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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

Lugar e não-lugar no mundo virtual. Notas sobre criatividade e territórios de existência na rede

 

Places and non-places in the virtual world. Notes on creativity and territories of existence in the Web

 

Lugar y no lugar en el mundo virtual. Notas sobre creatividad y territorios de existencia en la red

 

 

Junia de VilhenaI*; Joana de Vilhena NovaesII**

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
IIUniversidade Veiga de Almeida - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do conceito de lugar e não-lugar de Marc Augé, tomado emprestado da geografia e da antropologia, discutiremos o uso do espaço virtual como possibilidade de diferentes formas de subjetivação. A importância que os territórios físicos e virtuais adquirem na forma como nos constituímos, os usos que fazemos de ambos e como navegamos nesses espaços serão analisados à luz das contribuições de Pierre Lévy e de Donald Winnicott. Tomando Winnicott como interlocutor no campo psicanalítico, em suas postulações acerca do olhar e da localização da experiência cultural, vamos investigar o lugar da experiência virtual como possibilidade de um novo território de existência. Se, para Pierre Lévy, a virtualidade está estritamente vinculada à criatividade, para Winnicott, antes de olhar criativamente o mundo, o indivíduo deve te r internalizado a experiência de ter sido olhado. Trata-se, portanto, de discutir as múltiplas possibilidades que o mundo virtual pode oferecer como experiência de olhar ou de não ser visto. Em outras palavras, a leitura da internet como um lugar ou não-lugar dependerá dos usos que o sujeito faz de seus recursos, da relação que estabelece com os mesmos e consigo mesmo.

Palavras-chave: território, não-lugar, virtualidade, criatividade, olhar.


ABSTRACT

Based on Marc Augé's concept of places and non-places, and borrowing from Geography and Anthropology, we shall discuss the use of virtual space as a possibility of different forms of subjectivity. The importance that physical and virtual territories have acquired in the way we are made, the uses we make of both and how we navigate these spaces will be analyzed in the light of Pierre Lévy's and Donald Winnicott's contributions. Taking Winnicott as an interlocutor in the psychoanalytic field, in his postulations about the perspective and the location of cultural experiences, we will investigate the place of virtual experience as the possibility of a new territory of existence. To Pierre Lévy, virtuality is closely linked to creativity; Winnicott, on the other hand, tells us that, in order to look at the world in a creative way, an individual must, above all, have internalized the experience of being looked at. It is therefore the case of discussing the many opportunities that the virtual world can offer as an experience of looking or of not being seen. That is, reading the internet as a place or a non-place will depend on the uses which an individual makes of its resources, and on the relationship established with them and with him or herself.

Keywords: territory, non-places, virtuality, creativity, looking.


RESUMEN

Desde el concepto de lugar y no lugar citado por Marc Augé y que proviene de la geografía y de la antropología, discutiremos el uso del espacio virtual como una posibilidad de diferentes formas de subjetivación. La importancia que adquieren los territorios físicos y virtuales en la forma en que nos constituimos, los usos que les damos y cómo navegamos en estos espacios se analizarán a la luz de los aportes de Pierre Lévy y de Donald Winnicott. Considerando a Winnicott como interlocutor en el campo psicoanalítico, en sus postulados sobre la mirada y la ubicación de la experiencia cultural, vamos a investigar el lugar de la experiencia virtual como un nuevo territorio posible de existencia. Si para Pierre Lévy la virtualidad está íntimamente relacionada a la creatividad, Winicott nos dice que el individuo, para ver el mundo creativamente, antes que nada, debe haber internalizado la experiencia de haber sido observado. Se trata entonces de discutir las múltiples posibilidades que el mundo virtual puede ofrecer como experiencia de observar o de no ser visto. Es decir, la lectura del internet como un lugar o no lugar dependerá del uso de los recursos por parte del individuo, de la relación que establece con los mismos y consigo mismo.

Palabras clave: territorio, no lugar, virtualidad, creatividad, mirada.


 

 

Introdução

Em A cidade e a cidade, em uma ambientação semelhante a Blade Runner, Miéville (2016) descreve as cidades de Ul Qoma e Beszel como duas cidades que ocupam o mesmo lugar geográfico, que possuem suas zonas exclusivas, além de espaços de cruzamento pelos quais as pessoas podem passar, mas não interagir. As duas cidades são formas de criar uma consciência do não-real, que é em si um espaço determinado pela experiência de estar fora do território, de deslocalização ou de perda de lugar. Pode-se ver, mas deve-se "desver" o que não é permitido ser visto. Fronteiras imaginárias são erguidas e ultrapassá-las é passível das mais terríveis punições. Cruzar fronteiras é pior do que um assassinato.

