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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019

 

EM PAUTA LIBERDADE, DESTINO

 

Anatomia e destino: o mundo de pernas pro ar... e não só pernas: uma reflexão a partir do filme Bixa Travesty

 

Anatomy and destiny: the world upside down... a reflection upon the movie

 

 

Miriam Chnaiderman

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em comunicação e semiótica. Doutora em artes pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Ensaísta, tem dois livros publicados e vem escrevendo em várias revistas. Documentarista, dirigiu vários médias e curtas-metragens. É diretora do filme De gravata e unha vermelha (2014), tendo ganhado o Prêmio Felix no Festival do Rio, entre outros prêmios

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do filme Bixa Travesti, protagonizado pela cantora trans Linn da Quebrada, o texto freudiano é questionado. Pensar, a frase de Napoleão, reformulada por Freud, que afirma a anatomia é o destino tem levado a posições que negam a possibilidade de construção do corpo erógeno

Palavras-chave: Pulsão. Feminino. Trans. Corpo. Desejo. Ternura. Autoconservação. Libido.


SUMMARY

Bixa Travesty (Tranny Fag) Taking the movie Tranny Fag, starring by a transsexual singer Linn da Quebrada, as a starting point, the Freudian text is questioned. To think, from Napoleon's statement reformulated by Freud, that anatomy is the destiny of actions that prevent the construction of the erogenous body.

Keywords: Drive. Feminine. Trans. Body. Wish. Tenderness. Self-preservation. Libido.


 

 

Introdução

Foi a partir do texto que publiquei no blog da Sociedade de Psicanálise, "Quebrando a costela de Adão", no dia 6 de fevereiro de 2019, que fiz as reflexões que seguem, tentando uma adequação ao tema proposto pela revista Ide: "Liberdade, Destino".Portanto o que estiver em itálico será citação do blog.

João Frayze, no texto que embasa a proposta da Ide 66, refere-se ao livro On the road, de Jack Kerouac, escrito nos anos 1950, bem como ao filme Easy rider, "um road movie [norte-]americano de 1969, escrito e realizado por Peter Fonda, com Dennis Hopper e Terry Southern". Citando:

a ascensão e a queda dos movimentos beat e hippie, a criação de novas formas artísticas, especialmente na música, a livre expressão da sexualidade, o uso de drogas, o estilo de vida comunal, o existencialismo filosófico, entre outras tendências que fizeram parte de um movimento maior, chamado de "contracultura", a ideia de "liberdade" se impõe como questão principal.

A seguir, na carta convite para esta edição da Ide, refletindo sobre o que seria a liberdade no pensamento filosófico, João fala, obviamente, de Sartre, para quem a liberdade definiria o ser humano. E chamou-me a atenção a radicalização da afirmação de Sartre, para quem o corpo não interferiria na condição livre do ser humano.

Lembrei-me da cartunista Laerte e de sua escolha, já com 60 anos, de viver como mulher... Sua argumentação passa pela ideia de uma liberdade vivida no corpo. Como se hoje, neste mundo das nuvens e das fake news, a liberdade possível estivesse no corpo. Algo muito radical na concepção do sujeito acontece na contemporaneidade.

Decidir sobre o próprio sexo passa a ser algo do cotidiano de todos nós. A anatomia deixa de ser destino, e isso é atuado na construção do corpo. Lacan diria que algo do real passa a determinar e a psicose seria a estrutura de qualquer transexual ou travesti. É onde a psicanálise se aproxima de uma psiquiatria conservadora que patologizou a homossexualidade e o travestimento. Há algo na relação com o corpo que precisa ser pensado, livre de esquemas preestabelecidos, transformado os estranhamentos os mais variados em desafios fecundos para o pensamento. Esse corpo pulsional, tal como foi proposto já em Freud, leva necessariamente a uma liberdade na concepção do sexual, ou polimorficamente perverso.

