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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019
EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO
Fogo no mar: os de casa e os de fora
Fire at sea: those from home, those from outside
Sandra R. Moreira de Souza Freitas
Psicóloga pela Universidade de São Paulo (USP), psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), professora e membro da Comissão de Ensino do Instituto de Psicanálise da SBPSP e membro da Diretoria de Cultura e Comunidade
RESUMO
A partir de documentário rodado na Ilha de Lampedusa, o presente texto, à moda quase de execução musical, se repete em três movimentos. Dois temas e suas variações são expostos ("Os de casa" e "Os de fora"), e o terceiro ("Nome do ônibus") busca finalizá-los. O texto se apoia em "O escudo de Aquiles", trabalho metapsicológico de Fabio Herrmann.
Palavras-chave: Imigração. Representação. Identidade. Realidade e cotidiano.
SUMMARY
Taking as its starting point the documentar filmed at the island. of Lampedusa, this text reapets itself in three movements, almost in guise of a musical piece. Two themes and their variations are presented ("The from home" and "The outsiders"), and the third ("The name of the bus") attempts to finalize them. The text is based on "Aquiles shield", a metapsychological text of Fabio Herrmann.
Keywords: Imigracion. Representation. Identity. Reality and daily life.
Os de casa e os de fora
Fogo no mar, documentário de Gianfranco Rosi rodado na ilha de Lampedusa, na Sicília, Itália, em 2017, foi com justiça premiado com o Urso de Ouro no 66º Festival Internacional de Berlim.
Como se fosse dois documentários, o filme retrata, por um lado, o porto que se tornou linha de frente na crise migratória, recebendo milhares de imigrantes da África e do Oriente Médio. Vemos os africanos em desespero, em sua busca pela imigração. Fogem da guerra, de perseguições, da fome. Chegam pelo mar Mediterrâneo, em frágeis embarcações.
Por outro lado, ao capturar na mesma ilha e ao mesmo tempo o cotidiano de algumas famílias - com destaque para Samuelle, um rapazinho de 11 anos, sua avó e seu pai -, transcorre como estivessem se em um outro mundo, em outra humanidade, outro tempo.
São dois universos que descobriremos serem paralelos: como espectadora, esperei que se cruzassem, até me dar conta de que não podiam. Para retratar esse tema, a forma dizia muito, repetia seu conteúdo.
"Os de casa"
No documentário sobre Samuelle e família, vemos um mundo estabelecido, organizado pela rotina que nos permite pensar que o mundo é assim porque é. É justo e de direito que assim seja. Filho de quem? De onde você é? Qual sua religião? São perguntas que não existem, são prescindíveis. Identidade/realidade estão coladas.
"Os de casa" são exemplares na sua rotina, nos seus rituais, suas tradições e memórias. Um campo sem brechas, ou com brechas perfeitamente incorporadas na narrativa.
O campo da rotina se encarrega de manter um bom casamento entre o homem e o mundo - no dizer de Fabio Herrmann (2001), autor cuja extensa obra toma o nosso dia a dia, o cotidiano, como objeto de estudo psicanalítico.
Ao seguir o trabalho de Freud "Psicopatologia da vida cotidiana", que explora a lógica atrás dos excessos, dos lapsos e dos sintomas, Herrmann (2001) explora psicanaliticamente os tecidos de que são feitos o nosso cotidiano: como o construímos. Aborda, assim, a noção de real como produtor de sentidos organizados, além do senso individual. Em suma: como construímos nossa realidade cotidiana, além das aparências.
Diz Herrmann: "A rotina deixa opaca a construção do nosso mundo, e nos possibilita tomá-lo como se apresenta, sem os meandros de sua construção" (2001, p. 23).
Samuelle é um menino da sua terra, parece viver plenamente no mundo pré-industrial (O mundo do narrador, de W. Benjamin). É o camponês sedentário. Conhece suas árvores, seus pássaros, seus terrenos e caminhos, é o artesão, o que permanece na terra.
Ele é, ao mesmo tempo, mestre e aprendiz. Passa adiante seus conhecimentos de como fazer o melhor estilingue: "Com paixão", diz ele para o amigo enquanto o ensina.
"Quem viaja tem muito o que contar", diz o povo. O pai seria a figura do que vai para fora, fica meses no barco rodando o Mediterrâneo. Vem com as novidades narrar sua experiência fora da sua terra com o barco de pesca. Samuelle, curioso e interessado, pergunta, enquanto vê as fotos dentro do barco.
