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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007

 

AULA INAUGURAL

 

O retorno a Freud de Lacan

 

The Lacan’s return to Freud

 

 

Maria Lúcia Salvo de Coimbra

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao retornar a Freud, Lacan reinventa a psicanálise, sem abandonar o campo freudiano. Ele enfatiza a incidência do desejo na transmissão. Considera a dimensão do real, sua articulação com o ato e a função da escrita. Desta forma, nos convoca a tratar o gozo e o sofrimento do sintoma, hoje.

Palavras-chave: Transmissão, Discurso do analista, Ato, Retorno a Freud, Ética da psicanálise.


ABSTRACT

The return to Freud led Lacan to recreate psychoanalysis without giving up Freudian teaching. He emphasizes the incidences of the wish in transmission, considering the dimension of real and its articulation with the act and the function of writing. In this way, Lacan calls us to deal with the enjoyment and the suffering of symptoms, today.

Keywords: Transmission, Analyst’s discourse, Act, Return to Freud, Ethics of psychoanalysis.


 

 

É "... preciso que cada psicanalista reinvente, a partir do que ele extraiu de sua própria análise, a maneira pela qual a psicanálise pode perdurar"1.

 

A transmissão da psicanálise

A constituição desta mesa nos convoca a buscar, criar, ou mesmo inventar pontos de articulação entre diferentes posições teóricas no campo da psicanálise, especificamente, entre Freud, Melanie Klein e Lacan.

Desta forma, temos a oportunidade de partilhar impasses, questões e dúvidas em cada prática e talvez elaborá-las melhor.

Atualmente, no meio psicanalítico, proliferam tentativas veladas ou explícitas de ultrapassar a teoria freudiana ou de adaptá-la a uma suposta realidade do "mundo moderno ou pós-moderno". Porém, desde sua origem, a psicanálise foi obrigada a se reinventar ao enfrentar novos problemas e porque é exigência da sua própria transmissão. Precisamos continuar e, quem sabe, avançar nossas indagações sobre a posição do psicanalista em face do mal-estar. Não sem saber que sustentamos um trabalho de psicanalistas, operando na singularidade do discurso psicanalítico. Um trabalho que interroga tanto a divisão do sujeito e aquilo que causa seu desejo quanto o limite do próprio saber. O sujeito está em questão na estrutura do aparelho psíquico e podemos nos perguntar se sua localização mudou desde a época freudiana.

No início do século passado, assistimos à decadência do pai. Freud, com o complexo de Édipo e o mito do pai primevo, em parte obturou esta falha, tentando dar consistência a algo que desvanecia. Lacan analisa essa consistência imaginária e provoca a ruptura nesse ponto já frágil, mas não de qualquer forma. Aponta a ex-sistência, ou seja, a dimensão do real; a função da escrita e do falo como letra.

Os psicanalistas, como qualquer um, estão inscritos no simbólico, submetidos à sua dimensão de verdadeiro-falso; certo-errado. Desta forma, podem se instalar no lado imbecil do saber, alienados a algum significante do ideal ou ao próprio fantasma. Até mesmo a teoria psicanalítica pode induzir ao erro – por exemplo, a amarração do complexo de Édipo, percebida como a única possível –, embotando a descoberta de outras possibilidades e o trabalho com o real. Daí a importância da interlocução com um ponto fora do discurso psicanalítico para desalojá-lo de sua própria debilidade mental. Assim, os analistas ficam advertidos2 do ponto fora: o que exsiste é fundamental.

Se não há garantia da tomada do sujeito no campo do Outro, estar aí enganchado depende do acaso, é acidental, poderia não ter ocorrido e o modo como cada sujeito se inscreve na estrutura não só é precário como muito particular. Em análise não se trata de retificação. Trata-se de tocar um real que não se move. A escritura que faz a borda do real é uma invenção de cada análise, sustentada pela ética do bem dizer. Em que momento as palavras passam à escritura? Quando se perde o sentido como significado e desestabiliza-se a significação metafórica e metonímica, defrontando-se com o sentido: não há relação sexual. Então, além deste trabalho no particular, também nos implicamos na psicanálise em extensão – em escolas, hospitais, prisões – e somos convidados a generalizar para a mídia. Acrescente-se ainda o risco de se extraviar no preconceito ou na demanda.

