carmelita.

O contexto da época era favorável à escolha pela vida religiosa: havia uma forte expansão das ordens, especialmente as mendicantes que perambulavam em diversas regiões, a fim de atender as populações locais. Saúde, educação e espiritualidade convergiam para o polo privilegiado das ordens religiosas, em suas diversas modalidades de assistência. A Espanha, como reino recém unificado em 1493, pelas mãos da rainha Isabel de Castela e do rei Fernando II de Aragão, estabeleceu o catolicismo como religião oficial do Estado monárquico.

Para Fernando II e, destacadamente, Isabel de Castela, a defesa e a divulgação da fé católica tornaram-se uma questão de Estado: ser católico passou a estar diretamente vinculado à identidade espanhola. No século seguinte, com a economia em dificuldades e a ascensão do protestantismo por toda Europa, o momento áureo da Espanha, na época dos Reis Católicos, perderá força. Entretanto o catolicismo e sua expansão por todo o território espanhol já estariam plenamente consolidados.2

Ao mesmo tempo, o declínio das organizações religiosas, refletido nas denúncias de abusos de poder, prevaricações e desvirtuamento da vida religiosa contribuiu para o agravamento da situação. O "Outono da Idade Média", no século xv, foi o terreno fértil para o clamor por reformas, a partir de dentro da própria Igreja e das ordens religiosas, culminando com a reforma protestante, que emergiu no século XVI.

Não obstante todo esse contexto externo, a inquietação de João de São Matias se revelaria ainda mais intensa e voltada para a busca de um trabalho interior. Ele queria uma vida austera e mais contemplativa nesse sentido, preparou-se para ir à ordem dos cartuxos. Porém Santa Teresa (1515-1582) cruzou seu caminho e, imbuída de um ideal de reforma do Carmelo, em consonância com seu tempo e anseio pessoal, persuadiu João de São Matias a acompanhá-la em seu intento.

Ele participou, intensamente, como companheiro da santa na fundação e expansão da ordem carmelita descalça, sendo o primeiro religioso no ramo masculino, assumindo o nome João da Cruz. Desvinculou-se, assim, da antiga ordem carmelita para abraçar o projeto de um segmento reformado da mesma ordem e idealizado pela santa, com o intuito do retorno à regra primitiva, mais austera e recolhida.

 

O despojamento

Ao longo da vida, São João da Cruz teve três sobrenomes diferentes: João de Yepes, João de São Matias e, finalmente, João da Cruz. Seu nome de batismo foi inspirado na figura de João Batista, santo de devoção de seus pais, aquele que "preparou os caminhos do Senhor", segundo a tradição bíblica. Yepes, sobrenome oriundo da linhagem paterna, em referência à cidade natal de seu pai, seria substituído por "São Matias" ao ingressar na ordem carmelita. O sobrenome religioso adotado por João de Yepes refere-se ao apóstolo Matias, que, segundo o texto bíblico Atos dos apóstolos, teria sido escolhido após um sorteio entre dois, ele e Barsabás, para substituir Judas Iscariotes, o traidor, no colégio apostólico. Por fim, "da Cruz" foi o terceiro e último sobrenome escolhido por ele ao professar como o primeiro carmelita descalço.

O sobrenome "da Cruz" elegido por João foi totalmente coerente com o estilo de vida almejado e praticado por ele. O santo dedicou-se a imitar a vida de Cristo e a enfrentar a aspereza corporal e os tropeços espirituais, segundo a lógica inspirada no simbolismo da cruz. João da Cruz foi a nomeação escolhida pelo santo que traduz a intensidade do espírito místico no auge de sua expressividade experiencial, ou seja, na crença da plena identificação com a vida, paixão e morte de Cristo. O simbolismo da cruz não é, simplesmente, um deleite com o sofrimento; antes, dá vida à luta contra a condição inexorável do homem frente a sua finitude. Como indicou Brovetto, precisamente, "a união com a cruz [...] é a resposta adequada, na fé, à exigência de resgatar do nonsense a existência humana, por mais falida e frustrada que possa estar" (2003, p. 294). E completa:

A relativização da história contingente é necessária justamente para manter a profundidade da perspectiva. [...] Cruz e utopia concreta são compatíveis, ou melhor, constituem uma coisa só, contra qualquer utopia indolor, puramente platônica, e contra a ilusão de acelerar a conclusão da história por meio da violência. (2003, p. 294)

