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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Marcas traumáticas constroem destinos?

 

Do traumatic marks build destinies?

 

 

Ana Cristina M. E. Banzato

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), membro efetivo do Grupo de Estudos Psicanalíticos (GEP) de Campinas, membro efetivo, analista didata e diretora científica da Asociacion Regiomontana de Psicoanalisis A. C. (ARPAC) em Monterrey, México

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As tramas no interior de nós mesmos nos fazem sermos as mais primitivas emoções e os mais obscuros traumas. As perdas por si só geram experiências traumáticas, imprimindo em nossas almas as mais severas marcas. O trauma surge e ameaça o psiquismo em sua integridade e, quando movido pela pulsão de morte, mostra sua face demoníaca, impondo à condenação a compulsão, e a repetição, quando movido por pulsões de vida, promove o recordar e elaborar, trazendo esperança para o psiquismo se libertar.

Palavras-chave: Trauma. Destino. Desamparo. Sonho. Nascimento.


SUMMARY

The weave within ourselves make us the most primitive emotions and the darkest traumas. The losses themselves generate traumatic experiences, printing the most severe marks on our souls. Trauma arises and threatens the psyche in its entiretyand, when driven by the death, drive shows its demonic face, imposing condemnation to compulsion and repetition when driven by life drives, promotes remembering and elaboration, bringing hope for the psyche to break free.

Keywords: Trauma. Destiny. Helplessness. Dream. Birth.


 

 

O futuro é um passado que
ainda não se realizou.
(Clarice Lispector)

Nossa existência é constituída por nascimentos e mortes e na passagem entre um e outro vivemos amores e ódios, sonhos e desilusões, prazeres e frustrações em meio a ganhos e perdas. Na grande aventura da vida somos visão e cegueira, conhecimento e ignorância, somos conscientes e inconscientes. As tramas no interior de nós mesmos fazem-nos sermos as mais primitivas emoções e os mais obscuros traumas.

Depois que Freud descobriu o inconsciente, a humanidade nunca mais foi a mesma - tudo aquilo que o homem acreditava dominar com sua onipotência, com sua autoridade sobre si mesmo, foi anulado porque entrou em cena a impotência diante daquilo que não conhecemos de nós mesmos. Surge o homem desamparado, habitado por marcas traumáticas e exercendo no presente a lembrança que age, repetindo compulsivamenteo passado esquecido.

Será que somos prisioneiros de nossos desconhecimentos, de nossa ignorância consciente, de nossas tragédias reprimidas?

As perdas por si só geram experiências traumáticas, imprimindo em nossas almas as mais severas marcas, embora não haja como viver e crescer sem sentir as dores referentes aos nascimentos e às mortes impostas pela realidade...

O trauma surge e ameaça o psiquismo em sua integridade, quando movido pela pulsão de morte mostra sua face demoníaca, impondo à condenação a compulsão e a repetição (Freud, 1920/1969), gerando um destino infernal, sendo a repetição da agonia, do desespero, aprisionando-se ao sofrimento, ao destino que destrói que arruína e que mata...

Em sua outra face, as marcas traumáticas, quando movidas por pulsões de vida, geram o recordar e elaborar, trazendo a esperança para o psiquismo libertar-se do ferimento que causa angústias, ansiedades e sintomas; é uma oportunidade para manter-nos criativos diante da vida, conquistando a chance de transformar, ao desprender-se do passado esquecido...

Pergunto-me: marcas traumáticas constroem destinos?

Para Freud, a recordação do que foi reprimido é a atuação da lembrança esquecida, proponho, então, pensarmos no ser humano destinado a repetir as identificações e traumas marcados em nossos psiquismos, traumas de um passado que atuamos, e atuações que podem nos encarcerar à repetição, sem opção, sem consciência, impossibilitando-nos do contato com o mundo interno.

Diz Freud: "A repetição é a transferência do passado esquecido" (Freud, 1914/1969a, p. 197).

O psiquismo está habitado por nossas primeiras relações de objeto, pelos traumas, fantasias e por tudo aquilo que o inconsciente de cada um de nós vai revelando por toda nossa existência.

