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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.36 no.68 Belo Horizonte dez. 2014

 

ARTIGO

 

O processo de cura e sua dimensão social

 

The process of cure and its social dimension

 

 

Juan FloresI, II, III

Tradução: Bernardo Maranhão

I Universidad Católica de Chile
II Sociedad Chilena de Psicianálisis
III International Federation of Psychoanalytic Societies

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A noção de cura nunca está desligada da noção teórica que sustenta sua direção nem das evidentes hegemonias ideológicas nas quais se inscreve sua práxis. Certas patologias dependem do lugar que cada um ocupa na sociedade e na história, e o mesmo ocorre com as medidas de prevenção, o acesso à cura e a existência de recursos (tanto no que diz respeito a conhecimentos teóricos, dispositivos técnicos e práticas médicas disponíveis, quanto no que tange aos aspectos puramente orçamentários) para fazer frente a tais patologias e atenuar seus efeitos sociais e pessoais. A psicanálise procura fazer uma exploração conjunta com o paciente e se aproximar do não sabido por ele que se aloja no inconsciente e sustenta seu sintoma. Procura alcançar a cura não por meio da restituição da situação prévia à emergência dos sintomas, mas pela construção, por parte do analisando, de um novo equilíbrio psíquico sobre a base do material que a análise lhe vai revelando sobre seu próprio desejo inconsciente. O desafio, portanto, é como construir uma clínica que, em vez de se situar numa posição de mera reprodução ideológica, possibilite ao sujeito desenvolver uma instalação geradora de um corpo próprio e, a partir da compreensão de suas dinâmicas e de sua inserção na cultura, conseguir falar e não apenas ser falado, ou seja, resgatar-se da alienação estabelecida pela estrutura de um discurso desdobrado a partir da estrutura social e encontrar um lugar que propicie as condições para construir-se como sujeito.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicanalista, Cura, Implicação, Clínica.


ABSTRACT

The notion of cure is never disconnected from the theoretical notion that sustains its direction or from the evident ideological hegemonies in which its praxis is inscribed. Some pathologies depend on the place occupied by each person in society and in history, and the same occurs with the prevention policies, the access to the cure, and the availability of resources (which involves theoretical knowledge, technical devices and medical practices, as well as purely budgetary aspects) to treat such pathologies and to face its social and personal effects. Psychoanalysis intends to work conjointly with the patient in order to explore and approach what is unknown to him/her, that which inhabits the unconscious and sustains his/her symptom. It intends to obtain the cure not by means of restoring the situation previous to the emergency of the symptoms, but through the construction, made by the patient, of a new psychic equilibrium, based upon the material revealed by the analysis about his/her own unconscious desire. The challenge is, thus, how to build a clinic which, instead of standing in a position of mere ideological reproduction, allows the subject to develop an installation able to generate a body of his/her own and, departing from the comprehension of his/her dynamics and his/her insertion in culture, be able to speak and not to be spoken, i.e., to rescue him/herself from the alienation established by the structure of a discourse unfolded from the social structure and to find a place that provides the conditions to build his/herself as a subject.

Keywords: Psychoanalysis, Psychoanalyst, Cure, Implication, Clinic.


 

 

A psicanálise é basicamente uma teoria da psique, um instrumento de conhecimento, mas seus efeitos terapêuticos têm demonstrado ser tão valiosos que têm ocupado o centro da cena, a ponto de ser habitual circunscrever sua prática à “cura”, ao alívio dos sintomas (sofrimentos) que o conflito subjetivo produz. Pois bem: é necessário assumir que os critérios de saúde e doença não são neutros: neles também vive o que podemos denominar conflito histórico. Em certo sentido, podemos entender esses critérios representando a luta “pela hegemonia ideológica, pela construção do sentido” (GRÜNER, 2002). Como fruto disso, vai se estatuindo uma versão “oficial”, que dá conta de certos consensos sociais acerca da relação sanidade-enfermidade, ou seja, expressa-se aí a relação de forças atual nesse campo. Desse modo, doente, em nosso sistema, é muitas vezes aquele que, por uma razão ou por outra, não rende da maneira esperada e deve ser devolvido à produção. Por isso, em muitos casos, considera-se o sujeito uma máquina estragada que necessita de um reparo. A cura, nessa perspectiva, não se vincula tão necessariamente com o que é próprio do indivíduo – seu sofrimento – quanto com sua função produtiva. Intervém um problema de custos, no qual estão, de um lado, o tratamento e, de outro, o lucro cessante que decorre da retirada do indivíduo doente da cadeia de produção. “Cura-se” para restabelecer o bom funcionamento da maquinaria produtiva e, só de maneira indireta, para que o indivíduo alcance o “estado de completo bem-estar físico, mental e social” a que se refere a OMS em sua definição de “saúde”. Trata-se de um processo similar ao que se dá na produção de mercadorias: estas são produzidas para seu intercâmbio, e não para a satisfação de alguma necessidade. As mercadorias satisfazem necessidades somente na medida em que isso é o que as torna aptas para o intercâmbio.