Talvez o que o analista tenha a dizer se relacione, em síntese, com limites – inclusive o da própria psicanálise –, com o franquear destes (sintomas, comportamentos impulsivos) e com o abrir passagem para o desejo e o gozo, sem passagem ao ato.

A prática psicanalítica implica envolvimento do analista com os acontecimentos de sua época, "... pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas em um movimento simbólico?"3 Assumir esse compromisso exigiria afastarmo-nos da cômoda divisão bem-mal e sustentarmos que, até mesmo, atos perversos ou violentos são cometidos por seres humanos nem sempre psicóticos e têm valor tanto de gozo quanto de verdade.

Considerar esses dois pontos – por um lado, a responsabilidade de cada analista com seu paciente, enlaçada ao compromisso com o simbólico, e por outro lado, a irrupção de atos perversos, impulsivos, sem sentido – significa que, como analistas, nos encontramos desalojados de uma certa neutralidade, defendida por alguns.

Conseqüentemente, temos que considerar uma nova posição clínica para o analista, a de semblante de objeto, que opera com o desejo do analista. Nem seria tão nova assim, para um leitor atento de Freud. No seu texto "A Interpretação de Sonhos", ele nos ensina que é necessário um trabalho para extrair a função do desejo: o ato da interpretação articula desejo e o real da experiência de satisfação, produzindo um saber específico da prática psicanalítica. Colocamos esse saber à prova quando questionamos nossos conceitos para verificar se continuam funcionando. Ao fazer isto, algum novo fragmento de verdade pode irromper. Desta forma, sem abandonar balizadores teóricos, transmitimos a aventura psicanalítica na criação e na invenção.

 

Retornar a Freud

Lacan nasceu em 1901 e faleceu em 1981. Durante quase 30 anos, em seus seminários, conferências, entrevistas e obra escrita empenhou-se, segundo suas palavras, em restaurar, "no campo aberto por Freud, a lâmina cortante de sua verdade"4.

Ler o Freud de Lacan implica isolar determinadas proposições ou enunciados que têm o peso do ato fundador. Nesse sentido, podemos compreender a frase de Lacan, repetindo Picasso, "Eu não procuro, acho", pois ele inventa, ou seja, encontra o que já estava lá e fora esquecido. Extraiu do texto freudiano o objeto "a", o real, o imaginário e o simbólico e lhes deu esses nomes. Ao fazer isto – ao mesmo tempo em que se apropria da Lingüística, cujos conceitos muitas vezes subverteu, e da Matemática, Lógica e Topologia, abrindo para estas ciências, também, novas possibilidades –, Lacan operou uma construção que transformou o rumo da psicanálise, sem abandonar o campo freudiano. Estabeleceu o discurso psicanalítico, cuja eficácia é no real. Fundador de uma discursividade, sua nominação foi ato criador de novos sentidos, inaugurador de novas direções.

Existem autores que se diferenciam como inauguradores de uma discursividade. A expressão é de Foucault e com ele pode-se colocar uma questão: "O que é um autor?", título de sua conferência em 22 de fevereiro de 1969. Nesta ele refere-se a um tipo especial da função "autor5 – os fundadores, inauguradores, de uma discursividade –, no qual o retorno ao texto e o nome próprio são fundamentais. Contudo este retorno transforma o texto, cria diferenças ao se apropriar dele. Volta-se ao que o texto não diz, a seus vazios, seus intervalos tornando possível a emergência de algo novo.

O que é o retorno a Freud, proposto por Lacan? Qual a sua leitura? Lacan nos fornece pistas em seus vários seminários. Diz não ser agarrado, apreendido senão por seus segredinhos6. Por outro lado, inquieta-se, aterroriza-se mesmo por sentir-se responsável em abrir as comportas, através de seu ensino, de alguma coisa sobre a qual poderia ter silenciado7. Ao falar e escrever sobre inconsciente, desejo, gozo e tantas outras coisas é responsável mesmo que não saiba qual o destino que terão suas idéias lidas, ouvidas.