Onde buscar alguma consciência das experiências traumáticas, escapando à pena imposta pela compulsão à repetição, senão em nós mesmos, enfrentando os medos, os terrores, a cegueira, desacomodando as defesas, tentando desvendar o profundo e misterioso interior, dando luz aos subterrâneos de nossas mentes.

A psicanálise transforma destinos? Ela cria um novo espaço, que pode ser imprevisto, surpreendente, desconhecido, e a experiência viva de uma análise bem-sucedida pode tornar consciente um passado que marcou tragicamente o psiquismo, criando, assim, a possibilidade de construir e reconstruir identidades e destinos, trazendo aberturas, criando caminhos e fazendo nascer...

A psicanálise transita na via dos impulsos de vida e através do recordar e elaborar (Freud, 1914/1969a); pode tornar possível o reconhecimento das marcas traumáticas, criando uma nova disposição para o presente futuro, uma vivência fundante de novas oportunidades.

Aventuro-me agora a compartir estados mentais intensos, uma experiência de perdas traumáticas, de tristes despedidas, de achados e perdidos, de encontros e desencontros, revelando-se através dos sonhos, criando novas trilhas em um velho universo interior e em um novo universo exterior.

"Sonhar não é ilusão. Mas o ato que uma pessoa faz sozinha" (Clarice Lispector, 1978, p. 80).

Sonho: A paisagem é da infância, o sentimento, desespero.Uma criança menina de 3 anos, um pai, uma mãe e uma avó. Os pais tiram a criança do colo da avó, a criança chora seu desespero de despedida e da janela do carro já com seus pais, grita: "Vovó, não deixe que me levem!".

Acordo estranhando meu sonho, nele eu vejo-me criança. Uma cena, embora familiar em sua paisagem, causava-me certa indignação, certa tristeza de despedidas, certo espanto. Perdas foram muitas, quando, há um ano, mudei-me para a cidade de Monterrey no México.

Esse sonho parece comunicar as marcas traumáticas ligadas ao nascimento, às separações, aos desamparos vividos e sofridos, verdades reveladas que foram tornando-se conscientes.

"Eu sou o meu próprio espelho. E vivo de achados e perdidos. É o que me salva" (Clarice Lispector, 1978, p. 69).

Estranhava o idioma, a comida, o trânsito, os caminhos. Estranhava as paisagens, a fisionomia das pessoas, os aromas, a cultura e tudo o que eu ainda não podia compreender ou decifrar. Familiar, somente eram as cenas dos sonhos que foram inúmeros.

O reconhecimento de um cenário familiar me confortava diante de tudo o que eu tinha a aprender. Era como nascer de novo uma sensação de não saber, de ignorância, um sentimento de humilhação. Sobreviver à humilhação diante de ter tudo deste novo mundo para aprender, a experimentar e a viver, apresentava-se como uma difícil tarefa, encarnava o desamparo e a fragilidade expressos no meu viver.

O sonho parece traduzir em cenas o sentimento de ser arrancada de um ambiente de domínio afetivo, amoroso, onde grito meu grito da infância diante da minha pequenez frente a um mundo a ser desvendado. Sentimento de triste despedida.

Sonho: Cenário desconhecido. Estava reunida com uma família de mexicanos que procuravam alguma coisa, eu estou com um bebê no colo, o bebê estava com muita febre, então eu saio à procura de ajuda, vem uma pessoa e me indica um caminho que eu consigo ver, era uma estrada de terra, tinha que pular um rio, a pessoa me diz que seguindo essa estrada vou chegar ao Centro Winnicott, onde tem tratamento para bebês e mães.

Procurava acudir as minhas dores, as referências que eu trazia em meu mundo interno, ardiam por todas as paixões deixadas na terra querida, pátria minha.