A partir da experiência que tive dirigindo o documentário De gravata e unha vermelha (2014), pensei que determinar sobre o próprio corpo e ser fiel ao desejo é, hoje, algo tão disruptor quanto foi o movimento beat / hippie dos anos 1950/60. O jeito de On the road hoje é a possibilidade de escolher como viver o corpo e a sexualidade. O que não quer dizer, tanto para os libertários dos anos 1960/70 como para aqueles que são fiéis ao seu desejo nos dias de hoje, que tudo isso aconteça sem dor. E não quer dizer que um seja equivalente ao outro. Nos anos 1970, éramos movidos por uma utopia, um sonho. Hoje é por uma redução de horizontes de sonho coletivo que o corpo passa a ser a utopia possível. E isso tem duras implicações para o trabalho de elaboração psíquica.

 

Linn da Quebrada obriga a reler Freud

Retomando o texto de Freud onde aparece a frase "a anatomia é o destino", "Sobre a mais comum depreciação na vida amorosa" (1912/2013), defrontamo-nos com questões que foram os pilares da construção psicanalítica e que hoje precisam ser repensadas. Sem abrir mão dos "inegociáveis" do pensamento psicanalítico de que nos fala Ana Maria Sigal no seu ensaio "Ainda psicanálise no campo da sexuação", de 2016. Nesse ensaio, Sigal reflete sobre o que mantém a especificidade da psicanálise: "o deslocamento operado de um eu ptolomaico para o inconsciente, espaço estrangeiro; a noção de pulsão, objeto vicariante e contingente" (2016, p. 133) e, por fim, o papel da sexualidade infantil na constituição da subjetividade.

O texto de Freud começa com a afirmação de que a maior procura para o tratamento psicanalítico seria a "impotência psíquica" (1912/2013, p. 348). Freud aqui não se refere a um estado de alma, mas está preocupado com o não exercício da virilidade. Afirma: "Esse peculiar transtorno atinge homens de natureza intensamente libidinosa e se manifesta no fato de que os órgãos executivos da sexualidade se recusam a perfazer o ato sexual..." (p. 348). Esse comportamento adviria de "certos complexos psíquicos" que o indivíduo desconhece. Haveria então uma "fixação incestuosa, nunca superada, na mãe e na irmã" (p. 349).

No parágrafo seguinte, Freud afirma que nesses casos não teria ocorrido a junção de suas correntes "cuja união é imprescindível para uma atitude inteiramente normal no amor, duas correntes que podemos caracterizar com a terna e a sensual" (p. 349). A corrente terna estaria ligada aos instintos de autoconservação e teria a ver com a escolha do objeto infantil primária, estando relacionado com os instintos do eu1. É o carinho dos pais que introduziria o erotismo.

Freud fala de dois fatores que levariam ao fracasso na evolução da libido: a real frustração e a atração "que os objetos a serem abandonados podem exercer, proporcional ao investimento libidinal que lhes foi concedido na infância. [...] A libido se afasta da realidade, é tomada pela fantasia, reforça a imagem dos primeiros objetos sexuais" (p. 351).

Não há como não se lembrar do filme Bixa Travesty, dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla, protagonizado pela cantora Linn da Quebrada. Bixa Travesty é como Linn se nomeia. Há uma cena no filme em que fala exatamente dos "primeiros objetos":

É tocante a cena onde Linn e sua mãe tomam banho juntas. Com doçura, uma ensaboa a outra. Essa cena acontece depois de Linn, Leniker (cantor com quem mora) e mais uma trans conversarem na cozinho com a mãe de Linn, fazendo um estrogonofe. Nessa conversa, surge o tema da religião. E Linn é radical. Há um momento em que Linn pega nos seios de Leniker e fala que tem mais carne do que a que está na panela e que viveram momentos duros, de fome e de pegar pizza na lata de lixo. A mãe afirma que devem agradecer, pois Deus deve ter feito assim pra que eles aprendam a valorizar o que têm... Linn ironiza, diz que esse é um jeito conformista de lidar com a realidade... Nessa cena tão caseira, há um momento em que a mãe, falando de Linn, diz do talento dele. Linn pergunta: "Dele quem?". A mãe, embaraçada, tenta se corrigir. Linn afirma que vai tatuar um ela na testa para que a mãe nunca mais se confunda. E é o que faz ao final do filme.