Assim, interrogar sobre o autor enlaça-se com a questão sobre o leitor. Freud autor; Lacan autor-leitor de Freud; nós leitores de Lacan e Freud e também, se me permitem a ousadia, autores em certo sentido, pois eles nos ensinam que o trabalho da psicanálise envolve tanto um deciframento – o inconsciente é estruturado como uma linguagem – quanto um ciframento de gozo. Por isto, qualquer leitura envolve deciframento – temos que apreender, agarrar os segredinhos espalhados pelo texto – e envolve ciframento – os segredinhos que escolhemos, o trilhamento feito nos implica como sujeitos e assinala a marca de cada um. Só recebemos de fato uma herança quando a conquistamos...

"Aquilo que herdastes de teus pais, conquista-o para possuí-lo. O que não se usa, é uma carga pesada, somente aquilo que o instante cria pode servir!"8 Pode-se dizer que isto é transmissão em psicanálise? Quando o desejo de alguém se enlaça ao do Outro, escrevendo em um contorno singular as marcações para o real?

Contudo, não podemos ignorar que herdamos textos freudianos, lacanianos, neles fazemos nossas escolhas. Heresias?

Considerando que a leitura é subjetiva e que um texto está aberto a múltiplos sentidos, mas não todos, não podemos ignorar também que a tradução, interpretação ou leitura pode se organizar como traição. Qual a boa medida ou a justa separação entre autor e leitor que afasta o mimetismo ou a traição e ao mesmo tempo preserva a marca do leitor? Como podemos ser lacanianos? Questão que, como sabemos, faz eco ao texto de Montesquieu "Como é possível ser persa?". Estrangeiros, como o ensino de Lacan ressoa em nós? Como saber de quais vestimentas precisamos nos livrar para penetrar em seus textos? Talvez para quase trinta anos de ensino, o trabalho de decifrar e cifrar tenha que ter uma boa lentidão... para que o ato, no princípio, se esclareça em parte. Como o ato fundador de Lacan se articula ao ato que nos autoriza analistas tanto em nossa experiência de análise quanto em nossa prática? Talvez, fora do contexto sociocultural francês, longe da captura imaginária que acompanhou o homem Lacan, possamos ler seus textos da boa forma – apenas como forasteiros, que sempre seremos, habitando um espaço, uma dimensão9 que não nos pertence: a língua.

Insisto na questão: Como podemos ser lacanianos se o próprio Lacan se dizia freudiano? Certamente não é supor que devemos ser uma encarnação de Lacan, da mesma forma que este não é a encarnação de Freud. Pode-se "ouvir" o que Lacan nos diz através de seus seminários... piratas! "O que eu tento fazer é restituir aos termos freudianos sua função. Do que se trata nestes termos é de uma perturbação dos próprios princípios de questionamento. Dito de outra forma, o que não quer dizer: dizer a mesma coisa – dito de outra forma, o que aí está penhorado é a exigência mínima de passagem a este questionamento renovado. A exigência mínima é esta: Trata-se de fazer psicanalistas"10. Podemos "ouvir" que o compromisso de Lacan com a formação de analistas o levou a questionar a função dos termos freudianos? Ao longo desse "questionamento renovado" ele constrói o registro do real, do gozo, do objeto "a". Dessa dimensão além do significante, o ato analítico opera a rearticulação do sujeito ao desejo e ao gozo. A construção lacaniana – utilizando-se de restos deixados por Freud – muda o rumo da teoria e da prática psicanalísticas, sem abandonar o campo freudiano, onde cada analista de novo é convocado a se apropriar dessa herança. Como já lhes falei, Freud nos havia indicado o imperativo ético onde o desejo está em causa.