Continuava também sonhando com meus pais, com meus filhos ainda pequenos, com lugares da infância, com a avó, tios, parecia uma tentativa de sobreviver às mudanças e perdas, reconhecendo algo de familiar, despertando marcas passadas e tentando aceitar as marcas desse presente universo, interno e externo, transformando um destino de cárcere, fazendo nascer uma nova esperança... Referências que pudessem oferecer segurança para sobreviver, além de tudo, à perda de identidade e encontrar forças para esse novo despertar, futuro destino...

"Nasce-se para fruir. E fruir já é nascer. Enquanto fetos fruímos do conforto total do ventre materno" (Clarice Lispector, 1978, p. 23).

Será que nossos antepassados que vieram de outros países também passaram por isso? Tiveram que nascer e fruir diante de novos mundos? Reviveram marcas traumáticas e fundaram seus novos destinos? Será que é essa a herança que transcende em nossas mentes, que nos traz um sentimento de algo familiar na nova terra, onde o desconhecido se mantém diante dos meus olhos e de meus sentidos?

Ainda sem tanta intimidade com o idioma espanhol, sentia-me insegura para atender os pacientes que chegavam e, ao mesmo tempo que meus sentidos se aguçavam e minha intuição crescia... nascia aqui uma nova condição...

Sonho: Cenário desconhecido. Estava em um lugar que mais parecia um shopping, percebo que está na hora de atender uma paciente. É muito difícil chegar ao consultório. No sonho eu estava atrasada, e quando chego é um lugar todo bagunçado e faltavam alguns móveis - sentimento de pura angústia...

Estava difícil de alcançar uma sensação de mais intimidade no consultório tendo que falar outro idioma, o sentimento era de falta, de saudades e de medo de não conseguir criar um ambiente mais acolhedor. As marcas que fluíam das separações dos meus pacientes, familiares e amigos traziam-me sentimentos de impotência, desamparo, culpa, na verdade era uma dor sem palavras, um sofrimento sem forma.

Fui encontrando com o tempo tons mais afetivos no idioma espanhol e criando um ambiente mais seguro e continente nos atendimentos. Sentia-me buscando referências conhecidas que me ajudassem a suportar a dor da perda, das tristes despedidas, que me ajudassem a criar mais confiança para fruir, nascer para sentir-me eu mesma; numa tentativa de estabelecer o setting analítico. Encontrar consolo para minha dor, encontrar vida construindo uma nova identidade.

Sonho: Cenário, congresso de psicanálise. Estava à procura de uma sala, encontro colegas, um deles me pergunta onde estou morando, eu não consigo lembrar-me o nome do país, fico confusa.

Ainda não podia me apropriar desse novo lugar, não conseguia me localizar, onde estou? Que país é este? Esse novo país que invadira minha mente tocava-me traumaticamente, me fazia sentir à flor da pele o meu desamparo, minha fragilidade e a minha maior solidão...

Sonhava também com os meus filhos bebês. Nos sonhos eu estava sempre amamentando e cuidando deles, algumas vezes diante de perigos, e eu os salvava, meu medo era de não ser salva por mim mesma nessa batalha, apesar da recepção afetuosa dos novos colegas psicanalistas.

"É que minha bolsa se havia aberto e desventrado as entranhas e minhas preces espezinhadas no chão. Recolhi tudo e fiquei humilde e digna à espera não sei de quê" (Clarice Lispector, 1978, p. 68).

Comecei também a perceber muito forte a intuição que crescia e me fazia captar comunicações dos meus pacientes antes mesmo de eles se comunicarem de forma verbal, isso me fazia recordar de vivências relacionadas à minha primeira gestação: estava com a bolsa rota, o médico me dizia para fazer uma massagem que ajudaria o bebê tomar a posição correta para o parto, algo me dizia para não fazer a massagem, e não fiz. Estava com uma rotura de bolsa baixa, o risco de o bebê virar, era de morte.

Que intuição é essa que salva, que protege? Que muda a rota de um destino? É parte da natureza humana? A mãe tem que estar em sintonia com as necessidades do bebê e assim conseguir cuidar?