Como bem definiu Orozco Diaz (1994), ao citar Jacques Maritain, na manifestação do estilo barroco, a obra de arte impele a alma do artista, em sua plenitude de adorações e de paixões, carregada com toda intencionalidade de ordem humana, moral e religiosa que ela possa perseguir. Assim como a vida humana pode ser tomada como uma obra de arte, a força da arte transformou-se em um eficiente instrumento para intensificação da expressão do viver e da existência humana, atingindo seu cume, particularmente na Espanha, agitada por eventos recentes: a contrarreforma e a consolidação de uma identidade nacional pela via da fé católica.

O estilo da escrita de Quiroga refletia o espírito da época e da região: o desejo de expressão humana, por meio da manifestação barroca no campo das artes em geral e, fundamentalmente, no sentimento religioso erigido pela contrarreforma. O autor, ao biografar a vida de São João da Cruz, privilegiou os aspectos fabulosos de sua jornada, carregada de eventos milagrosos e momentos tormentosos, mas não menos virtuosos, realçando o caráter místico e santo do personagem. Quiroga buscou embelezar os elementos cotidianos da vida do religioso, emoldurando uma perspectiva fabulosa. As hagiografias barrocas, em particular, funcionaram como catalisadores para a constituição de uma identidade nacional.

É notório o papel da Espanha, em particular, na figura de seus místicos, ao incrementar e consolidar o sentimento religioso e os ideais da contrarreforma, influenciando de modo decisivo toda Europa, em particular, com sua literatura mística (Diaz, 1994). Werner Weisbach, em sua obra O barroco: arte da contrarreforma, assim descreveu a importância da mística católica, em particular na figura representativa de Santa Teresa e de São João da Cruz, como elemento que contribuiu para aprofundar e sensibilizar a devoção católica, naquele momento histórico:

A mística constituiu, certamente, sempre uma parte essencial do catolicismo; mas, em determinadas épocas seu influxo chegou à superfície da cultura com especial força [...] desde a segunda metade do século XVI, a Humanidade se vê invadida por uma onda de fé e sentimento místico, alcançando quase todas as classes sociais. A Espanha doou ao mundo Santa Teresa, a que foi chamada "da santa maior da Igreja católica, bem como, a maior mística da história da religião". Ela agrupou em seu entorno um círculo de temperamentos místicos, dentre eles, o que correspondeu a um lugar privilegiado, São João da Cruz. Esses místicos contribuíram consciente ou inconscientemente para dar ao movimento religioso da contrarreforma uma definida e energética direção. (Weisbach, 1948, p. 69)

Nos séculos xvi-xviii, a experiência espiritual dos místicos era interpretada em torno do simbolismo da cruz. A fé exigia o total despojamento interior, a vivência do "nada", ou seja, o esvaziamento da vontade própria em direção ao conhecimento divino. Tudo isso foi tematizado de modo singular por diferentes místicos (Brovetto, 2003, p. 294). São João da Cruz elevou ao cimo tal proposição em sua doutrina, como neste trecho de seu escrito gráfico-literário, Monte de perfeição:

Para vir a saborear TUDO - não queiras ter gosto em NADA

Para vir a saber TUDO - não queiras saber algo em NADA

Para vir a possuir TUDO - não queiras possuir algo em NADA

[...]

E quando venhas de todo a ter - hás de tê-lo sem nada querer.

Nesta desnudez encontra o espírito o seu descanso, pois nada cobiçando, nada o impele para cima e nada o oprime para baixo, porque está no centro de sua humildade. (São João da Cruz, 1935/ 1988, pp. 84-87)

 

O gozo

É possível destacar dois aspectos presentes na experiência mística, citados anteriormente e que se projetam nas formulações de Freud sobre a relação do homem com a angústia: a relativização da história contingente e a luta contra a resolução dessa mesma história por meio da violência.

