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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Imagens que se abrem, vazios que nos olham. Dos incômodos da arte contemporânea1

 

Opened images, voids that look at us. About nuisances of contemporary art

 

 

Ligia Rebelato Machado

Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP; especialista em história da arte pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e graduada em letras-tradução pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A passagem da arte moderna para a contemporânea não se limita apenas a questões temporais. Falar desse processo significa refletir sobre um novo modo de se produzir e pensar arte. Modo esse que pode explicitar a complexidade inerente a qualquer ato de olhar, que pode explicitar os vazios não evidentes inerentes a qualquer imagem. E, se vazios e lacunas alimentam os incômodos que geralmente se abrem no sujeito ao olhar para esse tipo de arte, apenas os que encararem verdadeiramente esses incômodos, aceitando os riscos de perder a unidade de um mundo fechado, poderão experimentar a possibilidade de imergir em um universo cujas formas, abertas a significados inesgotáveis, apresentam-se para além de representações estáticas.

Palavras-chave: Fim da arte. Arte contemporânea. Psicanálise da arte. Filosofia da arte.


SUMMARY

The transition from modern to contemporary art is not limited only to temporal issues. Speaking of this process means speaking about a new way of producing and thinking art. This way can make explicit the complexity inherent to any act of looking, so it can make explicit non-evident voids inherent to any image. If voids and gaps feed nuisances that generally arise in the subject when looking at this type of art, only those who really face these nuisances, accepting the risks of losing the unity of a closed world, can experience the possibility of immersing in a universe whose forms, opened to inexhaustible meanings, present themselves beyond static representations.

Keywords: End of art. Contemporary art. Psychoanalysis of art. Philosophy of art.


 

 

quem deseja ver, ou melhor, olhar,
perderá a unidade de um mundo fechado
para se encontrar na abertura desconfortável
de um universo agora flutuante,
entregue a todos os ventos do sentido.
(Didi-Huberman, 2013, p. 186)

Por volta de 1980, começaram a circular na Europa e nos Estados Unidos teorias que propunham o fim da arte. Mas, apesar do aparente paradoxo, falar do fim da arte não significava falar de sua morte. Para Danto (2006), um complexo de práticas havia dado lugar a um outro, de modo que esse novo não dependia mais de uma narrativa legitimadora para se estabelecer. Ou seja, "O que havia chegado a um fim era a narrativa, e não o tema da narrativa" (Danto, 2006, p. 5). Na mesma linha, segue Belting:

A arte se ajustou ao enquadramento da história da arte e esta se adequou a ela. Hoje, poderíamos, portanto, em vez do fim, falar de uma perda de enquadramento, que tem como consequência a dissolução da imagem, visto que ela não é mais delimitada pelo seu enquadramento. (2012, p. 12)

As tendências artísticas da arte moderna não se revelariam sem que algo diferente daquilo começasse a despontar. Assim, as visões acima sinalizavam uma necessidade já presente no início dos anos 1970: com a arte contemporânea, surgiu não apenas uma nova forma de se fazer arte, mas também a necessidade de se compreender melhor a passagem de uma tendência a outra.

A arte moderna desenvolveu-se em um cenário no qual as ideias de renovação e criação contínuas, que regiam a sociedade industrial do início do século xx, alinhavam-se a uma prática estética marcada pela oposição às tendências do passado, em especial as impostas pela academia, que giravam em torno de representações do mundo tal como este se apresentava. Somava-se a isso uma atmosfera de incerteza e angústia, fruto de teorias científicas, filosóficas e sociológicas que despontaram já no fim do século xix: Charles Darwin, Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud mostravam ao mundo que os valores não eram mais estáticos, mas mutáveis, ambíguos e subjetivos, e que os sentidos revelavam ao homem um conjunto de fenômenos que tinham pouco a ver com a realidade das coisas.

Nessa atmosfera, a necessidade de uma expressão baseada na afetividade e na emoção, que já despontara com os pós-impressionistas Paul Cézanne, Vincent van Gogh e Paul Gauguin no fim do século xix, ganhou força no início do século xx: "Quando a religião, a ciência e a moral (esta última pela mão rude de Nietzsche) são abaladas, e quando os apoios exteriores ameaçam ruir, o homem desvia seu olhar das contingências exteriores e dirige-se para si mesmo" (Kandinsky, 1912/2015, p. 48).