 

O ato analítico

Durante anos sofrendo a crítica de só se preocupar com palavras, ao incluir a dimensão do ato o escândalo invade a psicanálise. Há algo desorganizador. Mas isto "é confuso!", "é complicado!" – dizem agora os críticos. E têm razão. No simbólico nos entendemos, somos razoáveis. Mas, este registro apaziguador não dá conta de tudo. Todos esbarramos, tropeçamos, em maior ou menor grau, com o desmedido, com o incomensurável, até a radicalidade do crime.

Mesmo o ato falho que surge a partir da articulação das palavras surpreende. A pessoa não sabe o que disse... não queria dizê-lo... e o próprio registro das palavras se torna enigmático.

Quando a prática psicanalítica se abre à dimensão do ato, profundas mudanças se produzem.

No período pós-freudiano, mas antes de Lacan, as preocupações nesta área se reduziam, com algumas exceções, a formas obsessivas de evitar qualquer ação. A psicanálise deveria se manter no pensamento, ou pior, na expressão dos sentimentos, isto é, no eixo imaginário.

Com a chamada releitura do texto freudiano, feita por Lacan, a perturbação profunda do pulsional emerge e à comoção teórica corresponde a comoção na prática. Analistas desalojados da nossa neutralidade suspeita, não podemos cruzar os braços e fingir que o horror não está à nossa porta ou que o pecado não mora ao lado... Acabou-se o sossego dos analistas, mas ganhou a psicanálise. Como Lacan revelou, todo ato provoca inquietação ou mesmo horror. Portanto, dele os analistas se afastaram sem nada querer saber. É verdade que não há articulação entre saber e ato.

Então qual a saída?

Podemos passar do fracasso do saber para o saber em fracasso. "Como pude fazer isto?" "Por que faço isto se sei que me prejudica?" Há algo, além do prazer, que arrasta o ser humano para ações enlouquecidas. Além do princípio de prazer temos o gozo. Atos impulsivos, rupturas às vezes devastadoras podem encontrar seu limite, seu contorno pelo ato psicanalítico.

Há no ato uma questão. Toca-se uma área irrepresentável: a dimensão do real que está fora-significação. O sujeito não sabe dizer o que aconteceu. Cabe ao analista não deixar escapar esse algo que se desconhece, o não-saber.

Se o real, por definição, encontra-se fora-significação, o ato analítico – situado na vertente do ato em geral, da mesma forma que o acting-out e a passagem ao ato, porém diferente de ambos, pois supõe a pulsação de um tempo lógico na travessia do fantasma – não só se diferencia de atos impulsivos, como é a forma de tratá-los, operando a rearticulação do sujeito ao desejo e ao gozo.

Se sabemos que a loucura e o desmedido têm um lugar na estrutura psíquica, não significa que tenhamos que compactuar com isto. Devemos pensar clinicamente. Se alguns pacientes chegam "muitos loucos", é preciso implicá-los como sujeitos. Isto não tem a ver com os princípios morais do analista, com aquilo que ele julga ser certo ou errado. Mas, pode levar a um certo mal-entendido, ao se relacionar moralismo e um outro tipo de extravio pelo qual talvez a própria psicanálise seja responsável. A saber, que a psicanálise tem como objetivo libertar o indivíduo, que este deve fazer tudo o que quer, livre de culpa.

Não é assim. Não se pode fazer o gozo da loucura. No ato analítico, temos que implicar o sujeito, que tem, também, responsabilidade pela própria análise. Se sabemos que há um limite, não se pode fazer de conta que não há.

O sujeito diz que está louco... e vai ter que ceder sua loucura. O analista não deve ficar só ouvindo. O sujeito precisa se comprometer no discurso analítico (assim como o analista). O inconsciente não pode servir como uma desculpa. É uma responsabilidade.

 

A ética da psicanálise

Mas, o que é mesmo a prática psicanalítica que inclui o real?

A constituição do sujeito () no campo do Outro produz sempre perda, restos não articulados na cadeia significante. É traumática. Esses restos de cenas vividas e ouvidas11 retornam como fragmentos que não se encaixam na cadeia significante. Retorno que tem uma exterioridade para o sujeito12; resta algo inacessível ao simbólico: é o objeto perdido freudiano que Lacan formalizou como objeto "a" e articulou na dimensão do real.