"A experiência que passa de pessoa a pessoa é fonte a que recorrem todos os narradores", diz Benjamin (1936/1996, p.128).
Samuelle está crescendo, ele leva a sério os conselhos. E progride na vida.
O filme nos mostra, em tempo real, os exercícios que Samuelle faz com seu olho "preguiçoso": tapa o olho bom e exercita o doente. Treina pontaria com seu estilingue/bodoque. No fim, um crescimento contabilizável: "Tinha 0,1. Agora, tenho 0,5. Em um mês".
Samuelle brinca, ensaia com o amigo a vida e a guerra; estuda e progride no inglês; fica no cais do porto, balançando com o mar para se acostumar; ensaia para a vida de adulto. Marujo cosmopolita: seu destino anunciado.
Há um pouco de angústia que não o deixa respirar livremente. Procura o médico, dr. Bartolo. Uma brecha nessa rotina, nesse cotidiano. Angústia por um tempo em mudança e um futuro?
Para Samuelle, o tempo corre linear. Um menino cativante por sua seriedade, pelo seu estilo de vida, pela "paixão" com que fala e se põe nas suas atividades.
Samuelle é tão fofo e admirável que constatamos, assustados, de nos termos esquecidos também, ou negado, os do "outro mundo". O aprisionamento de "os de casa" no campo da rotina, nos rituais, impede que se saia para o desconhecido que navega e morre em seus mares. O desconhecido que aporta em sua ilha.
Talvez, seja daí a angústia de Samuelle que, com as mãos no peito, se refere ao dr. Bartolo.
Voltando à questão da rotina e dos rituais de que Herrmann (2001) nos fala, temos outro exemplo perfeito em tia Maria, uma senhora da ilha, quando arruma sua cama. Uma organização, a perfeição de um hotel seis estrelas. Se não bastasse, tia Maria passa por todos os seus santos, beijando e se benzendo.
Escuta a rádio local e pede músicas, que dedica aos entes queridos. A guerra, o fogo no mar, são músicas, são lembranças organizadas e articuladas num passado em forma de histórias contadas.
Aqui, o mundo é de substâncias, tem estofo. A informação sobre os imigrantes que lhe chega via rádio é tomada como algo distante.
"Pobres coitados", diz tia Maria.
"Coitados", diz a avó. "Fake news"?
Uma exclusão da memória, ou uma ignorância das histórias de imigrações que a própria Itália viveu no século passado e no fim do século xix: depois da "libertação dos escravos" no Brasil, cerca de 1.500 italianos imigraram para cá, para trabalharem nas fazendas, nas plantações, substituindo a mão de obra negra...
"Os de fora"
Aqui, os viajantes estão com seus cotidianos, com a suas rotinas rompidas, suas representações de si, confusas e ameaçadas.
As suas linhagens, histórias, origens, pertences, propriedades, tradições, religiões, tudo nos é desconhecido. Há um descolamento entre identidade e realidade, possibilitando, assim, o aparecimento das regras que o constituem. O que a psicanálise descobre é que, nessas condições - da loucura/guerra/caos/sonhos e sintomas -, irrompe o absurdo com o qual todos somos constituídos. O próprio inconsciente.
Para os imigrantes - a começar por seus nomes, passando por suas histórias, tradições, mitos, religiões, genealogias -, tudo está em movimento. Há um processo de desmanche de gente.
Os imigrantes chegam vivos ou mortos, náufragos ou sobreviventes. São vozes no mar escuro pedindo socorro: "Em nome de Deus, eu imploro!"; "Please! Somos muitas mulheres e crianças".
O encontro com a guarda-costeira da Marinha italiana e as rádios de controle ao nos impressionar desde logo anuncia grandes diferenças. Navio superequipado, tanto em termos de equipamentos quanto de pessoal de resgate. Heliporto, rádios, possantes lanchas e uma equipe de salvadores vestidos a caráter (macacões, óculos especiais, máscaras para oxigênio). Parecem preparados para uma viagem interplanetária. Medo do contágio. Qual? Provavelmente, não só o contágio das possíveis doenças, outros
"Os de fora" chegam em embarcações toscas, com vazamento de combustíveis, que intoxicam, queimam e matam.
Ao mesmo tempo, nesse encontro, se de um lado temos vozes desesperadas, por outro temos vozes gentis, acolhedoras: "Calma, madame. Qual é sua localização?".
Pedem referências e oferecem salvação.
No encontro com os de fora, a princípio não sabemos se são ou não doentes.
Depois, de quem são as crianças? "Cuesto bambino?" "Da senhora que entrou", alguém responde. Contam e recontam as crianças com suas respectivas mães.
