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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019
EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO
Meninas vestem rosa e meninos vestem azul. Destinos da pulsão em tempos de miséria simbólica1
Girls wear pink and boys wear blue. Drive destinies in times of symbolic misery
Marion Minerbo
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e doutora pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
RESUMO
Meninas vestem rosa e meninos vestem azul. Destinos da pulsão em tempos de miséria simbólica A teoria do apoio foi abrindo espaço, ao longo da história da psicanálise, para o lugar e a função do objeto nos destinos da pulsão. A autora argumenta que a crise das instituições dificulta o trabalho de "domesticar" a pulsão, além de lançar o sujeito num estado de desamparo identitário. Vários sintomas sociais nos dão notícias desse sofrimento: certo tipo de violência social, fanatismos de todos os tipos, o lobo solitário e o neoconservadorismo. São alguns dos destinos da pulsão em tempos de miséria simbólica.
Palavras-chave: Miséria simbólica. Violência social. Fanatismo. Lobo solitário. Neoconservadorismo.
SUMMARY
Throughout the history of psychoanalysis, Freud's theory of support has paved the way for the place and function of the object in the destinies of the drive. The author argues that the crisis of institutions makes it difficult to "tame" the drive, in addition to throwing the subject into a state of identity abandonment. Several social symptoms are indicative of this suffering: a certain type of social violence, fanaticism of all kinds, the lone wolf and the rise of neoconservatism. They are a few of the destinies of the drive in times of symbolic misery.
Keywords: Symbolic misery. Social violence. Fanaticism. Lone wolf. Neoconservatism.
No texto As pulsões e seus destinos, Freud fala de uma energia, de uma força que nasce no corpo e coloca em movimento os processos psíquicos. Como nasce a pulsão? Enquanto mama para matar a fome, o bebê descobre que mamar é gostoso. E aí começa a procurar o seio mesmo sem estar com fome. A teoria do apoio foi complementada por outros autores, que abriram espaço para o objeto. Para André Green (1984/1986), o objeto tem duas funções: despertar e, ao mesmo tempo, conter a pulsão - que sempre nasce em estado selvagem e precisa ser domesticada (Freud, 1937/1996b).
Como o objeto desperta a pulsão? O bebê descobre que mamar é gostoso, não só porque a boca possui um potencial erótico, mas também porque a mãe tem prazer em amamentar. Quando a mãe não tem prazer, o bebê enche a barriga, mas não enche a alma. E o que significa "conter a pulsão"? Para que possam ser usadas a favor da vida, e não contra ela, as pulsões precisam ser domesticadas, quer dizer, integradas. Esse trabalho psíquico cabe ao bebê. A função do objeto é facilitar esse trabalho. Como? 1) Criando anteparos para que os estímulos não ultrapassem certos limites. E 2) oferecendo um sentido que ajude a apaziguar a turbulência que eles causam. O objeto faz um "apaziguamento simbolizante"(Roussillon, 2011).
Quando o objeto e o ambiente não conseguem oferecer essas duas condições, a pulsão permanece em estado selvagem. A angústia desorganiza o psiquismo. É aí que entram os mecanismos de defesa. No texto As pulsões e seus destinos, Freud falado recalque. Mas a mesma ideia vale para outras defesas, como a clivagem. No curto prazo, as defesas neutralizam a angústia, mas impedem sua elaboração.
Gostaria de voltar para a ideia de que o ambiente precisa ajudar o sujeito a fazer seu trabalho psíquico de domesticar sua pulsão. No nível individual, esse papel cabe às figuras parentais através das funções paterna e materna. No nível social, cabe às instituições, incluindo aí a família. Hoje em dia, em tempos de miséria simbólica, estamos com problemas em ambos.
Um exemplo de como o ambiente ajuda a integrar a pulsão no nível individual:
Fui jantar na casa de uns amigos. Todos papeando, tomando aperitivo. A filha de 5 anos do anfitrião estava acordada. Lá pelas tantas ela aparece na sala com batom vermelho na boca. Todos acharam uma gracinha. Ela volta para o quarto e reaparece com os olhos pintados. Todos acharam uma gracinha. Na sequência, ela vai e volta com a bochecha toda pintada de vermelho. Mas aí já era um exagero, uma caricatura.
O pai estava atento. Percebeu que a resposta dos adultos aumentou, amplificou, a excitação da menina. Gentilmente, o pai diz à filha: minha princesa, você já mostrou para todos como você é bonita, agora está na hora de ir dormir. O jantar é só para adultos. Venha, vou te colocar na cama e te dar um beijo de boa noite.
Nesse exemplo, o pai ajuda a menina a manter a excitação num nível adequado. Ele não berra com ela, mandando "já para cama!"nem permite que ela continue seduzindo/ sendo seduzida pelos adultos. Isso mostra que ele mesmo integrou a diferença entre as gerações e a interdição que vem junto com ela. E por isso consegue fazer o apaziguamento simbolizante. Apaziguamento, porque ele reduz as excitações a um nível compatível com as capacidades de trabalho psíquico da criança. Ao mesmo tempo, explica que o jantar é só para adultos. Assinala a diferença entre gerações. Ou seja, ele oferece um sentido para o seu gesto. Por isso o apaziguamento é simbolizante.