Buscar-se-á, neste artigo, traçar um paralelo entre os trajetos feitos no universo real da cidade e os caminhos percorridos no mundo virtual. Tal será feito, objetivando analisar o papel dos territórios, físicos e virtuais, enquanto importantes agenciadores de subjetividade. O que vemos e como vemos é modulado a partir da geografia e do lugar de pertencimento. Winnicott (1975) nos diz que, para olhar criativamente e ver o mundo, o indivíduo, antes de tudo, deve ter internalizado a experiência de ter sido olhado. Sendo assim, nos indagamos: o que será que a tela nos devolve?

Partindo do conceito de lugar e não-lugar, tomado emprestado da geografia e da antropologia, discutiremos o uso do espaço virtual como possibilidade de diferentes formas de subjetivação. Se o lugar nos fornece um sentido, uma identidade e uma história, os "não-lugares", conceito cunhado por Augé (1994), são espaços nos quais não estão simbolizadas nem identidade, nem relação, nem história. Contudo, se do lado do lugar [tradicional] há o sentido, há também a não-liberdade, a coação. Do mesmo modo, do lado do não-lugar, há uma liberdade individual que pode chegar ao absurdo e à perda de identidade.

É nesse interjogo que buscamos investigar a relação do sujeito com o mundo virtual. Ou seja, a leitura da internet como um lugar ou não-lugar dependerá dos usos que o sujeito faz de dos recursos tecnológicos, da relação que estabelece com eles e consigo mesmo. Nas palavras de Lévy (1999, p. 17): "Nem a salvação nem a perdição residem na técnica. Sempre ambivalentes, as técnicas projetam, no mundo material, nossas emoções, intenções e projetos. Os instrumentos que construímos nos dão poderes, mas coletivamente responsáveis, a escolha está em nossas mãos".

 

Lugar e não-lugar

Se lugar e não-lugar representam, simultaneamente, o tempo passado bem como um provável futuro, a relação entre lugar antropológico e não-lugar nos conduz a pensar uma realidade entre o que fomos/somos e aquilo em que poderemos nos tornar, ou melhor, aquilo em que estamos nos tornando (Sá, 2014).

O lugar é um campo de construção da vida social em que se entrecruzam, no tempo plural do cotidiano, os fluxos dos acontecimentos e os fixos, o incontável arsenal de objetos técnicos. Desse modo, cada espaço é global e particular, expressa o mundo e as condições próprias e singulares de sua constituição. Segundo Augé (1994), os "lugares" são fundamentais porque são identitários, relacionais e históricos. Os sujeitos ligam-se aos lugares e os reconhecem no curso de sua vida. Há o lugar onde se nasceu, o lugar de onde se vem, o lugar onde se trabalha, o lugar onde se mora. Em síntese, um lugar pode ser simbolizado. É a partir de um lugar que falamos e que somos ouvidos; que respeitamos e somos respeitados; que nos sentimos incluídos ou à margem (Vilhena, 2002).

O espaço torna-se, então, um campo de construção da vida social onde se entrecruzam, no tempo plural do cotidiano, os fluxos dos acontecimentos e o incontável arsenal de objetos técnicos. Cada espaço é, portanto, global e particular; expressa o mundo e as condições próprias, singulares de sua constituição. " De acordo com a apropriação metafórica do espaço, o contexto entre diferentes posições subjetivas implica um julgamento simultâneo de identidade, como de diferença, um julgamento social sobre a identidade do sujeito e seu posicionamento vis-à-vis outros" (Smith, 1994, p. 184).

Segundo Sá (2014), na medida em que a pós-modernidade é marcada pela abundância de eventos, superabundância espacial e exacerbação do individualismo, o não-lugar torna-se a expressão paradigmática desse tempo. Talvez por isso, Augé (1994) centra-se nos não-lugares, buscando explicitar a forma como certos espaços construídos estão nos transformando em "outros". Para o autor, tais espaços são construídos, deliberadamente, de forma a possibilitar "fazer cada vez mais coisas em menos tempo" (Augé, 1994, p. 57). Daí observarmos a busca, sempre presente em Augé, por identificar em que medida os "não-lugares" podem provocar uma perda de nós mesmos como grupo e sociedade, prevalecendo agora apenas o indivíduo "solitário". Nesse sentido, caberia indagarmo-nos em que medida nossa vivência será a de viver, isoladamente, como em UlQoma ou em Beszel do romance citado.