A cena do banho é tocante. Linn ensaboa as dobras do corpo envelhecido de sua mãe. Conversam sobre o corpo, conversam sobre nada. Apenas se ensaboam. Linn massageia sua mãe, com imensa gratidão. Linn ensaboa a mãe que ensaboa Linn...

Não é uma cena edípica. É uma cena de ternura, como se a dureza da história de Linn guerreira pudesse, naquele momento, viver uma cena de ternura e repouso. E acarinha sua mãe, que é empregada doméstica e cuida de duas crianças brancas. A vida foi dura. Linn já foi Lino e já foi Lara. A construção daquilo que é se dá minuto a minuto.

Depois, no final do filme, Linn tatua na testa ela . Para que sua mãe não se distraia e não esqueça de que não é mais um homem. Porque dói quando sua mãe a trata como um menininho. Mas o papo na banheira é sobre como lavar o "pintinho" de uma criança. É uma cena infantil. Que poderia levar qualquer psicanalista a falar em uma sexualidade não genitalizada, infantilizada.

Diferentemente do La Luna, de Bertolucci... onde a realização edípica entre os personagens é o grande tema do filme. Sérgio Rizzo (2016), apresentando o lançamento do DVD de La Luna, assim fala: "O cineasta italiano Bernardo Bertolucci conta que uma das imagens mais fortes guardadas por ele da primeira infância, talvez a mais antiga, é a de um passeio de carro. O bebê que depois dirigiria O último tango em Paris (1972) estava no colo da mãe, entre ela e o volante, de costas para a estrada. Lá em cima, a Lua. 'Lembro que o jovem rosto de minha mãe se confundia com o velho rosto da Lua. Interpreto essa lembrança como um sonho', diz Bertolucci no documentário incluído no material extra da edição especial em DVD de La Luna (1979). A cena é recriada no início do filme, com uma bicicleta no lugar do carro..." (Folha de São Paulo, domingo, 19 de março de 2006). Rizzo nos lembra como a mãe lambe o mel que escorre pelo corpo do filho, ainda um bebê. Depois o choro do bebê vendo o prazer da mãe dançando com "outro". É diferente do que acontece com Linn.

Linn pergunta desafiadoramente à mãe se ela sente "tesão" por alguém. A mãe demora a entender. Diante da insistência de Linn, responde que sentiu pelo pai de Linn. Linn abraça a mãe rindo, e esse abraço dá início à cena do banho. É como se Linn se indiscriminasse da mãe como um bebezinho. A entrega de Linn e da mãe é de uma ternura tocante. Mas ninguém precisa satisfazer ninguém, não há qualquer "fissura enlouquecida". Diferentemente da mãe do La Luna que, segundo Sérgio Rizzo, "chega a satisfazer sexualmente o filho adolescente para aplacar a dor do garoto que busca mais e mais cocaína".

Mas, ao final do filme, cumprindo a ameaça que fizera à mãe na conversa de cozinha, quando ela se refere à filha como "ele", Linn tatua ela na testa.

Esse ela na testa, mais do que um sinal de ligação materna, é também um tapa na cara do mundo, que quer "mulheres sem pinto" e "sem pelo". Seria bastante fácil falar de uma ligação com a mãe levando a uma identificação primária, a uma bolha da primeira infância, onde os corpos se indiscriminariam.