Quando o objeto colabora, a criança consegue realizar sua parte de trabalho psíquico. Então ela vai conseguir brincar de papai e mamãe, vai poder se identificar com as interdições etc. Se tudo der mais ou menos certo, vai conseguir integrar as pulsões de modo suficiente, e elas ficarão disponíveis para a vida. Mas quando a figura parental não fez uma travessia edipiana suficiente, o desejo infantil de "fazer par" com o adulto encontra interdições ambíguas e enigmáticas ou, pior, uma "reciprocidade" explícita. Cria-se um campo intersubjetivo em que a fome de um se junta à vontade de comer do outro. É assim que entendo o que chamamos de situação incestuosa. A excitação da criança não tem possibilidade de descarga e se torna excessiva. O apaziguamento simbolizante fracassou. O recalque se torna necessário para evitar a desorganização somatopsíquica.
Passo agora para o nível social. Aqui, são as instituições que precisam fazer o apaziguamento simbolizante. O problema é que, na civilização atual, pós-moderna, as instituições estão em crise (Minerbo, 2019a).
A modernidade é um momento da civilização ocidental que se caracteriza pela força e solidez das grandes instituições - família, educação, política, religião. Elas têm, ou tinham, o poder de determinar, com exclusividade, a maneira possível, e desejável, de pensar, sentir e agir. Havia o certo e o errado, o bom e o mau. Isso tinha a vantagem de oferecer elementos simbólicos com lastro suficiente para organizar a vida pulsional. Mas as instituições modernas eram muito rígidas, e por isso tinham a desvantagem de oferecer pouquíssimos caminhos considerados legítimos. Quem não coubesse no modelo único sofria e se culpava por ser diferente. A pós-modernidade é uma reação a esse modo de funcionar das instituições. As pessoas e a vida das pessoas não cabiam naquele modelo, e ele implodiu. O modelo único faliu. As narrativas da modernidade entraram em crise. Não se sustentam mais. Já não acreditamos que aqueles valores sejam os únicos válidos.
A falência do modelo único tem uma vantagem: ela pode ser aproveitada de forma criativa, para que novos laços simbólicos sejam constituídos: as pessoas podem se reinventar. Tem espaço para que novas formas de viver se tornem possíveis, contemplando a singularidade do desejo. Hoje aceitamos que há muitas maneiras de exercer a sexualidade ou de formar uma família, por exemplo. Mas a falência do modelo único tem também uma desvantagem: cada um precisa se inventara partir de si mesmo, já que não pode mais contar com o apoio simbolizante das instituições, que estão falidas. Essa falência cria o que estou chamando de miséria simbólica. Cada um tem que decidir sozinho, por si mesmo, o que vale e o que não vale, o que faz sentido e o que não faz. Quem não consegue fica perdido, sem chão, sem rumo, sem projeto de vida. É uma tarefa solitária, exaustiva e angustiante.
É nesse sentido que, em tempos de miséria simbólica, o apaziguamento simbolizante da vida pulsional fica prejudicado. A pulsão permanece em estado selvagem, como um fio elétrico desencapado. Vários sintomas sociais podem ser interpretados como tentativas de solucionar esse problema. Vou abordar alguns deles.
Certo tipo de violência social
Quando as tensões psíquicas e sociais aumentam, elas não podem ser contidas nem elaboradas com a ajuda de uma rede de sentidos. Não há nada que possa conter a violência pulsional, que está à flor da pele. Qualquer ferida narcísica funciona como faísca,que produz uma descarga de ódio em estado bruto. Certas formas de violência social, ou mesmo de violência doméstica, passam por aí. O curto-circuito pulsional é um dos destinos mais visíveis da pulsão desencapada.
Fanatismos de todos os tipos
As instituições protegem nossa vida psíquica através de narrativas que, bem ou mal, sustentam nossa identidade. São elas que encapam os fios elétricos, tornando-os seguros para o uso doméstico. Quando elas estão em crise profunda, ficamos órfãos. Somos lançados numa situação de desamparo identitário (a excelente expressão é de Susana Muszkat). Faltam referências com as quais construir nossa identidade.
Uma saída possível é a adesão fanática a uma causa. Isso dá um sentido para a vida e organiza a identidade. O fanático já não corre o risco de desorganização psíquica. Na ausência de recursos psíquicos mais evoluídos, não deixa de ser uma forma - rudimentar - de encapar a pulsão. Ninguém está a salvo de aderir defensivamente a uma causa, nem mesmo nós, psicanalistas.
O lobo solitário
Como são justamente as narrativas que unem as pessoas em torno de um projeto em comum, sua ausência fragiliza o laço social. As pessoas se transformam em ilhas de sofrimento incomunicável. É cada um por si. Qual é o destino que se pode dar a essa dor? Se houver recursos psíquicos, o sujeito buscará formas de elaborar a dor num nível simbólico, isto é, encapar o fio elétrico com plástico de boa qualidade. Caso contrário, será obrigado a se amputar de seu sofrimento.
