SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.41 número67-68O amplo sentido da palavra liberdadeA angústia impensável da liberdade índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Meditação angustiada da liberdade: um ensaio

 

Anguished meditation on liberty: an essay

 

 

Thiago Pereira Majolo

Psicanalista e mestre em história social, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e membro da comissão editorial de debates da Revista Percurso

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto pesquisa na filosofia e na psicanálise a relação entre liberdade e o sentimento de angústia. Quais são as origens da liberdade, como ela se apresenta, que possibilidades ela traz na esfera íntima de cada pessoa? Essas são algumas das questões levantadas neste ensaio. Se liberdade e angústia possuem uma relação inata, quais os danos causados ao tentarmos eliminar a angústia de nossas vidas e como isso pode ser um perigo para a clínica psicanalítica e para o próprio analista?

Palavras-chave: Angústia. Liberdade. Psicanálise. Filosofia. Ensaio.


SUMMARY

The essay search on philosophy and psychoanalysis the connection between liberty and the anguish. What are the liberty origins, how does it shows itself, what possibilities does it bring to each person's intimacy? Those are some questions raised in this essay. If liberty and anguish have an innate connection, what are the damages caused when we try to eliminate the anguish from our lives and how can it be a danger to psychoanalytic clinic and to the psychoanalyst itself?

Keywords: Anguish. Liberty. Psychoanalysis. Philosophy. Essay.


 

 

Até onde a vista alcança, reina o instante.
(Wislawa Szymborska, Instante)

Aplacamos a fome ou deixamos que ela nos aplaque, saciamos a sede ou ela nos desidrata, dormimos ou caímos de sono. Não é possível se desviar das necessidades vitais. Se pudéssemos personificar a necessidade, acredito que ela seria um carcereiro incorruptível. Famintos, sedentos ou sonolentos, acabamos por trombar com as grades de uma cela guardada por esse carcereiro silencioso, surdo às reivindicações e cego ao nosso desespero. Posto que não podemos matá-lo sem que nos matemos, fica logo claro de que matéria é feita esse vigilante. Se o machucarmos, nos machucamos; se o ofendemos, estaremos ofendidos; se o expulsarmos, ele se retira apenas brevemente. Nenhuma das nossas necessidades vitais nos abandonará, a não ser que nós mesmos nos abandonemos; não podemos nos livrar delas sem de nós mesmos nos livrarmos. Somos um corpo que clama por cuidados vitais, necessários. Mas somos mais que um corpo. E já que tudo o que se torna necessidade vira igualmente aprisionado, não buscamos a liberdade quando entregamos ao domínio do carcereiro o que antes vicejava sem cercas; não me soa como um ato libertário transformar desejos em necessidades, pois para tudo aquilo de que não necessitamos ainda temos a prerrogativa incoercível de uma liberdade irrestrita.

Quando deixamos então essa cela para nos ocupar com tudo o que é livre como o vento, logo perceberemos que, feito um ímã, a cela tentará atrair nossos pensamentos, porque é atributo da necessidade emprestar suas roupas aos desejos e às livres escolhas, confundindo-os. Antes de tudo, somos um corpo e tendemos a misturar nossas necessidades com nossos anseios, apoiando um no outro. Se o que é da cela de nascença na cela perecerá, fora dela, nas terras da liberdade, temos que nos deparar com a imensa tarefa de interrogar, compreender e experimentar nossos desejos. Eles se estendem sobre um imenso labirinto. O labirinto do desejo é feito de espelhos e sua extensão é desconhecida. Nele, encontrar-se e perder-se podem significar a mesma coisa; nele, não se sabe se uma porta é entrada ou saída, pois elas em tudo se assemelham.

A chave-mestra dessas portas é o livre-arbítrio. A ideia de livre-arbítrio consagrou o desejo dos homens antigos de enfrentarem o destino; os medievais, os desígnios divinos; e os modernos, eles mesmos. Vemos que com o caminhar do tempo o desejo de liberdade para escolher desembocou no oceano das liberdades da escolha. E a história do livre-arbítrio mais regressou à sua própria essência quanto mais avançou no tempo.