Também para Freud (1924/1980) existem duas realidades, mas vejamos como estas operam. A Wirklichkeit seria a realidade do fato em si, da coisa em si mesma; enquanto a Realität seria uma realidade representacional, que vincula o sujeito ao fato em si que o representa. Como coisa em si, a Wirklichkeit constitui-se na forma de uma realidade inapreensível e incognoscível ao indivíduo. A Realität , por sua vez, corresponderia, globalmente, ao que está fora do psíquico: a natureza, os semelhantes, a realidade social ou objetal e até ao próprio corpo biológico. Dessa forma, tudo o que está fora do psíquico corresponderia à energia que nosso aparato perceptivo é capaz de registrar quando essa energia não excede certas condições. Será a forma como o sujeito assimila suas experiências que determinará o processo de transformação. Além disso, a realidade percebida acaba tendo, muitas vezes, uma íntima relação com aquela idealizada. O que mais importa ao aparelho psíquico é a realidade do objeto e a possibilidade de produzir um vínculo a partir dele.

Esse talvez seja o ponto que mais nos interesse: é possível "produzir um vínculo" apenas através da virtualidade? É possível, igualmente, usando ainda a mesma metáfora, navegar entre as cidades e com elas interagir?

Para Certeau (1998), menos pessimista, é a prática que faz o lugar. As formas como os sujeitos modificam o lugar, a partir de suas apropriações, ocupações e vivências, transformam-no em um "lugar praticado". Daí talvez seu interesse pelos andarilhos. Sua abordagem centra-se nas práticas comunicacionais, na linguagem e mesmo nas caminhadas na cidade como formas de o sujeito se inserir no mundo. Constituem-se em significados e discursos enquanto produtos das interações entre o sujeito e o mundo, diferenciando lugares e espaços pela forma de apropriação dos sujeitos.

Ressaltando a dimensão da alteridade no lugar antropológico, Augé (1994, p. 158) afirma: " Se a tradição antropológica ligou a questão da alteridade (ou da identidade) à do espaço, é porque os processos de simbolização colocados em prática pelos grupos sociais deviam compreender e controlar o espaço para se compreenderem e se organizarem a si mesmos".

O autor toma como exemplo a aldeia dos Bororos, citada por Lévi-Strauss (1993), como paradigma da forma como a mudança espacial imposta pode determinar o fim de uma organização política e social. Organizada em círculo, originalmente, a aldeia foi transformada pelos missionários salesianos que impuseram uma linearidade para eles desconhecida. O resultado foi a perda do sentido de suas tradições e de sua própria cultura.

Mas, se organização espacial é tão determinante, como se dará essa relação onde o espaço tem características tão singulares?

Seguindo a definição de Augé (1994), a Internet poderia ser lida como não-lugar nos momentos em que, imersos nessa nova realidade, nos perdemos no universo de nuvens, mercadorias e informações: lemos e-mails de trabalho, compramos, jogamos, criamos avatares para as redes sociais, enfim um leque de possibilidades se abre à nossa frente. Podemos ser quem desejarmos e estar em vários lugares simultaneamente, ou podemos não ser ninguém e nos perdermos nessa multiplicidade de tarefas e lugares .

Os limites, a história e as relações parecem estar diluídos e fragmentados em aplicativos, redes sociais e nuvens que nos permitem expandir a informação e a experiência para espaços antes inconcebíveis. Contudo, ainda que os "não-lugares" virtuais tragam novidades e praticidade para a rotina do homem pós-moderno, em uma visão mais pessimista, ou realista, eles podem transformar "o mundo em um espetáculo com o qual mantemos relações a partir das imagens, transformando-nos em espectadores de um lugar profundamente codificado, do qual ninguém faz verdadeiramente parte" (Sá, 2014, p. 211).

Entendemos, com isso, que levar uma vida social ausente da mediação eletrônica já não é mais uma opção. Consequentemente, a morte social está à espreita dos que ainda não se integraram ao ciberworld . Para o psicanalista francês Enriquez (2006, p. 49), "a parcela da intimidade, a vida de cada pessoa, agora deve ser exposta no palco público [...] aqueles que zelam por sua invisibilidade tendem a ser rejeitados, colocados de lado ou considerados suspeitos de um crime".