Ou ligar a transexualidade a uma sexualidade infantilizada não genital, que se evidenciaria tanto na cena do banho com a mãe como na cena em que Jup e Linn estão na sauna e falam dos corpos. Aliás, a relação de Linn com Jup acontece sempre ludicamente, dançarinamente. Jup é uma trans, gorda e desajeitada. As duas falam do esforço que fazem para não serem apenas engraçadas. Reduzir a sexualidade trans ao pré-genital seria patologizar uma escolha que não obedece à anatomia. Seria fazer o que o DMS fez e faz, ou seja, considerar o transexualismo como doença a ser curada. Como fazem no Irã, onde matam homossexuais e operam transexuais para curá-los.

Em Linn e em Jup, nos seus jogos, no humor, nas coreografias, o que vemos é uma sexualidade regida pelo sexual, termo que Laplanche (2015) conceitua como sendo aquilo que, para Freud, é anterior "à diferença dos sexos, para não dizer à diferença de gêneros" (p. 157). Citando Freud, Laplanche afirma que o sexual poderia ser definido como "o que é condenado pelo adulto" (p. 157). E, a seguir, afirma Laplanche: "creio que, mesmo nos dias de hoje, a sexualidade infantil propriamente dita é o que mais repugna para a visão do adulto" (p. 158).

 

Pudores de Freud?

No texto de 1912, quem está repugnado com o que permanece de infantil em toda sexualidade parece ser Freud. Reproduzo: "Pessoas nas quais a corrente carinhosa e sensual não confluíram devidamente têm, em geral, uma vida amorosa pouco refinada..." (1912/2013, p. 353).

É preciso um pênis ereto para que o amor se realize na sua plenitude. Como se a relação sexual plena só pudesse acontecer nos padrões da penetração pênis/vagina. Claro que Freud é fruto de seu momento, embora tenha fecundado o chão para pensar a vida sexual de forma transformadora. O conceito de pulsão vem revolucionar a ideia de uma sexualidade preestabelecida, pois não há nada que determine de que forma o desejo vai acontecer.

Mas as contradições de Freud aparecem nesse texto de forma contundente. Nele pensa que "um pleno gozo sexual só acontece quando o homem pode se entregar à satisfação sem escrúpulos" (p. 356), o que não arrisca fazer com sua esposa. Daí a "necessidade de um objeto sexual depreciado, de uma mulher eticamente inferior..." (p. 356).

Na sua música e na sua postura, Linn se assume eticamente inferior e fala exatamente desse lugar em que seria depreciado. E é essa a sua força.

Reproduzo textos de algumas músicas de Linn, retiradas do site https://m.letras.mus.br:

Coytada

Escuta bem que essa podia ser pra você, viu?
Na verdade quem sabe ela não é?
Coytada
Coytada
[...]
Tu podia ser o último boy do planeta
Que eu vou dar pra Deus e o mundo
Vou até dar pra o capeta!
[...] Mas se depender de mim
[...]
Tu vai morrer na punheta...
[...]
De santa eu não tenho nada
[...]
Seu vacilão, estou vacinada!
[...]
Graças a você sou arrombada

Serei a (part. de Liniker)

Serei a do asfalto
Rainha do luar
Entrega o seu corpo
Somente a quem possa carregar

Serei-a no asfalto
Rainha do luar
[...]
E, onda (h)á-mar, transbordar
Em água salgada lavar
E me levar
Livre, me love, me luta

Mas não se esqueça
Levante a cabeça
Aconteça o que aconteça
Continue a navegar
[...]

Continue a navegar
Continue a travecar
Continue a atravessar
Continue a travecar

Serei a do asfalto
Rainha do luar
[...]

E deixa que lave
Que leve, que livre
Que love, que lute!

Sobre Linn

"Eu quebrei a costela de Adão...
Muito prazer, sou a nova Eva
Filha das trevas, obra das trevas
Não comi do fruto do que é bom e do que é mau
Mas dechavei suas folhas e fumei sua erva..."

Essa é a letra de uma canção, entre muitas outras, que a maravilhosa e provocativa Linn da Quebrada nos apresenta no portentoso documentário Bixa Travesty... [...]