Se tomados por um pensamento topológico, poderíamos pensar que estaria diminuída a dimensão da liberdade ao descobrir suas batalhas outrora monumentais e coletivas, agora contidas nos confins da intimidade particular. A vida de cada sujeito, entretanto, salvaguarda seu comércio com a ancestralidade pelo legado vivo da cultura, e a intimidade de cada um reergue os monumentos do passado, mesmo que para depois demoli-lo. As guerras vencidas, vencemos ainda todos os dias; nas perdidas, ainda tombamos. E, entre umas e outras, prosseguem batalhas irresolutas. Não nos livramos irreversivelmente da ideia de destino, de desígnio divino e, certamente, dos estranhos em nós mesmos. A cronologia da história do livre-arbítrio se reinicia em cada intimidade; cada indivíduo, ao adentrar na cultura, torna--se guardião dessa história.

Creio – e aqui não posso avançar além da esfera da suposição – que a história do livre-arbítrio reside na história da angústia dos homens. Antes do incesto e do parricídio, Édipo (Sófocles, 427 a.C/2015) ficou angustiado diante do oráculo; antes da queda, Adão (Gênesis, 2: 2-7) testemunhou o nascimento da angústia no que era inocência imaculada; antes do crime, Hamlet (Shakespeare, 1602/2018) se entregou a longas angústias reflexivas. Contemplar o passado com olhos julgadores para as decisões de Édipo, Adão e Hamlet não nos fará avançar uma linha sequer nos caminhos da liberdade. Poderíamos até pensar que aos dois primeiros estava vetado o livre-arbítrio e que o último soçobrou diante dele. Talvez.

Mas talvez possamos pensar de modo diverso. Podemos pensar que, pela potência da angústia, a cada indivíduo é revelado o entendimento milenar de que o livre-arbítrio não é a liberdade em si, apenas a chave das portas que ela nos mostra e que são capazes de levar a novos territórios do labirinto do desejo ou às mãos do carcereiro. A liberdade também não reside no ato da escolha, que nada mais é do que um atravessar de portas. Podemos pensar que a liberdade não é, finalmente, nem mesmo um atributo do tempo, mas um instante sobre determinado e atemporal, um instante que se ergue dentro de nós, construindo ou reerguendo o labirinto, a prisão e o carcereiro cada vez que nos convoca a nos ocuparmos dela. A liberdade é esse instante de cada sujeito diante do oráculo, da proibição ou da distância entre o pensar e o agir; é o instante em que Édipo, Adão e Hamlet experimentaram suas histórias prévias e o que fizeram de sua trajetória posterior. A liberdade é esse instante que amplia as possibilidades do desejo e da relação entre necessidade e desejo. E se desse conflito, dessa força de ampliação, desse pulsar incessante nasce e angústia, então a liberdade só pode existir na angústia.

********

Em algum momento de sua história cada pessoa sentiu pela primeira vez angústia. Preso à necessidade, seu corpo foi inundado por sensações implacáveis, excitações difusas que exigiam reconhecimento e clamavam por um diálogo que a frieza austera da prisão não proporcionava; algo em nós se tornou insaciável e irredutível, quis ir além das grades. Era preciso um novo lugar. E nesse momento desconhecido demos um salto qualitativo e nos tornamos duplos, habitantes não somente da prisão da necessidade, mas também do labirinto do desejo. Essa passagem, momento criador de um novo território, não seria possível sem uma nova aquisição; a aquisição desse território é a aquisição da angústia, casa da liberdade.

A angústia se constitui nesse instante do puro possível. É um desenrolar, uma vertigem (Kierkegaard, 1844/2015). Nada está dado, nenhuma síntese está feita; a angústia é a relação entre a prisão e o labirinto, entre a história das necessidades e a história dos desejos. Seu fluir toca ambas as margens, misturando sedimentos, confundindo-os sem jamais com eles se confundir. Ela não é a carne da necessidade, mas da carne desta saiu; ela não é o espectro do desejo, mas o espectro dele nasceu dela. Essa angústia pura e primeira constitui um instante, um vislumbre do nada, a possibilidade da possibilidade, a realidade da liberdade, cujo rosto sempre jovem reencontramos nas sucessivas faces do tempo que vivemos.

