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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.41 no.67-68 São Paulo jan./dez. 2019

 

LITERÁRIAS

 

Crônica de domingo, 7 de julho de 2019: Joãozinho

 

 

Paloma Jorge Amado

Escritora

Endereço para correspondência

 

 

Morreu João Gilberto, meu querido amigo de infância (a minha infância). Era como um filho de papai, uma pessoa gentil, querida, bastante atrapalhada e engraçada. Seu talento, imenso, todo mundo sabe.

Para homenageá-lo, no dia seguinte à sua partida, peço a papai um texto seu, publicado em Navegação de cabotagem, assim ele também homenageia seu amigo e afilhado.

 

O casamenteiro

Fomos padrinhos, Zélia e eu, do casamento de João Gilberto com Astrud. O casal se separou nos Estados Unidos, para onde Joãozinho viajara a fim de participar de um show - obteve tamanho sucesso que ficou por lá anos a fio.

No dia do seu embarque, indo para o aeroporto, passou por nosso apartamento para o abraço de despedida, vestia roupa leve, própria para o verão carioca, em Nova York a crueza do inverno era manchete nos jornais. Ao vê-lo tão desagasalhado, retirei do guarda-roupa um sobretudo usado: "Vista-o ao desembarcar do avião, senão vai morrer de frio, pegar pneumonia". Essa a minha contribuição para o êxito do cantor nos States, o sobretudo que o salvou da pneumonia dupla.

Contribuí também para seu casamento com Miúcha: do primeiro matrimônio, fui testemunha, no segundo, funcionei de casamenteiro. Um dia recebi na Bahia um telefonema de Joãozinho, ligava de Nova York, aflito como sempre, não mudara, continuava o mesmo:

- Jorginho, você é muito amigo do Sérgio Buarque do Holanda, não é?

- Sou sim, Joãozinho, por quê?

Figura das mais fascinantes da comparsaria intelectual, Sérgio concedeu-me o privilégio de sua intimidade, coloquei-o de personagem em O capitão de longo curso, assim homenageio aqueles que mais estimo e prezo, pondo-os nas páginas de meus romances. Juntos, durante um congresso de literatura em Recife, fundamos na Igreja de São Pedro dos Clérigos a "Benemérita e Venerável Ordem do Hipopótamo Azul", dedicada ao trato das donzelas, e criamos a teoria das baquianas, "as balzaquianas quando baqueiam", baseada na agitação das literatas locais que cortejavam Eduardo Portella, o sedutor. Na época do telefonema o mestre historiador se vangloriava de ser o pai de Chico Buarque, compositor que estourara nas paradas de sucesso.

- Jorginho, estou apaixonado pela filha dele, a Miúcha, irmã do Chico. Miúcha anda por aqui, ela também gosta de mim, queremos nos casar, mas temos medo de que Sérgio se oponha, você sabe como é, deve ter ouvido horrores a meu respeito. Queria que você falasse com ele, pedisse a mão de Miúcha em casamento, para mim. Diga a ele que não sou tão ruim assim como dizem por aí.

Habituado a me envolver com a vida de Joãozinho, prometo interferir:

- Depressa, daqui a uma hora telefono de novo para saber o resultado.

Desligara agoniado, eu ainda procuro o número de Sérgio no caderno de telefones, Joãozinho volta a ligar:

- Eu tava tão vexado que não mandei um beijo para Zelinha.

Vexado, Joãozinho.

Disco o número paulista, Amélia atende, trocamos gentilezas, desejo falar com vosso ilustre consorte. Sérgio vem ao telefone, sabendo que sou eu, começa a imitar sotaque holandês, é de morrer de rir mas eu me ponho sério para lhe informar:

- Te telefono para pedir a mão de tua filha Miúcha em casamento.

- Hem? Que história é essa? - abandona o acento batavo, coloca-se em posição de defesa, que peça estou querendo lhe pregar?

- Não é para mim, é para João Gilberto, estão apaixonados, querem se casar, ele pediu que te dissesse que não é tão ruim assim, tão má pessoa como consta por aí, não deves acreditar nas más línguas...

Falo a sério, relato a conversa de Joãozinho, telefonema em dólares de Nova York, repetida, esquecera o beijo para Zélia. Empolga-me a paixão dos dois cantores, coisa linda, faço o elogio do candidato a genro e o faço com amor. De Joãozinho sei o direito e o avesso, do menino de Juazeiro nas barrancas dos São Francisco ao músico ainda desconhecido, lutando no Rio em dias de aperto, sou seu parceiro, fiz a letra do "Lamento de Marta", composto para o filme de Alberto D'Aversa. Quando solteiro, Joãozinho aparecia à noite no apartamento da Rodolfo Dantas, trazia o violão, ficava até a madrugada, cantando. Acontecia que Zélia e eu, cansados, íamos dormir. Joãozinho prosseguia em companhia de João Jorge, menino ainda, privilegiado. João Gilberto tocava, cantava, tendo como ouvintes apenas o moleque e o pássaro sofrê: vivia solto na sala e assobiava as músicas que Joãozinho dedilhava no violão.

Sérgio escuta em silêncio minha lenga-lenga, a proclamação das virtudes de Joãozinho, gênio musical, amigo terno, pessoa amorável. No dia seguinte, toma o avião para Nova York, vai estudar o assunto in loco, apaixona-se pelo candidato, só podia acontecer.

Para terminar um post-scriptum: já levava João Gilberto vários anos residindo nos Estados Unidos quando um dia apareceu-me em casa um portador trazendo uma encomenda enviada pelo músico: um sobretudo novo em folha, soberbo, eu o usei por um longo tempo, ainda o tenho. Ou será que dei a João Jorge, o ouvinte solitário, o privilegiado?

Um bom domingo a todos. Domingo mais triste, menos bonito, domingo de silêncio sem a presença de Joãozinho.

 


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Endereço para correspondência:
PALOMA JORGE AMADO
Rua Padre Camillo Torrend, 65/301
40210-650 – Salvador-BA
palomajamado@gmail.com

Recebido 11.07.2019
Aceito 20.07.2019

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