Aqui, podemos dizer que o destino da pulsão em estado selvagem é a clivagem. O fio desencapado será colocado fora do quarto, mas, a qualquer momento,um curto-circuito produzirá um incêndio. A figura do lobo solitário é esta: um indivíduo isolado, quieto, aparentemente adaptado, que, de repente, do nada, faz uma chacina.Não era "do nada". O sujeito - e muito menos as pessoas em volta dele - não se deu conta do próprio sofrimento. Mas a dor estava lá, alimentando o ódio, dia após dia. O lobo solitário expressa um sofrimento que, em alguma medida, é o de todos nós.
Neoconservadorismo
A miséria simbólica também produz, como defesa frente ao desamparo identitário, a narrativa conservadora (Minerbo, 2019b). Em vários lugares do mundo, vemos uma tentativa de reconstruir as instituições do passado, tal como eram, "na marra", de fora para dentro, numa simplificação brutal e absurda da realidade. A narrativa conservadora é uma tentativa de encapar as pulsões com valores supostamente firmes, sólidos e universais.
Só que são valores recolhidos do ferro-velho: estão desgastados e enferrujados. Mais cedo ou mais tarde vão dar problema. Isso porque a tentativa de recuperaras referências perdidas não considera que, se elas faliram, foi justamente porque já não davam mais conta. Agora que finalmente percebemos a enorme psicodiversidade humana, não conseguiremos mais tapar o sol com a peneira. As pessoas e a vida das pessoas saíram do tubo de pasta de dente e não vão voltar para dentro dele.
Os valores conservadores em tempos de miséria simbólica têm uma característica que, talvez, não houvesse em outras épocas igualmente conservadoras. São valores rasos, colados na concretude das coisas, sem espessura simbólica. "Meninas vestem rosa e meninos vestem azul" é o melhor exemplo disso. É verdade que algumas meninas usam rosa. Mas é bom lembrar que há pelo menos cinquenta tons de rosa. E outras meninas vestem preto, roxo, verde. E, por que não, também azul. Assim como os meninos.
Aqui, corremos um risco: condenar o neoconservadorismo sem perceber que ele é um sintoma de desamparo identitário. Como psicanalistas, sabemos que de nada adianta atacar os sintomas. Precisamos trabalhar para reverter a miséria simbólica que está em sua origem. A sociedade vem dando passos importantes rumo à reconstrução de novas instituições. Não as do passado, mas instituições vivas, de cara nova. Gosto de pensar nelas como instituições-boutique. Uso esse termo no mesmo sentido de hotel-boutique. Ao contrário das grandes cadeias tipo Sheraton, com centenas de quartos idênticos, os hotéis-boutique têm poucos apartamentos. E cada um com uma cara. Da mesma forma, as novas instituições são pequenas, diversificadas, customizadas. Por isso conseguem garantir referências identitárias para muitos grupos.
Enquanto escrevia, assisti a um filme simples, mas que serve para ilustrar a criação de instituições-boutique e seus efeitos subjetivantes.
Banho de vida (Le grand bain, de Gilles Lellouche, 2019) fala de oito homens deprimidos por falta de lugar social, laços afetivos e de reconhecimento,num mundo em transformação. No início do filme, são oito ilhas de sofrimento incomunicável. Aos poucos, eles se juntam para criar uma improvável equipe de nado sincronizado masculino. Passam a ter um objetivo, um enquadre e uma atividade que tem seu lugar na cultura. Nesse percurso, vão construindo laços significativos entre si, o que possibilita o resgate criativo de novas possibilidades de ser.
Acredito que essa seja a saída: criar microinstituições que atendam às necessidades singulares e que, ao mesmo tempo, sejam a ocasião para sua manifestação criativa. Não vejo outra maneira de reverter a miséria simbólica.
REFERÊNCIAS
Freud, S. (1996a). As pulsões e seus destinos. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol.14). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915). [ Links ]
______. (1996b). Análise terminável e interminável. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 23). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937). [ Links ]
Green, A. (1986). Pulsão de morte, narcisismo negativo, função desobjetalizante. In D. Widlöcher (Org.). A pulsão de morte (pp. 57-68). São Paulo: Escuta. (Trabalho original publicado em 1984). [ Links ]
Minerbo, M. (2019a). Ser e sofrer hoje. Novos diálogos sobre a clínica psicanalítica (Cap. 6). São Paulo: Blucher. [ Links ]
_______. (2019b). Neoconservadorismo, um sintoma da miséria simbólica (pp. 244-248). In Novos diálogos sobre a clínica psicanalítica. São Paulo: Blucher. [ Links ]
Roussillon, R. (2011). A intersubjetividade e a função mensageira da pulsão. Revista Brasileira de Psicanálise, 45(3), pp. 159-166. [ Links ]
Endereço para correspondência:
MARION MINERBO
Av. Dr. Cardoso de Melo, 1450/ 9º andar
5413-100 – São Paulo-SP
tel.: 11 2125.3777
marionminerbo@gmail.com
Recebido 26.06.2019
Aceito 29. 06. 2019
1 Trabalho apresentado no XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Belo Horizonte, 2019, na mesa intitulada "A pulsão e seus destinos na atualidade".