Não é docemente que a mulher nasce de Adão. É irrompendo, esfacelando, quebrando. Já um tremendo esforço de visibilidade e de existência. A mulher é obra das trevas. Do demônio?

O devir mulher se explicita em sua violência desde o início do filme, quando em um programa de rádio que apresenta junto com Jup do Bairro, sua querida Bebete, Linn afirma: "Nós vamos aprender as suas técnicas e nós vamos melhorá-las, nós vamos aprimorá-las e vamos usar entre nós. Vamos aprender a lutar, vamos pegar em armas, vamos pegar nos nossos corpos como armas e aí o jogo vai virar pra vocês. Eu não queria estar na pele de vocês".

É um discurso raivoso de mulher que luta por seus direitos. É um discurso feminista acentuado.

Ao se assumir mulher depreciada, Linn denuncia e faz um discurso feminista e necessário. Freud afirma:

para ser realmente livre e feliz no amor, é preciso haver superado o respeito ante a mulher... Quem [...] submeter-se a um sério autoexame certamente descobrirá que no fundo vê o ato sexual como algo degradante, que macula e polui não apenas o corpo. (1912/2013, p. 356)

É como se não houvesse saída não pecaminosa para a sexualidade... O fato de ser bixa travesty acentua o feminino degradado pelo mundo em que vivemos. Contrariamente ao que Freud afirma nesse mesmo texto quando fala da mulher, Linn deseja, e deseja muito... Freud afirma que na mulher não há necessidade de depreciar o objeto sexual, porque "ela não apresenta algo semelhante à superestimação sexual encontrada no homem" (p. 257). Será que ainda podemos afirmar isso hoje?

Lembro aqui a fala de Fernanda Lima, no programa da tv Globo "Amor e Sexo" (onde deram voz a vários trans) e que viralizou nas redes sociais:

Chamam de louca a mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, vida e tesão. Chamam de louca a mulher que resiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e que diz não. Não importa o que façamos, nos chamam de louca. Se levamos a fama, vamos, sim, deitar na cama, vamos sabotar as engrenagens deste sistema de opressão. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós! E todos vocês! Nossa luta está apenas começando, prepare-se porque esta revolução não tem volta. Vamos sabotar tudo isso?

No filme Bixa Travesty, um programa de rádio serve de fio condutor para ir apresentando Linn e Jupe.

No programa, Linn se apresente como Linn do Bairro e apresenta Jup como Jup da Quebrada.

Qual é bixa

Qual é veada

Afirma Linn: "Porque antes eu era um traveco, agora sou mulher, sim...".

Ou então: "Eu, quando alguém me aponta o dedo e fica gritando que sou veado, alguém faz alguma piada, eu penso: 'Gente, será que eu tava tentando disfarçar? Será que eles acham que precisam me lembrar disso?'."

[...]

"Eles acham que nós deveríamos curvar nossas cabeças e então atender essas expectativas. Então, se você quer ser mulher, tenha peito. Se você quer ser mulher, seja magra. Então, se você quer ser mulher, então você tem no mínimo que atender às expectativas do que é ser mulher... Não necessariamente...

Pode até ser se você quiser, se eu quiser...

Às vezes eu fico com um pouco de vontade... Vou confessar que às vezes eu quero mas aí eu nunca tenho certeza do quanto eu quero, se eu quero ter peito, se eu ter dois... se eu quero tirar o pelos." Em outro momento, Linn brinca: "Eu não tenho lugar de fala porque eu tenho passabilidade trans mas na verdade eu sou uma mulher cis".

Depois, rindo, pede que essa sua brincadeira não vá ao ar... É marota com o binarismo de gênero... Pode ser qualquer coisa...