Herrmann escreveu um trabalho importantíssimo (na verdade um trabalho metapsicológico), O escudo de Aquiles, no qual enfoca a função defensiva das representações. Ele usa o escudo de Aquiles (da Ilíada, de Homero: presente de sua mãe, a deusa Thétis) como um modelo de discriminação e diferenciação das representações entre o eu e o mundo; diferenças entre gregos e troianos, discriminação entre civilização e barbárie, protegendo do mergulho no real. Esse magma de paixões, de vida e morte.
Em uma face do escudo,
a convexidade externa figura o mundo real em forma plana e selecionada, é aquilo que chamamos de realidade; por consequência, a face côncava, interna, limita um espaço solidário ao anterior, convergente na mesma figuração, porém invertido, cujo nome é identidade. (Herrmann, 1996, p. 171)
"Os escudos de Aquiles" de cada um "dos de fora" - os imigrantes - provavelmente estão bem abalados, avariados. Suas representações estão ameaçadas, assim como sua realidade e identidade
O oposto desse desmanche: Omnia mea mecum porto ("Tudo que é meu levo comigo"), enunciado milenar do filósofo grego Bias - são meus filhos; são pequenos gestos; sou eu, meus parentes mais próximos. Levo minhas esperanças, meus sonhos. Não há imigração sem esperança.
Manter o lenço na cabeça (para as senhoras islamitas), um gesto banal de segurá-lo na cabeça é carregado de sentidos. Une ao seu grupo de origem, de religião, lhes dá uma representação de si nesse mar de revoltas: tentativas de recuperação de partes do Escudo - identidade e realidade.
E outros gestos que não somos capazes de discriminar, tamanha a nossa ignorância.
Nesse processo de desmanche humano, em que tantas coisas são deixadas nas suas terras de origem, é trazido o futebol, e um jogo se organiza por nações. Um lúdico, uma atividade humana que recupera a identidade grupal. Um jogo, uma estabilidade, com regras e uma experiência. Afinal, estão todos no mesmo barco.
Mas tudo se encaminha para o grande canto. O nigeriano canta sua história e sua saga, o faz à viva voz, espontaneamente, sem saber que repara seu escudo de Aquiles. Canta e conta, para os homens não se perderem no mundo do sangue, das fezes e urinas, do puro contágio e da morte, física e psíquica.
Canta e conta a história do seu povo, o seu testemunho.
Conta seu percurso e do seu grupo, seus sofrimentos nos deslocamentos para sobreviver e, cantando, cumpre a função de sustentar a sua identidade e do seu grupo.
"Mar não é estrada", diz muitas vezes denunciando o absurdo da sua existência. Dá um enredo ao estranho caminho do mar e da própria sobrevivência bebendo sua própria urina para não morrer.
Em "A crise da psicanálise e o mal-estar do Iluminismo", a psiquiatra Liana Albernaz de Melo Bastos nos fala da perversidade do sistema capitalista. Nunca tão poucos tiveram tanto, e tantos tão pouco. O capitalismo chegou à beira da loucura, de excluir da vida os que não consomem. Não há reserva de produtores e de consumidores. Isto é, não há necessidade de mão de obra, o homem que não produz e não consome é o homem invisível, marcado para morrer.
No documentário, ficamos sabendo que há três preços para as passagens. O incômodo "resto de homem", homem da terceira classe. Eles chegam no porão da embarcação, pagaram menos, só 800 dólares. Esses são os homens queimados e mortos por vazamento de combustível. Marcados para morrer. Em uma das últimas cenas sobre os de fora, eles estão lá, e nos esforçamos para distinguir os corpos de imigrantes mortos, das tralhas e entulhos no porão do barco. Os imigrantes, vivos ou mortos, sendo recolhidos do mar na Ilha de Lampedusa, não podiam se encontrar com "os de casa". Não são aparentados com os moradores.
A narrativa estaria rompida entre esses dois mundos, se não tivéssemos o conto do nigeriano sobre a saga do imigrante. Ele restabelece a função da narrativa clássica, de trocar e contar as experiências. A profecia de Benjamin sobre o desaparecimento da comunidade de ouvintes poderia se concretizar. No início, os de "dentro" não aparecem como ouvintes curiosos, na própria ilha, onde os homens invisíveis aportam. É a necessidade de narrar, tão forte como a necessidade de um alimento ou de um remédio. Uma necessidade para a alma. O nigeriano conta e canta para dizer "eu também sou um homem, não um animal".
Nome do ônibus: Misericórdia
Em O mal-estar na civilização (Freud, 1929/1996), a repressão dos impulsos agressivos era o suficiente para se incluir no mundo da civilidade, do coletivo, para o pacto social. Ora, precisamos de outros mecanismos.
A narrativa, como o contar das experiências, tem êxito e eficácia na pessoa do médico, dr. Bartolo, que é o único elo entre os dois documentários. Ele está presente tanto em um como no outro. Ele é "os de casa" que recebe "os de fora". O hospitaleiro.
Incorpora a figura benjaminiana do justo. O médico junta os mundos, é também o novo homem: "Obrigação de todo ser humano é ajudar essas pessoas; quando conseguimos, ficamos contentes".
Talvez esse seja um outro mecanismo, mais de doutores bartolos.
E não cria uma casca dura, é um homem que continua sensível - "Não me acostumo, depois de tanto tempo". Sofre com a morte, sofre com a consciência da "escolha de Sofia", com a consciência de que os que vivem e os que morrem já está determinada e não depende do seu exaustivo trabalho.
Sofre com a necessidade de mexer com o corpo morto: "Tirar um pedaço de costela, de orelha de uma criança, é terrível, mais uma afronta". Outra injúria.
Fala de uma raiva impotente e de um desgosto com gestos parecidos ao de Samuelle na sua consulta. Fala de uma angústia.
Sabemos depois que dr. Bartolo é mesmo novo homem, o da contemporaneidade. Tem um pen-drive com as imagens dos navios e dos imigrantes que é cedido ao diretor do filme.
O ultrassom do casal de gêmeos da imigrante é um desses momentos sublimes do filme. O mundo ocidental, o mundo rico, aproxima-se do destituído, para reparar e restituir. Para cuidar e para curar.
Dr. Bartolo faz justiça, eleva em humanidade, enquanto espera um tradutor, fala com a língua do respeito e amor à vida. Reparação para a justiça, pois o nosso processo histórico é um longo habituar-se com os "pobres coitados", com a morte do outro.
O oposto disso, uma destituição do sentimento de humanidade, reduz o imigrante a uma função biológica, desatada das filiações simbólicas, próprias dos humanos.
"Enquanto houver secessão em relação à humanidade, não será possível a economia de restituição, da reparação ou da justiça. [...] são as condições para elevação coletiva em humanidade", diz Achilles Mbembe, historiador e filósofo de Camarões.
Fogo no mar é uma música alegre que tia Maria oferece, uma narrativa da nona do tempo da Segunda Guerra Mundial, e é uma clara alusão às embarcações que afundam, muitas incendiadas pelos motores superaquecidos.
Se para Samuelle o tempo é linear, cresce, aprende e sara, para os imigrantes o tempo é repetitivo, um eterno retorno. Começa com chegada de embarcações e acaba com chegada de embarcações.
Cerca de 1,68 milhão de pessoas imigraram até o ano de 2017: 90% delas foram bem-sucedidas; em 2018, somente 22%.
Crescem as mortes nos mares - ao passo que aumenta a intolerância e o fechamento de portos. Lampedusa foi um desses.
Nestes últimos dois anos, temos, além do fechamento de portos, navios que andam de um lado para o outro sem poderem aportar, temos proibições para os que ajudam os imigrantes.
"A Europa prende os ativistas e criminaliza resgate de migrantes para frear o fluxo" (manchete do jornal Folha de S. Paulo, 09/07/2019).
REFERÊNCIAS
Bastos, L. A. M. (1997). A crise da psicanálise e o mal-estar do Iluminismo. Revista Brasileira de Psicanálise, 31(1),31-39. [ Links ]
Benjamin, W. (1996). O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Lescov. In ______. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política (pp. 197-222). São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1936). [ Links ]
Freud, S. (1996). Psicopatologia da vida cotidiana. In ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud ( J. Salomão, trad., vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Herrmann, F. (1992). O escudo de Aquiles. In O divã a passeio. À procura da psicanálise onde parece não estar (pp. 167-199).São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
______. (2001). O momento da psicanálise. In ______. Andaimes do real: psicanálise do cotidiano (pp. 13-31). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Mbembe, A. (2018). Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições. [ Links ]
Endereço para correspondência:
SANDRA R. MOREIRA DE SOUZA FREITAS
Rua Maranhão, 598/73
01240-000 – São Paulo-SP
tel.: 11 3661.7426 / 11 98348.3963
sandrasouzafreitas@gmail.com
Recebido 19.02.2019
Aceito 06.04.2019