Segundo Freud, a angústia de castração no menino lhe impõe a luta contra os dois dilemas que compõem o mito edipiano: "ele quer matar o pai e, ao mesmo tempo, quer se submeter incondicionalmente a ele, mesmo por meio do sacrifício da castração e da sua transformação em mulher" (2017, p. 57). Do mesmo modo, ele deseja a mãe, mas se depara com a constatação nela de uma castração indesejada. Tal contexto impele a criança a trilhar alguma saída; entre elas, Freud destacou a identificação ao pai, capaz de apaziguar suas moções de ternura e hostilidade ao mesmo tempo. Ao se identificar com o pai, a criança dá expressão ao seu amor, mas também o elimina sob forma de incorporação, recorrendo a uma versão desse pai que lhe seja propícia, ou seja, um pai cujo poder e prerrogativas são aumentados. Trata-se de uma representação engendrada de um ideal de onipotência, onisciência e bondade, tal como vislumbrado na primeira infância, fundando, assim, a instância psíquica do Supereu. Esta assumirá, por sua vez, duas funções vinculadas: uma positiva e dominadora que expressa os anseios conscientes e inconscientes do sujeito e exerceria maior influência em sua vida psíquica; outra negativa e proibidora, dinamizada pela consciência moral (Freud, 2017).

Interessa aqui destacar o paralelo que Freud fez com o surgimento do cristianismo e a consequente consistência do substrato cultural que forneceu para o incremento no Supereu. Conforme Freud formulou:

Cristo é justamente a conciliação mais perfeita da masculinidade e feminilidade. A fé na natureza divina inclui também a fé na ideia que por meio de uma passividade extrema podem se realizar os sonhos de atividades mais audaciosos; ou seja, que ao se submeter sem reservas ao pai se possa superá-lo e, dessa forma, tornar-se a si próprio Deus. Esse mecanismo de conciliação das duas correntes opostas [...] é algo tão satisfatório que garante à religião cristã uma longa existência. (Freud, 2017, p. 81)

Freud ainda afirmou que as exigências do Supereu podem ser tão grandiosas que incessantemente demandam do eu o impossível e concluiu: "um Supereu assim costuma criar alguns grandes homens, muitos psicóticos e muitos neuróticos" (2017, p. 63). Freud postulou o Supereu como estreitamente vinculado ao inconsciente, uma vez que não se restringe em sua função, como dito anteriormente, à censura moral, mas reage a ela na tentativa de uma subversão dos limites que ela impõe. O anseio pelo impossível está no horizonte do sujeito.

Lacan retomará as formulações de Freud para elaborar a concepção de gozo como o desejo de recuperação do objeto perdido para sempre, a mãe, ou, nos termos por ele formulado, das Ding: o objeto de satisfação impossível por excelência, uma vez que este é fundado pela interdição, tornando-se o lugar irrepresentável e insubstituível. Ele diz:

O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente com o das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem. É na medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial, esse móvel, essa relação que se chama a lei de interdição do incesto. (Lacan, 1991/ 2008, p. 85)

O Supereu como instância representativa da lei foi relativizado por Lacan ao afirmar que, embora sirva de apoio à consciência moral, o Supereu, em suas exigências, leva o sujeito a confrontação com sua satisfação e sua produção de gozo.

No dilema exposto por Freud, uma das saídas encontradas é, como dito antes, a identificação com o pai, no entanto, sua agressividade contra ele permanecerá como uma cota oculta de libido latente e pronta a vir à tona: "por toda vida, o Supereu vai advertir, reprovar, reprimir e tentar represar e desviar das suas metas todas as moções de desejo" (Freud, 2017, p. 63). Lacan recapitulou o paradoxo entre o desejo e a lei presente no Supereu e destacado por Freud, cujo resultado é uma parceria dessa instância mais ao lado do gozo do que da lei. Ele diz:

E o que me é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o de meu gozo, do que não me ouso aproximar? Pois assim que me aproximo [...] surge essa insondável agressividade diante da qual eu recuo, que retorno contra mim, e que vem, no lugar mesmo da Lei esvanecida, dar seu peso ao que me impele de transpor uma certa fronteira no limite da Coisa. (Lacan, 1991/ 2008, p. 223)

Segundo Freud, o dilema humano diante da angústia e dos limites impostos por sua satisfação parcial, sexuada e, em última instância, por sua finitude, encontra na proposta cristã uma conciliação possível. A identificação com Deus, pela imitação da vida, paixão e morte de Cristo na cruz, ainda que ilusória, possibilita apaziguar o conflito. A retomada de Lacan sobre o conflito entre o desejo e a lei considerou o mito edipiano como uma das interpretações possíveis para algo que subjaz no cerne da questão: o gozo engendrado a partir do estabelecimento da lei. Nesse sentido, pode-se entender o gozo como a instauração da lei do interdito, ou seja, a linguagem propriamente dita, contendo todo o repertório que o sujeito pode utilizar no combate contra a angústia.