Real compreendido como aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar e como impossível (modalidade lógica). Articula-se com a lógica do não-todo e não pode ser alcançado através da representação.

Com o registro do real temos a formalização lacaniana da pulsão de morte, do masoquismo primário, do benefício secundário da doença, da reação terapêutica negativa, e outras noções trabalhadas por Freud.

Dito de outra forma, a constituição do sujeito no campo do Outro implica a operação de alienação e, ao mesmo tempo, a separação do objeto. Isto significa que o humano perde a relação com o vital instintivo, e o corpo é perfurado pelo significante. Há uma máquina significante em funcionamento, sempre produzindo algo que cai – o objeto "a", causa de desejo e também condensador de gozo. Este objeto está fora significante e fora significado, irrompendo pela repetição em ato, que é a forma como o real se apresenta. Portanto, temos o enlace repetição-gozo (real).

Considerar, trabalhar e suportar o fracasso na recuperação desse algo que escapa (a mítica experiência de satisfação, o objeto perdido que Lacan designou objeto "a") promove mudança na economia de gozo para um sujeito e diferencia a cura analítica dos tratamentos psicoterápicos.

Se cada ser humano ao inscrever-se no simbólico tem que se haver com uma perda estrutural, pois o que foi excluído do simbólico, o resto da operação significante, isto é, o real (o gozo, o objeto "a"), retorna em ato; se o corpo mortificado pelo significante é invadido por uma "energia", um gozo que – escapando ao domínio significante – está à deriva e pode ser definido como satisfação de uma pulsão; então, não podemos fingir que nada d’Isso existe. Estamos obrigados a incluir Isso em nossa práxis.

Repetindo, a compulsão à repetição é a insistência de um gozo excessivo que irrompe em ato. Ato que traz em si a opacidade do real e, ao mesmo tempo, é tentativa de resposta a essa opacidade.

Afirmamos que o percurso de uma análise pode modificar a economia do gozo para um sujeito. O que isto quer dizer?

Estamos propondo nova leitura do ponto de vista econômico freudiano, isto é, como se distribuem, se deslocam, se preservam e se perdem as quantidades de energia que circulam no aparelho psíquico. Estamos propondo substituir essa energética freudiana por uma economia política de gozo. Economia porque o gozo se produz, se perde ou se ganha, e política porque a produção, o ganho e a perda de gozo se inscrevem em uma estrutura de discurso.13

Com este referencial teórico, a pergunta sobre a prática se situa em uma dimensão ética, envolvendo, portanto, o desejo, o gozo, a responsabilidade do analista e se afastando das normas e ideais obsessivos de outrora, para regulação dos atos. Como conduzir uma cura se temos, por um lado, a trama significante do sintoma, enigma que se oferece ao sujeito, e, por outro lado, temos algo a mais: a dimensão repetitiva que escapa ao falar e que mostra o gozo vivido pelo sujeito? Gozo que ele não quer abandonar e do qual nada sabe.

Então, o que faz o analista?

Ele funciona como testemunha e suporte da impossibilidade de tudo dizer pela via da associação livre. Não se trata de recuperar lembranças porque não há nada a ser recuperado. Também não é injetar significantes para recobrir a hiância. E mais ainda, deve fazer avançar a análise no sentido de inventar alguma passagem ao gozo inter-dito para todo ser falante. Opera com o ato analítico a rearticulação sujeito-desejo-gozo suportando o desassossego que se instaura ao recusar seguir modelos identificatórios. A responsabilidade do analista é sua função de causa de onde lhe retornam as conseqüências de seu ato, criando através deste a possibilidade de escrita (ou escritura).