Na busca por uma arte que desse conta de representar suas experiências com um mundo cujas certezas, até então inabaláveis, desmanchavam-se diante de subjetivismos, os artistas recorreram a formas totalmente radicais: "num período em que ilusões de todo tipo estão sendo destruídas, é preciso renunciar também aos métodos ilusionistas da arte" (Greenberg, 1997, p. 64). Desse modo, floresceu com as vanguardas europeias uma estética de tendência não mimética, cuja linguagem, aparentemente mais simples, trouxe à tona padrões denominados por Greenberg (1997) como "redução modernista".

Resgatando uma estética associada ao "primitivo", como a encontrada na arte africana, e pressionando as fronteiras que delimitavam as tão herméticas modalidades artísticas, como a escultura e a pintura, as vanguardas revelaram tendências que foram do "desmantelamento" da imagem, proposto pelo cubismo francês, ao radicalismo da abstração plena, proposto pelo suprematismo russo. Mas não somente a questionamentos estéticos a arte moderna se limitou.

Em protesto não apenas contra a própria civilização, que levara o mundo à Primeira Guerra Mundial, mas também contra o uso dos meios convencionais de expressão, o francês Marcel Duchamp, que se declarava "antiartista", criou nos Estados Unidos, em meados de 1916, o dadá. Propondo uma ação perturbadora, o movimento visava voltar contra a sociedade seus próprios procedimentos, de modo a utilizar de maneira absurda as coisas a que ela atribuía valor, ou a dotar de valor algo a que ela geralmente não atribuía valor algum.

Assim, movido por um impulso contestador, o artista apresentou à Associação dos Artistas Independentes de Nova York, em 1917, um objeto "pronto", fabricado e vendido em larga escala, retirado do cotidiano: um mictório de louça, colocado de cabeça para baixo, assinado com o pseudônimo R. Mutt, identificado como Fonte - a obra seria um de seus primeiros ready-mades. Com esse gesto, Duchamp não apenas esvaziou o objeto artístico das técnicas, até então imprescindíveis, associadas a uma obra de arte, como também tornou turvas as fronteiras que delimitavam objetos tão distintos - um receptor de material desprezado pelo corpo humano mesclou-se a um objeto que, após a ação de Duchamp, sugestivamente, poderia fornecer um elemento fundamental para a sobrevivência desse mesmo corpo. E mais, ao apresentar como obra de arte um objeto industrializado, retirado do cotidiano, Duchamp turvou também as fronteiras entre arte e vida.

Como espelhos colocados frente a frente, os reflexos das teorias do início do século xx perpassavam os reflexos da arte moderna em uma troca que se perdia em movimentos infinitos. Partindo da ideia de que os significados das imagens poderiam se limitar a conceitos imutáveis, anteriormente preestabelecidos, de modo a estarem fechados, segundo Didi-Huberman (2013), em uma "caixa de representações", teria sido Sigmund Freud, ainda de acordo com o autor, o responsável pelo rompimento dessa caixa.

Na busca pelo conhecimento do inconsciente humano, ao propor uma profunda análise sobre o inquietante e movediço mundo dos sonhos, Freud demonstrou que, no sonho, a apresentação, geralmente lacunar, caracterizava-se por unir fragmentos, vestígios, seguindo uma desconcertante poética na qual se invertiam não apenas o tempo, que se rasgava, mas também a lógica. Assim, uma única imagem poderia conter todos os seus contrastes e todas as suas diferenças, fazendo com que elementos, até então distintos, se tocassem:

A maneira como o sonho exprime as categorias da oposição e da contradição é particularmente impressionante: ele não as exprime, parece ignorar o "não". Distingue-se por reunir os contrários e apresentá-los num único objeto. O sonho também apresenta com frequência um elemento qualquer por seu desejo contrário, de modo que não se pode saber se um elemento do sonho, suscetível de contradição, indica um conteúdo positivo ou negativo nos pensamentos do sonho. (Freud, 1900, citado por Didi-Huberman, 2013, p. 195)

Da mesma forma, Wassily Kandinsky abria a "caixa de representações" das cores. Em um complexo estudo concluído em 1910 - tido como a primeira teoria da pintura abstrata -, o artista, partindo da divisão básica de tons claros, escuros, quentes e frios, associou um mundo de significações a cada um deles, de modo que se mesclavam não apenas todos os sentidos do homem, como também elementos psicológicos, carregados de subjetividade.

