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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.37 no.1 São Paulo jan./jun. 2019
Amadeus. A Psicologia da Inveja e sua função no processo criativo: um estudo da Psicologia Simbólica1
The psychology of envy and its role in the creative process: a study of symbolic psychology
La psicología de la envidia y su función en el proceso creativo: un estudio de la psicología simbólica
Carlos Amadeu B. Byington
Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador. E-mail: <c.byington@uol.com.br> Site: www.carlosbyington.com.br
RESUMO
O autor analisa a peça de teatro "Amadeus" e estuda a função da inveja na relação de Mozart e Salieri. Caracteriza a inveja como uma função estruturante normal da maior importância no desenvolvimento da consciência. Chama atenção para a dificuldade de se compreender este fato devido às nossas concepções psicológicas se acharem ainda dominadas pela obra repressora-puritana da Inquisição. Afirma que na apresentação da peça a patologia mental de Mozart é ainda maior que a de Salieri. Relaciona a inveja patológica de Mozart com um complexo paterno negativo e a de Salieri com a prostituição de sua Anima. Explica a deterioração progressiva das personalidades de Mozart e Salieri: ao não assumirem sua inveja normal, esta se tornou cada vez mais sombria e patológica, ultrapassando o dinamismo neurótico e atingindo o psicótico. Descreve a função estruturante normal do ciúme para melhor discriminar a inveja e exemplificar o ciúme patológico com a peça Otelo, de Shakespeare. Finalmente, diferencia a função estruturante normal do ciúme e da inveja nos ciclos arquetípicos matriarcal, patriarcal, de alteridade e cósmico. ■
Palavras-chave: inveja construtiva ou normal, inveja destrutiva, patológica ou defensiva, criatividade prostituída, traição da própria anima, ciúme normal ou criativo, ciúme patológico ou defensivo, complexo paterno negativo, complexo de desadaptação social.
ABSTRACT
The author describes envy as a normal structuring function in the development of personality. Envy constellates symbols for development and helps to discriminate the Ego from the Other (the I from not I) in the construction of identity. When envy is not given proper attention it becomes part of the Shadow, which may lead to neurotic and even psychotic behavior. An example is given in the relationship between Mozart and Salieri such as it was represented in Peter Shaffer's play "Amadeus".
Envy constellated the symbol of Mozart in the development of Salieri's personality as an expression of his betrayed creativity. Since early youth, social ambition had led Salieri to create for fame instead of for his own Self. The betrayal of the Anima formed a powerful symbol of prostituted creativity in his pathological Shadow, which was constellated through envy when he met Mozart. Unable to attend his envy creatively by confronting his Shadow, Salieri acted out his envy destructively by destroying Mozart, his own Anima and himself.
Envy constellated the negative father complex in Mozart's personality when he met Salieri. The prodigious child soon surpassed his father. Lack of appropriate protection, affection and loving guidance developed a negative father complex in Mozart's personality. This prevented social adaptation due to a compulsive aggression toward authority figures expressed through defensive irony, ridicule and overall irreverent behavior. Marriage and fatherhood activated the father role and strongly intensified these defenses. As an Italian musician successfully serving the Viennese monarchy, Salieri stood for an extraordinary example of social adaptation and success. Envy constellated the negative father complex through the symbol of social unadaptation present in Mozart's Shadow. By defensively humiliating Salieri through his creativity, Mozart greatly intensified Salieri's defenses against his own genuine creativity. Plotting against Mozart's efforts to support his family through music lessons and court services, Salieri significantly strengthened Mozart's defenses against social adaptation.
Such complementary defensive behavior prevented envy from further creative development and established a neurotic symbiotic relationship. The creative forces of both personalities were so powerful, however, that neurotic defenses were insufficient to express their pathological Shadows. Psychopathic aggression and psychotic megalomaniac dynamism took over Salieri's personality, while paranoid, persecutory delusion had and irreversible effect on Mozart's career.
The author further clarifies the role of envy in normal and pathological development by comparing it with jealousy as expressed in Shakespeare's Othello. Envy is predominantly active, Jang and revolutionary. It stimulates growth through greed. Jealousy is predominantly passive, Yin and reactionary. lt stimulates the maintenance of the status quo through the threat of loss. Envy functions predominantly through the power drive and favors Ego development by limiting omnipotence through self-humiliation and competitive performance. Jealousy functions predominantly through the erotic drive by rejecting the Ego's narcissistic self-assurance through doubt. Both are archetypal structuring functions indispensable for the symbolic development of Consciousness from its very beginning. While envy discriminates the Ego from the Other through delimitation of the Ego's power, jealousy discriminates the Ego from the intimate Other by introducing a threatening, affectionate foreign Other. The author questions the classical psychoanalytical consideration of jealousy as a later development of envy due to the triangular structure of jealousy as compared to the binary structure of envy. The author argues that jealousy can act through an intimate Other, which is so closely fused with the I that, psychodynamically speaking, jealousy can function in the primary binary relationship as much as envy. The difference, then, lies not in the triangular structure of jealousy but on the threat, which the Other holds for the I in jealousy, which is a complementary psychological function of the threat which the I holds for the Other in envy.
The paper ends with a brief description of the different structuring functions of envy and jealousy in each of the four archetypal cycles of symbolic personality development (matriarchal-patriarchal, otherness and cosmic). ■
Keywords: normal, constructive or creative envy, pathological, defensive or destructive envy. prostituted creativity, anima betrayal. negative father complex, social unadaptation complex, normal, constructive or creative jealousy, pathological, defensive or destructive jealousy.
RESUMEN
El autor analiza la pieza de teatro "Amadeus" y estudia la función de la envidia en la relación de Mozart y Salieri. Caracteriza la envidia como una función estructurante normal de la mayor importancia en el desarrollo de la conciencia. Llama atención a la dificultad de comprender este hecho debido a que nuestras concepciones psicológicas se hallan todavía dominadas por la obra represora-puritana de la Inquisición. Afirma que en la presentación de la pieza la patología mental de Mozart es aún mayor que la de Salieri. Relaciona la envidia patológica de Mozart con un complejo paterno negativo y la de Salieri con la prostitución de su Anima. Explica el deterioro progresivo de las personalidades de Mozart y Salieri: al no asumir su envidia normal, ésta se volvió cada vez más sombría y patológica, superando el dinamismo neurótico y alcanzando lo psicótico. Describe la función estructurante normal de los celos para mejor discriminar la envidia y ejemplificar los celos patológicos con la pieza Otelo de Shakespeare. Finalmente, diferencia la función estructurante normal de los celos y la envidia en los ciclos arquetípicos matriarcal, patriarcal, de alteridad y cósmico. ■
Palabras clave: Envidia constructiva o normal, envidia destructiva, patológica o defensiva, creatividad prostituida, traición de la propia anima, celos normales o creativos, celos patológicos o defensivos, complejo paterno negativo, complejo de desadaptación social.
A peça de teatro "Amadeus", na qual foi baseada o filme do mesmo nome, tem como tema central a relação historicamente famosa entre os músicos Antonio Salieri (1750-1825) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) na corte de Viena no final do século 18. Salieri só é conhecido hoje devido ao escândalo histórico que teve com Mozart. Na época, porém, Salieri foi um dos músicos mais famosos da Europa não só por ser primeiro Mestre Capela na corte de Viena como por suas 40 óperas e 12 oratórios que as grandes capitais da Europa conheceram e aplaudiram.
Mozart passou como um cometa musical pela Europa no final do século XVIII. Menino prodígio, estudava desde os 3 anos, compunha e tocava desde os 5 anos de idade. Sua trajetória feérica teve muitos episódios de glória, mas seu temperamento irreverente e mimado, sua desconsideração para com os valores da sociedade do seu tempo e sua incapacidade de promover sua carreira tiveram papel importante no fato de ele ter morrido aos 35 anos, abandonado por todos, na miséria e enterrado como indigente numa vala comum. Salieri uniu-se à glória de Mozart na história da música, não devido à sua música, mas por ter confessado na velhice, em meio a um episódio psicótico no qual tentou suicídio, que envenenara Mozart 30 anos antes por inveja. A veracidade do fato nunca foi apurada, mas o acontecimento passou a fazer parte da glória e do fim trágico de Mozart.
A peça, há anos um sucesso nos Estados Unidos e na Europa e atualmente em exibição no Rio de Janeiro, ilustra, por intermédio da competição de dois músicos, Salieri e Mozart, o conflito de inúmeras emoções, das quais a inveja sobressai para dominar o enredo dramático do princípio ao fim. Da mesma forma que o ciúme permeia o Otelo de Shakespeare, e aí podemos perceber muitas de suas inúmeras nuances psicológicas, em "Amadeus" vamos encontrar uma verdadeira antologia da inveja. Contudo, quando se refere à essência do fenômeno da inveja, o personagem que representa Salieri expressa de forma exuberante a conotação habitual em nossa cultura de algo ruim e exclusivamente destrutivo, como se a inveja fosse basicamente pecaminosa. Minha intenção aqui é mostrar a natureza preconceituosa desta noção, usando algumas cenas centrais da peça para teorizar sobre a inveja e sua função estruturante na Psicologia Simbólica.
Esta peça tem sido muito apreciada e criticada. Como qualquer criação romanceada de um fato histórico, tão mal documentado como foi a vida de Mozart, no que concerne, sobretudo às razões de sua pobreza e, mesmo, miséria crescente no final de sua vida, seguida de sua doença e sua morte em circunstâncias obscuras, "Amadeus" é questionável em muito do que afirma e deixa transparecer. A confissão de Salieri indubitavelmente é um fato histórico. O seu conteúdo, porém, nunca foi apurado. Afora isso, o fato mais questionado da peça foi o exagero nas irreverências de Mozart, que teria distorcido para muitos a verdadeira natureza de sua personalidade. Estes dois aspectos, porém, não parecem invalidar as considerações que fazemos sobre os símbolos provavelmente vivenciados pelos dois músicos.
Não é necessário se ter visto ou o filme ou a peça para se acompanhar este estudo. Todos os símbolos aqui estudados têm um contexto muito claro e quando for necessário, repetirei as frases da peça nas quais eles estão contidos. Apesar disso, apresento a seguir um resumo da peça para melhor situar o leitor. A ação decorre em Viena em novembro de 1182 e evoca a década de 1781 a 1791.
Ato 1 Cena 1 (Viena) - Salieri velho, numa cadeira de rodas ouve o escândalo causado em Viena por seus delírios de ter envenenado Mozart 32 anos atrás.
Ato 1 Cena 2 (Casa de Salieri) - Salieri invoca o futuro e começa a contar sua história, preparando sua confissão.
Ato 1 Cena 3 (1781 - A corte do Imperador José II) - Salieri relata como os músicos viviam como meros criados dos nobres e, no entanto, seriam mais reverenciados pela História do que aqueles. Salieri era o mais bem-sucedido de todos até que se começou a falar em Mozart.
Ato 1 Cena 4 (O Palácio de Schönbrunn) - Fala-se em encomendar uma ópera em alemão para Mozart, cuja fama de menino prodígio era conhecida de todos - Salieri é convidado pelo Barão Van Swieten para fazer parte de sua loja maçônica. Mozart também será convidado. Tratava-se de uma grande honraria.
Ato 1 Cena 5 (A Biblioteca no Palácio da Baronesa de Waldstadten) - Durante uma recepção, Salieri senta-se numa cadeira da Biblioteca e, por acaso, ouve escondido uma cena entre Mozart e sua noiva Constanze na qual brincam de gato e rato com grande irreverência. A seguir são chamados para ouvir o Adágio da Serenata para 13 Instrumentos de Sopro (K-361) de Mozart. Salieri, de início, tenta ridicularizar o que ouve, mas, aos poucos, é invadido por uma imensa onda de inveja e de dor. Salieri sai à rua desvairado pela natureza divina da música que ouvira e, ao mesmo tempo, chocado pela infantilidade obscena da personalidade do artista que a criara.
Ato 1 Cena 6 (Casa de Salieri) - O músico compõe e ensina. Tem muitos alunos. É bem-sucedido. À noite, ajoelha-se em desespero e implora a Deus a Graça de poder expressá-lo. Evita encontrar Mozart.
Ato 1 Cena 7 (Palácio de Schönbrunn) - O Imperador aguarda impaciente a chegada de Mozart e o recebe, mandando Salieri executar sua Marcha de Boas-Vindas, aplaudida por todos. Mozart saúda a todos de forma exuberante demais, emitindo compulsivamente uma risadinha esganiçada e chocante. Mozart, que recebera a encomenda de uma ópera há apenas duas semanas, diz que já terminou o primeiro ato (O Rapto do Seraglio) e choca o Conde Rosemberg, diretor da ópera, pois não lhe submetera o libreto para aprovação, ao mesmo tempo em que ofende os brios patrióticos de Salieri, referindo-se à ópera em voga como "lixo italiano". A sós, Mozart conta a Salieri que encontrara em Katherina Cavalieri uma cantora perfeita para o papel em sua ópera. Salieri enciuma-se, pois Katherina é sua melhor aluna. A seguir, toca a marcha de Salieri no piano de memória. Começa a desenvolver sua melodia com incrível criatividade diante de um Salieri estupefato e a transforma na célebre Marcha do Casamento de Fígaro como a conhecemos hoje. Salieri se despede, mal podendo dissimular o ódio. Imagina Mozart no lugar do personagem de sua ópera sobre a Lenda de Dannos, que, por ter cometido um crime monstruoso, foi acorrentado a uma rocha para toda a eternidade com a cabeça sendo repetidamente golpeada por um raio.
Ato 1 Cena 8 - A estreia do Rapto do Seraglio tem relativo sucesso e, pelo papel dado a Katherina, Salieri imagina que Mozart a seduzira, jurando que seduziria Constanze em troca.
Constanze e Mozart casam-se, apesar de não haverem ainda recebido o consentimento do pai dele. Comenta-se em Viena como Mozart é irreverente e perdulário.
Ato 1 Cena 9 - A irreverência de Mozart choca e insulta todos, até mesmo o Imperador, em meio à sua risadinha compulsiva. Salieri percebe que Mozart está em dificuldades financeiras e decide agir.
Ato 2 Cena 10 (Biblioteca de Waldstadten) - Do mesmo esconderijo da Cena 5, Salieri presencia uma briga de ciúmes e ressentimentos entre Mozart e Constanze, que lhe acusa de seduzir todas as suas alunas, inclusive Katherina. Afirma que Salieri tem alunos porque não tem essa leviandade e Mozart revida descompondo-o. Salieri finge acordar e cumprimenta o casal estarrecido. Mozart sai e Constanze se queixa e pede que Salieri ajude Mozart com um emprego e alunos. Ele a convida para ir à sua casa uma tarde.
Ato 1 Cena 11 (Casa de Salieri) - Constanze chega trazendo uma partitura do marido. Grosseiramente, Salieri propõe a sedução de Constanze em troca de um emprego na Corte. Revoltada, ela o destrata e ele se humilha confessando sua inveja. Ela o espezinha e ele, desesperado, repete sua proposta agressivamente.
Ato 1 Cena 12 - Culpado e envergonhado, Salieri se recrimina. Apanha a partitura deixada por Constanze. É a Abertura da 29º Sinfonia em Lá Maior. Ela havia dito que se tratava do original. Maravilhado, ele se dá conta de que não há nada a corrigir. É uma obra-prima acabada. Em outra partitura, vê a mesma coisa na Sinfonia Concertante para Violino e Viola e, a seguir, tudo se repete com o Concerto para Flauta e Harpa. Súbito, Salieri percebe que a genialidade criativa de Mozart é de tal ordem que ele compõe a música já perfeitamente acabada. Ao som do Kyrie da Missa em Dó Menor, Salieri é acometido de êxtase. O teatro se inunda de música e de luz. Ele cambaleia com as partituras na mão e desmaia.
Salieri acorda e vocifera contra Deus por humilhá-lo ao ter criado Mozart: infantil, mal-educado, irresponsável, mas... genial! - "Dio Ingiusto, exclama, vós sois meu inimigo eterno..." Declara guerra a Deus por intermédio de sua criatura preferida - Mozart, chamado Amadeus.
Ato 2 Cena 1 (Casa de Salieri) - Estamos em 1823. Salieri continua a contar o que aconteceu na sua luta com Deus para destruir Mozart. Constanze vem a sua casa para cumprir o contrato. Salieri a rejeita e a manda embora com as partituras. Confessa para si mesmo que a deseja, mas que isso atrapalharia seus planos. Dedica-se à sedução da soprano Katherina, de quem se torna amante durante muitos anos.
Ato 2 Cena 2 (Palácio de Schönbrunn) - Salieri vai ao imperador e recomenda alguém sem talento para o cargo de professor da princesa Elizabeth, pedido por Constanze para Mozart.
Ato 2 Cena 3 - Mozart compõe genialmente, mas pouco é ouvido, enquanto Salieri se torna cada vez melhor sucedido.
Ato 2 Cena 4 - Mozart planeja as Bodas de Fígaro. Com isso invade a Ópera Italiana, seara de Salieri, e se indispõe pela vulgaridade do libreto com o Barão Van Smieten, seu protetor e diretor da Biblioteca Imperial, sempre com sua risadinha debochada, impertinente e compulsiva. Salieri planeja com o Conde Van Strack, camareiro imperial, impedir as Bodas de Fígaro pelo fato de ter um ballet no 3º Ato, o que contrariava uma determinação do próprio Imperador.
Ato 2 Cena 5 - Mozart insiste em incluir o ballet, rompe com o Conde Rosemberg e pede a Salieri que, mentirosamente, concorda em interceder junto ao Imperador.
Ato 2 Cena 6 - Por coincidência, o Imperador vem ao ensaio e mantém o ballet, contra Rosemberg e Stratt. Mozart crê ingenuamente dever tudo a Salieri.
Ato 2 Cena 7 - As Bodas de Fígaro são executadas incluindo a Marcha das Boas-Vindas de Salieri na célebre ária "Non piu andrai". O Imperador boceja no final e pouco elogia Mozart que, desolado, é consolado por Salieri. Rosemberg furioso será doravante um grande inimigo de Mozart.
Ato 2 Cena 8 (Biblioteca de Waldstadten) - Mozart fala em ir para a Inglaterra. Afirma que o pai não o ajuda por nunca o ter perdoado por ter menos talento que ele. Chega a notícia da morte do pai. Mozart desespera-se de culpa por tê-lo desobedecido ao se casar e, depois, abandonado. Salieri o consola e depois, só, afirma que assim nasceu o fantasma do pai em D. Giovanni.
Ato 2 Cena 9 - Em relação aos acordes de D. Giovanni, Salieri afirma ali estar o pai mais acusador da história da ópera, que condena o libertino culpado ao Inferno. Ele vê na risadinha de Mozart a gargalhada de Deus e reitera seu plano de lutar contra ambos.
Ato 2 Cena 10 - Morre Gluck e o Imperador nomeia Mozart para seu posto, mas, por influência de Salieri, com um salário muito menor. Mozart iludido e já doente agradece tudo a Salieri que é nomeado Mestre-Capela Imperial.
Ato 2 Cena 11 - Constanze novamente engravida e Mozart diz que vê em pesadelos uma figura mascarada vestida de cinza que lhe chama. Eles passam muita necessidade, mas seus companheiros maçons os ajudam.
Ato 2 Cena 12 - Van Swieten (maçom) ajuda Mozart se este fizer arranjos de Bach. Mozart, mesmo revoltado, concorda, pois os maçons são agora seu único esteio. Salieri, também maçom, quer lhe dar dinheiro. Mozart recusa, valorizando ainda mais sua amizade. Schikaneder, ator e dono de teatro, entra para a loja maçônica e oferece a Mozart pagamento para uma peça de vaudeville. Mozart pensa escrever sobre o amor fraterno.
Ato 2 Cena 13 - O casal passa dificuldades. Constanze acusa o pai de Mozart de ter superprotegido Mozart e de ter feito dele um eterno bebê. Diz que, na véspera, devido ao frio, queimara as cartas do sogro para que se esquentassem. As mesmas cartas que a atacaram tanto. Mozart fica furioso. Brigam e, no meio da crise, ele vê a figura chamando. Constanze entra em trabalho de parto. Tem mais um filho e viaja para Baden com o pouco dinheiro que lhes resta. A figura volta e lhe pede para escrever um réquiem.
Mozart encena a Flauta Mágica com libreto de Schikaneder, incluindo os rituais sagrados. Salieri sente que, na obra, Mozart fazia as pazes com a figura do pai.
Salieri avisara o Barão Van Swieten para ir à estreia e este, chocado com a abertura dos rituais maçônicos para um público tão vulgar, condena Mozart veementemente.
Ato 2 Cena 15 (O Teatro em Weiden) - Schikaneder engana e rouba Mozart, dando-lhe dinheiro apenas para beber.
Mozart compõe sem parar. A figura reaparece e ele a convida para a ceia com as palavras de D. Giovanni - "Oh estátua gentilíssima, venite a cena!". Salieri é agora o personagem e atravessa a rua em direção à casa de Mozart.
Ato 2 Cena 16 - Mozart dirige-se a Salieri como a figura e promete que já está quase terminando o réquiem. Salieri come o canto de uma partitura dizendo que os dois estão envenenados, um pelo outro. Mozart começa a delirar, regride à infância e chama pelo pai. Chega Constanze, mas Mozart não a vê. Continua compondo, canta "Gragna figata já!". É o fim.
Ato 2 Cena 17 - Salieri se dá conta de que a figura que amedrontava Mozart havia sido um criado do Conde de Walsegg que, almejando passar por compositor, encomendara o réquiem para apresentar como seu. Salieri chegou a regê-lo sob esta falsa autoria.
Salieri ficou em Viena e, aos poucos, entendeu o castigo de Deus. Ela não havia querido a fama? Pois bem, ele agora era o músico mais famoso da Europa. Viveu para ver sua música esquecida e a de Mozart glorificada.
Ato 2 Cena 18 (Casa de Salieri) - Salieri assina a confissão de ter envenenado Mozart e se declara o santo protetor da mediocridade. Tenta o suicídio.
Ato 2 Cena 19 - No livro de conversas de Beethoven, no qual os visitantes escrevem para o compositor surdo, se lê em novembro de 1823: "Salieri cortou a garganta. Está completamente louco, afirmando que envenenou Mozart".
Salieri encerra a peça exclamando - "Mediocridades de todo o mundo, eu vos absolvo a todos. Amém!".
Minha prática como psicoterapeuta e minhas vivências no meu próprio processo de individuação têm me levado cada vez mais a discordar da noção dominante em muitas teorias psicológicas de que o Ego se estrutura em meio à tais ansiedades durante e após o nascimento, que tem que lançar mão normalmente de mecanismos de defesa que habitualmente encontramos na patologia para fazer face a essas ansiedades. Aos poucos e por intermédio de dos anos, vou chegando à conclusão que a vida não é tão ameaçadora quanto é apresentada por essas teorias psicológicas. Com isso, suspeito cada vez mais que, frequentemente, a Psicologia está expressando inconscientemente uma atitude cultural puritana, oriunda da repressão da Inquisição que feriu nossa Alma Coletiva ou Self Cultural intensamente durante séculos, ao considerar pecaminosas a maioria de nossas emoções normais. De fato, como a função primordial do inquisidor era enquadrar a Consciência Coletiva em noções rígidas e repressivas, as emoções normais foram frequentemente apresentadas como pecaminosas e destrutivas como é o exemplo exuberante dos "sete pecados capitais". Isto ainda faz com que muitos, ao viverem ou simplesmente estudarem cientificamente estas emoções, o façam enfatizando seu aspecto negativo, imiscuindo em suas ações e estudos, suas culpas e seus preconceitos. A Psicologia Simbólica busca perceber a atuação das funções psíquicas no seu papel estruturante da consciência sem rotulá-las com qualquer julgamento de valor apriorístico. Essas funções e seus símbolos, quaisquer que sejam, podem atuar construtiva e destrutivamente na personalidade e na cultura, em função da sua forma de agir, mas nunca em função de sua natureza. Como escreveu o poeta: "As coisas em si não são boas ou más; é o pensamento que as faz assim", ou seja, os símbolos em si não são bons ou maus, pois é a função que desempenham na Psique que os torna bons ou maus para o desenvolvimento.
A emoção da inveja é muito próxima da cobiça e da voracidade. A diferença está no grau de diferenciação da expressão emocional do Self. Podemos dizer que a voracidade expressa a energia psíquica emergente, enquanto que a cobiça diz respeito a esta energia psíquica dirigida por um vetor que lhe dá relativa especificidade objetal. A inveja é, nesse sentido, mais diferenciada do que a voracidade e a cobiça, pois na inveja a energia psíquica se encontra nitidamente dirigida a algo que tem a característica específica de já pertencer a outro.
É perigoso denominarmos de cobiça e voracidade a pujança normal do Self e reservar a inveja para denominar esta manifestação no seu aspecto destrutivo, pois, nesse caso, abrimos a porta para o puritanismo maniqueísta patriarcal entrar na Ciência. Prefiro buscar minuciosamente as características psicológicas de cada estado emocional e designá-lo de forma clara na sua expressão normal e patológica. Assim, voracidade é a fome do ser. Cobiça é esta forme, esta ânsia se dirigindo a um objeto qualquer, enquanto que a inveja é esta voracidade e esta cobiça do Self dirigidas para uma característica que pertence de forma nítida a outro.
Cada um destes estados emocionais pode aparecer de forma normal ou patológica, dependendo de sua maneira de operar. Se a emoção está operando por intermédio de símbolos que permitem o livre desenvolvimento da personalidade, ela é normal. Se, pelo contrário, ela opera por intermédio de símbolos que estão dissociados do desenvolvimento criativo da personalidade e cercados por defesas estereotipadas (neuroses) ou por intermédio de símbolos que irrompem na personalidade incapazes de praticamente qualquer adequação criativa (psicoses), ela será patológica. Esta parece ser uma maneira de ultrapassarmos a dicotomia patriarcal que divide, reduz e codifica os símbolos em bons ou maus, destrutivos ou criativos fora do seu contexto simbólico operativo e, com isso, impede a compreensão dinâmica da realidade simbólica.
A inveja, como as demais emoções, é um fator da maior importância na estruturação da consciência normal. Durante toda a vida, a inveja desempenha uma importantíssima função do Self que é detectar o Símbolo Estruturante necessário para determinada fase do desenvolvimento. Isto faz com que a inveja seja acionada e entre em funcionamento no Self Individual e Cultural com enorme frequência. Contudo, ela não é somente o perdigueiro que fareja a caça. A inveja é ainda a águia que desce sobre sua presa num voo certeiro, como é, também, o tigre que se lança de corpo inteiro para abocanhá-la. Estes componentes de busca, espreita, voracidade e agressividade são necessários para localizar o Símbolo Estruturante necessitado naquele momento, e, a seguir, delimitá-lo no seu contexto e destacá-lo do Todo para torná-lo operativo no processo de desenvolvimento. A inveja, assim sendo, como todas as demais funções psíquicas, é imprescindível para o crescimento. Disso nos damos conta plenamente no dia a dia, seja em função de nossas próprias necessidades, seja em função das necessidades dos outros. É frequente usarmos a inveja dos outros para relacionarmos com eles muitas vezes para nosso próprio proveito. Podemos observar, por exemplo, como os políticos usam habilidosamente a inveja do eleitorado. Muitas vezes, o fazem de boa fé e realmente tentarão satisfazer a inveja genuína depois de eleitos. Outras vezes, porém, manipulam demagogicamente a inveja dos outros, prometendo uma distribuição de riquezas para todos, que sabem ser inexequível.
Os componentes da inveja a tornam uma emoção estruturante das mais poderosas e, por isso, frequentemente assustadora e dolorosa ao ser vivida, como assinalamos na expressão "a inveja rói". Isto não quer dizer que a inveja cause normalmente ansiedade insuportável que obrigue o Ego a lançar mão de mecanismos de defesa para suportá-la. Talvez, em nossa cultura, nos defendamos e disfarcemos a inveja mais que em outras, devido a obra da Inquisição. O puritanismo nos fez desconhecer a verdadeira extensão da força vital do ser humano. Tratamos nossas crianças como seres destituídos de emoções e, com isso, as fragilizamos. Quando percebemos, porém, suas emoções vitais e profundas, sejam elas de agressividade, sexo, inveja ou o que for, tendemos a tratá-las como bichos de sete cabeças e, com isso, não lhes damos suficiente vaso familiar para elaborar estas funções e se acostumarem a vivenciá-las normalmente na sua finalidade estruturante. A Psicologia Moderna, nesse sentido, continuou em muitos aspectos a obra puritana e repressora da Inquisição. Ao descrever um inconsciente humano instintivamente homicida, reafirmou, "cientificamente" agora, a necessidade da repressão.
É impressionante como pais que receberam até mesmo educação universitária, frequentemente, não permitem que seus filhos vivenciem agressividade, ciúmes, inveja, competição, ódio, rebeldia, traição, roubo, vergonha, humilhação, mentira, fingimento, covardia, inovação, espontaneidade, para não se falar na sexualidade infantil. Ainda que cada vez mais os pais tendam a ser compreensivos, liberais e não agridam seus filhos, frequentemente seu código de valores não difere, essencialmente daquele da Inquisição, na medida em que não se dão conta de que todos esses estados psicológicos mencionados são altamente estruturantes e os consideram exclusivamente danificantes à personalidade, ou seja, essencialmente errados e ruins. Isto não quer dizer que eu esteja advogando a educação com ausência e omissão dos pais, pois isto não é educação, e sim abandono da criança com resultados geralmente maléficos. Aquilo a que estou me referindo é a uma educação não repressiva, porém, estruturante, que acompanhe e permita à criança elaborar suas vivências como funções simbólicas estruturantes de sua personalidade. Toda criança aprende muito cedo que em nossa cultura a mentira, a covardia, o roubo e a traição, por exemplo, não fazem normalmente parte da vida, mesmo quando não desejadas. Contudo, é mentiroso e prejudicial transmitirmos às crianças noções de que nós adultos somos imunes ao fingimento, à mentira, à covardia e à traição. Quando assim fazemos, criamos uma atmosfera idealizada e facciosa de culpa e repressão que impede a criança da vivência e elaboração estruturante destas funções que, por isso, passam a formar a parte sombria da sua personalidade. A melhor maneira de criarmos um covarde com aparência de corajoso é reprimirmos o seu medo, como nos mostrou tão bem Joseph Conrad em seu romance "Lord Jim". A covardia reprimida na Sombra será de alguma forma atuada e a Persona de coragem dificilmente resistirá a uma análise existencial mais profunda.
Lembro-me de um caso de uma família que orientei, no qual uma menina de 12 anos havia roubado dinheiro de sua mãe. Descoberta e severamente repreendida na frente dos irmãos e de estranhos, a menina desenvolveu a partir daí sintomas histéricos com tiques, depressão e anorexia (falta de apetite). Elaborei o símbolo do roubo em nível individual e familiar e pedi-lhes que compreendessem o dinheiro da mãe como algo simbólico que teve que ser roubado. Contei-lhes o Mito de Prometeu, mostrando-lhes que seu roubo foi por um lado considerado errado e punido, mas que, por outro, trouxe o fogo dos deuses para a humanidade. Durante a elaboração em nível de Self familiar, emergiu o fato que a mãe dedicava seu afeto preponderantemente ao pai e ao filho mais velho em detrimento dos outros filhos. O roubo expressou, assim, uma necessidade vital daquela filha que não estava podendo conseguir afeto por vias normais.
É importante frisar que, em momento algum, deixei de situar o roubo como uma transgressão, ao mesmo tempo em que estimulei sua compreensão dinâmica simbólica para elaborar e propiciar sua função estruturante da consciência familiar.
Em outro caso, elaborei uma situação de covardia, também, em nível do Self Familiar. Um pai trouxe-me a situação de seu filho de 14 anos que, no início de uma luta de judô, diante de toda a academia e seus familiares, fugira em pânico. Humilhado por seu pai, seus irmãos e colegas, o menino desenvolvera agorafobia aguda (pânico de sair em espaços abertos). Elaborei o ato covarde como símbolo em nível do Self Familiar e emergiu aos poucos a covardia reprimida do pai que superexigia reativamente junto com a mãe um comportamento extraordinário na atmosfera familiar, acobertando com isso o intenso medo que o pai vivenciava inconscientemente no seu ambiente de trabalho.
Se bem que em momento algum retirei da covardia sua conotação de conduta indesejável, valorizei muito o medo como função estruturante para trazer à consciência a realidade profunda da vida, exemplificando com a função relevante que o medo desempenha na sobrevivência dos animais ferozes. Acabamos por compreender que a fuga do adolescente nos abrira uma porta para lidar com o medo reprimido do pai que todos sentiam e que lhes ensombrecia a vida. O próprio pai, no final, abraçou-se com o filho, ao se conscientizar do quanto ele temia e detestava seu emprego pela atmosfera persecutória e opressiva na qual o exercia.
Vemos com esses exemplos que o conhecimento do componente estruturante de todas as funções psíquicas, por mais incômodas que sejam, é fundamental não só para o analista como para o educador é mais importante devido ao aspecto preventivo ser mais eficiente que o curativo. A noção de que as funções psíquicas são essencialmente expressões do Arquétipo Central, ou seja, são símbolos destinados a transformar a consciência, estimula o caminho da compreensão da vida antes de julgá-la.
Um dos grandes problemas do educador ao situar a Pedagogia à luz da Psicologia Simbólica e substituir a conduta diretiva pela compreensão sistemática das ocorrências como símbolos estruturantes é, sem dúvida, o problema ético. De fato, muitos educadores progressistas se perdem nesse caminho por escolherem uma via liberal, mas diretivamente permissiva para escapar da via diretiva repressiva. Esta foi uma das dificuldades centrais da pregação do Novo Testamento que até hoje, ao que tudo indica, ainda não conseguimos compreender. Como agir liberal, amorosa e criativamente e ao mesmo tempo preservar os limites e evitar o desregramento e o caos?
Desde o início da pregação de sua mensagem de compreensão simbólica acima da ética patriarcal diretiva, dogmática e apriorística, Jesus é confundido com um anarquista. Os próprios anarquistas e liberais confundem-se muito a esse respeito. Ao quererem adotar uma mensagem sem valores repressivos adotam, frequentemente, uma posição sem valores. Ao condenar a ética repressiva, declaram-se antiéticos. Claro está que, imediatamente a seguir, necessitam começar a explicar que não são nem caóticos nem libertinos. A dificuldade vem de não reconhecerem que a ética patriarcal dogmática que combatem de um estado de consciência (regido pelo Arquétipo do Pai) e que eles buscam uma outra ética regida pela Consciência de Alteridade (regida pelos Arquétipos da Anima, do Animus e do Coniunctio). Esta dificuldade é exacerbada pelo fato destes inovadores, apesar de sua coragem contestadora e de suas boas intenções, não se darem conta que estes dois padrões de consciência, ou seja, o patriarcal e o de alteridade, são regidos pelo Arquétipo Central em sua função ética estruturante e, por isso, atuam eticamente tanto um quanto o outro, variando na forma mas sem perder sua essência ética.
As pregações do Novo Testamento mostram essa dificuldade ao tentar expressar a nova ética sem invalidar a antiga: "Não julgueis que vim abolir a lei dos profetas. Não vim para as abolir mas sim para levá-las à perfeição" (MT:5:17).
O mito frisa permanentemente que se trata de uma nova ética na qual os fatos não devem ser julgados de antemão: "Não julgueis para não serdes julgados" (MT: 7:01). "Não julgueis por aparência, mas com julgamento certo (João 7:24).
Em várias passagens são apresentadas orientações invalidando o julgamento pelo fato disto ocultar a existência do pecado (psicologicamente o pecado seria o símbolo problemático como do roubo ou da covardia nos casos acima).
Os escribas e os fariseus trouxeram uma mulher que fora apanhada em adultério. Puseram-na no meio da multidão e disseram a Jesus. - Mestre, agora mesmo esta mulher foi apanhada em adultério. Moisés mandou-nos na lei que apedrejássemos tais mulheres. Que dizes tu a isso? Perguntaram-lhe isso a fim de pô-lo à prova e poderem acusá-lo. Jesus, porém, se inclinou para a frente e escrevia com o dedo na terra. Como eles insistissem, ergueu-se e disse-lhes: - Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra (João 8:3-7).
Simultaneamente, os textos expressam que esta nova ética não é simplesmente alguma inovação que brotou na consciência em nível puramente egoico, mas uma revelação da divindade (expressão simbólica do Arquétipo Central):
Os judeus se admiravam e diziam: - Este homem não fez estudos. Donde lhe vem pois este conhecimento das Escrituras? Respondeu-lhes Jesus: - A minha doutrina não é minha mas daquele que me enviou. Se alguém quiser cumprir a vontade de Deus, distinguirá se a minha doutrina é de Deus ou se falo de mim mesmo. Quem fala por própria autoridade busca a própria glória; mas quem procura a glória de quem o enviou é digno de fé e Nele não há impostura (João 7:15-18).
Naturalmente, isto não quer dizer que muitas emoções não provoquem ansiedade acompanhada de patologia e, por isso, necessitem a atenção do psicólogo mais que do educador. Todavia, nestes casos, vamos encontrar estas emoções expressas dentro de estratégias defensivas com seus bloqueios característicos por intermédio de das quais poderemos perceber os quadros psicológicos neuróticos e psicóticos. No caso da inveja, vamos percebê-la como patológica quando ela não estiver mais contribuindo livre e criativamente para o desenvolvimento da personalidade e se encontrar operando num contexto à parte do todo com características compulsivo-repetitivas, inadequadas e, por isso, destrutivas.
A diferenciação do desempenho normal e patológico da inveja só poderia ser feita, então, se admitirmos, na profundidade do nosso ser, que todas as emoções, incluindo a inveja, podem atingir, dentro do desenvolvimento normal, uma intensidade estruturante tal que sejam acompanhadas de intenso mal-estar, ansiedade e sofrimento sem que isso deva necessariamente ser caracterizado como anormalidade. Continuando com Santo Agostinho, poderíamos dizer que não só "entre fezes e urina nascemos", como também com elas vivemos. A convicção de que o processo existencial é normalmente intenso, sofrido e doloroso, porém, só pode ser adquirida por intermédio da sua própria vivência, ou seja, de forma iniciática. Um dos grandes mal-entendidos originados nas análises pessoais é usar o sofrimento oriundo do confronto de núcleos patológicos para referendar a noção errônea de que a intensidade emocional e o sofrimento sejam indicativos de patologia. Este fato não deve, porém, de modo algum, servir para estimular aqueles que buscam masoquisticamente o sofrimento e de forma puritana se desobrigam do prazer e da sensualidade da vida.
As personalidades de Salieri e Mozart nos aparecem como uma antologia da inveja porque nos permitem percebê-la em nível normal, depois neurótico e, finalmente, psicótico apresentando assim todas as variações existenciais.
A importância de considerarmos a inveja também como uma emoção normal da personalidade, expressando sempre um determinado anseio de desenvolvimento do Self Individual por intermédio de símbolos estruturantes, faz com que as interpretações dos Símbolos da inveja sejam radicalmente diferentes das interpretações de uma Psicologia que reduza a inveja a uma noção destrutiva. Para esta Psicologia redutivista, Salieri, como grande invejoso, seria simplesmente um músico medíocre carregado de destrutividade, como é representado do início até a última frase da peça. Para a Psicologia Simbólica, porém, a intensidade da inveja de Salieri é altamente indicativa da pujança criativa de sua personalidade. A destrutividade da personalidade de Salieri teria nascido e crescido progressivamente na exata medida em que ele não soube, não pôde, ou não quis fazer o esforço necessário para desenvolver sua inveja que provinha essencialmente da musicalidade extraordinária com que nasceu dotado. Esta teoria de que a inveja normal é proporcional à pujança do crescimento do Self invalida concordamos com o próprio Salieri na peça, quando ele racionaliza defensivamente sua problemática e se autorrotula um gênio, apenas para reconhecer um grande musicista (Mozart) e um imbecil absolutamente incapaz de sê-lo. A voracidade de qualquer animal predador em condições normais é sempre proporcional a sua vitalidade e a sua pujança para saltar sobre a presa. Não encontramos na biologia, a excitação de um sentido que não encontre seu correspondente normal de satisfação. Dentro desta teoria, devemos, porém, perceber que a inveja, como todas as demais manifestações psíquicas, é de natureza simbólica e, por isso, não necessita necessariamente se efetivar exatamente da mesma forma que a consciência percebe o objeto que a desencadeou. Na medida em que tudo na psique é símbolo, o objeto da inveja também o será e, ao ser vivenciado e elaborado simbolicamente, ele próprio multiplicará as possibilidades por intermédio de das quais poderá se aplacar a inveja criativamente.
Por isso, o fato de Salieri invejar Mozart não quer dizer que, para realizar sua inveja, Salieri devesse ser igual a Mozart. Ao invejar Mozart, este se transforma em símbolo estruturante na personalidade de Salieri. O símbolo Mozart representa alguém dotado de genialidade musical que se lança com todo seu ímpeto existencial para expressar sua criatividade. Foi este "se lançar inteiro na criatividade", a grande característica do símbolo Mozart que Salieri não seguiu no desenvolvimento de sua personalidade. Mas por que não o fez?
Muitos responderão que não o fez porque não sabia e não podia fazê-lo, exatamente porque só tinha inveja e não criatividade. Este raciocínio só seria válido se desvinculássemos a inveja do desenvolvimento criativo global da personalidade, o que não é aceitável para a Psicologia simbólica, pois, para ela, a inveja como outra qualquer função psicológica é estruturante não só da consciência como de toda a psique, tanto individual quanto coletiva. Aceitando isto, podemos admitir que o potencial estruturante de sua inveja era tal que, ao não ser aproveitado, invadiu a personalidade de forma inadequada conduzindo à desestruturação psicótica e à tentativa de suicídio. Pode-se falar em seca diante de tal inundação? Poderia se argumentar que muitas vezes a desestruturação psicótica ocorre não pela pujança da força criativa, mas pela fragilidade, estruturação defeituosa e predisposição hereditária à psicose. Isto como sabemos é não somente possível como frequente, mas não parece ter sido o caso. Pelo contrário, pois toda a história de Salierinos mostra a existência de um Ego forte e bem-estruturado. Parece-me altamente improvável que um indivíduo que fosse portador de um ego fraco, com estruturação defeituosa e predisposto à psicose, saísse ainda jovem da Itália, vindo de família humilde e tivesse a pujança competitiva para atingir em Viena o posto musical mais alto na corte austríaca. Não pretendo, de forma alguma, com isso dizer que Salieri foi um gênio musical como Mozart. Isto seria absurdo, pois meu raciocínio aqui parte do pressuposto que Salieri adoeceu, exatamente, por não realizar a sua genialidade e, por isso, ela nunca foi conhecida. O que quero dizer é que a inveja de Salieri expressava exatamente esse imenso potencial criativo não realizado.
O caso Salieri está aqui sendo referido para ilustrar nossa tese sobre a inveja, mas não para comprová-la. Reconheço que com este mesmo caso, algum psicólogo que reduza a inveja a uma emoção destrutiva e em nada estruturalmente possa também ilustrar sua tese. Afinal, o que sabemos historicamente é que Salieri sendo portador de uma inveja avassaladora de Mozart desestruturou-se progressivamente no final da vida atingindo um estado psicótico no qual faleceu. O potencial estruturante e desestruturante desta inveja pode ilustrar ambas as teses sobre a inveja. Poderíamos até dizer que a tese sobre a inveja como fator puramente destrutivo seria mais plausível pois o caso Salieri para ela seria um exemplo explícito. Afinal, Salieri, com sua imensa inveja, não só se destruiu como, talvez mesmo, tenha contribuído diretamente para a destruição do próprio Mozart. Haveria melhor exemplo para a destrutividade da inveja? Já para a tese que defendo na qual a inveja é normalmente estruturante e somente se torna destrutiva quando não atendida, o caso Salieri seria um exemplo implícito. Somente se o analisássemos, o confrontássemos com sua criatividade e ele passasse a desempenhá-la com todo seu ser e sua inveja aos poucos se aplacasse, na medida em que sua obra crescesse, é que poderíamos usar seu caso como um exemplo explícito desta tese. A vivência da criatividade da inveja e, aliás, de toda a Psicologia Simbólica, é, pois, necessariamente iniciática. Somente se acompanharmos o desenvolvimento dos símbolos na personalidade em casos de psicoterapia, em pessoas intimamente a nós ligadas ou em nós mesmos é que perceberemos o funcionamento dos símbolos e funções simbólicos ora de forma construtiva, ora de forma destrutiva dependendo de como são aproveitados no todo psicológico ou Self.
O problema é que a Psicologia é necessariamente iniciática por ser uma ciência do ser global. Ao ser iniciática, a Psicologia faz parte da ciência simbólica que engloba a ciência objetiva e inclui sempre também a parte subjetiva do símbolo. Por conseguinte, a demonstração e a prova da ciência psicológica são a vivência que nunca pode ser só comprovada abstrata e objetivamente e necessita sempre do engajamento do ser inteiro para comprová-la. Não tenho aqui a intenção de demonstrar ou comprovar esta tese, mas tão somente de ilustrá-la, deixando a cada um o convite para vivenciá-la em si mesmo ou no processo de individuação das pessoas que acompanha intimamente, seja no consultório ou fora dele. Esta vivência é altamente comprovadora na medida em que a inveja tratada como destrutiva é reprimida e leva junto a ansiedade criativa da personalidade. Deixa-se de ter angústia, em troca de uma calma desvitalizada. Por outro lado, podemos comprovar como a inveja é criativa, na medida em que a atendemos, a "ouvimos" e ela começa a diminuir como a fome diminui durante a refeição vitalizadora. Esta vivência torna-se realmente convincente quando sentimos não uma, mas inúmeras vezes a ansiedade dolorosa da inveja atendida se transformar aos poucos na satisfação da criatividade realizada. Isto tudo é altamente convincente para quem a vivência, pois esta satisfação é acompanhada da plenitude do ser que é completamente diferente do vazio que substitui a inveja quando, simplesmente, a reprimimos e a substituímos por uma noção puritana de bom comportamento. Quem reprime ou racionaliza defensivamente sua inveja nunca poderá perceber o quanto ela é necessária e inerente à aventura do ser em direção à atualização de sua potencialidade. Pode o navegante que equaciona a escuridão com o perigo e se recolhe sempre ao anoitecer jamais usufruir da navegação pelas estrelas?
Neste ponto, torna-se necessário refletirmos sobre a importância do conceito de Jung de que libido é igual a energia psíquica e não deve ser reduzido a nenhuma característica humana particular como, por exemplo, a sexualidade, como quis Freud, ou o poder como preferiu Adler. É que, se assim o fazemos, não podemos usar adequadamente a noção de símbolo estruturante e caímos prisioneiros do redutivismo. Nesses casos, quando vamos intuir prospectivamente o caminho do símbolo estruturante em resposta às perguntas "para onde?" e "para quê?", a resposta será canalizada forçosamente para o sexo ou o poder, porque nós reduzimos a priori o conceito de energia psíquica ao sexo ou ao poder. O oposto se dá quando equacionamos libido com energia psíquica, pois com isso liberamos o conceito de Símbolo Estruturante para que ele exerça plenamente a realidade psíquica que a ele corresponde. Nessa eventualidade, a resposta ao "para onde?" e "para quê?" do símbolo estruturante não reduzido será: para a expressão da realidade psíquica, qualquer que ela seja e que já é inerente ao próprio símbolo estruturante em questão, não necessitando por isso de ser buscada fora dele. Isto nos obrigará a buscar o significado sempre no próprio "aqui e agora" histórico do símbolo, por mais arquetípico que ele seja.
Esta consideração é muito importante para o caso de examinarmos qualquer função psíquica como estamos fazendo com a emoção da inveja. Se tivermos em mente somente a noção do inconsciente reprimido, buscaremos no símbolo aquilo que achamos que está reprimido. Mas se tivermos em mente a noção de um Self criativo realizando dia e noite a obra psíquica, como um pedreiro que constrói uma casa, buscaremos compreender o significado de cada tijolo (símbolo) na função que ele desempenhará na própria casa que está sendo construída. Por isso, dizer que as pessoas são invejosas ou que Salieri é um grande invejoso é dizer muito pouco. Surpreendo-me frequentemente quando ouço dizer que algo é "fálico" ou "incestuoso", acreditando, com isso, esgotar o significado simbólico. É o mesmo que dizer que algo é alto ou vermelho. Trata-se de meras qualidades dos símbolos que necessitam de muitas outras para se compreender seu significado. É necessário sempre sabermos como os símbolos são e como estão funcionando na inveja para compreendermos sua função estruturante.
Acredito que haja uma grande resistência individual e cultural para admitirmos a normalidade e a função estruturante da inveja, pois, aí, não poderemos simplesmente considerá-la algo ruim que deva ser reprimido. Pelo contrário, nesse caso, seremos obrigados a considerá-la simbolicamente como uma exigência do nosso Self Individual ou Cultural, exigência essa que deveremos nos esforçar para atender adequadamente, sob pena de prejudicarmos o nosso desenvolvimento e termos que pagar mais tarde o preço de nossa omissão. É como o caso das crianças mal-nutridas que comem terra, fato que durante muito tempo atribuímos a sua ignorância, mas que ultimamente descobrimos que, com isso, a criança está buscando inconscientemente o ferro imprescindível à formação da hemoglobina dos seus glóbulos vermelhos e ausente na sua alimentação. A partir daí aumentamos nossa consciência da desnutrição em nosso meio e somos conclamados ainda mais a agir em função do desenvolvimento social. Analogamente, a inveja conscientizada será indicativa da fome e da carência de um ser ou de uma sociedade que necessita daquilo para se realizar. Ao seguir a carência alimentar destas crianças, descobrimos sua anemia e o ferro que falta em seu organismo, da mesma forma que, ao seguirmos a inveja, descobriremos os símbolos e as funções estruturantes para as quais eles estão sendo mobilizados.
Nossa tese é que a inveja tanto mais rói e faz sofrer quanto mais ela expressa algo que é imprescindível à personalidade do invejoso. A própria peça, mesmo sem explicitar esta tese, ao menos no que se refere à consciência de Salieri, nos apresenta com extraordinária riqueza quanto Salieri é musicalmente dotado. Somente ele percebe plenamente a genialidade de Mozart. Salieri usa sua percepção para humilhar o gênio e prejudicar sua contratação na corte reservando par si o cargo máximo, enquanto influencia a contratação de Mozart por remuneração miserável e humilhante. Lado a lado com esta agressividade contra o símbolo invejado, em momento algum Salieri o esquece ou deixa de valorizar sua criatividade, acompanhando maravilhado sua carreira e admirando estagiado cada nova composição.
Parece-nos mesmo, às vezes, que Salieri tem até mais consciência da genialidade e da importância histórica de Mozart do que este próprio. É que, lado a lado de sua enorme sensibilidade, Salieri não carrega só a frustração criativa, mas também, a experiência sofrida de quem se fez um lugar ao sol, galgando com dedicação e esforço cada degrau na corte e adquirindo grande conhecimento mundano da mediocridade humana e seus valores. Nesse sentido, Mozart socialmente para ele é um neófito e um inocente. Um joguete fácil que, por isso mesmo, aumenta sua mágoa e torna ainda mais dolorosa sua inveja. Sua consciência da inadequação de Mozart na corte, em vez de diminuir ou compensar seu sentimento de inferioridade, na realidade o aumenta, ao perceber que ele, que tudo consegue na corte, tem uma obra musical medíocre, enquanto que Mozart que nada pode, nem por isso deixa de ser um gênio criando de forma exuberante uma obra inigualável. A criatividade de Salieri, mesmo não realizada plenamente, lhe capacita de uma consciência musical histórica muito além do seu tempo, por intermédio da qual ele classifica com grande objetividade sua criatividade de medíocre e a de Mozart de genial.
A inveja não aproveitada criativamente torna Salieri cada vez mais maléfico, diabólico e destrutivo. Sua inveja não aproveitada dentro do dinamismo criativo, normal, enseja a formação de um quadro neurótico que, mesmo assim, não a contém e caminha, por isso, para o dinamismo psicótico. O fato de somente ele ter conhecimento da genialidade de Mozart faz com que exclusivamente ele tenha a consciência e a responsabilidade da extensão de sua destrutividade. Ao atacar a símbolo e sua inveja, inicialmente de forma neurótica, ainda contida e relativamente adequada, e finalmente de forma avassaladora, delirante e já psicótica, Salieri se autodestrói, pois, com isso, inutiliza para sempre simbolicamente o caminho que seu Self lhe apontara para criar profundamente. Este caminho era existencialmente tão importante que sua destruição arrastou com ela o próprio Ser. Se nos perguntarmos agora, admitindo o imenso potencial criativo de Salieri porque ele não se realizou, veremos que também nisso, o caso Salieri é antológico. Salieri se perdeu porque, em vez de se dedicar a sua criatividade, se dedicou à detenção do sucesso mundano, ou seja, ao preferir o poder da fama, perdeu sua chance de atingir a glória. Acima escrevi que Salieri não quis, não pôde ou não soube realizar seu potencial criativo. Sua gula "infantil e viscosa", como ele mesmo diz, é aqui significativa. É muito difícil precisar porque uma pessoa se afasta do seu potencial criativo se alienando de sua autenticidade. Este tema é tão profundo que podemos vê-lo como uma das características de nossa espécie. Psicologicamente somos entre outras coisas um organismo que pode optar entre o poder e a glória. A comprovação deste fato psicológico é mais uma vez iniciática. Bastará alguém entrar em contato com seus símbolos e perceber o sentido do seu caminho amoroso, profissional, político ou religioso para começar a se dar conta de quantas são as tentações para trairmos o sentido profundo dos nossos passos. Esta tentação é tão frequente e significativa que ela desempenha um papel importante até mesmo no mito messiânico Judaico-Cristão que é o protótipo de um mito de busca e autorrealização de gigantesco potencial criativo, visto que seus símbolos continuam até hoje, transformando nossa civilização 2 mil anos após sua vivência histórica.
Em seguida Jesus foi conduzido pelo Espírito para o deserto para ser tentado pelo demônio... (pela terceira vez) o diabo levou-o a uma montanha muito alta e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e o poder sobre eles; e lhe disse: - Todos estes eu te darei se você a mim se submeter e me adorar. Disse-lhe Jesus: - Afasta-te Satan, pois está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele Servirás (MT: 4:1-10).
A análise simbólica deste texto mítico nos mostra duas coisas importantes quanto à realidade psíquica. Primeiro, que a mais forte das tentações aqui apresentadas é a de deixar-se levar pelo poder sobre o mundo. Segundo, que as tentações são encaminhadas pelo próprio Espírito, ou seja, a tentação pelo poder, o sucesso mundano e a fama em detrimento da fidelidade à integridade da autorrealização plena é inerente ao Todo, isto é, ao próprio caminho do desenvolvimento. Isto tudo pode parecer muito complicado, mas na realidade se torna simples quando observamos nossas próprias vivências criativas. De fato, a maioria delas tem esta problemática. Se estamos amando alguém, aparecem sempre sentimentos e ideias que sabemos que não agradarão ao outro e nós as escondemos. Em breve chega o momento em que ou arriscamos mostrar estas ideias e emoções e perder o outro, ou as escondemos e mantemos a relação sob o nosso poder, mas perdemos sua essência e sua integridade e junto com elas nos perdemos a nós mesmos. Profissionalmente, o mesmo se dá. Temos nossa vocação, mas somos frequentemente obrigados a fazer concessões para mantermos nossos empregos ou nossa posição social. Chega um momento, porém, que se nós não nos colocamos e defendemos nossa criatividade profissional, correndo o risco das consequências contrárias a nós, perderemos o contato com essa criatividade. O mesmo ocorre em nossas atitudes políticas. A linguagem religiosa expressa isto na tentação pelo Diabo, no afastamento de Deus, no pecado ou na perda da própria alma, o que simbolicamente quer dizer o afastar-se de si mesmo, de sua integridade, de sua vocação existencial autêntica.
Trata-se da imensa problemática existencial de cada um de nós de perder-se ou de encontrar-Se. Chama-se este Se de autenticidade, Deus, integridade, servir a glória ou a realização existencial do Ser, não importa. Denomine-se este perder-Se de falso Self, imaturidade narcísica, alienação existencial, cair na tentação do poder mundano, servir ao Diabo, fracassar no caminho de sua autorrealização profunda, também não importa. O que importa é que é inerente ao caminho do desenvolvimento da personalidade e das sociedades humanas este corresponder a uma vocação profunda, apesar da não aprovação do consenso do momento, ou afastar-se dela e arriscar a estagnação, a desintegração, a loucura e até mesmo a morte prematura e destrutiva.
Com isso, não devemos concluir que o caminho individual seja mais autêntico e profundo que o caminho social, pois indivíduo e sociedade, na sua dialética permanente durante o processo de desenvolvimento, têm a mesma problemática de autenticidade e alienação. O indivíduo pode negar o seu caminho mais profundo em função da tentação imediata de fama e poder social e a sociedade, também, pode desviar-se do seu caminho mais autêntico e seguir mágicos e demagogos que a tentem com grandezas imediatistas. Por isso, não devemos separar qualitativamente o caminho individual e social e sim vê-los, cada um a sua maneira, com a mesma problemática de autenticidade e alienação durante o seu processo de desenvolvimento.
É importante perceber que o Self Individual e Cultural se expressam por intermédio de símbolos estruturantes a longo prazo e, por isso, a dedicação à integridade do processo requer frequentemente a vivência de grandes frustrações. A travessia do deserto pelo povo judeu, que até hoje comemora as frustrações vividas ao comer o pão não fermentado na Páscoa, no nível cultural, e a "Noite escura da alma", descrita por São João da Cruz, no nível individual, são exemplos dos sofrimentos e tentações do caminho de desenvolvimento. A tentação do poder e da fama têm muito a ver com o imediatismo da busca de sucesso e de satisfação de desejos em troca de uma fidelidade a símbolos que se tornarão realidade num futuro mais longínquo. Estes símbolos, são denominados, frequentemente, de profundos, espirituais ou "não deste mundo", o que pode confundir a percepção da sua natureza psicológica. A satisfação imediata é denominada mundana porque ela está presente e a vista de todos, enquanto que os símbolos profundos exatamente por serem intensamente prospectivos não estão aparentes. Para segui-los, necessitamos do conhecimento e da fé, que psicologicamente significa a ligação íntima com o significado simbólico que muitas vezes é uma sensação profunda, mas inexplicável. Ao creditarmos nos símbolos e segui-los, avançamos de forma racional e irracional. Racional porque percebemos o caminho desconhecido que entramos e tentamos nos precaver de seus perigos e avançar da forma mais adequada possível. Irracional porque estamos avançando num caminho assinalado pela vivência dos símbolos sem realmente saber para onde vamos. Por isso, podemos dizer que o caminho do desenvolvimento simbólico é o caminho do conhecimento, mas, também, é o caminho da fé na sabedoria do Ser. O grande problema deste caminho é que, devido a sua própria natureza simbólica, ele não é claro, discriminado e objetivo. Os símbolos incluem, por definição, componentes subjetivos e objetivos que somente se discriminam durante sua vivência, o que levou o poeta a escrever que "o caminho se faz ao caminhar". O caminho dos símbolos é necessariamente incerto e angustiante devido a sua própria originalidade e criatividade, e nos faz atravessar regiões desconhecidas e inóspitas onde não se encontra nem viva alma quanto mais espectadores para nos aplaudir.
Também não importa se designamos este estado psicológico buscado de sintonização com os símbolos de céu, Nirvana, Tao, estado de Graça, santidade, Zen, plenitude, beatitude e ao seu oposto de inferno, alienação. Maya, loucura, desespero ou frustração existencial. O importante é reconhecer que eles existem e que são dois dos parâmetros mais profundos e significativos par avaliarmos o processo de desenvolvimento psicológico de um ser humano e de uma cultura.
Em termos de desenvolvimento simbólico da personalidade ou do processo de individuação, como o denominou Jung, esta problemática de nos mantermos fiéis a nossa integridade ou de nos perdermos de nós mesmos é de crucial importância no sentido global. Todo aquele que tem um mínimo sentido da sua individualidade e do que quer dizer a busca de si mesmo ou de sua autenticidade tem uma noção do que é perder-se. A escola existencial de filosofia enfatizou muito a problemática da autenticidade do Ser. Na vivência religiosa cristã ou taoista, o estar com Deus ou em Tao, como disse acima, é praticamente a vivência central do conjunto de ensinamentos dessas religiões. O Budismo Zen preferiu afastar-se da linguagem religiosa, que de tanto falar em Deus, frequentemente o coisifica, o separa do sujeito que dele fala e perde a vivência de totalidade essencial ao relacionamento místico. O Budismo Zen passou a buscar a vivência Zen como uma vivência de ligação com a totalidade em cada momento existencial específico, o que necessariamente engloba sujeito e objeto e nos impede buscar a vivência do Todo fora de nós. Mas, como tratar este assunto dentro dos parâmetros da nossa ciência psicológica, ou seja, à luz do desenvolvimento da Consciência a partir dos seus símbolos estruturantes? E, dentro da abordagem científica e simbólica deste tema, como conjugá-lo à criatividade artística e aplicá-lo ao processo de desenvolvimento existencial e profissional de Salieri para chegar a conclusão que sua loucura se explica essencialmente na sua opção pela fama em detrimento da glória?
Para que a fama e a glória sejam percebidas em relação dialética dentro da ciência psicológica, temos que ter uma compreensão não só da formação da Consciência como de sua relação com a totalidade do processo. Para isto, necessitamos conjugar a descoberta de Freud de que a Consciência é formada a partir do inconsciente e a de Jung de que o inconsciente tem no seu centro o Arquétipo Central do qual emana a vivência e totalidade que orienta o Ego no processo de individuação. Necessitamos também acrescentar a essas descobertas a noção de que o mesmo fenômeno se passa no desenvolvimento do Indivíduo e da Cultura um processo paralelo e interacional.
A Persona é uma função no desenvolvimento da personalidade e da sociedade que regula a interação pessoal no nível institucional. A Persona se constitui pelo número e a natureza de papéis que uma cultura elaborou tradicionalmente durante séculos ou milênios e que coloca à disposição dos seus membros para o desenvolvimento de sua Personalidade na interação social.
Quando o Self Individual constela símbolos estruturantes cujo conteúdo ou forma não encontram uma Persona, ou seja, um papel social adequado para se desenvolver, a tendência será que estes símbolos sejam levados a formar a Sombra da Personalidade e que sejam atuados por intermédio da Sombra da Cultura. A Sombra é, então a parte da Personalidade e da Cultura que abriga e atua aqueles símbolos estruturantes que não têm acesso à Consciência Individual e Coletiva. O Self Individual e Cultural, além de propiciar e coordenar os símbolos estruturantes, busca sempre também confrontar a Consciência com a Sombra e criar mais Persona por intermédio da modificação e da ampliação dos papéis existentes ou da criação de novos para desenvolver o indivíduo e a cultura. Por conseguinte, a consciência sofre uma tensão permanente entre a Persona e a Sombra que é praticamente inseparável da tensão entre a Consciência e o Arquétipo Central oriunda da existência contínua de símbolos estruturantes atuando dia (atos, vivências e fantasias) e noite (sonhos) para alimentar e fazer prosseguir o desenvolvimento da Consciência.
É dentro desta tensão de crescimento que a Consciência pode se apegar a situações na vida de forma estereotipada e passar a resistir à transformação exigida pelos símbolos estruturantes que a transformam, na medida que a ligam significativamente ao Todo. Uma das formas da Consciência apegar-se a uma fase do processo e passar a resistir à movimentação do Todo é o cultivo exagerado de um determinado papel no qual obtivemos sucesso. Nesse sentido, o sucesso é algo que confirma o nosso esforço e nos estimula a continuar, mas que, ao mesmo tempo, se transforma na grande tentação de nos desviarmos do nosso desenvolvimento. Isto explica porque, na passagem bíblica citada, é Deus quem guia Jesus pela terceira vez ao deserto onde será tentado por Satã. É que, a tentação de permanecer exageradamente no sucesso só existe porque é inerente ao Self o desejo e o incentivo para alcançá-lo. O problema surge não pelo fato do sucesso em si ser bom ou mau, certo ou errado, e sim devido ao processo de desenvolvimento não parar nunca. Devido a isto, a meta de hoje pode facilmente se transformar na estagnação de amanhã. É nesse momento que o culto do sucesso obtido pode atrasar o desenvolvimento e afasta nossa Consciência do seu relacionamento com o Self, ou seja, é este o caminho por intermédio de do qual a fama pode nos separar da glória. Os estados de alienação e autenticidade do Ser, de estagnação e de criatividade plena, de pecado e de graça, por conseguintes não são isolados um do outro, mas interagem dinamicamente durante as transformações da Consciência.
Nesse sentido, podemos dizer que Salieri não pôde desenvolver sua inveja construtivamente, na medida em que se afastou de sua vocação musical profunda por haver transformado sua arte num instrumento de obtenção de poder e fama. Ao usar sua criatividade para ganhar favores na corte, obter cada vez mais status e poder, Salieri submeteu-se paulatinamente à musicalidade medíocre reinante e foi se afastando do seu talento e mergulhando em frustrações cada vez mais intensas. O aparecimento de Mozart com sua criatividade genial, mas sobretudo com sua dedicação até mesmo descontrolada a essa criatividade em detrimento de tudo e todos, incapaz até mesmo por imaturidade e limitação de sua personalidade à qualquer adequação social, transformou Mozart num símbolo de tudo o que estava negado na personalidade de Salieri e acendeu sua inveja, incendiando-a até as raízes da loucura.
Na encruzilhada que poderíamos considerar o fulcro dramático da peça, Salieri resolve destruir Mozart. Sua inveja atinge um ponto, tão doloroso e mesmo desesperador, que ele se considera um monstro da criação. Salieri julga sua própria inveja um defeito da criação. Inteiramente inconsciente de como prostituiu e malbaratou sua criatividade, ele percebe sua inveja como um erro de Deus e decide levar este erro às últimas consequências, vingando-se de Deus e fazendo tudo em seu poder para destruir Mozart. Nesse sentido, sente-se como a própria sombra de Deus, um ser diabólico e defeituoso, que assume a criação defeituosa sob a forma divina e decide dirigi-la contra o Deus criador de Mozart destruindo o símbolo central de sua obra e com isso a própria pretensão de um Deus justo e harmonioso.
Na realidade, Salieri vai aos poucos afundando no inferno da negação de sua criatividade, que ele próprio iniciara muito antes de aparecer Mozart em sua vida. Existe um momento na peça, em que Salieri deixa a Itália e parte para sua grande busca existencial em meio à intensa insegurança. Nesse momento, ele se dirige a Deus e pede o poder e a fama:
Salieri - ato 1 cena 2 - Admito que seja um tanto repulsivo, mas o primeiro pecado que devo confessar a vocês é minha gula. Uma gula viscosa, infantil, italiana... Dos 3 aos 73 anos toda minha carreira foi conduzida ao sabor de amêndoas polvilhadas de açúcar cristal, biscoitos de Verona, macarrões de Milão, escalopes de Siena, tortas geladas recheadas e pistache... Meus pais eram simples vassalos do Império Austríaco e perfeitamente felizes com essa condição. Sua noção de espaço reduzia-se a pequena cidade de Legnano da qual eu queria distância. Sua noção de Deus era a imagem de um super Imperador dos Hapsburgo, morando um pouquinho mais longe que Viena. Tudo o que desejavam desse Ente Supremo é que protegesse o comércio e os mantivesse perfeitamente anônimos, preservados em mediocridade. Já minhas necessidades eram um tantinho diferentes. (Pausa). Eu queria a Fama. Para ser sincero, eu queria brilhar como um cometa rasgando o firmamento da Europa. Mas por intermédio de uma única coisa: - A Música absoluta. Pois uma nota de música está certa ou errada de modo absoluto. Nem mesmo a eternidade poderá mudar isso: A música é a arte de Deus. (Excitado pela lembrança). Já quando eu tinha só 10 anos, uma simples escala musical quase me fazia desmaiar.
Com 12 anos eu contemplava o céu entre os ramos dos choupos assobiando minhas áreas e meus hinos ao Senhor. Minha única aspiração era estar entre os compositores italianos do passado que haviam celebrado a Sua Glória. Todo Domingo na Igreja, eu contemplava o Senhor pintado nos murais. Não estou falando de Cristo. Os Cristos da Lombardia são tolos sorridentes, acariciando cordeirinhos. Não: eu falo de um Deus com um manto escarlate no meio de velas enfumaçadas, contemplando o mundo com os olhos de um negociante. Foram os comerciantes que o puseram lá em cima. Aqueles olhos faziam barganhas reais e irreversíveis. "Toma lá, dá cá - nem mais, nem menos". (Na sua excitação, come um biscoitinho) - na véspera de minha partida definitiva de Legnano, eu fui vê-lo e fiz uma barganha com Ele. Era um rapaz ponderado de 16 anos, repleto de um desesperado senso de justiça...
Veem-se aqui duas características importantes na personalidade de Salieri: primeiro, a sensibilidade, profundidade e criatividade que lhe dão a ambição de crescimento. Segundo, a subordinação dessa criatividade à fama. Seu Deus na realidade é tão farisaico que não podia ser mais diabólico. Obcecado pelo sucesso, Salieri não percebe o quanto está traindo a sua criatividade ao subordiná-la à fama. Pactua a clássica venda da alma ao Diabo, assegurando com isso a sua fama, mas também sua loucura. Psicológica e existencialmente não podia ser mais claro o projeto de vida alienante que seu organismo psíquico ou sua alma, como queiram, não toleraria a longo prazo e cuja rebelião eclodiria anos mais tarde ao encontrar Mozart. O personagem continua:
Salieri - Me ajoelhei diante do Deus da Barganha e orei com todo o fervor. (Ajoelha). "Signore, fazei de mim um compositor. Dá-me fama. Em troca, viverei na virtude. Lutarei para melhorar a sorte dos meus colegas. E vos honrarei com muita música todos os dias de minha vida". Assim que eu disse Amém, vi que os olhos dele brilhavam, como se dissesse - Bene. Vá em frente, Antônio. Dedique-se a mim e à humanidade e eu te abençoarei. "Grazie", eu respondi. "Serei vosso servidor por toda a vida".
À luz do que dissemos acima, nos damos conta de que um indivíduo com aquela criatividade tinha que pedir ao destino a autorrealização do seu Dom criativo como o que poderia lhe advir de mais precioso. Ao desejar, porém, acima de tudo a fama, Salieri confessou sua intenção de negar sua vocação profunda em função do sucesso social. Naquele momento, em símbolos religiosos, podemos dizer que Salieri não estava rezando para Deus, mas sim vendendo sua alma ao Diabo ou, em termos mitológicos, que Salieri foi um artista que rejeitou sua verdadeira musa e, por isso, seria por ela um dia levado à loucura. Em símbolos existenciais, isto seria o equivalente a dizer que Salieri estava naquele momento expressando sua propensão de desviar-se de sua integridade criativa profunda em função de um grande sucesso social.
Por isso, quando muitos anos mais tarde surge Mozart em sua vida, compreendemos porque a inveja de Salieri é o tema central da peça e esta se chama ambiguamente "Amadeus". O título da peça "Amadeus" que, aparentemente, é apenas um dos nomes do compositor Wolfgang Amadeus Mozart, adquire aqui todo seu significado simbólico. Diante de um Salieri entregue de corpo e alma ao culto do poder e da fama e prostituído por toda espécie de concessões, aparece Mozart na simplicidade de um artista que jamais rejeitou sua Musa, que não faz concessões, não prostitua sua arte, e por isso realmente ama a Deus, o que não impediu de sofrer de uma neurose ainda mais grave que Salieri que se transformará numa psicose fulminante, só que por outros motivos como descreveremos adiante.
Junto com a inveja avassaladora, aparece também na vida de Salieri sua chance de salvar-se, caso ele pudesse ainda perceber o Símbolo Mozart como a representação de tudo aquilo que ele há anos negara em si mesmo, ou seja, o desvio existencial do seu próprio caminho de autorrealização. Se ele assim o fizesse, sua inveja, apesar de o corroer e torturar intensamente, preservaria sua função normal estruturante e até mesmo salvadora. Porém, ao racionalizar defensivamente a função de sua inveja, culpando Deus por tê-lo criado para humilhá-lo, pela percepção de uma criatividade em Mozart, da qual julga não ter nenhuma parcela em si próprio, Salieri bloqueia a função estruturante de sua inveja e a reprime, transformando-a em inveja neurótica e por isso destrutiva. Ele não reconhece o quanto prostituiu e bloqueou sua criatividade por narcisismo, imaturidade e ambição social. Sua criatividade, porém, era tanta que o dinamismo neurótico não foi bastante para conter sua inveja. Ela o transpõe e Salieri entra no dinamismo psicótico de pretender destruir Mozart não só profissionalmente como também existencialmente. Se ele o fez realmente, não o sabemos. O importante para nós neste contexto é que ele o intencionou com tal intensidade que chegou a tentativa de suicídio em meio a crises delirantes de culpa 30 anos depois.
Podemos dizer que o dinamismo da inveja de Salieri na peça passou a ser neurótico depois que Mozart o humilhou, ridicularizando a pequena área que Salieri compôs para sua recepção na corte. A partir daí a inveja de Salieri passa a ser quase que exclusivamente antagônica ao símbolo invejado, pouco contribuindo para o crescimento de sua personalidade. Contudo, este dinamismo neurótico não foi suficiente para conter o símbolo da criatividade tão intensamente mobilizado pela inveja, o que motivou a instalação de um dinamismo psicótico paranoide, megalomaníaco e delirante. Este dinamismo se instala na peça, a partir do momento em que Salieri passa a lutar diretamente com Deus, projetando na divindade o que ele próprio fizera com sua criatividade e transformando a destruição de Mozart na sua guerra com o Criador.
O ponto decisivo do processo analítico de uma personalidade como a de Salieri, e que ilustra a importância da concepção da inveja como fator estruturante no desenvolvimento da personalidade, teria sido o confronto com o símbolo Mozart. A amplificação deste símbolo e sua elaboração, dentro da própria história do seu desenvolvimento, teriam podido mostrar a Salieri tudo o que ele havia negado na criatividade do seu Ser e que agora vinha sob a forma do fantasma terrível da inveja cobrar dele um acerto de contas. Ao não confrontar construtivamente este fantasma, verdadeiro demônio da criatividade no sentido grego do "daimon", o acerto de contas se transformou na tragédia de sua loucura e sua morte.
Do ponto de vista da Psicologia da Inveja, cabe ressaltar que o grande ensinamento do personagem Salieri para nossa cultura é que o personagem sofre, enlouquece e morre em meio à inveja sem em momento algum haver pensado na possibilidade de a inveja ter função estruturante. Seria como se um ser faminto saísse pelo mundo afora teorizando e destruindo plantações e criações e a seguir enlouquecesse e um dia morresse, sem nunca reconhecer que o seu problema era sua própria fome. Este fenômeno de não reconhecer a inveja, que sentimos várias vezes por dia durante toda a vida, como uma função psicológica e estruturante, não é só de Salieri, mas de toda nossa cultura. Este problema é apenas uma das consequências da repressão e dissociação do nosso Self Cultural ocorrido após o Renascimento em função da vivência traumática da Inquisição.
O problema se agrava porque esta dissociação interrompeu nossa consciência histórica, o que nos impede até mesmo de reconhecê-lo. Freud, por exemplo, no final de sua obra tão criativa, ao examinar em "O Mal-Estar na Cultura" as causas da repressão do Id, chega à conclusão de que esta é uma vicissitude da civilização, sem sequer entrar nos "porquês e comos" da repressão em nossa cultura. Ele que tudo analisava e buscava enraizar no passado, deixa a imensa repressão cultural originada na Inquisição escapar devidamente racionalizada. Ele, que descrevera e denunciara tão magistralmente o puritanismo da era vitoriana que acompanhava as manifestações expressivas do Inconsciente, não diferenciou no final de sua obra a sociedade repressiva da sociedade democrática, limitando-se a lamentar-se pela necessidade cultural da repressão. Ao não diferenciar a repressão da sublimação, ou seja, a repressão da delimitação, Freud deixa passar a repressão cultural oriunda da Inquisição, camuflada lado a lado com a delimitação, esta, sim, necessária a qualquer cultura. Até hoje continuamos sendo devorados por um monstro que não podemos combater por não havermos sequer identificado-o como monstro, posto que o incorporamos ao desenvolvimento como normal.
Grandes liberais, revolucionários e cientistas dos mais avançados atuam a dissociação sujeito-objeto, ser humano-mundo, emocional-racional oriunda da Inquisição sem nem sequer percebê-la. Os religiosos cristãos raramente a computam em suas interpretações culturais, pois a Inquisição é a mancha negra de sua história, na qual até hoje se apoiam suas defesas repressivas e os cientistas liberais materialistas ou agnósticos deixam-na de lado, pois "Inquisição foi coisa de Religião e por isso nada tem a ver com a verdade científica". Quem usufrui disto é a própria dissociação cultural que veladamente continua sua obra repressiva e maniqueísta.
Os grandes fenômenos emocionais em nossa cultura que consideramos como o protótipo de determinadas emoções são, frequentemente, na realidade, monumentos exemplares de como não nos permitimos e nem sabemos vivenciar nossas emoções. O drama de Otelo, que Shakespeare apresentou magistralmente e que se tornou uma antologia teatral do ciúme, por exemplo, expressa de forma exuberante que Otelo como Salieri negou a função estruturante de sua emoção. O caso de Otelo ainda é mais exemplificativo desta tese, porque Mozart, ao menos, era um gênio e assim correspondia às resistências de Salieri para perceber a função da inveja no seu próprio processo existencial. Já Desdêmona jamais conheceu o adultério e, por conseguinte, percebemos muito mais claramente, que o seu adultério é produto da imaginação de Otelo para justificar sua dificuldade em confrontar a função estruturante do seu ciúme. Ao acirrar esta resistência, Ioga atua diabolicamente como o Deus Mercador de Salieri, desviando Otelo cada vez mais da função estruturante autêntica do seu ciúme, e levando-o a vivenciá-lo de forma reprimida e dissociada, primeiramente neurótica e, depois, psicoticamente no homicídio.
Salieri sucumbe à inveja e Otelo ao ciúme sem em momento algum confrontá-lo e vivenciar seus símbolos, Mozart e Desdêmona, como função estruturante de seu processo de desenvolvimento. Suas tragédias confirmam a expectativa da moral maniqueísta do nosso Self Cultural, dissociado pela Inquisição, de que inveja e ciúme são emoções ruins que não devem ser vividas. Em momento algum destas obras percebemos a noção de que seus processos de desenvolvimento pararam e a desestruturação psicótica de sua personalidade teve lugar a partir da sua incapacidade de viver a inveja e o ciúme como funções normais no desenvolvimento e diferenciação de suas personalidades.
Tenho descrito uma Psicologia simbólica na qual os símbolos são percebidos como símbolos estruturantes da consciência e da personalidade. O símbolo estruturante tem conteúdos tanto dos processos conscientes quanto dos processos inconscientes. Por exemplo, Mozart, como símbolo estruturante na personalidade de Salieri, tem componentes conscientes, tais como tratar-se de um músico prodígio desde os 3 anos de idade, ter criatividade exuberante, ser extravagante, irreverente etc. Tem, porém, como todo símbolo, também componentes inconscientes. O componente central inconsciente do símbolo Mozart na inveja de Salieri é a criatividade e, sobretudo, a criatividade ferida e prostituída, que, por se haver tornado tão sombria, foi aos poucos sendo cercada por defesas de dissociação, repressão, projeção e racionalização, formando, assim, uma Sombra intensamente patológica.
Mozart ativa intensamente o inconsciente reprimido de Salieri porque simboliza o oposto da sua prostituição musical. Parte importante do drama da peça surge quando Salieri confessa publicamente como abandonou Cristo por um Deus comerciante ao qual prometeu servir em troca da fama. Contudo, em momento algum ele se dá conta do que isso significa em termos de traição da sua própria criatividade. Podemos dizer que a Sombra de Salieri, ou seja, seus símbolos estruturantes que não puderam estruturar integralmente sua Consciência durante seu processo de desenvolvimento e foram mantidos fora da Consciência, está representada na prostituição da sua criatividade em troca da fama.
Este símbolo estruturante, que é a sua criatividade, foi prostituído em meio a tal tensão e violentarão que se separou do funcionamento normal da personalidade. A partir desse momento, o símbolo estruturante da criatividade já agora prostituída passou a ser escondido e guardado por defesas como dissociação (Salieri não associa daí por diante o fato de desejar e não conseguir criar profundamente com a barganha diabólica que fez), repressão (o componente covarde, desonesto e traidor desta barganha não tem mais acesso à consciência), projeção (toda sua criatividade profunda é vista em Mozart) e racionalização (Deus criou um mundo deformado e torturante para Salieri, pois fez ele nascer medíocre e almejar ser um gênio), dentro de um dinamismo megalomaníaco e parodie (não é Salieri quem tem problemas e sim o Criador do mundo a quem ele declara guerra). Estas defesas se combinam entre si para isolar da Consciência o símbolo estruturante da criatividade prostituída. A racionalização, por exemplo, coordena e arremata magistralmente a dissociação, a repressão, e a racionalização ao colocar a origem de tudo numa organização divina defeituosa do mundo e, assim, encobrir a vida de Salieri e o crime existencial que praticou contra o dom que recebeu.
As defesas de Salieri são relativamente difíceis de perceber porque são sociossintônicas, ou seja, existem também em nossa cultura e por isso, até certo ponto, nos parecem normais. O fato, é que nosso Self Cultural não está tão diferente assim do Self Individual de Salieri. O que foi que fizemos com Cristo na Inquisição? A partir do século XVIII não passamos a considerar a natureza humana igual à dissociação cultural que sofremos? Isto não equivale dizer que a criação do ser humano é que é dissociada e que nossa cultura e nós não temos nada a ver com isso, ou seja, que procedemos como se não tivéssemos participado na dissociação e patriarcalização maniqueísta do Mito Judaico-Cristão?
As guerras religiosas ocorridas na Europa entre católicos e protestantes, enquanto ambos dissociavam, reprimiam, projetavam e racionalizavam o Mito Messiânico, não teriam sido uma expressão psicótica da Sombra Patológica do nosso Self Cultural? Da mesma forma, Estados Unidos e Rússia, gastando tesouros inacreditáveis em armas em meio a um mundo miserável e faminto, enquanto se afirmam defensores dos mais altos valores humanos e se culpam mutualmente e são incapazes de ver seus próprios defeitos, não serão a expressão de uma dissociação neurótica do Self Cultural com possibilidade de se transformar numa avalanche psicótica e mortal para nossa espécie? A semelhança entre nós e Salieri é grande. Resta esperar que não nos defendamos neurótica e psicoticamente e possamos confrontar os símbolos estruturantes prostituídos do nosso Self Cultural para que tenhamos um fim diferente do dele.
Estas defesas tão bem organizadas evidenciam que a Sombra de Salieri, formada pelo símbolo estruturante de sua criatividade prostituída, é patológica. Fosse ela normal, a Consciência de Salieri teria muito mais chances de integrá-la quando o aparecimento de Mozart vem ativá-la tão intensamente por intermédio da inveja. Nesse caso, Salieri, ao invejar Mozart, sentiria imediatamente grande culpa de estar prostituindo sua criatividade no seu culto à fama e passaria a buscar sua criatividade profunda com intensidade proporcional à sua inveja.
Contudo, mesmos as defesas intensas que ilhavam este símbolo, mostrando se tratar de uma Sombra patológica dentro de um dinamismo neurótico, não foram suficientes para conter a intensidade estruturante de sua inveja que, por isso, ultrapassou o dinamismo neurótico, contido e adequado socialmente, para transbordar no dinamismo psicótico delirante atuado por intermédio da desestruturação da personalidade na desadaptação social aguda e no atentado contra a própria vida.
Salieri-Capisco, já conheço meu destino... Vós me destes a percepção do Incomparável que a maioria dos homens jamais conhece e depois garantiu que eu mesmo fosse um medíocre... Dio Ingiusto! Vós sois o Inimigo! E isto eu juro: até o meu último talento eu vou bloquear Vossa presença na Terra. Para que serve o homem, afinal de contas, senão para ensinar a Deus suas próprias lições? eu lhes contarei a guerra que travei com Deus por intermédio de sua preferida - Mozart, chamado Amadeus. Uma guerra na qual, é claro, a criatura tinha de ser destruída (fim do primeiro ato).
Mas, como disse acima, o símbolo Mozart na personalidade de Salieri não contém apenas componentes do seu consciente e do seu inconsciente reprimido, pois possui também componentes do seu inconsciente criativo, qual seja a criatividade plenamente assumida, o despojamento social e a entrega absoluta ao dom da criatividade musical sobejamente representada por Mozart. Foi, sobretudo esta parte do símbolo situada fora das defesas da Sombra Patológica que foi veiculada intensamente pela inveja e passou a tencionar exuberantemente a personalidade de Salieri. Enquanto a inveja conduzia normalmente o símbolo da criatividade para sua função estruturante, as defesas trabalhavam em sentido oposto contendo e ilhando a parte símbolo representada pela criatividade prostituída. O leitor já viu em filmes uma punição dilacerante que consiste em amarrar os tornozelos de um inimigo a duas árvores fletidas em direções opostas e de repente soltá-las? Esta me parece uma analogia do que foi acontecendo com a personalidade de Salieri durante sua convivência com Mozart.
Este caso é um exemplo de como a patologia mental se exacerba frequentemente pela luta da criatividade normal com as defesas e não simplesmente pela exacerbação destas. A exacerbação das defesas de Salieri, que passam do dinamismo neurótico ao psicótico, se dá, então, não diretamente pela piora dos sintomas, mas pela intensidade das defesas em resposta à pujança do dinamismo criativo normal que tudo faz para rompê-las. Este fato demonstra como a psicopatologia só pode ser compreendida a partir do desenvolvimento simbólico normal.
Isto nos mostra como o símbolo estruturante expressa e veicula normalmente os processos conscientes e inconscientes e, no caso da presença de patologia, pode reunir também o inconsciente patológico e o inconsciente criativo.
Não creio que devamos reduzir a atitude paranoide de Salieri a uma fixação homossexual em Mozart, apesar de reconhecermos que, muitas vezes, a homossexualidade seja o principal símbolo reprimido no dinamismo paranoide. A generalização feita por Freud (1969) deste fato, porém, não se confirma neste caso, pois percebemos claramente que o símbolo central reprimido é a criatividade e não a homossexualidade. Nada nos impede de afirmar que, por trás da criatividade, está escondida a homossexualidade. Tal afirmação nos parecia, neste caso, gratuita, sem nada para corroborá-las. A própria heterossexualidade na peça ocupa lugar secundário, pois está adlerianamente a serviço do poder. Quando Salieri fica enciumado pelo fato de Mozart seduzir a soprano sua aluna e retalia tentando seduzir Constance, ele é guiado pela luta de poder oriundo da inveja da criatividade de Mozart e em momento algum pela atração sexual. Preferimos, pois, subordinar o dinamismo paranoide ao dinamismo repressivo patriarcal de um modo geral e considerar que, em certos casos, seu conteúdo simbólico seja a homossexualidade, mas não em todos.
O conhecimento da função estruturante dos símbolos combate a tendência reacionária do Ego de se achar inteiramente pronto e acabado e negar que está sendo dia e noite consciente e inconscientemente transformado. Não foi por acaso que nossa cultura reagiu tanto às descobertas de Galileu e Copérnico. Nosso egocentrismo, como assinalou Freud, preferiria que a Terra fosse o centro imóvel do sistema solar, da mesma forma que o Ego fosse o centro da Psique. Por isso continuamos a reagir às descobertas de Freud, que o Id é anterior e maior que o Ego, e de Jung, segundo as quais o inconsciente tem uma capacidade centralizadora e criativa (Arquétipo Central) que como um verdadeiro Sol coordena o funcionamento da Psique.
Como vemos no Gráfico, os símbolos estruturantes funcionam como vínculo entre a Consciência e o Inconsciente ao desempenhar sua função criativa no desenvolvimento da personalidade. Todavia, nem sempre os símbolos têm o mesmo tipo de componentes na sua formação. Ao observar a pirâmide do Gráfico, vemos que Galileu e Copérnico lidaram com símbolos que podemos situar predominantemente na vertente ou coluna da natureza, enquanto que a inveja e o ciúme se situam predominantemente na vertente emocional ideativa. O símbolo estruturante tem, porém, sempre a mesma função coordenadora e transformadora entre os processos inconscientes e conscientes e somente a maneira como ele desempenha esta função é diferente em função de seus componentes.
Todo símbolo estruturante, independentemente dos seus componentes, deve sempre contribuir para o crescimento da personalidade e da consciência a partir dos processos inconscientes na medida em que forma e transforma a Identidade do Ego. Parto então da premissa que a psique está inicialmente indiferenciada inconscientemente num todo do qual por intermédio de dos símbolos estruturantes vai durante toda a vida se diferenciando e formando a consciência, a Identidade e o Ego. O processo de crescimento é doloroso porque implica sempre numa separação, desintegração (Fordham) ou desgarramento do Ouroboros (Neumann), ou simbiose original (Bleger) para o que contribui cada símbolo estruturante. No que concerne a função estruturante das emoções, a inveja e o ciúme não estão sozinhos e atuam em meio ou, às vezes, em combinação com as outras emoções como, por exemplo, o amor, o ódio, a competição, a cobiça, a voracidade, a vaidade, o orgulho, a prepotência, a possessividade, o medo, a covardia, a coragem, a vingança, a falsidade, a traição e todas as demais emoções. Descrevo sucintamente, como exemplo, a função estruturante da inveja e do ciúme em conjunto, pois sendo estas duas emoções muito próximas, uma evidencia ainda mais claramente a função da outra. Seu estudo pode servir de parâmetro para o estudo da função estruturante de todas as outras emoções dentro da Psicologia simbólica.
A diferenciação do Ego não é aqui pensada a partir da relação mundo interno-mundo externo ou princípio de prazer-princípio da realidade e, sim, a partir de um estado de indiferenciação primordial. A Psicologia Simbólica busca ultrapassar a dicotomia maniqueísta Psique, mundo interno e subjetivo versus matéria, mundo externo, não psíquico e objetivo e, para isso, considera que a Psique se diferencia do Cosmos. Assim, para a Psique, como para o Cosmos, não existe dentro e fora. Todas as polaridades inclusive interno-externo são polaridades com relação ao Ego e não com relação à Psique.
As polaridades se relacionam com o Ego em função da polaridade básica do Eu e do Outro. Então, algo pode estar dentro do Eu ou fora do Eu e só nessa medida é que será subjetivo ou objetivo. Qualquer polo de qualquer polaridade, porém, será sempre psíquico. De fato, para a realidade humana tudo é sempre psíquico. O todo universal é a nossa origem, é o meio no qual interagimos e é o nosso fim, Ele e nós somos psiquicamente um. Nosso Ego e nossa identidade consciente se diferenciam do todo, mas, no fundo, quer sejamos químicos, físicos ou místicos sabemos que o Cosmos e nós somos uma só entidade. A diferenciação de nossa identidade do todo não interrompe nem elimina a natureza de nosso relacionamento com o todo que continua a ser psíquica. Somos animais simbólicos e, por isso, quando lidamos com o mundo objetivo a nossa volta, o fazemos por intermédio de símbolos que discriminamos permanentemente em componentes subjetivos e objetivos. Nós não temos a capacidade de relacionar com um mundo objetivo em si, dissociado do contexto simbólico. Nossa capacidade de objetividade advém sempre e de novo da diferenciação da dimensão simbólica que é a fonte da objetividade e da subjetividade. A dificuldade de raciocinarmos dentro da dinâmica estruturante da Psicologia Simbólica é que temos que raciocinar em dois níveis simultaneamente. Um é o nível egoico, parcial e aparente e o outro, o nível global profundo. No nível aparente estamos raciocinando a partir do Ego, e no profundo, a partir do Self, ou seja, do todo. É claro que para raciocinarmos a partir da função do Self, temos que fazer um esforço muito maior, pois este raciocínio é relativamente mais difícil. Somente, a partir dele, porém, podemos ultrapassar a dicotomia maniqueísta Psique-matéria, subjetivo-objetivo, que nos limita, sobretudo desde a crise do Renascimento, quando ocorreu a imensa dissociação trazida pela Inquisição.
O estudo do ciúme nos permite compreender melhor a inveja. O ciúme é uma emoção que estabelece uma relação estruturante entre três entidades. O Eu, um Outro e um Outro distante. O Outro próximo tem uma relação afetiva com o Eu e é considerado íntimo e conhecido enquanto que o Outro distante é considerado desconhecido. O ciúme denuncia a entrada do Outro distante como símbolo no campo afetivo do Eu e do Outro íntimo e, com isso, ameaça o Eu de transformação da sua relação com o Outro íntimo, podendo advir até mesmo sua perda. A função estruturante do ciúme é altamente diferenciadora da relação simbiótica do Eu com o Outro íntimo, em função da interveniência do Outro distante e proporciona um crescimento por discriminação íntima, do Eu e do Outro do campo da Consciência e da Personalidade. A medida que o Outro distante é envolvido no processo, ele se simboliza cada vez mais e, se houver abertura para a vivência do ciúme, o Outro distante se tornará cada vez mais próximo, íntimo e conhecido, não só naquilo que ele é como Outro, mas naquilo que ele traz para a estruturação do próprio Eu, bem como para a diferenciação e conhecimento do Outro íntimo. É importantíssimo nos darmos conta de que o Outro distante, na medida em que se torna símbolo estruturante, contribuirá para a transformação do Outro íntimo como também do próprio Eu.
Sabemos que o Ego se desenvolve a partir de uma unidade primordial inconsciente. A relação primária criança-mãe que se passa praticamente dentro dessa unidade primordial, tem, por isso, características simbióticas muito intensas que diminuem com a diferenciação da personalidade da criança e de seu Ego. A relação do ser humano com a unidade primordial e o fenômeno da simbiose intensa, porém, não se restringe à infância e normalmente não acabam com ela. A unidade primordial não é uma circunstância; baseia-se numa estrutura psíquica, isto é, num arquétipo. Ela é oriunda, em última instância, da atividade globalizadora de, nada mais nada menos, do que do próprio Arquétipo Central e, assim sendo, está sempre presente na matriz do desenvolvimento psicológico. Todo símbolo importante tem a capacidade de indiscriminar a Consciência e reuni-la com o Arquétipo Central e, por conseguinte, toda relação simbólica importante passará por uma fase de simbiose intensa durante sua diferenciação. O ciúme terá sempre um papel muito importante nesta diferenciação, sempre que se tratar de um símbolo atuando intensamente na dimensão interpessoal. Compreende-se, assim, porque a criança sofre tanto de ciúmes quando nascem seus irmãos e, também, porque a falta de irmãos e desta vivência de ciúmes dificulta o desenvolvimento da personalidade do filho único. Compreende-se também porque o ciúme terá um papel diferenciador da personalidade não só na infância, mas também durante toda a vida.
Vê-se agora que aqueles dois posicionamentos da Consciência, o superficial e o profundo, em função do Ego e do Self, respectivamente, que mencionados acima, não são algo importante só teoricamente, mas também o são na prática para compreendermos a realidade simbólica e o desempenho estruturantes dos símbolos. É que, superficialmente, a nível do Ego, no início da relação triangular de ciúmes, o Outro distante nada parece ter a ver com a realidade psíquica da personalidade do Eu, mas profundamente, em nível do Self, vemos que tem e muito. Esta percepção profunda, porém, só é possível quando nos abrimos para a realidade simbólica do Outro distante. Ora, quem nos mobiliza para a importância do aparecimento do Outro distante, neste caso é o ciúme e só podemos perceber o Outro próximo e o Outro distante como símbolos estruturantes nesta situação, se aguentarmos o ciúme com toda tensão e sofrimento que ele nos traz. Normalmente, apesar de sofrer com o ciúme e antagonizar o Outro distante, o ego sofre a ação simbólica e transformadora da sua presença no campo existencial. Este sofrimento é difícil de aguentar exatamente devido ao seu poder diferenciador, e o Self pode circunscrevê-lo patologicamente, principalmente por intermédio de dois dinamismos defensivos, opostos na sua maneira de funcionar. O primeiro é a repressão do Outro íntimo ou do Outro distante e as vezes dos dois. Otelo reprime o Outro íntimo, ao matar Desdêmona. O segundo dinamismo é absorver o Outro distante ao Outro íntimo e acabar com a tensão, como fizeram Jules e Jim com a amante no célebre filme de Truffaut, passando os três a viver juntos. Estas são duas maneiras extremas de se evadir a função estruturante do ciúme. Otelo, por possessão pelo ciúme e repressão do Outro íntimo e Jules e Jim, por negação do ciúme e incorporação defensiva do Outro distante.
Já na inveja, a relação é direta do Eu com certas características de um Outro. Na medida em que as características desse Outro se tornam simbolizadas, pode surgir um Outro íntimo, até então menosprezado, que estava oculto na Sombra do próprio Eu. No caso de Salieri, o Símbolo Mozart funciona como um Outro distante que submetido à ação estruturante da inveja vai aos poucos se simbolizando intensamente e trazendo a Consciência um Outro íntimo que é a própria criatividade de Salieri. Todavia, como este Outro íntimo se achava ferido e envolvido em acontecimentos passados traumáticos, situava-se na Sombra Patológica e encontrava-se cercado por defesas complexas como vimos acima. A intensidade da inveja estruturante carregou energicamente o Outro distante (o Símbolo Mozart) de forma extraordinária e, com isso, acionou o Outro íntimo de forma intensa. O recrudescimento das defesas em torno do Outro íntimo levou a um ataque maciço ao Outro distante na ânsia de reprimir seu poder transformador. A estrutura psíquica de Salieri não resistiu a este conflito e sua sanidade mental se desestruturou na psicose.
A diferença entre o ciúme e a inveja reside na dimensão em que atuam, mas sua pujança estruturante e discriminadora é a mesma. O ciúme atua fundamentalmente num triângulo interpessoal, mas não exclusivamente, pois o Outro distante nem sempre é pessoa, podendo ser uma atividade ou reação emocional ao Outro íntimo. Os grandes ciumentos podem sentir ciúmes de seus cônjuges no seu apego ao trabalho ou até mesmo da sua relação com animais ou objetos. O ciúme funciona como um termômetro da relação simbiótica. Conheci um homem que sofria muito de ciúmes pelo amor que sua mulher sentia por suas joias. Já a inveja, além de funcionar de maneira direta e não triangular, atua sobre símbolos estruturantes ligados a características de outras pessoas. Nesse sentido, os símbolos guiados pela inveja diferenciam o Ego do inconsciente, atuando na cobiça de expansão da personalidade, enquanto que o ciúme age sobre o que a personalidade já tem. A inveja é dolorosa porque funciona por intermédio da Consciência da falta, isto é, do que não temos, ao passo que o ciúme nos faz sofrer porque é exercido sobre nossa ansiedade de perda, ou seja, de sermos privados daquilo que já temos. Estas peculiaridades dão à inveja uma vivência de se tomar algo do Outro e ao ciúme, a de se ser ameaçado de roubo pelo Outro. Nesse sentido, a inveja é uma força que se caracteriza por ser ativa, revolucionária, corajosa e predadora enquanto que o ciúme é uma força que se caracteriza por ser passiva, reacionária, covarde e conservadora. A função no desenvolvimento simbólico da personalidade da inveja e do ciúme, como disse acima, é muito grande e de igual importância e valor.
Não creio que possamos concluir que a inveja seja uma função primária e o ciúme, secundária devido ao fato de a inveja apresentar uma relação estrutural binaria (entre o Eu e um Outro) e o ciúme, uma relação ternária (entre o Eu e um Outro íntimo e um Outro distante ameaçador). Este fato levou Melanie Klein a considerar o ciúme como um derivado da inveja (KLEIN, 1974). Esta mesma consideração levou José Bleger (1977) a situar o ciúme como característica do dinamismo neurótico e a inveja, do dinamismo psicótico da personalidade. A inveja, por ser basicamente binária, seria mais arcaica, relacionada com a díada primária pré-edipíca boca-seio, criança-mãe. O ciúme, por ser basicamente ternário, seria uma função de aparecimento ulterior, relacionada com o triângulo edípico.
Acho importante a consideração do componente psicodinâmico do ciúme, que, a meu ver, altera esta hierarquização entre a inveja e o ciúme e permite considerá-los como funções arquetípicas de importância equivalente e complementar. Este argumento se baseia no fato de que quando o Outro distante ameaça apossar-se do Outro íntimo, este se acha muitas vezes fusionado com o Eu a tal ponto que a relação triangular aparente é psicodinamicamente binária.
Relato, para exemplificar, o caso de um homem de 30 anos com componentes homossexuais intensos e muito dependente de sua mãe. Quando sua mulher o deixou por outro homem, ele apresentou um quadro emocional de impotência e desespero. Chorava praticamente o dia todo. Não conseguia mais trabalhar. Foi acometido de intensa insônia e buscou a psicoterapia por julgar-se na eminência de autodestruição. Ao descrever o ciúme que sentia, referia-se exuberantemente ao fato de que, com sua mulher, o amante arrancava-lhe junto as entranhas. "Não é ela que ele leva", repetia-me ele compulsivamente. "É meu fígado, meu coração, meu pulmão e minha alma. Assim, fico vazio, sem nada, e não consigo viver". Este caso é um, dentre inúmeros outros que pude acompanhar, que me demonstrou estar o Outro íntimo ainda de tal forma fusionado ao Eu, numa simbiose indiferenciada, que a relação triangular com o Outro ameaçador opera psicodinamicamente em nível binário.
Por outro lado, a inveja, ainda que operando estruturalmente de forma binária, pode operar psicodinamicamente em nível triangular. São casos em que o Eu inveja coisas do Outro pelo poder que adquirirá frente a terceiros e não pelas coisas em si. Assim sendo, estes símbolos só são invejados pelo fato de se situarem numa dinâmica triangular.
A Psicologia da polaridade extroversão-introversão de Jung (1960) pode nos esclarecer melhor as diferenças entre a inveja e o ciúme sem que tenhamos que recorrer a uma hierarquização. Jung mostra que, no extrovertido, a libido flui basicamente em direção ao objeto, enquanto que o introvertido, o inverso se dá. Com isso não quero caracterizar a inveja como um fenômeno extrovertido e o ciúme como introvertido, o que não seria pertinente, por se tratar, num caso, de atitudes da Consciência e, no outro, de emoções. Quero com isso caracterizar que, analogamente à polaridade extroversão-introversão, também a polaridade inveja-ciúme se diferencia pela ênfase no objeto (inveja) ou no sujeito (ciúme). Este fato faz com que inveja e ciúme tenham igual primazia de aparecimento e funcionamento no desenvolvimento da Consciência e até mesmo impede que estabeleçamos entre estas funções qualquer hierarquização.
Da mesma forma que no ciúme, há formas clássicas polares do Self diminuir defensivamente a função estruturante da inveja. Uma é a agressão, na tentativa de reprimir a simbolização e a função estruturante do Outro como aconteceu com Salieri. Outra é a negação, colocando-se por exemplo um defeito no Outro distante para fingir que não o cobiçamos. "As uvas estão verdes e, por isso, eu não as quero", afirmou a raposa.
Como é o caso de qualquer símbolo ou função estruturante, a inveja e o ciúme são mais ameaçadores que normalmente, quando ativam símbolos que já estão na Sombra e, sobretudo, na Sombra Patológica. Tratam-se de Outros íntimos pelos quais já passamos e deixamos para trás devido a fatores diversos. Quanto mais difíceis e dolorosas foram as vivências que com eles tivemos, tanto mais serão ameaçadores e dolorosos a inveja e o ciúme que com eles mexerem. Sentir inveja de algo pelo qual já lutei e fracassei é muito pior do que sentir inveja por algo pelo que nunca tentei lutar. Da mesma forma, ter um vínculo ameaçado pelo ciúme com o qual sempre se teve segurança é mais tolerável do que quando se tem uma relação de insegurança e sofrimento. Faz toda diferença se as funções estruturantes atuam em terreno livre de conflito ou se reabrem feridas.
Caso Otelo aguentasse seu ciúme e o confrontasse como unção estruturante, ele descobriria primeiro a falsidade e a inveja de Yago e, a seguir, sua insegurança e autorrejeição que o levaram a duvidar de Desdêmona e não de Yago. Desdêmona, Cassio e Yago são símbolos estruturantes na vida psíquica de Otelo que, mobilizado pelo ciúme, forçam o Ego a se diferenciar da simbiose com Desdêmona e a se desenvolver. A diferenciação de Otelo traria a descoberta de um novo Outro, ainda mais íntimo que Desdêmona e que se achava há muitos anos reprimido formando uma terrível Sombra Patológica. Quando encontramos defesas rígidas do Ego diante da mobilização tanto do ciúme quanto da inveja é porque o símbolo estruturante mobilizado para o desenvolvimento foi alijado do processo no passado e está naquele momento aprisionado pelas defesas na Sombra Patológica. Foi o caso de Salieri e Otelo. O primeiro por abrigar em sua Sombra Patológica sua traição à criatividade e, o segundo, pelo fato de nela conter sua insegurança que talvez envolvesse toda sua identidade num complexo racial. Se aguentasse o ciúme, Otelo confrontaria sua Sombra e, com isso, muito enriqueceria seu Ego. Porque idealizou tanto Yago a ponto de se deixar por ele enganar daquela forma? A idealização, empregada como defesa neurótica, não estaria a serviço de encobrir seu complexo racial e a inveja da posição privilegiada e preconceituosa dos brancos na sociedade de Veneza expressa pela oposição do sogro ao casamento? Seu amor por Desdêmona não teria uma imensa Sombra de rejeitado social cercada por defesas de repressão, negação e idealização? E não teria sido o ciúme ativando este símbolo do rejeitado que descompensou ainda mais seu Eixo Ego-Símbolo estruturante-Arquétipo Central, obrigando-o a passar do dinamismo neurótico projetivo, mas ainda adequado do marido ciumento, ao dinamismo psicótico delirante do marido homicida?
A presença da Sombra patológica nos casos de Salieri e Otelo evidencia a presença de componentes do Self parcialmente discriminados no passado e que foram remobilizados pela inveja e pelo ciúme respectivamente. A Sombra patológica é, no caso, um Outro muito íntimo para o Ego, mas que se tornou distante devido às defesas que o circunscreveram. Este Outro íntimo que se tornou distante pelas defesas é frequentemente muito mais ameaçador do que qualquer Outro distante.
Existem muitos casos em que o símbolo estruturante mobilizado pela inveja e o ciúme é algo inteiramente novo na personalidade. Nesses casos, o Outro distante mobilizado é realmente distante e expressa um arquétipo se apresentando como símbolo estruturante para a continuação do desenvolvimento. É o caso daquele personagem nos contos de fadas e mitos que aparece sob forma banal, mas que, na realidade, é um Deus disfarçado para desempenhar uma tarefa da maior importância.
É evidente que os casos mistos são os mais frequentes. A inveja e o ciúme, como parte das funções psíquicas, mobilizam os símbolos estruturantes para a diferenciação progressiva da Consciência, e é raro encontrarmos símbolos estruturantes que não tenham pelo menos algumas de duas facetas envolvidas seja com a Sombra normal (sem defesas à sua volta) seja com a Sombra patológica (com defesas a sua volta). O importante é percebermos que a mobilização dos símbolos estruturantes nunca é em si própria doentia e tem sempre o componente sadio que busca propiciar o desenvolvimento da Consciência e da Personalidade.
Apesar de a peça "Amadeus" estar centralizada na inveja de Salieri e em sua patologização progressiva, ela apresenta num segundo plano, mais velado, mas, nem por isso, com intensidade menor, as características psicológicas de Mozart que interagiram com Salieri num envolvimento de complementariedade. Dificilmente se vivencia intimamente um estado psicológico intenso de alguém sem algum envolvimento emocional correspondente. Não é essa a pretensão explícita de qualquer espetáculo dramático? Seria praticamente impossível a vivência do símbolo estruturante da criatividade prostituída de Salieri tão exuberantemente por intermédio de Mozart, sem que existisse no próprio processo de Mozart um símbolo estruturante que atuasse complementarmente no relacionamento dos dois artistas. Este símbolo foi veiculado no drama, sutilmente no início, para, aos poucos, crescer e atingir uma força e uma função tão decisivas na peça quanto o que ocorreu com Salieri. Trata-se do símbolo estruturante do Arquétipo do Pai constelado negativamente, ou seja, do Pai Terrível que, na peça, levará Mozart à loucura e à morte, da mesma forma que o símbolo estruturante Mozart enlouquece Salieri.
A história da música parece coatuar nesta punição a Mozart, ao desconsiderar praticamente o drama psicológico que o autor deve ter sofrido durante toda sua vida. As biografias do musicista citam sua morte aos 35 anos, provavelmente por cólera, e atribuem a uma tempestade o fato de seus amigos terem se afastado de seu caixão no dia do enterro. Por este fato, explica-se, não se sabe até hoje onde está o túmulo de Mozart no cemitério de Viena em que foi enterrado. É evidente, porém, que nem a cólera, nem a tempestade explicam a decadência e a miséria socioeconômica que dominou a vida de Mozart nos seus últimos anos, a ponto de ter passado fome e, finalmente, ter sido enterrado numa vala comum, incógnito. Empregado na corte de Viena e no auge de sua esplêndida criatividade, é difícil não se suspeitar da existência de características peculiares na personalidade de Mozart que expliquem uma decadência socioeconômica tão intensa. Diante destes fatos, não podemos deixar de imaginar, que algum distúrbio psicológico grave deva ter comprometido a personalidade do compositor, além do alcoolismo.
Durante a peça, o autor tece as características de um complexo paterno negativo na personalidade de Mozart, com os ingredientes de rejeição, mimo, insensamento, fragilização e superexigências ligados a imagem do pai, complexo este responsável pela preservação de traços infantojuvenis atuados inadequadamente pelo grande músico. Salta aos olhos, no texto dramático, que a irreverência de Mozart apresenta características compulsivas de uma Sombra patológica que o Ego do compositor quer conter e não sabe. O enfant térrible em Mozart revela-se aos poucos muito mais do que uma gaiatice que o gênio não controla, simplesmente porque não quer. As características do "menino endiabrado" vão aos poucos mostrando que, frequentemente, possuem e comandam a conduta do gênio, obrigando-o a desempenhar diabruras que, ao se acumularem. Vão atuando cada vez mais destrutivamente com todas as amizades masculinas do compositor, sobretudo naquelas que, por estarem ocupando posição de poder e fama, mais poderiam lhe proteger e paternalizar.
Uma das críticas feitas à peça, como mencionei, foi o exagero que teria sido dado pelo autor às características infantis e rebeldes de Mozart. Ainda que não tenhamos dados históricos para confirmar factualmente estas características, podemos admitir que a biografia conhecida de Mozart nos mostra condições ideais para a formação de uma fixação patriarcal em torno da imagem do pai, pois como quase toda criança prodígio, Mozart desde cedo chamou para si como músico mais atenção que seu pai. Isto geralmente impede ao menino crescer protegido pela personalidade do pai que idealiza e com a qual competirá muito mais tarde. Ao ser dos 8 anos em diante apresentado em turnês por seu pai e aclamado pelas cortes da Europa como prodígio, por si só já equivaleria para Mozart a um distúrbio da função estruturante da sua função paterna. Alie-se a isto o fato de seu pai ter sido, ao menos na peça, superexigente e pouco afetivo para termos uma intensa fixação em torno do símbolo estruturante do Pai. A culpa de Mozart com relação ao pai associada na peça ao parricídio e à condenação ao inferno de D. Giovani podem tornar-se menos fantasiosas psicologicamente, quando intuímos que Mozart, ao sustentar sua família junto com sua pequena irmã, desde cedo em concertos pela Europa, deve ter desenvolvido em complexo paterno fixado tanto no dinamismo matriarcal quanto no patriarcal.
Basta aparecer uma possibilidade de ajuda e dependência paternal, para aquele jovem, recém-chegado à corte e tão necessitado de apoio, que suas defesas e a própria Sombra patológica cheia de desamparo e ódio entram em cena para atacar. Esta tendência é expressa na peça por uma risadinha compulsiva e demoníaca que Mozart parece não conseguir controlar. A intensidade desta Sombra e sua defesa é tal, que elas dominam a vida social do autor, prejudicando a manutenção de sua família e de sua própria sobrevivência. Sabemos que, quando numa neurose a Sombra patológica atua de forma conivente e sincronizada com o Arquétipo da Anima, a possibilidade do dinamismo neurótico se transformar em psicótico se torna bem maior que o habitual. De fato, desde o início da peça, Mozart usa as personalidades de Constance, sua namorada e mais tarde esposa, como aliada e conivente para debochar, ridicularizar, desrespeitar e agredir todos os que dele se aproximam com quaisquer características paternais possíveis. Até mesmo o próprio relacionamento amoroso se torna depositário das irreverências infantis intempestivas reprimidas por uma educação puritana. Contudo, pelo fato de toda esta sua atuação ser sombria, Mozart não assume um ataque frontal ao pai e, pelo contrário, ajuda a esconder ainda melhor sua Sombra com uma Persona defensiva de bom filho, e o defende, quando sua esposa inconscientemente por ele acumpliciada e incitada, ataca o sogro sem mesuras e termina por queimar-lhe as cartas. Podemos mesmo aventar a hipótese de que as dificuldades crescentes do casamento, que culminam com a separação, tenham sua fonte principal nesta atuação da Sombra patológica de Mozart, depositada em Constance por intermédio da simbiose conjugal. Nesse caso, a produtividade do seu amor teria sido consumida pela destrutividade do complexo paterno negativo que, atuando em conjunto, inconsciente e defensivamente pelo casal, impediu-lhe desempenhar a função provedora para si e para seus filhos.