Hoje, para nós, psicanalistas, coloca-se a questão de como dar conta desse questionamento do binarismo de gênero. Aliás, Freud, no terceiro item do texto "Sobre a mais comum depreciação na vida amorosa", coloca o quanto "a restrição cultural acarretou uma depreciação geral dos objetos sexuais". Mas reflete que a irrestrita liberdade sexual não levaria a um melhor resultado: "O valor psíquico da necessidade amorosa cai imediatamente, tão logo a sua satisfação se torna cômoda. É preciso um obstáculo para jogar a libido para o alto" (p. 359). O que embasa essa afirmação de Freud a não ser um conservadorismo que o leva a dizer que quando "a satisfação amorosa não encontra dificuldades, como durante o declínio da antiguidade, [...] a vida ficou vazia..." (p. 359).

Parece que Freud teme a força libertária de suas descobertas... A força pulsional, na busca desenfreada de satisfação, levaria à perda dos valores civilizatórios. Necessariamente. Haveria algo na natureza do próprio instinto que "não é favorável à sua plena satisfação" (p. 360). Sabemos dos desenvolvimentos de tudo isso nos textos posteriores. Nesse texto de 1912, Freud fala de uma insatisfação que adviria do fato de que o objeto de satisfação do instinto será sempre um substituto do original, que é constantemente perdido. O segundo fator teria a ver com a grande série de elementos que compõe o instinto sexual. Desses elementos, nem todos podem ser acolhidos em sua configuração posterior. Freud aqui se detém nos "elementos instintuais coprófilos" que seriam incompatíveis com "nossa cultura estética" (p. 361). "Quando adotamos a postura ereta, afastamos da terra o nosso órgão olfativo" (p. 361). Mas "o excremental se acha íntima e inseparavelmente unido ao sexual, a posição dos genitais [...] permanece o fator determinante e imutável..." (pp. 361-362). É aqui que Freud modifica a frase de Napoleão relativa à geografia e afirma: "Anatomia é destino". Os genitais permaneceriam animalescos, não belos. E "o amor permaneceu, no fundo, tão animal como sempre foi" (p. 362). Assim, não seria possível a conciliação entre a cultura e as exigências do instinto sexual.

Essa frase de Freud tem servido de apoio para aqueles que pensam a irredutibilidade do corpo biológico e que não levam em conta que esse corpo é sempre significado. Silvia Alonso (2016), na sua fala que abriu o evento "Corpos, sexualidades, diversidade", retoma a frase de Freud já em outro texto posterior, "O sepultamento do complexo de Édipo", de 1924, afirmando que a concepção freudiana de sexualidade leva a não nos atermos a frases como essa. O fato é que mesmo esse corpo biológico traz em si infinitas matrizes que permitem que o sujeito se singularize no seu jeito de se sexuar.

Chamou-me a atenção em Linn da Quebrada, que se define bixa travesty, o feminismo exacerbado. Um feminismo lutado em alguém que não fez a cirurgia de redesignação sexual e que não escolheu se hormonizar, vivendo muitas dúvidas em relação a isso.

"Esse lugar que eu tô, essa invenção, é o lugar que eu chamo de bixa travesty, que é travesty, é feminino, mas também tem o lugar de bixa, que não é uma mulher que eu sou, é esse lugar que é bixa travesty. E as gays, elas gostam de boy, de homens - não é um espaço que eles cultivam pelo feminino..."

Linn é mulher e é bixa. Esse lugar que é gay também e gosta de homens. Como homem ou como mulher? Ou isso não importa? Gender fucker?

De qualquer forma, é como bixa travesty que Linn vai delineando um feminismo radical, afirmando que os homens apontam o dedo pras mulheres [...] o dedo do homem que adora apontar pras coisas e dizer: "Mulher - lixo - casa".

"Dar nome, né, adora dar nome, dar sentido a essas coisas.

Então eu pensei - porque é que eu não posso fazer isso também. Eu fiz a minha música justamente como arma, pensando que o primeiro alvo era eu..."