Assim, tratadas como símbolos, as cores poderiam adquirir sonoridade, odor, aspecto tátil, força, alegria, profundeza e poderiam ser manipuladas por um artista, tal como um músico toca um piano. Considerando essa relação, cada "tecla" obteria da alma a vibração certa:

Com a maior razão, não é possível contentar-se com a associação para explicar a ação da cor sobre a alma. A cor, não obstante, é um meio de exercer sobre ela uma influência direta. A cor é a tecla. O olho é o martelo. A alma o piano de inúmeras cordas. (Kandinsky, 1912/2015, p. 68)

Do mesmo jogo de reflexos beneficiou-se a obra de Duchamp. Explorando a potencialidade do campo simbólico, o artista abriu a "caixa de representações" ao permitir que a um mictório fosse associado um outro significado, que não o seu original. Indo além, se tomada a ideia da aproximação dos contrários, possível no sonho, com a obra Fonte, o que era local de descarte de um líquido desprezível, ou seja, o fim, tornou-se local que oferta um líquido, agora vital, transformando-se no começo.

Das aberturas despontadas com as vanguardas, alinhadas às questões da potencialidade subjetiva inerente aos signos, propiciou-se o surgimento de um meio cuja regra passaria a ser a liberdade estética, elemento imprescindível para a arte contemporânea. Diferentemente da arte moderna em geral, que dava corpo a tendências artísticas específicas, moldadas por discursos inflados e manifestos que repudiavam a arte do passado, a arte contemporânea surgiu quase como um processo inconsciente. Utilizando-se, inclusive, da arte do passado, as múltiplas referências começavam a compor um complexo mosaico, de forma que a ideia de colagem - paradigma, aliás, do contemporâneo, segundo Danto (2006) - passou a ser o conceito que melhor ilustrava essa nova forma de se fazer arte.

Desse modo, extrapolando os limites já desafiados pela Fonte de Duchamp, a arte contemporânea passou, como ainda passa, a apresentar imagens, objetos e referências que se combinam por meio de sobreposições - como a união de fragmentos nos sonhos -, criando um paradoxal campo homogêneo formado por uma complexa heterogeneidade lacunar. E, com isso, paulatinamente, a arte contemporânea, vista por muito tempo como arte moderna produzida no momento atual, transpôs aspectos temporais e firmou-se de maneira que a ausência, tanto de direção quanto de unidade estilística, tornou-se um dos traços definidores desse novo tipo de arte.

De meados dos anos 1960 até os dias de hoje, as diversas propostas que se sucedem - como novo realismo, pop art, op art, minimalismo, arte conceitual, body art, land art, performance, instalação, arte tecnológica -, e que muitas vezes se sobrepõem, parecem ampliar cada vez mais a possibilidade de se pensar a arte a partir de um outro campo que não o capturado apenas pelos sentidos. Consequentemente, abre-se a possibilidade para uma reflexão - já suscitada com o dadá - que perpassaria toda a arte contemporânea: "o que faz de um objeto uma obra de arte?".

Uma vez que as obras de arte assumem a aparência de qualquer coisa - as Brillo Boxes, de Andy Warhol, expostas na Stable Gallery de Nova York, em 1964, não apresentavam nenhuma distinção das que se encontravam na prateleira do supermercado -, surge "a possibilidade de uma filosofia da arte geral e verdadeira" (Danto, 2006, p. 17). Assim, abre-se caminho para se pensar a arte através de considerações intelectuais e interpretativas, de modo que a autorreflexão filosófica conduza a uma investigação da própria natureza da arte.

Retomando a questão do fim da arte, exposta inicialmente, sem pertencer a uma grande narrativa linear, ou até mesmo a narrativas que "moldem" a criação, a multiplicidade de "estilos" derivada da arte contemporânea continua apresentando o tema da narrativa, ou seja, a criação artística, mas de tal forma que referências de diversos períodos e técnicas das mais variadas são apresentadas como fragmentos. Dessa forma, a arte contemporânea extrai do espectador o conforto não apenas de associar claramente uma obra a uma tendência estilística, como também de identificar no objeto exposto padrões estéticos ligados ao belo ou às técnicas que o enquadrariam na categoria de obra de arte. A fronteira entre mal-estar e prazer, que na arte moderna já se tornara tênue, encontra na arte contemporânea um novo nível de fragilidade.

A pergunta "o que faz de um objeto uma obra de arte?" seria, então, reflexo dessa fragilidade? Será que nessa pergunta vela-se um incômodo pela impossibilidade de o observador recorrer a questões estilísticas e estéticas embasadas apenas no que os sentidos captam? Ou, ainda, será que nela vela-se um incômodo pela obscuridade dos limites que distinguem objetos banais de obras de arte? Se a arte contemporânea apresenta ao sujeito um complexo mosaico heterogêneo, como lidar com as lacunas que se originam nesse processo de "colagem", que rasgam lógicas e põem em xeque valores ainda tão prezados pelo público em geral? Como lidar com essa nova arte que anuncia o fim de uma narrativa de cuja estrutura o espectador ainda não se desvencilhou?

Na tentativa de elucidar essas questões, faz-se necessário retomar o conceito de abertura da "caixa de representações". No capítulo inicial da obra O que vemos, o que nos olha, o filósofo Didi-Huberman cita uma passagem do romance épico Ulisses, de James Joyce, na qual o personagem Stephen Dedalus, ao olhar para o mar, vê os olhos de sua mãe moribunda erguerem-se para ele, implorando por algo: "Seus olhos perscrutadores, fixando-se-me da morte, para sacudir e dobrar minha alma" (Joyce, 1922, citado por Didi-Huberman, 2010, p. 31). Diante da morte da mãe, tudo que se apresenta para Dedalus é olhado por sua perda.

A partir dessa referência, o filósofo levanta a questão de que o ato de ver não se acaba na experimentação tátil de um objeto erguido diante do observador. O ato de ver apenas se manifesta quando, movido por um sentimento de perda, abre-se em dois, ou seja, no momento em que o observador, inquieto, se dá conta de que ao mesmo tempo em que olha para um objeto (ou uma imagem), este também o observa: "O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha" (Didi-Huberman, 2010, p. 29). Isto é, uma vez assumido o incômodo oriundo de um sentimento de perda, está posta ao sujeito a cisão olhar e ser olhado.

E, então, o teórico propõe uma inversão da frase joyciana "fechemos os olhos para ver" (Joyce, 1922, citado por Didi-Huberman, 2010, p. 34). Quanto ao instante em que o observador põe seus olhos sobre o mar, sobre qualquer objeto ou sobre uma obra de arte, Didi-Huberman afirma:

Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos - ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a evidência visível) não obstante nos olha como uma obra (uma obra visual) de perda. (2010, p. 34)

E o que leva à condição de olhar e ser olhado por algo que não se vê com toda a evidência, como uma obra de perda? Qual a origem da cisão olhar e ser olhado? Segundo o filósofo, essa origem encontra-se justamente no conceito de abertura da "caixa de representações", quer dizer, na "abertura" da imagem, proposta por Freud. Partindo do pressuposto de que toda imagem carrega em si uma latência, uma potencialidade, como propõe Didi-Huberman (2010), é nesse vazio que significados dinâmicos e movediços se velam. Ou seja, ao serem revelados e acionados, os vazios não evidentes, inerentes a toda imagem, passam a ser preenchidos pelo próprio sujeito, de modo a transpor significados estáticos preestabelecidos, abrindo-se, dessa maneira, a "caixa de representações" na qual estão inseridos os significados relacionados ao objeto ou à imagem olhada pelo sujeito.

Portanto vela-se em qualquer imagem um algo não visível, lacunar, capaz de, quando acionado por um sentimento de incômodo, olhar para quem o olha: "Então começamos a compreender que cada coisa a ver, por mais exposta, por mais neutra de aparência que seja, torna-se inelutável quando uma perda a suporta [...] e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue" (Didi-Huberman, 2010, p. 33).

E, entre perdas, velam-se lacunas que se abrem a partir do momento em que o sujeito se dá conta de que objetos, imagens e significados não estão fechados em "caixas de representações", mas compõem-se por fragmentos que, unidos, não lhes escapam as fendas, os vazios que ali se formam e que aguardam serem acionados para que algo seja revelado. Vazios que abrem em dois o ato de ver, que funcionam como motor dialético: "a privação (do visível) desencadeia, de maneira inteiramente inesperada (como um sintoma), a abertura de uma dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela e que a amplia"(Merleau-Ponty, 1945, citado por Didi-Huberman, 2010, p. 99).

Mas, se entregar à cisão não é um ato que se faz sem dor. Do incômodo causado pela falta, pelo que a imagem não revela de prontidão, nasce um sentimento de angústia. E numa busca quase que inconsciente de o suturar, o observador, segundo Didi-Huberman (2010), se vê entre duas possíveis posturas. A primeira, denominada postura tautológica, leva o sujeito a se ater apenas ao volume visível, não vendo outra coisa além daquilo que vê, negando, desse modo, a cisão olhar e ser olhado. No caso da obra de Duchamp, por exemplo, ele veria apenas um mictório colocado de cabeça para baixo. Nessa situação, o visual, exclusivamente, sutura o incômodo por meio da satisfação gerada ao se ignorar a possibilidade da cisão.

A segunda, denominada postura da crença, leva o sujeito a superar, imaginariamente, o que vê, vendo algo além do que vê. Sem se ater cuidadosamente aos elementos visuais apresentados, o sujeito constrói "ficções" em busca de um sentido teleológico, que se "solidifica" no mesmo momento em que o sujeito se dá por satisfeito ao encontrar uma solução para aquilo que o incomodou - suturando, igualmente, o incômodo por meio de um sentimento de conforto e negando, consequente e igualmente, a cisão olhar e ser olhado. Utilizando o mesmo exemplo, ao se deparar com o mictório de Duchamp, o sujeito se apoiaria na mais imediata interpretação que lhe oferecesse algum conforto, elaborada sem considerar os detalhes apresentados pela obra, ou até mesmo em sentidos fixos preestabelecidos por meio de um informativo sobre a obra.

Sendo a tautologia apenas uma forma invertida da crença, ambas as posturas, se tomadas como excludentes, são limitadas. Seja diante de uma imagem figurativa ou abstrata, a postura tautológica ou faz com que a união entre o que se vê e o que é representado limite-se a uma construção por semelhança, ou que formas e manchas abstratas não passem de formas e manchas, nada mais. Já no caso da postura da crença, "ficções" ou narrativas criadas para interpretar tanto imagens figurativas como abstratas fixam significados.

Desse modo, ambas, ao oferecerem ao sujeito a cilada da satisfação, fixam em posições estanques os elementos que compõem o complexo ato de ver - sujeito, objeto e o próprio ato em si. Além disso, ao negarem a experiência da cisão, elas supõem um olhar sem sujeito, ou seja, um olhar sem inquietação, o que é inviável no verdadeiro processo de ver: "Dar a ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta" (Didi-Huberman, 2010, p. 77).

Sendo, então, o ato de ver uma operação inexoravelmente inquieta, como suturar exatamente o que é a essência do processo? De fato, encarar o incômodo da cisão significa negar a situação de conforto na qual se vê o sujeito ao assumir uma das posturas acima. Mas apenas assim, quando assumida a cisão, superando tanto a postura tautológica quanto a da crença, é possível que o sujeito se entregue à dialética olhar e ser olhado, entregue-se ao entre, presente no infinito movimento gerado por essa dialética (como o fluxo e refluxo do mar que olhava para Dedalus):

o pensamento não pode fixar-se num polo (coisa ou consciência, sujeito ou objeto, visível ou vidente, visível ou invisível, palavra ou silêncio), mas precisa sempre mover-se no entre-dois, sendo mais importante o mover-se do que o entre-dois, pois entre-dois poderia fazer supor dois termos positivos separáveis, enquanto o mover-se revela que a experiência e o pensamento são passagem de um termo por dentro do outro, passando pelos poros do outro, cada qual reenviando ao outro sem cessar. (Chaui, 1994, p. 475)