Considerar que o real do gozo precisa ser tratado em análise nos aproxima de nossos pacientes. Podemos incluir em nossa clínica os borderline de outrora, psicóticos e perversos ousando apostar na produção de um novo sujeito, graças a uma mudança na economia do gozo. Como fazê-lo? Trabalhando a relação do sujeito ao objeto a (causa de desejo e condensador de gozo), considerando a fórmula do fantasma ( ◊ a e a ), sabendo que a formalização da junção-disjunção do e objeto a é fundamental, axiomática (vide grafo do desejo). Mas, também é fundamental o trabalho de construção-desconstrução fantasmática para cada sujeito. Temos que arriscar o "salto" do conceito, fórmula ou axioma do fantasma para uma prática singular, articulável à teoria: "... nossa concepção do conceito implica que este é sempre estabelecido por uma aproximação que não é sem relação com aquilo que nos impõe, como forma, o cálculo infinitesimal. Se o conceito se modela, com efeito, pela aproximação à realidade que ele deve apreender, não é senão por um salto, uma passagem ao limite que ele termina por consegui-lo"14. A saber, acaba por conseguir, por realizar a apreensão da realidade.

Se estamos lidando com "uma equação de duas incógnitas", como escreveu Freud, é porque falta o significante que possa dizer a verdade sobre o real da morte e da sexualidade [()]. Se o psicanalista é quem dirige a cura e tem o poder de significar que lhe é atribuído pelo paciente, se é sujeito suposto saber... o que faz com esse poder?

Em primeiro lugar, reconhecê-lo; em segundo, deveria saber que esse "poder significante" está limitado pelo real, que não pode ser atingido pelas significações e onde nem mesmo se coloca a questão verdadeiro-falso. Finalmente, deveria saber que se inventa, em um processo de análise, a verdade de cada um, com máxima particularidade.

Diante da redução e do extravio das explicações psicologizantes e biologizantes, Freud responde com a construção de "nossa mitologia".

Diante das "dificuldades" da prática (resistência, compulsão à repetição...) vai delimitando um território, fora do domínio do princípio de prazer e das leis significantes, e ao mesmo tempo indicando a possibilidade de sua ultrapassagem.

Hoje, podemos compreender o texto freudiano nesta dimensão porque Lacan a formalizou.

Trabalhar com o conceito de real produz modificações profundas em toda a teoria e prática psicanalíticas: no conceito de inconsciente (separação Isso[das Es] e inconsciente); na insistência da repetição em ato que se distingue da insistência do retorno do recalcado pela via significante; no conceito de transferência como estrutura – noção de sujeito suposto saber e presença do analista – diferenciado de seus efeitos imaginários euóicos; no conceito de pulsão e sua articulação com o gozo.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência
Rua Levindo Lopes, 333/505 - Funcionários
30140-911 – Belo Horizonte - MG
Tel.: (31)3281-0715

Recebido em 15/06/2007
Aprovado em 27/06/2007

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Lúcia Salvo Coimbra
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.

1 Lacan, J. "Congresso sobre a transmissão" (1978). Rev. Letra Freudiana, ano XIV, n. 0’, p. 66.
2 Desejo do analista é desejo "averti" (advertido, avisado, prevenido).
3 Lacan, J. "Fonction et champs de la parole et du langage" (1953), Écrits, p. 321.
4 Lacan, J. "Carta de Dissolução" (1980). Rev. Letra Freudiana, ano I, n. 0, p. 45, e na "Ata de Fundação da E. F. P", 1964, p. 17.
5 A função "autor" é exercida no lugar vazio que o apagamento do nome do autor estabelece. Ver Foucault, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 274.
6 Lacan, J. ... ou pire, lição de 8 de março de 1972, p. 66.
7 Lacan, J. L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, lição de 11 de janeiro de 1977, p. 9.
8 Goethe. Théatre complet, p. 971 (Tradução da autora).
9 Referência ao equívoco dimension, dit-mension, dit mansion.
10 Lacan, J. D’un Autre à l’autre, lição de 8 de janeiro de 1969, p. 92 (tradução e grifo da autora).
11 Masson, J.M. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – Cartas de 2/5, 16/5 e 25/5/1897.
12 Freud, S. "O estranho" (1919), ESB, v. XVII.
13 Coimbra, M.L.S. "Considerações sobre o objeto ou T.T.Y. M.U.P.T." in Reverso, n. 47, p. 36-41.
14 Lacan, J. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, lição de 22 de janeiro de 1964, p. 23 (tradução da autora).

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