Em relação à mística, pode-se localizar duas modalidades de gozo que se tangenciam: de um lado, o da total submissão ao gozo do pai e passivamente submisso ao seu mandamento, por meio de um esvaziamento de si mesmo; e, de outro, o gozo que emerge na perspectiva de se conformar com o pai, identificando-se com ele e, mesmo, ultrapassando-o. A lógica instaurada permite que, quanto mais uma modalidade é incrementada, mais alimenta seu oposto, ou seja, esvaziar-se de si mesmo é se conformar com a inefabilidade divina que nenhuma palavra ou sentido alcança.

 

O inefável

A experiência mística permitiu um modo de se expressar característico. No século xvi, em particular, tal expressividade alcançou seu apogeu nas figuras de Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, influenciando toda literatura posterior a respeito. A temática do "silêncio", herança de clássicos antigos como PseudoDionísio Aeropagita,3 foi uma das influências presentes na poética de São João da Cruz, auxiliando na construção do esvaziamento de si mesmo, em busca do conhecimento de Deus, pela via do método apofático.4 Em seu escrito Teologia mística, Dionísio diz: "ao nos aproximarmos dos cumes, nossas palavras tornam-se raras e inúteis, nos tornamos silenciosos. Respirando o ar de indizíveis alturas"; mais adiante, ele afirma: "a Origem de tudo aquilo que é, vive e respira está além de Tudo. Ela não é, nem essência, nem existência, nem vida, nem razão, nem inteligência" (Dionísio citado por Leloup, 2014, pp. 23-24). São João da Cruz, por sua vez, cita em seu opúsculo intitulado "Monte Carmelo": "para chegar a saborear o todo não queiras sentir o sabor em nada, para chegar a sabê-lo todo não queiras saber algo em nada [...] nesta desnudez acha o espírito seu descanso, porque não cobiçando nada, nada o fatiga para cima" (1993, pp. 119-121). Entretanto a expressividade mística, ou seu modo de falar sobre a experiência, porta em si a oscilação entre o não senso, ou a recusa de um discurso retórico e perfeitamente métrico que possibilite expressar a experiência e, paradoxalmente, a afirmação teologal de que a palavra não pode faltar. Nesse sentido, o falar místico é tradutor de uma língua que lhe é estranha e lhe advém do Outro mas, ao mesmo tempo, tornada íntima. Trata-se de um exercício de "falar de Deus" (Certeau, 2006).

A linguagem mística recusa um mundo expresso pela pura racionalidade e objetividade, que prescinde do mistério insondável da existência e finitude humana. Ela convoca o sujeito para a experiência interior, agitando sua alma em busca da possibilidade de transcender um destino, aparentemente, dado. O amor, tema caro aos místicos, apresenta-se como um termo aberto a mais de um sentido e, ao mesmo tempo, capaz de emoldurar o vazio que desvela e sustenta a empreitada mística, tão bem expressa no poema Chama viva de amor, de São João da Cruz:

Oh! Chama de amor viva
Que ternamente feres
De minha alma no mais profundo centro!
Pois não és mais esquiva,
Acaba já, se queres,
Ah! rompe a tela deste doce encontro.

Oh! cautério suave!
Oh! regalada chaga!
Oh! branda mão! Oh! toque delicado
Que a vida eterna sabe,
E paga toda dívida!
Matando a morte em vida me hás trocado

Oh! lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido
- Que estava escuro e cego -
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto ao seu Querido!

Oh! quão manso e amoroso
Despertas em meu seio
Onde tu só secretamente moras:
Nesse aspirar gostoso,
De bens e glória cheio,
Quão delicadamente me enamoras!
(1935/ 1988, pp. 37-38)

Nessa poesia, última a ser escrita, entre suas obras mais significativas, São João da Cruz expressou o mais alto grau que uma alma pode alcançar na busca pela união mística. O inefável transborda de modo apaixonado, ou, nas palavras do místico:

em tal aspiração, cheia de bens e glória, e de delicado amor de Deus para a alma, não quisera eu falar, nem mesmo o desejo porque vejo claro que não tenho termos com que o saiba exprimir, e pareceria que os tenho se dissesse. (1935/ 1988, p. 930)

São João da Cruz diz que, sobre o amor, sempre resta algo a dizer, deixando uma vereda infinitamente aberta para a possibilidade do derradeiro encontro. O amor seria, com toda licença poética que podemos emprestar do místico e, presente em seus versos, um outro nome para a identificação com Deus, em última instância, o esvaziamento de si mesmo em direção ao inefável. Um esforço de liberdade, por fim, capaz de engendrar um sentido novo para seu destino.