Ninguém é absolutamente capaz de descrever com precisão a sensação provocada pela angustia. Na tentativa, criamos imagens, aproximamos percepções, quase sempre nos queixamos. Ainda que as palavras ocupem todas nossas horas, algo sempre restará a dizer, e a angústia voltará dessas sobras. Poderíamos até supor que o mesmo ocorre com os demais sentimentos; alguém será capaz de descrever a alegria ou a tristeza? Mas basta se dizer alegre ou triste para que muito do que dizemos seja transmitido – é uma comunicação de maior capacidade de compartilhamento e compreensão. Compreender quer dizer captar, reconhecer, sentir, imaginar, adivinhar. E com a angústia ocorre algo muito diverso: antes de ser incomunicável aos outros, ela se tornou incompreensível a nós mesmos. Ela nos é um ser estranho, que se alimenta não sabemos do quê, que respira não sabemos qual substância, que dorme não sabemos quando nem ao som de qual acalanto; só sabemos que acorda sempre jovem. E só quem poderá desvendar esses enigmas é quem a carrega. Com ou sem ajuda, com mais ou menos desespero, essa é uma tarefa íntima, porque a angústia, ainda que uma sensação comum a todos, não se coletiviza, é sempre singular. Ela é, em essência, a mais pura e menos conhecida face de cada um.

Tentar evitar a angústia seria tentar evitar a singularidade. E não nos enganemos com todos os remédios e todas as formas de terapia que se empenham nessa empreitada; ainda que possam promover alívio, sua causa é perdida. Não nos enganemos também com a boa intenção de muitos que levantam poeira na batalha pelo fim da angústia e advento de uma sociedade de indivíduos em paz, felizes e aliviados: o disfarce é diáfano, porque o que desejam no fundo é não lidar com a angustiante liberdade das singularidades; o que querem é destituir do coletivo a dimensão da singularidade.

E não seria mesmo possível evitar o inevitável. Sentimos angústia porque estamos vivos, atravessados por pulsões, por forças sem objeto fixo que desejam desejar, cujo único objetivo é seguir em frente sem cessar. Qualquer tentativa de evitar a angústia é intermitente. É como quando passamos por áreas fora do alcance dos satélites, em que nossos telefones não operam. Ficamos por um período sob o manto do silêncio escuro e intocável. Mas, à menor brecha de sinal, somos rapidamente invadidos por dezenas de mensagens que permaneciam à espera, numa indistinção caótica entre pequenezas cotidianas e importantes avisos que requerem atenção. Como ninguém é capaz de lidar com todas elas ao mesmo tempo, a falha no sistema dos sinais de angústia nos arremessa a uma angústia excessiva (ibidem).

O problema da falha de sinal se relaciona com o desenvolvimento da angústia na história de cada um (Freud, 1926/1945). Não estar internamente preparado para decodificar o externo é como enfrentar uma doença de peito aberto, sem ter tomado a vacina. Mas, além disso, há algo ainda mais grave. Temos sido levados a acreditar que toda angústia excessiva, ou denominada automática (Freud, 1926/1945), é algo a ser aniquilado quase com a mesma automatização de seu surgimento. Enquanto o sinal de angústia é um poderoso mecanismo que desenvolvemos em vida e que se liga a nossos objetos internos, a angústia automática trafega livremente, como uma força criadora ainda "incriada". É onde se encontra o que de nós é natureza com o que de nós é cultura, e a pergunta que nos fazemos não é mais "quem sou?", mas, sim, "o que sou?". Dessa pergunta não podemos abrir mão sem também deixar de lado a liberdade.

*******

Todas as vezes que ele chegava ao meu consultório, ainda que atrasado e mesmo depois que suas sessões passaram a ser noturnas, não podia entrar na sala antes de fazer um café e tomar lentamente enquanto falava. O café, primeiro quente e cheiroso, depois frio e insosso, marcava o ritmo de suas pausas, motivava novas palavras, aligeirava o afeto. Sua questão mais preeminente era também a mais silenciosa: vivia com problemas de dinheiro dos quais pouco mencionava. Seus ganhos não eram demasiadamente ruins, mas seu manejo com o dinheiro degringolara desde que havia saído da casa dos pais. Passava meses sem falar no assunto, até que um novo rombo no orçamento aparecia quando já não tinha muita saída, e sua primeira alternativa era cortar tudo, inclusive a análise.