De fato, a doença pode ser entendida, de algum modo, também como construção social. Não somente porque ela é vivida, explicada e tratada de maneiras historicamente definidas, mas também porque ocupa um lugar no funcionamento global da sociedade e na economia em particular. Há doenças “de classe”, como há as que são “de interesse público”, para não falar das que são produzidas diretamente pelas condições históricas (de vida, de alojamento, de alimentação, por costumes e práticas sociais etc.).

Certas patologias dependem, ademais, do lugar que cada um ocupa na sociedade e na história, e o mesmo ocorre com as medidas de prevenção, o acesso à cura e a existência de recursos – tanto no que diz respeito a conhecimentos teóricos, dispositivos técnicos e práticas médicas disponíveis, quanto no que tange aos aspectos puramente orçamentários – para fazer frente a essas patologias e atenuar seus efeitos sociais e pessoais.

Em geral, os esforços estão dirigidos a que a doença se apresente (para não “degenerar” em problema social) como um problema individual, concebido como um “desastre natural”, um “castigo divino” ou uma “falha biológica” determinada pela herança ou pela simples “má sorte”, mas sempre na condição de flagelo pessoal, inevitável e desvinculado das condições sociais de existência do sujeito.

Todas essas considerações se aplicam – e muito diretamente – ao conflito psicológico subjetivo. “Falha” genética, “debilidade de caráter” – hoje, “baixa resiliência” – são denominações que aludem a uma visão que naturaliza o sofrimento mental, enfatizando especialmente seu caráter “interno”, íntimo, convertendo-o em destino pessoal exclusivo. Assim, deixa-se de assumir que o sujeito – o doente – é o ponto de emergência dos “sintomas sociais” que a sociedade, não podendo tolerar, reprime: expulsa-os de si para deixá-los alojados no sujeito. Este, concebido apenas como interioridade, sofre na própria carne a contradição social e faz dela padecimento subjetivo, “como se” fosse um produto de sua própria constituição interna.

De outra parte, a noção de “cura” não fica atrás dessa concepção de doença. Já mencionamos o critério que assimila cura a “reparo”, conceito tomado da mecânica. De fato, a ideia de “cura” carrega consigo o sentido de “volta atrás”, de “restabelecimento” ou “recuperação” da saúde como uma espécie de reconstrução do danificado. Nesse sentido, tem um objetivo claro e preciso – um destino, uma meta – aponta em sua direção e fixa procedimentos – protocolos – para alcançá-lo. Desse modo, “assumir esses critérios de cura implica em si uma atitude normativa” (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 104).

O médico – armado de seu saber sobre a enfermidade e os procedimentos terapêuticos – “prescreve”, dita os procedimentos a serem seguidos pelo paciente, e este – obrigado por sua ignorância a se remeter docilmente ao que lhe é indicado – obedece.

Em análise, contudo, não há refil possível. Tampouco se trata de reparar um “dano” ou de recuperar um estado anterior “livre de enfermidade”. Nada disso tem sentido quando falamos dos padecimentos psíquicos. A psicanálise carece da possibilidade de apelar para qualquer desses recursos e muito menos admite o ditado de mandamentos por parte do terapeuta. Apoia-se em um trabalho de exploração em conjunto com o paciente, em sucessivas aproximações ao não sabido por ele, não sabido que se aloja no inconsciente e sustenta seu sintoma; alcança a cura não por meio da restituição da situação prévia à emergência dos sintomas, mas por meio da construção, feita pelo analisando, de um novo equilíbrio psíquico sobre a base do material que a análise vai lhe revelando acerca de seu próprio desejo inconsciente e dos caminhos pelos quais se efetuou a repressão desse desejo. Esse reconhecimento – essa anexação íntima do novo conhecido – somente pode ser obra do sujeito livre.