Mas, se a tecnologia chegou para ficar, não podemos acreditar que o sujeito se encontre passivamente face aos seus "malefícios". Quando falamos de sujeito, falamos de singularidade, de diferentes apropriações e usos do objeto e de potencialidades múltiplas, pelo menos para uma parte dos sujeitos. Se falarmos de conformismo, falaremos, igualmente, também de resistência.

Nesse sentido, indagamos: será possível transformar o ambiente? Mais especificamente, como transformar o não-lugar em território propício a novas construções subjetivas, posto que, apesar de sermos seres singulares, nossa maneira de nos colocarmos no mundo não está separada do contexto no qual estamos inseridos. Nossa hipótese caminha no sentido de investigar o lugar da criação como possível facilitador para determinados sujeitos.

 

O mundo virtual como possível espaço de acolhimento e de criação

A definição de Lévy (1996), um dos principais pensadores da era da informação, nos ajuda a ampliar o conceito de virtual para além da alienação, do espetáculo e do vício, uma vez que o autor o define não como o irreal, mas como uma realidade que tem suporte na coordenada do tempo (perceptivo/cognitivo), independentemente da fisicalidade do espaço. Nas palavras do autor: " O virtual, rigorosamente definido, tem somente uma pequena afinidade com o falso, o ilusório ou o imaginário. Trata-se, ao contrário, de um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença física imediata" (Lévy, 1996, p. 12).

O autor nos relembra, ainda, que a imaginação, a memória, o conhecimento, a religião são vetores de virtualização que nos fizeram abandonar a presença muito antes da informatização e da criação das redes sociais.

Desse modo, podemos entender o espaço virtual como um lugar de identificação e de criação do indivíduo que vive experiências, cria e produz informação que alcança localidades surpreendentes. Se, até então, o território tinha certa ligação com a localização geográfica, ele passa a ganhar novas configurações, o que não quer dizer que não funcione mais como um lugar para o sujeito contemporâneo. Segundo Lévy (1999, p. 194), "o ciberespaço é efetivamente um potente fator de desconcentração e de deslocalização, mas nem por isso elimina os 'centros'". Dias (2016), ao se referir à teoria de Haesbaert (1995), afirma que os territórios

Não desaparecem, mas mudam de lugar, adquirindo um novo sentido relacional. As relações estabelecidas pelas novas tecnologias seriam então desterritorializantes, mas nem por isso deixam de fomentar novas reterritorializações, conduzindo a uma ideia de mundialização dos lugares e territórios. Segundo a interpretação de Haesbaert (1995), o resultado desse processo não é o desaparecimento dos lugares e territórios, mas sua multiplicação, o que facilita o reconhecimento e sentimento de pertencimento das pessoas a novos territórios, mesmo que sejam virtualizados (Haesbaert, 1995, citado por Dias, 2016, p. 51).

Conforme aponta Schneider (2015), comentando o trabalho de Augé (1994), as noções de espaço e lugar têm ali seu surgimento como conceitos-chave, sendo que "o lugar é aquele em que o indivíduo se encontra ambientado, no qual está integrado. O lugar não é toda e qualquer localidade, mas aquela que tem significância afetiva para uma pessoa ou grupo de pessoas" (Schneider, 2015, p. 68). Por isso, o lugar é o espaço vivido, carregado de afetividade e significados.

O conceito de ambiente deriva do latim ambiens, aquilo que tem a propriedade de envolver algo. Em sua conceituação mais geral, fala dos diferentes espaços nos quais somos envolvidos ou enlaçados. Essa palavra aqui nos parece importante, na medida em que fala dos espaços nos quais criamos laços (os quais, em última análise, são sociais).

Winnicott (1975), em O brincar e a realidade, já pensava a importância do lugar e da cultura no acolhimento e na constituição dos sujeitos. No capítulo A l ocalização da experiência cultural, o autor indaga acerca do lugar onde vivemos: " Quando se fala de um homem, fala-se dele juntamente com a soma de suas experiências culturais. O todo forma uma unidade" (Winnicott, 1975, p. 157). Ao utilizar o termo cultura, o autor se refere à tradição que herdamos, a alguma coisa que é o lote comum da humanidade para o qual os indivíduos e os grupos podem contribuir e de onde cada um de nós poderá retirar alguma coisa, se tivermos um lugar onde colocar o que encontramos.

Também fala de um lócus desterritorializado e regido por uma temporalidade própria entre a realidade interna e a externa, o sujeito e seu ambiente. "O lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente, originalmente, o objeto" (Winnicott, 1975, p. 159). O autor e mprega o termo experiência cultural como uma extensão das ideias de fenômenos transicionais de brincar.

Em sua preocupação com o que considera a "natureza humana", Winnicott (1975) afirma que não há como negligenciar a importância da relação primordial do ser vivo com o mundo, assim como também não podemos deixar de conceder uma primazia ao plano imediato da vida. Desde nosso início enquanto seres vivos nos constituímos em um espaço "entre", que não pertence nem à dimensão externa nem interna, mas que, simultaneamente, pertence a ambas, uma vez que nos constituímos apenas a partir de nossa relação com o meio: "É nesta zona indeterminável, lugar abstrato não localizável, a partir do qual tudo se determina, nesse interstício da atividade simbólica com o vivido na experiência, que encontramos a área de ilusão ou espaço potencial, zona fronteiriça onde o gesto espontâneo e criativo acontece" (De Leo, 2005, p. 37).

Como apontam Vilhena, Bittencourt, Novaes e Rosa (2017), colocando em evidência o lugar da criatividade no embate com a realidade, Winnicott (1975) defende a necessidade de uma afirmação da natureza humana em termos de um triplo enunciado, inserindo, entre a realidade interna e a externa, uma "terceira parte da vida", que constitui uma área intermediária de experimentação, lugar de repouso para o indivíduo, empenhado na perpétua tarefa de manter as realidades interna e externa separadas ainda que inter-relacionadas. O lugar da experiência cultural, assim como do brincar, é o espaço transicional.

Inicialmente, esse ambiente está localizado na figura da mãe ou de alguém responsável pelos cuidados para com o bebê. Na medida em que o tempo passa, o ambiente também se transforma, localizando-se na experiência cultural. Assim, nos diz Winnicott (1975):

Chamo a atenção para o fato de que não se pode fazer uma descrição do desenvolvimento emocional do indivíduo inteiramente em termos do indivíduo, mas considerando que em certas áreas - e essa é uma delas, talvez a principal - o comportamento do ambiente faz parte do próprio desenvolvimento pessoal do indivíduo e, portanto, tem de ser incluído (Winnicott, 1975, p. 79).

Assim, tomando como referência a forma como Winnicott concebe a experiência cultural, podemos afirmar que a mesma pode funcionar como aquilo que ativa os processos criativos e que, em nossa configuração existencial, pode ser o cerne do "verdadeiro self". Nas palavras do autor, o "ambiente influi diretamente nos processos criativos". Essa afirmação tem implicações importantes, uma vez que, para Winnicott (1975, p. 87), "somos incessantemente constituídos por um ambiente que extrapola os limites do âmbito familiar" localizando-se, portanto, na experiência cultural.

O conceito de "viver criativo" implica a possibilidade de ter experiências provenientes do âmago do ser psicossomático, onde existem entrega e fruição do prazer, intensidade, onde o tempo e o corpo estão em sinergia com o ambiente através do sentir e da afetividade. Em outras palavras, o indivíduo saudável winnicottiano é aquele capaz de realizar o potencial do seu ser através de ações em que seu corpo (soma), em conjunto com a psique (emoções, afetos) e a mente (intelecto) compõem uma só unidade.

Ainda segundo o autor, é o viver criativo que dá sentido à existência e ao sentimento de que a vida vale a pena ser vivida. Sem isso, viver ou morrer não faria diferença, posto que, nesses casos, "tudo o que importa e é real, pessoal, original e criativo permanece oculto e não manifesta qualquer sinal de existência" (Winnicott, 1975, p. 99). Ou seja, é o viver que se encontra destituído de seu poder de criação.

A experiência criativa se localiza em um espaço intermediário entre o objetivo e o subjetivo, entre a presença e a ausência, entre o dentro e o fora. É uma área de mutualidade, de experiência compartilhada, de superposição do espaço psíquico da mãe e do bebê. Esse terceiro espaço é o local da experiência cultural, do viver criativo e do gesto espontâneo. Na criatividade, não há submissão; existe liberdade, transformação e sanidade (Vilhena et al., 2013). É através da percepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida.

Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, pelo qual o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que se ajustar ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à ideia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida. "Muitos indivíduos experimentaram suficientemente o viver criativo para reconhecer, de maneira totalizante, a forma não criativa pela qual estavam vivendo, como se estivessem presos à criatividade de outrem, ou à de uma máquina" (Winnicott, 1975, p. 95).

A questão que se coloca, então, é: seria possível pensar o espaço virtual também como um espaço de criação que, ao acolher o sujeito, favoreceria a experiência de si? Para Lévy (1996), a virtualização é, por definição, criadora, uma vez que a problematização faz parte de sua essência. Pessoas inconformadas com o status quo estão sempre criando novos cenários, novas formas de fazer o que fazem e criando novas funcionalidades para o que já existe. Nos dizeres do autor, "a virtualidade passa de uma solução dada a um outro problema" (Lévy, 1996, p. 18).

Seria igualmente possível pensar o ambiente virtual como um local que envolve, acolhe e possibilita a criação de laços? Essa acepção de ambiente não é nova. Ela fora outrora descrita, em termos muito semelhantes, por Winnicott (1975), ao falar do "ambiente suficientemente bom". Referia-se o autor àquele ambiente que oferece as condições favoráveis, em termos físicos e psicológicos, com as quais o indivíduo convive, adequadas o suficiente às suas necessidades, de modo a favorecer os processos de maturação da personalidade (integração, personalização e realização).

 

Novos territórios? Novas formas de existência?

Augé (1994, p. 74) nos fala de "Um mundo prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório, ao efêmero". Em um interessantíssimo artigo em que discute o conceito de lugar e não-lugar, relacionado ao aplicativo Foursquare, Reis (2013), utilizando a perspectiva do Interacionismo simbólico, propõe estender tal conceito a partir da transformação desses lugares ausentes de significado, entendendo que os rastros deixados pelos indivíduos no Foursquare, suas inserções textuais e imagéticas, compõem discursos particulares e únicos, intensamente subjetivos, assim como os relatos de viagem dos quais fala Certeau: "Camadas simbólicas de indivíduos que se apropriam de locais que, de acordo com a perspectiva de Augé se encaixariam perfeitamente em sua categorização relacionada aos espaços de fluxos da supermodernidade" (Augé, p. 145)1.

Para Augé (1994), o conceito de pós-modernidade, quando de sua elaboração, aparentava inegável pertinência; mas hoje, dadas as novas configurações tanto subjetivas, quanto espaciais e informacionais inauguradas pela comunicação e interação em rede, são necessários novos estudos e sua relativização.

Se pensarmos com Rorty (2000), veremos que a linguagem seria um instrumento de que o homem dispõe para redescrever a realidade de diferentes formas, de modo a lidar com certas condições temporais e históricas nas quais se encontra inserido. Essas formas incluem objetivos culturalmente construídos que, não sendo universais, são compartilhados pelos membros de uma comunidade específica. É ancorado na linguagem que todo o conhecimento se produz, o que significa enfatizar a necessidade inerente a todos os seres vivos de lidar com as diversas contingências de seu ambiente.

Não há espaço, nessa concepção, para aceitar a ideia de um conhecimento capaz de transcender o próprio tempo, buscando verdades universais. Só o que temos é a linguagem, que estabelece relações diversas entre os objetos do mundo.

Se, para Rorty (2000), a linguagem permite ao homem a capacidade para agir, de acordo com diferentes circunstâncias de seu ambiente, através da possibilidade de redescrever as relações entre as coisas, para Winnicott (1975), não se pode sequer pensar em um bebê ou em um indivíduo independente de sua inserção na cultura.

 

Considerações finais

Dissemos, anteriormente, que o s sujeitos se ligam aos lugares e os reconhecem no curso de suas vidas. Por isso, reafirmamos que é também no lugar, enquanto construção social, que os sujeitos produzem sua subjetividade. É a partir de um lugar - inicialmente representado pelo círculo materno/infantil - que falamos e somos ouvidos, respeitamos e somos respeitados, sentimo-nos incluídos ou à margem.