Quando isso apareceu pela primeira vez, ele simplesmente sumiu por três semanas. Da segunda vez, falou-me do problema e comunicou a interrupção da análise. Não aceitei, assim como não aceitei também que ele pagasse menos, tampouco atrasado; que recorresse a alternativas, a amigos, aos pais. Ele retrucou: "Não posso pedir isso aos meus pais. Não consigo nem pagar o aluguel, vou pedir dinheiro para terapia?". Eu respondi perguntando qual era o problema, já que ele sempre mencionava a casa dos pais com carinho, um lugar de retorno desejado, mas que se recusava a voltar.

Ele não interrompeu a análise. Na semana seguinte, havia inventado um jeito de fazer mais dinheiro temporariamente até as coisas se estabilizarem. Começou também a usar uma planilha de seus gastos. Mas algo aconteceu na dinâmica das sessões: ele começou a chegar sem assunto e preenchia seu tempo com um nada falado, uma fala burocrática, vazia e abundante. Quanto mais ele falava, menos eu respondia, e cada vez que ele ficava em silêncio seu olhar se perdia, ficava procurando assunto, angustiado com algo não dito, provavelmente ainda não pensado.

Certo dia, com a xícara de café na mão, timidamente começou a me contar sobre uma descoberta: havia percebido que seu maior gasto era com comida – na verdade, em cafeterias, em cafezinhos com bolo. Colocando no papel, descobriu que o que gastava em cafés por mês pagaria uma pessoa para cozinhar para ele todos os dias e ainda sobraria um dinheiro. Fez uma pausa, tomou um gole de café e depois de me ouvir dizer "cheirinho de café é bom demais, né?", ele começou a chorar de modo convulso. Foram vários minutos de choro, o corpo tremia. No começo, ele tentou dizer algo, mas, vencido pelos soluços, se deixou apenas chorar até ter fim aquela enxurrada.

Quando conseguiu levantar a cabeça, disse: "Que coisa louca isso... que bobagem... é disso que eu sinto mais falta... todos os dias, no fim da tarde, eu, meus pais e meu irmão nos sentávamos na mesa da cozinha para tomar café... Meu pai trazia o pão, minha mãe fazia café e esse era o momento da conversa... Que bobagem sentir tanta falta disso". "Por que bobagem? O café é tão gostoso", eu retruquei. "Esse cheiro é uma delícia", ele respondeu, arrematando o restante da xícara.

Algumas coisas aconteceram depois daquele dia: primeiro, percebi que ele parou de tomar café durante as sessões. Mesmo quando chegava adiantado, parecia liberado do seu ritual. Também contratou uma pessoa para cozinhar para ele: uma senhora simpática que vai até sua casa a cada três semanas, mais ou menos, e prepara refeições que ele congela. No primeiro dia, atrapalhado com aquela presença, perguntou a ela o que ele precisaria comprar a mais no mercado, ao que ela respondeu: "A gente vai se virar com o que tem no armário". Por último, ele me contou que com o dinheiro que passou a sobrar ia acelerar o pagamento de uma dívida que havia feito e depois dar entrada num apartamento próprio para sair do aluguel.

Por um caminho certamente muito intrincado, seu sintoma havia transformado o café numa necessidade aprisionada e aprisionadora. Agora estava de volta ao labirinto do desejo. Entre a representação coisa e a representação palavra, algo não havia encontrado uma trajetória mais adequada. Algo muito usual na clínica, uma vez que lidamos com palavras antes de ações: "Diga tudo o que lhe passar pela cabeça". Mas para além disso há algo a mais, algo mais profundo, enraizado e naturalizado; um aquém da representação coisa, uma memória de corpo feita de traços e sensações. Esse é um lugar sem lugar, um tempo sem tempo. Nasceu do sensório e no sensório ficou. Esse é o instante que nos volta sempre em sensações angustiantes de quando em quando, exigindo trabalho. Esse instante sinestésico em que o cheiro pode ser saboroso, o gosto pode ser dolorido, o toque pode ser amargo é o ninho da angústia, é a casa da liberdade.