Vale ressaltar que nesse infinito navegar entre-dois, a aproximação entre objetividade e subjetividade, significado e significante, sujeito psicológico e mundo, vale-se, antes de mais nada, por duas formas de percepção do receptor. E do entrelaçamento dessas polaridades abre-se caminho para se atingir um terceiro elemento, que se encontra justamente entre o que o sujeito vê e o que o objeto mostra. E é justamente no entre-dois que emerge uma forma independente, autossuficiente, intensa, cujo molde perde-se na indefinição entre o sujeito, a obra e a totalidade que os cercam, levando ao que Merleau-Ponty chama de gradiente, definido por uma "estreita ramificação sobre a qual se farão cristalizações imprevisíveis" (Merleau-Ponty, 1960/2004, p. 14).

Essa forma nasce da relação entre as partes que compõem os objetos - o material, a cor, o formato, o vazio -, e todas têm o mesmo valor, inclusive o olhar do sujeito, que articula essas peças como que em um jogo. No ensaio "O ato criador", de 1957, Duchamp afirma: "o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desse modo, acrescenta sua contribuição ao ato criador" (1965/2004, p. 74).

Surge, assim, uma forma que extrapola a lógica mimética, que rompe o contorno das figuras, abrindo-se para uma significação que vai além da imitação e da noção de naturalismo: "Há vários modos de imitação. O naturalismo é apenas um deles" (Tassinari, 2001, p. 60). Forma essa que imita sem se assemelhar a coisas, como as palavras, que não se assemelham em nada às coisas que significam; que suspende o tempo e que se rende a um sempre infinito ainda não pensado, levando a uma significação eventualmente inédita, simbólica, nunca inteiramente esgotada e superada.

Se, então, toda imagem carrega em si uma latência, na qual se velam vazios não evidentes, teriam já de certo modo a arte moderna e principalmente a contemporânea explicitado esses incômodos vazios ao dissolverem as imagens em múltiplas tendências e múltiplas vozes, arrancando do observador o conforto de categorizações padronizadas? Ou, ainda, estaria esse tipo de arte chamando a atenção do observador para os vazios, que sempre habitaram as imagens e que muitas vezes deixaram de ser acionados porque o conforto do reconhecimento prevaleceu? Será que nesse tipo de arte explicitam-se não apenas os vazios, agora escancarados, crus, pedindo para serem acionados, como também o fato de a experiência do pensamento, da filosofia e da interpretação, ser parte fundamental do processo de significação de uma obra de arte? Seria a explicitação dos vazios uma possível causa para a pergunta "o que faz de um objeto uma obra de arte?".

O convite para aplaudir a destruição de valores que o sujeito ainda preza, feito constantemente pela arte contemporânea, é incômodo: "Destacar-se dos pontos fixos, ainda que sob as imensas asas da imaginação, é um ato doloroso: o ato poético. É da dor da solidão de quem chega ao novo sem saber bem por quê. É a dor intrínseca à arte" (Frayze-Pereira, 2005, p. 282). Dor essa que explicita uma perda, nesse caso do conforto de ver na arte contemporânea referências artísticas tão enraizadas no sujeito.

Mas, se aceito o convite, se superadas as inquietantes estranhezas para além de uma postura tautológica ou de crença, está aberto o caminho para se navegar entre a dialética olhar e ser olhado, em um processo capaz de abrir o visual para o não visível e o figurável para formas que nunca puderam ser objetos de percepção. Esse convite abre ao sujeito uma porta, que

permanece diante de nós para que não atravessemos seu limiar, ou melhor, para que temamos atravessá-lo, para que a decisão de fazê-lo seja sempre diferida. E nessa différance se mantém - se suspende - todo o nosso olhar, entre o desejo de passar, de atingir o alvo, e o luto interminável, como que interminavelmente antecipado, de jamais ter podido atingir o alvo. (Didi-Huberman, 2010, p. 232)

Imerso no infinito movimento dialético, o observador entende que, como colocado por Didi-Huberman (2013), uma obra se apresenta assim como as nuvens, que, para serem apreendidas, mesmo que nunca inteiramente, é preciso adivinhá-las em um processo constante de mutação, através do fragmento que ali se apresenta naquele momento.

No caso da arte contemporânea, o universo flutuante das nuvens revela-se por meio de vazios que surgem da ausência dos objetos representados pelas sombras de Regina Silveira; da ausência do belo nas performances de Joseph Beuys; da falta de sentido nos objetos de Erwin Wurm; da falta de comedimento nos Parangolés de Hélio Oiticica; da transparência formada pelas linhas e curvas dos simples, porém suavemente complexos objetos de Waltercio Caldas, que se desmancham e tomam o espaço, de modo que a distinção clara entre uma coisa e outra se esvai; da sobreposição de referências nas colagens de León Ferrari; do alargamento dos limites entre obra e sujeito, ou mesmo entre arte e vida; da heterogeneidade das narrativas compostas por complexos mosaicos; da inquietante diversidade dos seres e das coisas que emergem com a arte contemporânea.

São esses os vazios que, quando encarados e acionados, podem, no infinito movimento dialético, funcionar como um gatilho, iniciando um processo de transformação de valores. Não à toa, Frayze-Pereira aproxima a experiência estética à psicanalítica: "uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer" (1960/2004, p. 445). Em ambos os casos, a interpretação é o fio condutor para construções discursivas únicas, a partir dos códigos que são apresentados tanto ao sujeito que vê uma obra quanto ao psiquiatra que escuta seu paciente; códigos que, como afirma Merleau-Ponty (1960/2004), despertam ecos nos corpos de quem os recebe.

São esses os vazios que, ao desafiarem as noções de espaço, beleza, narrativa e mímesis, abrem, não sem dor, imagens para novas possibilidades; que levam o sujeito a descobrir o prazer de, mesmo que por alguns minutos, abandonar os valores que tanto prezava. E, durante esse caminho, o sujeito percebe que as ausências, inclusive de respostas claras, que provavelmente o incomodaram em um primeiro contato, não são mais um problema, pois a experiência de navegar por um caminho que antes sequer existia já se basta.

Mas essa experiência não encerra o processo de significação de uma obra. Ao contrário. Se o ato de ver é um ato de sujeito, a obra poderá lhe despertar, a cada novo olhar, um novo significado, em um processo inquietante pelo seu próprio inacabamento, como a nuvem, nunca apreendida totalmente, como o alvo jamais atingido. E aí fica uma pergunta: ao voltar-se para seus antigos valores, o observador os encontrará intactos? Se tiver sorte, não. E esse é um risco que apenas os que aceitam perder a unidade de um mundo fechado para se encontrar na abertura desconfortável de um universo flutuante podem correr.

 

REFERÊNCIAS

Belting, H. (2012). O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Chaui, M. (1994). Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia. In A. Novaes (Org.). Artepensamento (pp. 467-492). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Danto, A. C. (2006). Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora.         [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2010). O que vemos, o que nos olha. (2ª ed.). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

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Frayze-Pereira, J. A. (2004). Estética, psicanálise implicada e crítica de arte. Revista Brasileira de Psicanálise, 38(2),443-452.         [ Links ]

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Greenberg, C. (1997). Arte abstrata. In G. Ferreira e C. C. de Mello (Org.). Clement Greenberg e o debate crítico (pp. 61-68). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Kandinsky, W. (2015). Do espiritual na arte. (3a ed.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1912).         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (2004). O olho e o espírito. In M. Merleau-Ponty. O olho e o espírito. Seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne (pp. 13-46). São Paulo: Cosac & Naify. (Trabalho original publicado em 1960).         [ Links ]

Tassinari, A. (2001). O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
LIGIA REBELATO MACHADO
Rua Aracuípe, 64/52
04649-020 - São Paulo-SP
tel.: 11 97076.0430
ligiarebelato@usp.br

Recebido 19.02.2019
Aceito 06.04.2019

 

 

1 Artigo apresentado ao Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (usp), como parte dos requisitos para aprovação na disciplina Psicanálise e Crítica de Arte.

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