 

Considerações finais

O percurso escolhido por São João da Cruz demonstrou um anseio que transpôs os umbrais da reforma religiosa em si, desvelando, antes, uma proposição de reforma interior, tão cara aos místicos, com uma estética peculiar e refletida em sua escrita e suas consequentes repercussões na literatura espanhola. É possível inferir que o místico tenha exercido ao máximo sua busca por uma identidade satisfatória, capaz de situá-lo no mundo.

As contingências de seu nascimento, dos eventos conflituosos dentro da ordem carmelita e das perseguições sofridas não arrefeceram seu ímpeto místico - ao contrário, estimularam o despojamento cada vez mais intenso de suas antigas identidades (Yepes e São Matias), sua busca pelo silêncio e a escolha por um significante que ancorasse uma abertura ao transcendente, ou seja, "João da Cruz". Instaurou-se, assim, uma força motriz capaz de dar uma potência criadora para suas ações; como afirmou Freud,

a conciliação, como que por milagre, de dois desejos extremamente potentes e antagônicos por meio da satisfação de ambos [...] ser totalmente submisso ao pai [...] ao se entregar a mais completa feminilidade, alcançando a meta mais extrema da masculinidade" (2017, p. 79)

Em outros termos, o simbolismo da cruz no cristianismo e adotado por São João da Cruz serviu de suporte simbólico ou, nos termos de Lacan, significante privilegiado para a possibilidade de relativização do contingente, a estruturação de uma utopia concreta, pela via da experiência amorosa e sua consequente abertura para um destino inédito.

 

REFERÊNCIAS

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Tremlett, G. (2018). Isabel de Castela: a primeira grande rainha da Europa. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Weisbach, W. (1948). O barroco: a arte da contrarreforma. Madri: Espalda.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
HELENA HAENNI ZIMERMAN
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Anália Franco 03337-010 – São Paulo-SP
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01333-020 – São Paulo-SP
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Recebido 12.06.2018
Aceito 29.06.2018

 

 

1 Este artigo é inspirado na tese de doutoramento A sonoridade do indizível: a experiência mística de São João da Cruz, desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2017.
2 Para um maior aprofundamento sobre o tema, consultar Giles Tremlett, Isabel de Castela: a primeira grande rainha da Europa (2018); e José García Oro, La reforma de los religiosos españoles en tiempo de los reyes católicos (1969).
3 Dionísio Aeropagita foi considerado um mártir ateniense do século i, convertido por São Paulo. A partir do século VI lhe foram atribuídas algumas obras que remontam ao fim do século v, cujo autor chamou convencionalmente Pseudo Dionísio Aeropagita. O Corpus Dionysiacum representou a tentativa de teologia mística realizada a partir dos esquemas e da terminologia neoplatônica. A doutrina mística esteve estreitamente ligada à tradição platônica e patrística (Lilla, 2003, pp. 326-328).
4 O método apofático deriva da palavra grega apophasis, com o sentido de supressão e negação, e tem suas raízes em Platão. Na Teologia mística de Dionísio Aeropagita, ou Pseudo Dionísio, a via apofática como o acesso possível ao princípio de todas as coisas, sua influência na Idade Média latina é notável, como em São João da Cruz, por exemplo. O engendramento entre a fé e a razão para fundamentar a teologia negativa encontrou suas bases na experiência mística, como indicou Pierre Hadot, ao citar Plotino (século III): "para poder falar da realidade que não podemos pensar, devemos 'possuí-la'. Essa posse, essa apreensão obscura do indizível nos permite dizer que há um indizível e falar dele de forma negativa; mas, ao mesmo tempo, ela nos proíbe de falar dele de outro modo que não a forma negativa" (Cf. Hadot, 2014, pp. 217-227).

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