Estivesse presa a um objeto ou a uma forma de se relacionar com os objetos, a liberdade não seria livre, e então não seria liberdade; tivesse vida constante e perene, a liberdade estaria presa à história, ao tempo e não faria de si um instante criador; trouxesse ela alívio definitivo, a liberdade deixaria de pulsar. Ao definirmos a liberdade, ela já não existe, pois qualquer definição seria o fim da liberdade. Ao simplesmente dizer seu nome, ela desaparece. No que se convencionou chamar de falha no sinal de angústia e prevalência da angústia automática é, na verdade, um sucesso dos anseios da liberdade. Esse momento de abismo, de vertigem, é a única liberdade possível antes que nos agarremos a um sintoma, a um caminho já percorrido, a um objeto fóbico ou a qualquer outra possibilidade que encontremos, mesmo que essa possibilidade se configure como uma novidade saudável ou mais adequada. Não importa, a sedimentação da possibilidade em presença efetiva marca o fim do instante de liberdade.

A angústia pura e automática não pode ter palavras sem deixar de ser angústia, porque sua liberdade não se restringe a palavras. Ela é sensação, e como toda sensação ela é livre para se manifestar como lhe aprouver e sempre de modo singular. Ninguém sente como outra pessoa; os nossos cinco sentidos e os cruzamentos entre eles são o que há de mais único em nós mesmos. E sua comunicação mais primordial com o restante de nós é a própria angústia. 

*******

Claro está que não podemos viver nessa angústia, mas tampouco ela nos exige isso. É um instante, um lugar fora do tempo que deseja seu comércio com o tempo; ela pede para caminhar no labirinto do desejo, seja pelas vielas já percorridas, seja por novos trajetos não conhecidos ou, ainda, em vias por construir. Como instante, não conhece perenidade, ainda que possa voltar com frequência e força assustadora. Sem angústia não haveria desejo e sem desejo só haveria a prisão da necessidade. E, se não podemos viver em um instante, não podemos viver na angústia tanto quanto não podemos viver na liberdade. Ambas não se constituem como campo de permanência, mas instante de passagem. Ironicamente, ainda que nelas não possamos viver, delas não podemos prescindir.

A angústia nos convoca a transformar as sensações em experiências, aquilo que vivemos involuntariamente naquilo que podemos fazer viver em nós. Cada levante do instante de angústia se configura numa possibilidade de nos destinarmos ao conhecido ou ao novo; a angústia torna possível o porvir da renovação ou da inovação. Como um conjunto atemporal e informe de sensações, ela não está ligada a uma história já representada, mas a uma por ser representada. É a coxia do teatro antes mesmo dos atores chegarem, um espaço de luz e sombra, cheiros e sons, à espera do espetáculo. Recolhe tudo de tempos passados e difusos, que, por serem difusos, não são mais um passado, mas um lugar atemporal, um presente que se desenrola continuamente. Ao passado, cabem a memória e a reminiscência; à angústia, cabe o presente e o porvir da possibilidade.

Não é de se estranhar que a angústia apareça na clínica acompanhada da queixa. O que ela produz de mal-estar é da ordem de uma revolução que, como qualquer revolução, desestabiliza as estruturas. Nunca estamos prontos para a angústia nem poderíamos estar; estar pronto é ter uma forma, e a angústia, por natureza, é irredutível às formas. É o informe, um desencaixe do qual nos queixamos quase sempre descrevendo o mal-estar físico dele decorrente. No consultório, essa queixa constitui uma demanda transferencial cujo único pedido parece ser que o analista faça aquilo parar. Promover ligações à angústia, caçar representações, posteriormente nomear sentimentos são todos trabalhos essenciais da clínica; não se espera que ninguém viva na angústia. Mas também não se espera que ninguém viva sem ela.