As condições de pertencimento dos sujeitos aos grupos sociais estão inscritas dentro e fora do lugar. Acreditamos que os sujeitos fazem escolhas sim, mas que suas alternativas estão codificadas nos limites de um meio-ambiente facilitador ou não, de uma cultura de compartilhamento ou de segregação. Buscar pertencer é, para os sujeitos, incluir-se em determinados circuitos, estar em consonância com outros sujeitos na luta pela sobrevivência e pelo reconhecimento (Vilhena, 2014, p. 296).

Em uma sociedade profundamente individualista, pouco inclusiva e intolerante, seria possível pensar o espaço virtual como uma das possíveis estratégias do sujeito para sentir-se acolhido e não sucumbir à indiferença? Poderíamos pensar esse espaço como um que lhes foi possível criar? Ou, como apontamos no estudo anteriormente citado, uma desconstrução foi possível através da criação de uma nova malha discursiva?

Retomando Winnicott (1975), para olhar criativamente e ver o mundo, o indivíduo, antes de tudo, deve ter internalizado a experiência de ter sido olhado. Assim, para poder especular sobre si e sobre o mundo, a pessoa deve primeiro ter sido olhada com interesse por alguém. Na introdução de seu livro A criança e seu mundo, Winnicott (1971, p. 10) afirma que "todo indivíduo mentalmente são, todo aquele que se sente como pessoa no mundo e para quem o mundo significa alguma coisa, toda pessoa feliz, está em débito com uma mulher". Mais ainda, esse alguém deve ter olhado para essa pessoa com sua alma para poder permitir ao outro a possibilidade de perceber em si mesmo a alma que nele habita.

Como lembra Plastino (2009), na visão winnicottiana, o surgimento da criatividade vem dos sofrimentos de cada homem, de sua felicidade, da integração de suas tendências eróticas e agressivas. As modalidades de sua inserção na vida social dependem da qualidade do seu desenvolvimento emocional, indissociável da qualidade dos cuidados recebidos. Isto posto, é legítimo afirmar haver espelhos maternos bons, ou suficientemente bons, e espelhos maternos que se refletem em humores próprios, não refletindo o bebê e, sim, a mãe. E o bebê se depara com uma imagem que não entende e é forçado a entender cedo demais .

Se pensarmos a tela tão somente enquanto máquina, vislumbraremos um olhar vazio, sem vida! Há uma discrepância, contudo, fundamental entre o sujeito-gente, vida, e ela-máquina, inanimada. Daí evocarmos mais uma questão. De qual premissa devemos partir: o sujeito contemporâneo se utiliza da virtualidade para se manter como um ser desejante, uma vez que necessita de um olhar vazio e de expectativas, para depois seguir sua busca pelo mundo dos olhares, até sentir falta de algum? Ou, ao contrário, o sujeito se utiliza desse olhar morto para amortecer seu desejo, matá-lo dentro de si? Desejo de tocar aquilo que o olha, mas que não se pode ter?!

A qualidade "potencial" de um espaço intermediário pode se manifestar através do hiato entre o sujeito e o mundo que poderá ser ou não preenchido por representações substitutivas ou pela atividade lúdica. Talvez por isso esse espaço possa representar o sonho ou o pesadelo, a criação ou a alienação, a potência ou o assujeitamento.

Tudo aquilo que se vê nos devolve a mirada. E o que fazer a cada olhar devolvido? Do simples plano óptico enxergado surge uma potência visual, uma disponibilidade para o visual. Ainda assim, o olhar é também uma ação que precede uma perda: a perda da fantasia, da imaginação ou até mesmo da sanidade (Didi-Huberman, 1998).

Nesse caso, percebemos haver um jovem que olha para uma tela virtual, holográfica, na qual tudo é possível. Os olhos que fitam a tela podem exceder fertilidade, desejo e esperança. Vorazes pela experiência de uma outra existência. Mas afinal, o que a tela lhe devolve? O que esse sujeito veria refletido?

Segundo Lispector (1999, p. 18), em seu conto "Espelhos", "Não existe a palavra espelho - só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelho. Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente, sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe.

Continua Clarice:

Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente, sem deixar nele o vestígio da própria imagem - então percebeu o seu mistério (Lispector, 1999, p. 18).

A realidade cibernética oferece a possibilidade de outro espaço, que não exige a devolução do olhar nos termos de um encontro presencial. Existe uma tela protetora que filtra a esperança e a humanidade desse desejo. Afinal, quem olha pode estar fantasiado, assumindo inúmeras identidades, ou igualmente pode estar transmutado em um holograma e, por isso, pode não necessitar da espera para ser percebido.