Ampliar os limites da própria individualidade – alcançar um crescimento subjetivo – é tarefa que aponta necessariamente para uma dimensão coletiva político-social: o espaço subjetivo se abre e avança sobre o histórico-social que, apesar de ser parte da própria carne do sujeito, afigura-se para ele como externo. Assim, a implicação social do sujeito está em relação direta com sua capacidade de atuar, isto é, com o poder que ele está em condições de exercer. Tal poder não tem por que ser (de fato, não é) exclusivamente o de sua própria pessoa em termos individuais. Pelo contrário, só pode se dar por sua vinculação a uma ação coletiva com a qual o sujeito forma corpo, mas da qual é continuamente desapossado pelas circunstâncias inerentes aos conflitos dos processos históricos.

No entanto (como bem sabe qualquer médico e como os psicanalistas tampouco ignoram), o sintoma não é a doença: é somente a voz da enfermidade, a maneira como se expressa e se faz notar. Obturar o sintoma (reprimi-lo) pode ser necessário e até indispensável em certas circunstâncias, mas se não se atenta à doença, o sintoma reaparecerá. A doença costuma driblar as barreiras que impedem o sintoma de assomar, substituindo-o por outro. Hoje, contudo, e particularmente no que concerne à sintomatologia psíquica, há uma direção médica voltada fundamentalmente à desaparição sintomática e ao uso de uma tecnologia na qual o sujeito mesmo é negado.

Hoje se generaliza a propensão a considerar “enfermas” certas condutas incômodas que a sociedade não pode conter. Os especialistas as convertem rapidamente em “síndromes” que requerem uma intervenção médica, isto é, basicamente, o emprego de medicação que adormece ou modera o sintoma, ainda que faça o mesmo com o paciente. Seu principal mecanismo de ação é o de reduzir quimicamente a vontade ou a atividade do sujeito.

O caso das crianças é particularmente alarmante e doloroso: as crianças inquietas, que “não prestam atenção”, “não se concentram” ou “não obedecem a seus pais” são, cada dia mais, medicadas com o respaldo de uma “ciência médica” legitimadora da repressão e reduzidas à disciplina social. Nessa atitude, combinam-se as expectativas de controle social (paradoxalmente: parece que o sujeito mais dócil e passivo rende mais do que o ativo e “rebelde”) às de rendimento econômico (ou escolar, no caso das crianças). De fato, “acossados pela necessidade de ‘fazer rápido’, a tendência é medicar apressadamente, deixando de lado a atenção ao sofrimento do sujeito” (GARCÍA REINOSO apud CARPINTERO; VAINER, 2004, p. 14).

É parte de uma perspectiva ocultar o sintoma antes que afete a tranquilidade social, ainda que isso se faça ao preço de rebaixar o sujeito e fazer ouvidos moucos ao que seu sintoma expressa: eis aí uma direcionalidade que entra em conflito com tudo o que, a partir da psicanálise, aponta para desenvolver o sujeito e dotá-lo de maior autonomia, para, contrariamente, entregá-lo a uma tarefa de “normalização”, de sujeição a ditames exteriores.

Esse é um risco presente também na prática analítica.

De fato,

[...] a realidade cotidiana obriga as novas gerações de analistas e uma parte considerável das não tão novas a se submeter a uma precarização cada vez maior de seu trabalho e a uma liquefação de seus métodos em nome de um pretenso pragmatismo clínico que, na realidade (e sobretudo nas obras sociais e na medicina privada), encobre a mercantilização da saúde mental da população (WAISBROT et al., 2003, p. 66).

As possibilidades de ampliação do universo populacional a que a psicanálise poderia aceder por meio de sua inserção em novos âmbitos de trabalho se veem muitas vezes frustradas pelas condições neles imperantes. O enfoque mercantilista é o que fixa os objetivos a serem alcançados. Sob esse enfoque, não se buscam (e não se espera do processo) soluções reais para o sofrimento do sujeito, e sim resultados imediatos na remissão do sintoma.

Seja como for, a cura tem uma dimensão social ineludível, tanto por atuar na relação entre sujeito e sociedade, quanto por estar concretamente implicada na dinâmica social. A psicanálise tem proclamado e defendido (mesmo entre os que alegam a necessidade de mantê-la encerrada em um âmbito mais estreito) seu respeito por aquilo que é próprio de cada paciente. Sem esse respeito, não há análise possível, só “sugestão” ou doutrinamento.

O compromisso da psicanálise com o mundo social e político, sua capacidade de iluminar a dinâmica histórica a partir do inconsciente do sujeito, de promover a construção de conceitos e práticas operativas que colaborem para diminuir o sofrimento social juntamente com o individual: parece ser esse o caminho que o psicanalista pode percorrer.

A dialética entre adaptação e inadaptação que pode estar presente sub-repticiamente no âmbito terapêutico é também a função que o sistema tenta atribuir à psicanálise, assim como às demais especialidades que se aplicam à saúde mental: ser guardião da ordem social, reduzir os inadaptados, chamá-los à razão, devolvê-los ao rebanho. A psicanálise pretende ser neutra em questões políticas e ideológicas. Não porque tenha a ideologia como estranha ou alheia – já que se encontra com ela a cada passo de sua investigação do inconsciente, na transferência e na contratransferência –, mas porque rechaça a possibilidade de ser porta-voz de uma ideologia em particular. A práxis clínica, na medida em que se organiza sobre um substrato de dispositivo que renega o reconhecimento dos condicionamentos políticos e sociais, gera uma suspensão da realidade e uma tentativa de considerar como a-histórico aquilo que na existência cotidiana nunca é neutro (CASTEL, 1980), de modo que “o que se põe assim entre parênteses continua presente na relação analítica, mas foi neutralizado, invalidado, disfarçado e se tornou irreconhecível” (CASTEL, 1980, p. 38). Portanto, a psicanálise como instrumento terapêutico não pode prescindir da dimensão social e política do sujeito. Não considerá-la significaria diminuir o sujeito, podá-lo, aceitar que seria possível (e desejável) desenraizá-lo, privá-lo do substrato do qual se alimenta e vive: a subjetividade.

Na relação terapêutica existe um trabalho conjunto entre os dois membros do par analítico, no qual também o analista se encontra envolvido na cena analítica: somente seu conhecimento da teoria e seu domínio da técnica podem lhe permitir (por via da análise da transferência e da contratransferência), discriminar seu lugar e reconhecer as modalidades de circulação e emergência do desejo inconsciente nessa cena. A interpretação mesma, o ato de interpretar, sua forma e seu conteúdo, que trabalha sobre a transferência, ao cuidar de filtrar tudo o que possa aparecer como interferência do meio exterior, pretende trabalhar sobre uma falsa noção de neutralidade. De fato, “o interpretar, por mais neutro que seja em sua forma, implica a participação dos setores ideológicos (muito carregados afetivamente) do analista” (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 104). A implicação do social e do político resulta, assim, inseparável da cena analítica, povoada pelas posições subjetivas dos participantes e pelas maneiras como essas posições estão incluídas (implicadas) na psicanálise. Sendo assim, e considerando-se que “a ideologia ‘científica’ do analista (os princípios e conceitos psicológicos que utiliza na interpretação) não é independente de suas outras concepções ideológicas” (BARANGER; BARANGER, 1969, p. 104), o trabalho terapêutico não pode ser entendido somente como uma técnica ou um instrumento utilizado por um profissional. Essa visão opera sob o encobrimento ideológico segundo o qual o analista atuaria somente como tela. Dito de outro modo, o conceito de neutralidade analítica se apresenta como algo que coloca o analista num território exterior ao campo do conflito social, mais ainda na medida em que o próprio dispositivo analítico está fora dessa questão (SAUVAL, 2006). Isso já está presente no contexto da cena analítica, a exemplo do pertencimento de classe do psicanalista (a posição que ocupa na estrutura social) e do analisando. No que tange a este último, seu pertencimento de classe tem se circunscrito geralmente a um limitado setor, que se encontra em condições de fazer frente aos tempos e custos da análise, isso devido a certas características do enquadre. O perfil enviesado que se produz chegou a ser designado com ironia (sobretudo nos Estados Unidos e no Canadá) como Yarvis Syndrom (KAZARIAN; EVANS, 1997). As letras do nome correspondem às iniciais (em inglês) das características do paciente típico que habita os consultórios dos psicanalistas: Young, Attractive, Rich, Verbal, Intelligent, Sophisticated. Essa fórmula descreve com impiedosa mordacidade os limites do universo de investigação da psicanálise e sintetiza uma série de traços particulares que não podem ser linearmente extrapolados para o conjunto da sociedade.

Em todo caso, nenhum setor está isento de contradições políticas e ideológicas. Cada sujeito é portador do conflito histórico, ainda que a história – social e pessoal – faça com que cada um se situe nesse conflito de uma maneira particular. No consultório, ainda que enviesada pela seleção dos pacientes, a realidade exterior sempre está presente. A história pessoal é também história social. É história socialmente construída, forjada dentro da sociedade. Carrega as marcas das lutas e dos conflitos históricos, as marcas dos projetos, das esperanças e das ilusões que atravessaram o sujeito e o habitam como “ser sempre social” até se ancorarem em seu desejo inconsciente. A vida anímica do sujeito não pode se limitar a sua própria interioridade; inclui sempre de alguma maneira o outro: “como modelo, como objeto, como auxiliar e como inimigo” (FREUD, 1921).

É preferível, afirma Renik (2002), assumir previamente a ausência de neutralidade e reconhecer como isso constitui a essência de nosso método clínico. Não obstante, em que pese o importante aporte de Renik, aquela postura de suposta neutralidade continua se estabelecendo no interior de uma psicanálise que transita no centro de uma dinâmica fundamentalmente intrapsíquica, em que a subjetividade que aparece é aquela constituída, de preferência, somente com a história pessoal e com as construções que cada sujeito foi conformando ao longo de sua história pessoal. O que fica de fora é a constituição e implicação social do analista, o modo como sua situação histórica é conformada a partir de lugares que transcendem a constelação intrapsíquica e incluem o analista como sujeito histórico, no interior das complexas tramas da ideologia, do social e do político.

A neutralidade absoluta não existe, não só na relação intersubjetiva (já na transferência e na contratransferência se encontra de fato o principal material da análise), mas também nas coisas aparentemente menos vinculadas ao desejo inconsciente do paciente. Mesmo a regra de abstenção ideológica, que postula que o psicanalista deve “se abster de toda influência sobre o analisando no campo ideológico” e “evitar que suas próprias convicções no campo religioso, político, filosófico, ético, etc. intervenham na análise de seus analisandos” é uma regra “estritamente inaplicável, e inaplicada de fato” (BARANGER, 1969, p. 103).

Independentemente da vontade e do esforço exercidos para evitar que suas próprias convicções influam sobre o analisando,

[...] o personagem do psicanalista não é nunca nem social nem politicamente neutro. Não é socialmente neutro pelas modalidades de sua formação, pelos signos visíveis de sua posição, pelos índices de prestígio que o rodeiam e pelo caráter socialmente determinado de sua prática “liberal”. Não é politicamente neutro porque, ainda que não expresse posições políticas, e sobretudo por isso, a situação objetiva que ocupa significa algo politicamente (CASTEL, 1980, p. 47).

Não dizer nada, não pronunciar palavra, abster-se de expressar opiniões pode (dentro de certos limites) estimular a relação transferencial, mas isso não significa que não se fale:

[...] tudo no terapeuta fala ao paciente, desde sua casa, seus sapatos, sua cara, seus tiques, seus modismos, seus objetos, suas voracidades e repugnâncias, suas interpretações e entonações (ROZITCHNER apud CARPINTERO; VAINER, 2004, p. 344).

Contudo, é necessário reafirmar: a psicanálise não é uma teoria das relações sociais. Ela se ocupa do sujeito, de seu inconsciente, mas em linhas gerais poderíamos inclusive dizer que ela se ensimesmou no sujeito individual, deixando de lado sua dimensão social e coletiva. Pois bem, sujeito e sociedade são inseparáveis, compartilham um mesmo espaço, convivem no âmbito coletivo e também se enfrentam no interior do sujeito. As fronteiras que marcam o território correspondente a cada um deles no espaço compartilhado, diferenciando o que pertence ao íntimo e o que é próprio do coletivo, são, como se viu, lugar de disputa. Entre a sociedade e o sujeito há sempre tensões, conflitos abertos de maior ou menor peso, que se manifestam num plano e noutro: superpõem-se, confundem-se. A controvérsia social, a luta política, dá voz a sofrimentos subjetivos – o dilaceramento social se desdobra nos corpos dos sujeitos – e o conflito subjetivo carrega em seu seio a ferida da sociedade.

Se a sociedade está implicada no sujeito, fala por meio dele e manifesta nele seus sintomas, também o “sintoma social”, o “mal-estar estrutural”, há de se apresentar de maneira distorcida. Sendo assim, para devolver ao reprimido seu lugar em uma teoria da história, será necessário desentranhar os caminhos – subjetivos e sociais – pelos quais essa repressão circula entre os homens e os elementos que a ancoram em uma ou outra ribeira. O compromisso da psicanálise com o nível do político e do social, sua capacidade de iluminar os descobrimentos a respeito do inconsciente do sujeito, de elucidar as marcas do conflito histórico-social e de fazer um aporte efetivo no sentido de diminuir – junto com o sofrimento individual – os traumatismos sociais, tem, pois, aberta diante de si uma dupla via: por um lado, abordar o coletivo tal como se inscreve – e se esconde – no sujeito e, por outro, reatar os vínculos que grande parte de seus conceitos mantém com a realidade extrapsíquica, sem perder a distinção que a psicanálise conferiu a tais conceitos, nem pretender fazer dessa realidade material mera colônia do psiquismo.

O sujeito (“o doente”) não é mera interioridade. Leva em si o outro, o coletivo. Vive em seu corpo as feridas e os dilaceramentos da sociedade, faz seus os sofrimentos sociais. Seu padecer assinala o emergir dos “sintomas sociais”, das dores que se tornam parte do sujeito, que oferece sua carne para sofrer a contradição social como padecimento subjetivo, como se fosse um produto de sua própria constituição interna.

Na medida em que a análise não tenha acesso à contradição social, a análise será, se não de todo impossível, pelo menos impossível de terminar. A única maneira de reconstruir de forma mais ou menos aproximada uma totalidade, que sempre se apresenta fragmentada, reside na possibilidade de fusionar uma multiplicidade de olhares, de torná-los convergentes. No entanto, isso não é suficiente: uma vez mais (como sempre), é necessário tomar partido, “escolher um lugar”. Somente assim se pode discernir, no próprio enfoque e no dos demais, o que está marcado e como essa marca (essa posição) impacta o objeto.

Escolher lugar implica ao mesmo tempo debate, oposição de argumentos, discussão e polêmica, afirmação e refutação. O conflito social vive nos conceitos, aloja-se nos signos. A luta pelo sentido visando sustentar os desenvolvimentos conceituais está sobredeterminada pelo conflito social; fixar o rumo dos novos enfoques teóricos, a afirmação de sua prática social e o reconhecimento de seu caráter científico, tudo isso depende do resultado dessa luta.

Um debate de poder se estabelece, ademais, com respeito à própria instituição psicanalítica. Esta, por suas redes operantes, costuma atuar como eixo de reprodução, por ignorar (em um exercício de negação) as redes de implicação nas quais se sustenta, especialmente aquelas que se relacionam com o social e o político, e por se conformar com apenas reconfirmar o já sabido.

O desafio, portanto, continua sendo construir uma clínica que, em vez de se situar numa posição de mera reprodução ideológica, seja efetivamente capaz de produzir, como resultado da direção da cura, um sujeito que desenvolva uma instalação geradora de um corpo próprio, um sujeito que, a partir da compreensão de suas dinâmicas e de sua inserção na cultura, consiga falar e não apenas ser falado, ou seja, alguém que se resgate da alienação estabelecida pela estrutura de um discurso desdobrado a partir da estrutura social e encontre um lugar que propicie as condições para se construir como sujeito.

 

Referências

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Recebido em: 28/10/2014
Aprovado em: 30/10/2014

 

 

SOBRE O AUTOR

Juan Flores
Psicólogo. Universidad Católica de Chile. Psicanalista. Sociedad Chilena de Psicoanálisis - ICHPA. Doutor em Psicologia. Universidad de Chile. Diretor do Programa de Mestrado em Psicanálise da Universidad Adolfo Ibáñez, Chile. Ex-Presidente da Sociedad Chilena de Psicoanálisis - ICHPA (2004-2006) (2008-2010). Ex-Presidente da Federación Latinoamericana de Asociaciones de Psicoterapia Psicoanalítica y Psicoanálisis (FLAPPSIP) (2003-2005). Presidente da International Federation of Psychoanalytic Societies - IFPS (2012-2016). E-mail: juanfloresr@yahoo.com

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