São mesmo de entranhas essas intuições, vem de vínculos tão profundos e intensos, capazes de salvar das pulsões de morte, refazendo vínculos de vida, plantando sementes, semeando o psiquismo para os bons objetos se instalarem. Experiências das profundezas, construindo segurança para sobreviver às impotências, aos medos, ao estranho que já se apresentava com um aroma mais familiar.

Percebia uma transformação à medida que encontrava em meu interior paisagens de pai, mãe, avó, tios, filhos. Encontrava também objetos, jardins, flores, aromas, saudades, referências de toda uma vida. Sentia meus sonhos cuidando para que eu pudesse manter vivas as mais antigas e profundas referências, restabelecendo a confiança em meu interior.

Suportar separações traumáticas fazia de meus sonhos uma tentativa de conseguir novamente certo domínio afetivo, certo, porque esta não é a minha terra mãe. E assim caminhei com as experiências prévias e com a intuição à flor da pele e, ao mesmo tempo, observava que os pacientes respondiam bem a análise, desaparecendo rapidamente os sintomas. Nascia em mim um sentimento alegre, feliz, me fazendo sentir um vigor para desbravar esse imenso território.

No trabalho de Freud (1919/1969b), o estranho tem formas de expressão também não verbais. Nesse meu caminho, há certas situações que, apesar de a língua e a cultura serem uma barreira, sou uma brasileira vivendo no México. Existem coisas que só se aprende intuitivamente. Faz parte do sensorial, essas são vivências de entranhas. O estranho é a qualidade das emoções que ora me faziam sentir medo, ora me faziam sentir esperança.

Percebo que meu contato com o psíquico hoje, embora já tenha 35 anos de experiência clínica, acontecede forma diferente. As captações sensoriais fazem-se muito mais presentes.

Tive que me acostumar ao clima, aos hábitos, à cultura e, no entanto, consegui encontrar dentro de mim ressonâncias de um familiar que tem origem no mais profundo do meu ser.São mesmo sentimentos que se originam das primeiras relações de objeto. São essas ligações que nos permitem compreender nossos bebês, nossos pacientes e nos reconhecermos enquanto analistas. São vínculos de entranhas que plantam sementes para germinarem bons objetos.

Freud diz que "o estranho provém de algo familiar que foi reprimido" (1919/1969b, p. 307), e fui me encontrando nos atendimentos com os pacientes no México à medida que reconhecia neles as angustias universais que surgem independente do país onde se encontra.

Sonho: A paisagem é da infância, embora eu estivesse adulta, é uma festa de réveillon, estou junto com minha avó, conversávamos sobre a despedida de alguém, saio de perto dela e fico com medo deque ela morra, procuro por minha avó novamente e a encontro, ela me diz: "Agora já pode ir sozinha", e nos despedimos com um abraço, que ainda posso sentir.

Quando sentia que havia perdido todas as referências de mim mesma, perdida em meio a tantas marcas traumáticas, encontrei no meu mundo interno vivências de entranhas que hoje me ajudam na construção dessa nova identidade, desse nascimento diante do novo universo, indicando outro destino nesse presente futuro.

Creio que nessa experiência de lutos e nascimentos, de estranhezas e familiaridades, conhecendo e vivendo intimamente minhas fragilidades, meu desamparo diante de um imenso universo de desconhecimento me fizeram mais fortalecida para a imprevista aventura do viver.

Será que cabe a cada um de nós construir e reconstruir nossos destinos quando encontramos a possibilidade de elaborar marcas traumáticas tão profundas de tempos já tão passados?

 

REFERÊNCIAS

Lispector, C. (1978). Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 12, pp. 191-193). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

_______. (1969b). O estranho. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 17, pp. 273-314). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919).         [ Links ]

_______. (1969c). Além do princípio do prazer. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 18, pp. 17-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
ANA CRISTINA MELGES ELIAS BANZATO
Rio de la Plata, 206 Ote.
Col. Del Valle, San Pedro Garza Garcia, C.P. 66220
Monterrey, México
tel.: +52 81 2466.1675
anacristinabanzato@gmail.com

Recebido 08.05.2019
Aceito 16.06.2019

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