É como travesty que o lugar da mulher ganha um questionamento radical: "Antes era impensável se pensar no corpo da travesti sem que ela estivesse extremamente ligada ao padrão do travesti... Tanto que as manos estavam muito mais sujeitas ao lance do silicone industrial, se sujeitando ao lance do silicone industrial e a hormonização. Eu acho que hoje a gente consegue pensar na travestilidade ou na feminilidade sem, por exemplo, ter que estar ligada à depilação. Sem ter que estar ligado a trejeitos extremamente femininos. [...] eu fico querendo entender como seria meu corpo com um pouco mais de feminilidade...".

Para Linn, o menosprezo pelo trans é o mesmo que pelo feminino. Como se no trans o feminino se exacerbasse. E não porque o trans acentua o que é do binarismo, mas porque ele confunde... E o feminino confunde. Em entrevista à revista Cult (Trói, 2017), Linn afirma que no sistema, no cis-tema " só valoriza os saberes hete rossexuais. [...] Foi cultuado um repúdio e aversão às pessoas trans, um menosprezo pelo feminino".

Linn conta que é na música que desconstrói seu desejo.

 

Considerações finais

Entre Freud autor do revolucionário "Três ensaios sobre a sexualidade" e o Freud que propõe a anatomia como destino, ficamos em torno de Linn da Quebrada e Jup do Bairro. Que nos ajudam a reler Freud e nos tornarmos ainda mais freudianos.

Em entrevista à revista Cult (Trói, 2017), Linn conta que leu e lê Foucault, Preciado, Butler. Define o queer, conceito de Judith Butler, para definir o corpo bizarro, o corpo abjeto, com o inominável, como aquilo que não pode ser fixo. Citando Linn na entrevista: " O queer é a dúvida, a incerteza, é uma ati tude em relação ao próprio corpo, não identidade". Em quase uma defesa da indiscriminação ou do desmanchamento de qualquer lógica aristotélica, Linn é bixa travesty.

Linn afirma que no sistema, no cis-tema, "só valoriza os saberes heterossexuais. [...] Foi cultuado um repúdio e aversão às pessoas trans, um menosprezo pelo feminino".

Linn conta que é na música que desconstrói seu desejo. Linn canta: "Tô vendo de camarote o fim do seu reinado, rindo muito da sua cara [...] quando tiver que ir embora não esqueça, deixa seu pau em cima da mesa [...] Bixa travesty de um peito só, o cabelo arrastando no chão e no meio sangrando um coração...".

Penso que, ao propor aqui a discussão entre destino e anatomia, só posso finalizar politizando a questão:

Em um dos programas de rádio, Jup conta a Linn que tinha resolvido vir de táxi, fazer algo diferente...

E o taxista perguntou: "Pra onde o senhor vai?".

Este é o diálogo de Jup com Linn:

"Fui explicar pro taxista:

Linn - Que nem toda mulher tem...

Jupe - Barba, mas é o meu caso...

Linn - Nem toda mulher tem xuxu, mas eu tenho.

Linn - Mas tem mulher que tem...

Jupe - Pinto...

Linnn - Olha que novidade!!!

Linn - Descubram novos corpos que se escondem entre vocês!

Jupe - Vai vasculhando que vai dar.

Linn relaciona seu corpo com a produção de saberes periféricos. Fala em "produção de saberes marginais": "Tem essa questão geográfica, mas acho que eu penso meu próprio corpo como esse território geográfico, como esse território a ser explorado, como essas quebradas, ainda pensando o corpo como essa arqueologia, como esse processo de escavação, de descoberta de territórios que modificam as coisas e as transformam, que me fazem outra mesmo".

E as possibilidades de encontros e desencontros vão se multiplicando ao infinito, pois "tem bixa que trava por medo de trava [...] e tem trava que trava-línguas e tem trava".