Esse é um problema intrínseco ao fazer clínico psicanalítico: ocupar-se da angústia automática sem desejar dar a ela ligações automáticas. A angústia implacável do analisando promove no analista uma angústia igualmente intensa e de natureza semelhante: ele está diante de algo desconhecido, para o qual sabe-se não ter ainda recursos, apenas o de criar recursos. Suas habilidades, seu conhecimento, sua formação e, no fim das contas, sua identidade estão em risco. Procuramos na história do sujeito representações capazes de dar vazão à angústia na mesma medida em que nos vemos aprisionados pela necessidade de atender ao pedido de cura. É nosso trabalho promover essas ligações tanto quanto nosso trabalho seria não promover necessariamente essas ligações; tudo depende do momento da vida e da análise do sujeito, tudo depende do quanto apostamos que analisando e analista serão capazes de sustentar e suportar o instante de angústia de forma diversa do que antes sustentado. Não há nenhuma norma para isso. Na liberdade do porvir será encaminhada uma resposta.

E também vale lembrar que, se na angústia vive a liberdade, esta não poderia ser nada menos que angustiante. Muitos deram a vida ou tiraram a vida de outros em nome da liberdade. Muito se coloca debaixo dos significados dessa palavra. É uma palavra grande demais porque demais é a intensidade que ela nos causa. E isso nos coloca de frente com a questão fundamental da morte. A clínica, em sua particularidade, lida mais frequentemente com a morte a partir da questão do suicídio. Uma angústia insustentável pode conduzir um sujeito à decisão de deixar de viver a recorrência desse instante incansável. Essa ameaça de que a angústia se torne insustentável é real e convoca delicadeza aos atos clínicos. Convoca também certa dose de crença e coragem na clínica.

É óbvio que o suicídio é uma das possíveis portas do labirinto; uma que acaba com o labirinto, com a prisão, com o carcereiro. Fica claro também que o suicídio pode ser uma escolha. Mas não se espera que ninguém, especialmente nenhum analista, seja tão insensível ao racionalizar essa questão ao ponto de não recear o ato final do analisando. O temor está justificado, mas não justifica qualquer intervenção desesperada do analista a fim de tentar evitar o que teme. O medo, como parte canalizada da angústia, é um dos caminhos do labirinto; nasceu também de um instante de angústia transformado em sentimento. Devemos proteger o medo como dimensão do desejo e não da necessidade. Conviver com o medo e não de medo morrer, ou a análise se acuaria diante do temor, acabaria por se aprisionar na manutenção única da sobrevivência.

Sobreviver não é pouco, e, como qualquer outro suporte psíquico, a análise pode servir como uma espécie de exoesqueleto, uma sustentação externa do frágil corpo interior. Isso não é um problema em si; cada um é livre para construir com sua angústia o labirinto desejante que conseguir, o que é muito diferente de quando a dupla analítica se empenha sempre e em qualquer circunstância em evitar, aplacar ou automaticamente ligar a angústia. Isso seria anular a possibilidade de liberdade. Pois se deixar conduzir livremente pelo instante de angústia é permitir em suspenso nosso conhecimento, nossas respostas, nossas soluções – é estar atravessado pelo enigma.

 

REFERÊNCIAS

Bíblia de Jerusalém. (1978). São Paulo: Edições Paulinas.         [ Links ]

Freud, S. (1945). Inhibicionsintoma y angustia. In S. Freud. Obras completas (L. Lopez-Ballesteros, trad., vol. 3). Madri: Editorial Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1926).         [ Links ]

Kierkegaard, S. (2015). O conceito de angústia. (3ª ed). São Paulo: Vozes. (Trabalho original publicado em 1844).         [ Links ]

Shakespeare, W. (2018).William Shakespeare: Teatro completo. (Vol 1: Tragédias e comédias sombrias) (B. Heliodora & A. A de Q. C. de Mendonça, trad.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar. (Trabalho original publicado em 1602).         [ Links ]

Sófocles. (2015). Édipo Rei. (2ª ed.). São Paulo: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 427 a.C).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
THIAGO PEREIRA MAJOLO
Rua Itapeva, 202/63
01332-000 – São Paulo-SP
tel.: 11 99969.4828
tmajolo@gmail.com

Recebido 21.05.2019
Aceito 29.06.2019

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons