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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.79 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS

 

Narrativa e história de si, contadas em análise

 

Narrative and own story, told in analysis

 

 

Scheherazade Paes de Abreu

Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo surge através de questões sobre as fronteiras instáveis entre psicanálise e história. Todos têm alguma questão sobre o valor da vida, a sexualidade e a morte, este é um ponto relevante, pois o que é possível obter como resposta é a narrativa de uma história. A história surge no atendimento clínico: todos têm algum tipo de história cotidiana a narrar. É inevitável contar, mas isso também conduz ao que é inenarrável. A concepção de história que se pesquisa neste artigo é capaz de suportar o equívoco; a história passa a ser algo que comporta o sem sentido, o sem nome, o impossível e a possibilidade de morte. A história também abarca o indizível. É emergência do novo e interrompe o tempo. O que seria uma concepção de história capaz de incluir a psicanálise? Até que ponto se faz necessário aproximar verdade, inconsciente Real e história, e por essas fronteiras se verificar possível reflexão? Por fim, um impasse: a história - apartada e íntima da psicanálise.

Palavras-chave: História, Narrativa, Real, Recalque, hystoriser


ABSTRACT

This article brings about on about the unstable boundaries between psychoanalysis and history. Everyone has some question about the value of life, sexuality and death. This is a relevant point, because what is possible to obtain as an answer is the narrative of a history. The history emerges in clinical care: everyone has some kind of everyday story to tell. It is inevitable to tell, but it also reveals what is unspeakable. The conception of history that is researched in this article is capable of supporting the mistake; history becomes something that includes the meaningless, the nameless, the impossible and the possibility of death. History also embraces the unspeakable. It is an emergency of the new and interrupts time. What would be a conception of history capable of including psychoanalysis? Up to which extent is it necessary to approach truth, the unconscious Real and history, and through these borders is possible reflection possible? Finally, an impasse: history - separated and intimate from psychoanalysis.

Keywords: History, Narrative, Real, Repression, Hystoriser.


 

 

[...] Tu és a história que narraste
não o simples narrador
[...] És a linguagem.
Dor particular.

Carlos Drummond de Andrade

 

Todos têm algum tipo de questão sobre o valor da vida, a sexualidade e a possibilidade de morte. Os homens são mortais, e tais acontecimentos lhes pertencem desde que nascem. Esse é um ponto relevante, pois, além disso, o que é possível obter como resposta e solução é a narrativa de uma história. O homem e sua história se confundem. Nesse contexto, dá-se o encadeamento de circunstâncias que podem configurar a existência. Contudo, toda narrativa de história de si é incompleta. Mas será que a dor particular quer saber da sua história?

Este artigo surge através de interrogações sobre as fronteiras instáveis entre psicanálise e história, e o que poderia emergir no espaço dessa mobilidade. Portanto, faz um breve percurso bibliográfico para investigar a concepção de história e narrativa, que, por vezes, parece padecer de um certo quiproquó.

Além disso, tenta aproximar história e psicanálise. E sob esse aspecto, a história - tal como a narrativa - surge no atendimento clínico: todos têm algum tipo de história cotidiana a narrar e pequenas ficções a decifrar. É inevitável contar, mas isso também conduz ao que é inenarrável. Com efeito, a psicanálise opera por e no nível do dizer. Nesse sentido, quais as possibilidades para que o inenarrável da dor particular e o sofrimento possam irromper na história de si?

Sobre esse aspecto, Gagnebin (2009, p. 55) dirá que a história humana tem a tarefa de transmitir aquilo que não pode ser contado, certa fidelidade ao passado e aos mortos, principalmente enquanto não se conhecem seus nomes tampouco seu sentido.

Isso implica uma certa ascese (do grego askesis, exercício) da história que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, descerra-se aos brancos, aos buracos, aos esquecidos, aos rastros, ao recalcado. Somente assim pode ter acesso ao dizer, mesmo com solavancos e hesitação, pois se trata de narrar o que ainda não teve direito à lembrança nem ao esquecimento.

Umberto Eco (2017, p. 308-309) questiona se reconhecemos as coisas apenas através de definições. Exemplifica que a fórmula química NaCl se refere ao composto de sódio e cloro; o que mais se pode saber sobre o sal (que é extraído do mar ou de salinas, que já foi mais caro e precioso), encontra-se na história.

O saber, a ciência é, assim, feito e propagado através de histórias. No exercício de apreender o mundo, a criança vê um cão e pergunta o que é. Pode-se responder-lhe falando da definição; mas o cão também é, antes da definição, uma forma de história: "lembra aquele dia em que fomos ao jardim do vovô e havia um animal?". Portanto, a coisa que as crianças realmente querem saber, isto é, de onde vêm os bebês, é exposta também como uma história. Assim, a vida se passa dentro de redes de histórias que se contam, ou não se contam, uns aos outros. Pois se fala a partir de histórias.

Por sinal Lacan ([1954] 1998, p. 374), em Introdução ao comentário de Jean Hippolite sobre a "Verneinung" de Freud, nos diz que, quando fala, o sujeito convoca através de histórias a figura dos outros originários. Isso conduz à questão que, de fato, história e psicanálise se entrecruzam em diversos delineamentos.

De que se sofre? Em vez de tratar os pacientes com a ajuda de poções, repouso, internações, protocolos comportamentais, Freud nota que eles sofrem por ter uma família e por pertencer a uma genealogia. Sofrem de uma história recalcada, estão doentes por ter um inconsciente habitado por tragédias, e não somente por neurônios. Assim escreve Roudinesco (2019, p. 104).

Retornemos, então, ao ponto em que se sofre de uma história recalcada. O recalque visa a manter no inconsciente todas as ideias e as representações ligadas às pulsões e, para isso, se faz presente grande empenho de forças, pois a pressão pelo retorno é constante.

Conforme Luiz Alberto Hanns (1996, p. 355-358), não são as pulsões em estado bruto que são recalcadas, mas as representações, pois são portadoras de energia pulsional que, ao atingir a consciência, se expressa como afetos (prazer ou desprazer). São os afetos incômodos que o recalque quer afastar e, desse modo, evitar o desprazer.

Em A história do movimento psicanalítico, Freud ([1914] 1996, p. 26) mostra que a teoria do recalque é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. Portanto, continua Freud, é o fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar. O movimento de recalque consiste, assim, em afastar determinada coisa do consciente e mantê-la a distância.

Então, a arte consiste em apontar ao paciente a construção histórica? Nesse sentido, continua Freud, era a transferência que abrandava a resistência. Contudo, tal estratégia não era suficiente para a abertura do inconsciente. Assim, não era possível recordar a totalidade do que havia sido recalcado, e exatamente o que restou de impossível poderia ser a parte essencial.

Nota-se que o recalcado é repetido como experiência contemporânea, em vez de ser recordado como passado. Temos aqui que a história é não apenas reminis-cência, mas também algo que pode fazer parte de uma ação sobre o presente? De que forma?

Além disso, ao falar de recalque, Freud ([1906] 1996, p. 50) diz que

[...] o conceito de inconsciente é mais amplo, sendo o de recalcado o mais restrito. Tudo o que é recalcado é inconsciente, mas não podemos afirmar que tudo o que é inconsciente é recalcado.

Assim, há o inconsciente, o recalcado, a história e suas retroações significantes. E há o real que é forcluído. Temos aqui a disjunção entre a história, na qual se realiza o retorno do recalcado, e o real como o que subsiste fora da simbolização. O que é uma narrativa capaz de levar em conta o real?

Contudo, em que medida o recalque também fracassa? Freud ([1915] 1996, p. 265) em O sentido dos sintomas, nos diz que os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente. O sintoma, os atos falhos e os sonhos têm uma afinidade, que Freud ([1915] 1996, p. 265) nomeia de "conexão" com a vida de quem os produz. A história é também o sentido do sintoma?

No entanto, isso ainda diz pouca coisa, pois Freud ([1915] 1996, p. 278) nos conta que, embora as vivências forneçam uma explicação satisfatória dos sintomas, a interpretação histórica do sintoma deixa incertezas. A análise, como arte interpretativa, não fazia mais do que descobrir, reunir e comunicar ao paciente seu próprio material inconsciente.

Nesse sentido, Freud ([1920] 1996, p. 29), em Além do princípio do prazer, percebe que isso não solucionava as coisas:

[...] vinte e cinco anos de intenso trabalho tiveram por resultado que os objetivos imediatos da psicanálise sejam hoje inteiramente diferentes do que eram no começo.

Sentido e história estão intimamente apegados. Entretanto, a concepção de história que se pesquisa neste artigo é capaz de suportar o equívoco. A história de si passa a ser algo que comporta o sem sentido, o sem nome, o impossível, o inenarrável, a possibilidade de morte. Isso ocorre a propósito de algo que se vivencia, que é trauma e, assim, não pode se apropriar de palavras.

Mas a história também abarca o indizível. É emergência do novo e interrompe o tempo. Até que ponto a história de si também é contingência? O que seria uma concepção de história capaz de incluir a psicanálise?

Verifica-se que a especificidade da história, como notou Chartier (2015), é sua capacidade de articular os diferentes tempos. Nesse sentido, a leitura de diferentes tempos faz com que o presente seja o que é: herança e ruptura, invenção e inércia. A história, um procedimento de investigação, narrativa, escritura desdobrada e fragmentada, tem, então, a tarefa de convocar o passado que já não está no discurso do tempo presente, pois o passado nunca é um objeto que já está ali. A história é essa brecha existente entre o passado e o que o representa, entre o que foi e o que não é mais, e em relação com a narrativa (Chartier, 2015, p. 12-23).

Em vista disso, a história que se lembra do passado também é sempre escrita no presente e para o presente. Portanto, a intensidade dessa volta ao passado é também um fazer de novo, que possibilita a quebra da continuidade cronológica e linear capaz de enterrar o sofrimento e o horror, nos diz Gagnebin (2013). Logo, essa quebra de continuidade histórica é um gesto de interrupção do tempo, cessação mesmo, suspensão do sentido, que torna possível inscrever na narrativa silêncios e fraturas. Com esses elementos, reflete-se que o acesso ao passado é sempre faltoso, comporta sempre um fracasso, tal como o recalque.

Nesse contexto, sobre psicanálise, história e a narração do sofrimento, Gagnebin (2013) nos diz que isso consiste na quebra da coerência ilusória de uma história repetitiva, pois a narrativa deve ter a força de romper o que, tal como uma barragem, resiste ao fluxo narrativo. Em outras palavras, a dor, que não quer saber de sua história.

Além disso, como notou Gagnebin (2013, p. 107-110), repetir, romper até que surja o diferente:

As intervenções do analista não teriam como alvo primeiro opor a essa história uma contra-história, uma interpretação diferente da primeira, mas tão constrangedora, e restritiva quanto ela, numa espécie de luta interminável e estéril entre duas versões divergentes da mesma vida; elas deveriam, muito mais, provocar rupturas nessa narrativa por demais convincente, designar seus furos, seus brancos, retomar o tropeço, o ato falho para o sujeito se arriscar, no seu presente, a andar, a agir diferentemente (Gagnebin, 2013, p.107).

Por sinal, para Lacan ([1953] 1998, p. 319), em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, o automatismo da repetição visa a temporalidade histórica da transferência, ao passo que a pulsão de morte exprime o limite da função histórica do sujeito - ou seja, a morte. Entretanto, não a morte como simples término da vida nem como certeza empírica, mas como possibilidade. Esse limite se faz presente em cada instante que a história tem fim. É o passado sob forma real que se manifesta revertido na repetição, diferentemente do passado em que o homem encontra e garante o futuro.

Será que temos a morte como possibilidade de um limite nos instantes da história capaz de se findar? Portanto, a história tem esse caráter temporal, tal como a psicanálise, e capaz de provocar rupturas.

No princípio da análise, nos diz Dunker (2016, p. 98), o analisante parece falar de modo a justificar a posição subjetiva através da racionalidade própria sobre o sofrimento que o afeta. Tais explicações estão ligadas às contingências de sua história: vida amorosa, profissional e a forma como se está com o outro. Algo que predomina é que de algum modo ocorre à isenção do sujeito por retirada da implicação ou pelo excesso de implicação.

A psicanálise é também a prática dos modos de falar, denominada por Freud de associação livre. Até que ponto incidem problemas sobre a narrativa, a ponto de encurtá-la ou empobrecê-la? Para Dunker (2017, p. 44-45), percebe-se um déficit narrativo.

Desse modo, o analista, ao dizer ao analisante que conte sua história de vida, recebe como resposta: "sou dono de uma padaria". Porém, o analista insiste, pergunta, mas o analisante não tem nada mais a dizer. Dunker busca em Walter Benjamim, no texto O narrador (1936), a impossibilidade de narrar como uma mutação estranha da época. Narrar não é relatar, não é descrever; há um universo de problemas discursivos e linguísticos em torno da narrativa.