As mudanças na vida coletiva incidem sobre o psiquismo dos sujeitos singulares, e essa incidência confirma que o sujeito do inconsciente sofre as mutações de um laço social agora marcado pelo esfacelamento da interação entre o singular e o coletivo.

Segundo alguns autores, a sociedade contemporânea estaria marcada pela ausência de referenciais externos na formação de identidades. Giddens (2003) e Bauman (2001) apontam para as identidades e alteridades líquidas. Inúmeros outros enfatizam o individualismo exacerbado (Lasch, 1987) pela competitividade em todos os campos da vida. Para Dufour (2010), uma nova economia psíquica está se constituindo e, por isso, é importante atentar para as modificações que o social e a lógica do mercado liberal impõem aos sujeitos. Nesse contexto, a noção de coletivo acaba por ficar ofuscada pelo brilho excessivo do individualismo narcísico, fruto da necessidade diária de tomar atitudes conquistadoras/dominadoras/fálicas (Ehrenberg, 2010).

Mas, como sabemos que não há laço natural, na medida em que vivemos no mundo da linguagem, é possível que o sujeito encontre na virtualidade o terreno fértil para expressão dessa experiência quando este lhe é "suficientemente bom", parodiando Winnicott (1975)?

Nesse sentido, podemos pensar a rede como um espaço onde, tal qual a cidade, podemos não ver o outro e podemos existir sem sermos vistos, lançados em nosso desamparo e, aparentemente, reduzidos à materialidade da vida biológica - a vida nua, como Giorgio Agamben (2002) definiu na introdução de seu livro Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua . O não-lugar descrito por Augé (1994). Como em UlQoma e Beszel, fingimos também desconhecer que não é necessário haver grades para haver cercas e muros e que estes não são objetos inertes e, sim, discursos que produzem respostas e agenciam subjetividades. Olhe a sua volta: existe outra cidade dentro da sua cidade, mas você não está vendo. Você mesmo é invisível a determinadas pessoas. Essa é a mensagem de Miéville (2016).

A vida cultural e o contexto no qual nos encontramos inseridos tem implicação direta na maneira pela qual somos constituídos. Vale dizer, portanto, que todo o psíquico é, desde sempre, também social.

Ao postular a emergência mútua do sujeito e da realidade externa, no espaço intermediário de experiência e comunicação, Winnicott (1975) faz emergir uma outra compreensão do jogo do mundo e do pensamento. A criatividade, que implica levar em conta o ambiente, é a condição de possibilidade da experiência de ser: sentimento de estar vivo, de existir de maneira viva. Pode ser também uma nova forma de viver a cidade e construir novos territórios de existência. Cruzar fronteiras e se unir com os habitantes das outras cidades.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 12/04/2018
Aprovado para publicação em: 05/07/2018

Endereço para correspondência
Junia de Vilhena
E-mail: juniavilhena@gmail.com
Joana de Vilhena Novaes
E-mail: joanavnovaes@gmail.com

 

 

*Professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - LIPIS da PUC-Rio.
**Professora do Programa de Mestrado Profissional e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida.
1Augé afasta-se do termo pós-modernidade preferindo utilizar a palavra supermodernidade para dar a ideia de continuidade. Na modernidade atual, observamos mais fatores de aceleração, como do tempo, do que de ruptura. Em suas palavras: "quanto ao termo pós-modernidade, muitos o empregam, inclusive alguns antropólogos norte-americanos, para dar a ideia de pós como coisa completamente diferente. Mas não podemos entender o que acontece hoje sem fazer referência ao século XVIII. Há muitos aspectos da vida atual que poderiam dar a impressão de uma grande confusão, uma grande pluralidade e diversidade pós-colonial. A palavra pós-moderna me parece mais descritiva que analítica, mas podemos entender o que acontece desde a supermodernidade, desde o excesso. Não sou um relativista, não é porque há diferenças no mundo que as diferenças têm que ser respeitadas ou serem a última palavra. Temos que pensar ao mesmo tempo a sociedade e a humanidade, e me parece perigoso pensar apenas a partir do respeito à diversidade. A diversidade, em princípio, é uma coisa boa, mas não sistematicamente. É preciso pensar a cultura, a diversidade, a identidade, sempre em movimento, nunca de maneira "fixa". Revista Antropos - volume 2, ano 1, maio de 2008.

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