Linn é de uma lucidez cortante: "Eu acho que eu sou a trava que tem medo do escuro. Eu acho que é disso que eu tenho medo. Tenho medo do escuro, tenho medo de ficar sozinha Medo de não pertencer. Eu acho que pelo medo de não pertencer eu acabei inventando pra mim, pra que eu pertencesse pelo menos a mim. Já que não tem um lugar que me cabe, então que inventasse esse espaço, um espaço que me coubesse. Mas que também é temporário. Não quer dizer que eu vou caber aqui pra sempre. Logo eu acho que eu vou precisar estar indo pra outros lugares".

Aqui Linn desconstrói qualquer leitura moralizante de sua sexualidade e jeito de estar no mundo. Afinal, todos temos que nos reinventar para caber naquilo que é o nosso desejo.

Bixa Travesty deixa claro o não-lugar que constitui toda e qualquer sexualidade. Assim, Linn é mais feminista do que muitas mulheres, pois vive na pele a humilhação e o preconceito. Sua luta política é pelo amor: "Eu acho que é político a gente ser amado, é um dever, é um dever meu ser feliz, é um dever meu ter dignidade, estar contente com a nossa vida, nós travestis, mulheres pretas e travestis, mulheres brancas e travetis, bixa sapatão, bixa travesti, é um dever nosso estar bem, ser feliz, ser amada, Pra isso que eu sinto que eu vivo mesmo, é pra ser feliz".

Linn, como Laplanche, afirma o sexual como oposição ao sexo e ao gênero. Por isso incomoda tanto. Desvela o que o mundo adulto não pode ver. Desvela o que a sexualidade adulta recalcou. Desvela o que, nos Três ensaios sobre a sexualidade Freud mostrou de uma pulsão plástica e sem objeto predeterminado. O nome que isso venha a ter - polimorficamente perverso, trans, bixa etc. - pouco importa. Importa, sim, afirmar, com Linn, que amar é um ato político.

Não por acaso, Freud escolhe uma frase de Napoleão proferida em um momento de guerra. Sim, a geografia existe. Sim, o corpo é presença e imanência. Mas, assim como a geografia, há uma história e há infinitos sentidos nessa geologia pulsante. Geologia pulsante descoberta por Freud que, fruto de seu tempo e ao mesmo tempo revolucionário em sua descoberta do inconsciente e dos mundos pulsionais, oscilou entre a festa vegetal feminina e a razão masculina, eixos que percorrem sua grandiosa obra.

 

REFERÊNCIAS

Alonso, S. (2016). Sexualidade: destino ou busca de ma solução. In S. Alonso, D. M. Bretton, H. Albuquerque & L. Cartocci (orgs.). Corpos, sexualidades, diversidade (pp. 13-31). São Paulo: Escuta/Sedes.         [ Links ]

Chnaiderman, M. (2018). É possível ser gender fucker. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2(50), jan./jun., 9-22.         [ Links ]

Freud, S. (2013). Sobre a mais comum depreciação na vida amorosa. In S. Freud. Obras completas (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912).         [ Links ]

Laplanche, J. (2015). O gênero, o sexo e o sexual. In J. Lapanche. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006, 154-189. Porto Alegre: Fondation Jean Laplanche/ Dublinense. (Trabalho original publicado em 2003).         [ Links ]

Rizzo, S. (2006, 19 de março). "La Luna" sobrevive como um estudo freudiano radical. Folha de São Paulo, São Paulo, Ilustrada. Recuperado em 19 de março de 2006 da Folha Online: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1903200616.htm        [ Links ]

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Trói, M. de. (2017, 8 de agosto). Linn da Quebrada: ficou insustentável fingir que nós não existimos. Revista Cult. Recuperado em 8 de agosto de 2017 da Revista Cult online: https://revistacult.uol.com.br/home/entrevista-linn-da-quebrada        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
MIRIAM CHNAIDERMAN
Rua Maranhão 620/144
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Recebido 25.07.2019
Aceito 30.07.2019

 

 

1 Uso aqui o termo "instinto" por estar me baseando na tradução de Paulo César de Souza, embora prefira usar sempre o termo "pulsão". Não é este o espaço adequado para essa discussão, mas fica aqui registrada minha posição.

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