Nesse contexto, como notou Gagnebin (2013, p. 62) a respeito do esfacelamento da narrativa mítica tradicional em narrativas independentes, essas narrativas podem rememorar o passado sem assumir uma forma mítica. Com efeito, não se trata tanto da harmonia perdida ou do fim de uma época, mas da realidade do sofrimento incapaz de ser depositado nas experiências narrativas. No entanto, poderia ser transmitido em um sentido diferente da tradicional narrativa? Como pode ser contado? O que é, de fato, contar uma história, ou a história? Por que essa necessidade e essa incapacidade, de contar?

Essas são questões, nos diz Gagnebin (2013, p. 2), que preocuparam Walter Benjamim. Qual seria a narração que salvaria o passado e saberia resistir à tentação de preencher as faltas e sufocar os silêncios? Benjamin insiste nos laços entre morte e narrativa, pois se trata de uma nova ligação com a finitude. A narração tem sua origem mais autêntica no agonizante, aquele que está no limiar da morte. Não porque há um saber especial a se revelar, mas porque é no limiar da morte que se aproximam o mundo vivo e o familiar desse outro desconhecido que é a morte (Gagnebin, 2013, p. 58-64).

Mas será ainda preciso perceber que o que se conta na análise nunca é tão importante como o modo como se conta. No momento em que tenta compreender o significado do que o analisando conscientemente relata na complexidade da história evocada, o analista deixa de ouvir o modo como se diz. Portanto, o que se diz que ocorreu nunca é tão importante quanto o modo como se diz, pois ao psicanalista importa não somente o que se passou, mas também a posição que se toma no dizer para falar sobre isso. Assim, a forma de falar coloca em ato a divisão do sujeito (Lutereau, 2017, p. 12).

Por sinal, a originalidade da psicanálise diante de outros discursos é a incidência do aspecto material da verdade como causa. É a materialidade como significante, ou seja, o significante incide precisamente ao veicular o sujeito em sua relação com outro significante. Isso produz o sujeito, o sujeito do inconsciente, o sujeito em quem isso fala. Mas isso não é tudo, pois o sujeito não é totalmente produzido pelo simbólico. O sujeito é o próprio simbólico barrado, fundado em torno de um vazio por um impasse do real. "Há um ponto de real no coração do simbólico", nos diz Iannini (2012, p. 233).

A verdade não se manifesta apenas na pura negatividade do indizível; ao contrário, surge estreitamente conectada à superfície do dizer. A verdade em psicanálise não está recalcada, forcluída ou denegada. Ela fala. Mas saber escutar essa fala implica descobrir em que língua ela fala e qual a angulação de sua refração (Iannini, 2012, p. 153-234).

Ao falar de ruínas e história, Gagnebin (2009, p. 54) considera a narração como saída das ruínas da narrativa. O narrador é um catador de sucatas e lixo, recolhe cacos e restos, movido pela pobreza. Por isso, se interessa pelo que é deixado de lado, sem significação, algo sem importância ou sentido, algo pelo qual não se sabe o que fazer, algo que não deixa rastros.

Em Variantes do tratamento padrão, Lacan ([1955] 1998, p. 353), pergunta: "[...] O que é a fala?". E prossegue: trata-se de um ato.

Dizer que a fala é um ato é ir além das ressonâncias semânticas que ela necessariamente implica (Andrade, 2016, p. 41).

A escrita poética chinesa e a escrita de Joyce forçam a língua, enlaçam e de-senlaçam. Assim, mantêm o leitor atento para que haja algo a ser lido.

Lacan convida a encontrar na escrita poética chinesa a semente da interpretação (Andrade, 2016, p. 189).

Partindo desse ponto, faz-se questão o destino da história de si narrada e como se pode se articular a tal operação. Afinal, até que ponto a história de si também é poesia?

Por fim, a pergunta de Lacan em Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 ([1977] 2003, p. 568) ainda persiste:

[...] o que pode levar alguém, sobretudo depois de uma análise, a se 'historisterizar' [hystoriser] de si mesmo?

Ainda assim, depois de uma análise, que história teríamos? Por sinal, até que ponto se faz necessário aproximar verdade, inconsciente Real e história para através das fronteiras se verificar possível reflexão?

Desse modo, finalizo esta escrita com um impasse: a história - apartada e íntima da psicanálise - um caminho com algo ainda a se desenhar. φ

 

Referências

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CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Scheherazade Paes de Abreu
E-mail: scheherazade_abreu@yahoo.com.b>

Recebido em: 10/03/2020
Aprovado em: 03/04/2020

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