Ora, talvez o personagem que mais pudesse ajudar o jovem músico recém-chegado a Viena fosse seu colega Salieri, que até mesmo por ser estrangeiro e de família humilde, havia tido que aprender todos os meandros do poder da corte austríaca para galgar os degraus da sua tão almejada fama e, por isso, se achava em posição singular para auxiliá-lo. Podemos dizer, que Mozart ataca Salieri, de saída, porque a estruturação de sua identidade mal-resolvida a nível paterno não lhe permite compulsivamente, isto é, neuroticamente, dividir qualquer posição de poder com outro homem. Podemos, porém, já perceber neste ataque, a inveja neuroticamente exercida, pois Mozart não ataca simplesmente qualquer um, e sim, especificamente, aquela posição de poder na corte que ele necessita ter, até mesmo, como o drama mostrará, por uma questão de sobrevivência, literalmente, para não morrer de fome na miséria e ser enterrado numa vala comum, como aconteceu. E, apesar disso, ou talvez devemos dizer, exatamente por não poder vivenciar esta inveja normalmente, Mozart a reprime e ataca Salieri. Ao invés de cultivar sua amizade e lhe pedir ajuda, Mozart o ataca e, até nisso, demonstra grande sensibilidade, pois ataca Salieri no seu ponto mais vulnerável, neuroticamente defendido e extremamente doloroso.
Para receber Mozart na Corte, Salieri compõe uma pequena marcha, transformada mais tarde na marcha do casamento de Fígaro. Ao acabar de ouvi-la, Mozart senta-se ao piano e a reproduz para Salieri, tão engrandecida e de forma tão ostensiva que o humilha irreparavelmente. Naquela região da alma de Salieri na qual há muitos anos nenhum raio de luz da sua própria consciência penetrava, naquela fortaleza, onde estava protegida sua sombra patológica com sua criatividade profunda abandonada e prostituída, é ali que Mozart, aperfeiçoando sua marchinha, ou seja, recriando a criatividade prostituída do amigo e protetor em potencial, despeja, como ácido numa ferida aberta, uma avalanche de humilhação. As defesas de Salieri exacerbam-se abruptamente e, do potencial competitivo, mas cordial, em meio ao qual as invejas recíprocas poderiam ter se exercido produtivamente, incendeiam-se a mágoa e a rejeição de Salieri, para criar dois inimigos mortais, cujas invejas passariam do dinamismo neurótico ao psicótico, levando as duas personalidades à desestruturação e à destruição.
Nesta linha de raciocínio, podemos dizer que o personagem de Mozart, no plano emocional é ainda mais dissociado e neurótico que Salieri, pois era muito mais inconsciente de sua Sombra patológica. Mozart atuava sua Sombra patológica mas em sua Consciência apresentava somente motivações opostas a ela, evidenciando um grau de dissociação muito maior. Quando é este o caso e a Sombra, finalmente, por qualquer eventualidade, que no caso de Mozart foi à extrema miséria e abandono ao qual sua neurose aos poucos o conduzia, invade a Consciência, a desestruturação da personalidade geralmente é gravíssima. Mozart não percebia o quanto agredia seus protetores de um modo geral, como, por exemplo, quando propiciou na Flauta Mágica, a abertura pública dos rituais secretos da maçonaria e, com isso, perdeu o importante apoio dos seus patrocinadores maçons. Sua morte precoce, pode ter sido factualmente desencadeada pela cólera, como nos refere a História, mas ocorreu em meio a uma crise psicológica de características psicóticas, paranoide e delirante, da maior gravidade. Mozart tinha sua criatividade livre e assumida e, aí, era normal, onde Salieri era defendido e neurótico. Contudo, na parte de sua personalidade que necessitava se comportar como adulto, como marido e pai, não só de seus filhos mas, até mesmo, de sua própria personalidade, de sua profissão e criatividade, ou seja, de sua própria Anima, Mozart estava fixado na infância e era ainda mais gravemente doente que Salieri.
Salieri, ao menos, ainda que sem saber realmente porque, percebeu o quanto odiava Mozart e muito fez para destruí-lo conscientemente. Devido a isso, ao menos parte de sua agressividade foi atuada conscientemente. Quanto a Mozart, não conscientizou, de forma alguma sua agressividade à autoridade, basicamente formada por sua carência e ambiguidade com relação a imagem paterna, que lhe fazia ridicularizar Salieri compulsivamente. A dissociação de Mozart era então muito mais grave que a de Salieri, a quem Mozart conscientemente chamava seu único amigo e sinceramente buscava proteção, enquanto sobre ele atuava sua Sombra, humilhando e ridicularizando sua criatividade sempre que podia. Por isso, quando, devido a sua carência cada vez maior, a inveja de Mozart mobilizou progressivamente sua necessidade de um símbolo estruturante paternal, os mecanismos de defesa de sua Sombra de exacerbam num dinamismo psicótico francamente paranoide e delirante.
O caso de o Conde Walsegg ter encomendado um réquiem a Mozart e mandar buscá-lo por Leutgeb, que Mozart confunde com a morte e passa a compor seu próprio réquiem, é um acontecimento de sincronicidade. Dentro do campo psicológico do símbolo estruturante do pai terrível, operando em dinamismo psicótico, Mozart percebe no emissário do Conde, por intermédio de uma defesa projetiva e delirante, a figura da própria Morte. Não podemos deixar de associar a este episódio, como o faz tão criativamente o autor na peça, a figura do Comendador assassinado por D. Giovani na famosa peça musicada por Mozart anos antes. Ao desafiar a estátua da figura paterna justiceira e vingativa no cemitério, esta adquire vida e lança D. Giovani para a morte nas chamas do inferno. A mensagem é freudianamente cristalina, demonstrando a existência de um Complexo de Édipo não resolvido que leva a desestruturação psicótica pela culpa do parricídio. Contudo, a receita para Mozart bem como para Édipo não seria a repressão do antagonismo ao pai e a formação de uma personalidade bem-comportada e reprimida como concebeu Freud, e sim confrontar e vivenciar a agressão de forma a poder descobrir e se deixar guiar pelo símbolo estruturante presente no seu conteúdo. Assim fazendo, Édipo e Mozart descobririam que sofriam a rejeição e odiavam seu pai na mesma medida em que haviam vivenciado a repressão e a rejeição com sua imagem. Essa descoberta os levaria a elaborar essas vivências para resgatar a função estruturante do seu complexo paterno. A culpa oriunda do complexo paterno não resolvido persegue D. Giovani e só se aplaca com a morte em meio a torturas terríveis, exatamente como acaba morrendo Mozart, ao se deparar com a morte, em meio a delírios persecutórios hediondos, já agora, na peça, conscientemente incarnada por Salieri na figura do homem alto cobrador-persecutor.
Esta figura ameaçadora em pé, em frente a casa de Mozart, corresponde no seu delírio a figura do pai vingador que, ataca durante toda sua vida, vem finalmente cobrar sua dívida e exercer sua vingança. Devido ao agravamento da carência do pai e, por conseguinte, a exacerbação da função estruturante criativa do símbolo do pai, rompe-se o dique defensivo neurótico formado pelos dinamismos de repressão, projeção, negação, formação reativa e deslocamento e instala-se o dinamismo defensivo psicótico visionário, paranoide e delirante. Dentro deste delírio, somente sua própria morte seria um castigo a altura para tanta vivência de perseguição. Por isso, a vivência defensiva da morte passa a consolar delirantemente a culpa de forma tão psicótica e suicida que desestrutura a razão do gênio e lhe predispõe catastroficamente para o fim. Como relatei acima, os poucos amigos que acompanhavam o enterro de Mozart não puderam chegar ao cemitério, devido a uma tempestade com relâmpagos. Mozart foi enterrado numa vala de indigente que, posteriormente, seus amigos não puderam mais localizar (HUGHES, 1950). A cena parece fazer parte da condenação de D. Giovani pela estátua do Comendador no cemitério, quando em meio a relâmpagos, as portas do inferno se abrem para tragá-lo.
O relacionamento de Salieri e Mozart, visto do ponto de vista da Psicologia Simbólica, nos oferece, além do que já vimos, a oportunidade de analisarmos, a partir de ângulos diferentes e complementares, o Self Individual e o Self Grupal no seu desempenho tanto normal quanto patológico.
Jung (1960) conceituou o Self como a totalidade dos processos conscientes e inconscientes no processo de individuação. Podemos, também, conceber o Self a nível grupal (BYINGOTN, 1983a). Isto quer dizer que o Arquétipo Central que coordena todos os demais arquétipos do Self tem a propriedade de funcionar englobando e coordenando os símbolos estruturantes do processo de individuação numa só pessoa, como também englobar e coordenar os símbolos estruturantes comuns às pessoas que se associam em função do processo vital. O mínimo para a formação desta associação são duas pessoas e, daí, podemos estudar o Self Grupal funcionando em relacionamentos íntimos como, por exemplo, na clássica complementariedade de D. Quixote e Sancho Pança, ou num casamento no qual percebemos o dinamismo do Self Conjugal, ou numa relação transferencial terapeuta-analisando onde identificaremos os símbolos do Self Terapêutico e assim por diante. A concepção mais abrangente deste fenômeno é o do Self Cósmico que os místicos e físicos modernos buscam aprender e a do Self da Humanidade, que é da maior utilidade para mantermos a noção do desenvolvimento global do ser humano no planeta. Antropologicamente, porém, talvez a concepção mais frutífera da aplicação desta característica de omnipresença e omnisciência do Arquétipo Central seja a do Self Cultural que nos permite perceber e acompanhar os símbolos estruturantes de uma cultura na sua interpelação como um todo único significativo (BYINGTON, 1983c).
Vista do ponto de vista do Self Grupal, a relação de Mozart e Salieri nos apresenta uma dinâmica importante entre o símbolo estruturante da criatividade musical e a Persona e a Sombra tanto normal quanto patológicas. A Persona, como sabemos, é o conjunto de máscaras simbólicas ou papéis que uma cultura tem à disposição para o desenvolvimento dos seus membros. Já vimos como a criatividade de Salieri havia sido prostituída e passara a fazer parte da sua Sombra Patológica. Vimos como Mozart também tinha dificuldade em adaptar sua criatividade à sua Persona devido a um intenso complexo paterno negativo que fazia parte de Sombra Patológica e que, invadindo sua personalidade, dominava compulsivamente sua conduta e impedia o exercício de sua Persona a serviço de sua criatividade. O complexo paterno negativo de Mozart impedia-lhe compulsivamente de desempenhar o papel social de filho que usufrui produtivamente de relacionamentos sociais com pessoas influentes para desenvolver partes necessitadas de sua personalidade. No momento em que o símbolo estruturante do Pai bom se constelava socialmente, as defesas de sua Sombra patológica, que controlavam o símbolo do Pai, sob seu aspecto terrível, entravam em cena e impediam o desempenho desse papel. É que, como os aspectos do Pai bom e do Pai terrível fazem parte do mesmo símbolo estruturante Pai, a constelação ou ativação do Pai bom forçosamente ativa as defesas que protegem o símbolo do Pai terrível.
O Arquétipo Central, na sua atividade criativa e coordenadora do desenvolvimento da Personalidade, busca permanentemente criar soluções para melhor propiciar o desenvolvimento da personalidade inclusive daquelas regiões prejudicadas durante o desenvolvimento passado e que passaram a fazer parte da Sombra Normal e Patológica. Da mesma forma que uma pequena planta encoberta pela sombra de um galho caído de uma árvore curva o seu crescimento para buscar a luz do Sol, assim também ocorre com o Self Individual. Só que, o nosso Self cria e coordena o desenvolvimento psicológico usando os acontecimentos da vida como símbolos estruturantes do processo de desenvolvimento. É, por isso, que a Psicologia Simbólica considera o símbolo estruturante seu conceito central e a função simbolizadora como a principal função da Psique. Quando qualquer acontecimento advém à Psique individual, o Self Individual usa esse acontecimento como símbolo estruturante. Qualquer coisa que ocorra, seja o aparecimento de uma pessoa, um lugar, uma modificação no corpo, na sociedade ou na natureza a nossa volta, ou mesmo, o aparecimento de uma ideia ou emoção, o Eu se sente diante de um Outro e o Self transforma esse Outro em símbolo estruturante. Caso esse Outro também possua um Self em processo de desenvolvimento que se imiscua com o Self do Eu, passa a se formar o Self Grupal que associa simbioticamente o Self do Eu e o Self do Outro no processo de desenvolvimento.
Foi assim que a aproximação de Mozart e Salieri criou um Self Grupal tendo o símbolo estruturante da criatividade como o símbolo central do seu desenvolvimento. A inveja mobilizou imediatamente a supercriativa Persona de Salieri e o desembaraço criativo de Mozart a serviço de desenvolvimento. Em condições normais, teria sido um encontro de uma produtividade fabulosa acrescendo muitas páginas à história da música. Mozart, tendo morrido isolado e na miséria aos 35 anos de idade, teve ao lado de Bach uma das produtividades mais fecundas de que se tem conhecimento. Imaginemos que ele tivesse como Bach desenvolvido sua obra musical solidamente apoiado numa corte e assim vivido até os 65 anos! Se bem que podemos sempre argumentar que se Mozart fosse mais bem-comportado e adaptado, talvez sua criatividade não tivesse nunca atingido tanta exuberância.
Todavia, a busca de integração da magnífica Persona de Salieri e da entrega criativa de Mozart, unindo produtivamente suas invejas respectivas, esbarrou num sistema defensivo arquitetado dento deste Self Grupal. O Self Individual de cada um deles já possuía defesas funcionando dentro de suas características pessoais. A simbiose das duas personalidades criou um Self Grupal com características próprias que não só impediram a integração produtiva da simbiose dos dois processos de desenvolvimento, como acirraram a luta entre criatividade e defesa levando a formação de uma simbiose patológica que culminou na desestruturação das duas personalidades. A simbiose das duas personalidades criativas para formar um Self Grupal, que prometia ser das mais fecundas, se transformou, desta maneira, num verdadeiro desastre psicológico e existencial.
Ao lançar mão do Outro como símbolo estruturante para continuar sua obra psicológica, o Self tenta sempre, também, resgatar os conteúdos simbólicos cercados na Sombra Patológica para reciclar os conteúdos sombrios e fazê-los atuar dentro da criatividade normal do Eixo Ego-símbolo estruturante-Arquétipo Central. As defesas, porém, se opõem a essa reintegração, posto que a Sombra Patológica se formou, ou em meio a muito sofrimento, ou devido a alguma disfunção psíquica, que tornou proibitiva sua atuação normal daí por diante. Todavia, sabemos que os conteúdos mentais são funções psíquicas necessárias à vida e que, por isso, sombrias ou não, são frequentemente desempenhadas. Um neurótico obsessivo, por exemplo, que prega compulsivamente o bem para esconder (defesa de repressão e negação) sua agressividade está na realidade exercendo uma estratégia para poder atuar sua agressividade, ainda que de forma camuflada e distorcida por suas defesas. No caso de o símbolo estruturante fazer parte da Sombra Patológica, forma-se uma estratégia no Self para desempenhar o símbolo, mesmo que defensivamente. Quanto maior for, porém, a pujança e a criatividade de uma personalidade, menos o seu Self se conformará com uma performance truncada por defesas. Por intermédio de novos símbolos estruturantes, o Self buscará, dia (fantasias) e noite (sonhos) ultrapassar as defesas que ele próprio um dia criou. Esta criatividade, será sempre uma nova experiência do Self e, ao ativar conteúdos da Sombra Patológica, poderá desencadear ameaças de sofrimento e ansiedade que farão com que estas defesas recrudesçam e se aprimorem, usando para isso, também, a criatividade do próprio Self. Este é um fato psíquico paradoxal apenas aparentemente, pois, na prática, ele é inteiramente compreensível. É que o Self, apesar de intuir o futuro, não tem certeza deste e, por isso, ora favorece o advogado de defesa da liberação do conteúdo da Sombra Patológica, ora o promotor que deseja prorrogar a sentença, dependendo da conjuntura social e da operosidade da função de cada um, exatamente como num processo jurídico de longa duração.
Esta verdadeira guerra que se trava, então, dentro do Self, entre a criatividade e as defesas, pode levar ao crescimento da personalidade e, até mesmo, à cura da neurose ou ao desgaste e à improdutividade tão comuns na personalidade neurótica que, apesar de, às vezes, muito ativa psicologicamente, na prática tão pouco produz, ou pode levar a um agravamento tal do sistema defensivo que de neurótico passa a psicótico ou, ainda, pode conduzir a desestruturação total da personalidade e à própria morte.
É importante dos darmos conta eu o sistema defensivo também foi criado pelo Eixo Ego-Símbolo estruturante-Arquétipo Central, fato que nos levou a falar em mecanismos de defesa deste eixo ou do Self e não de mecanismos de defesa do Ego, como habitualmente o fazíamos. O sistema defensivo é geralmente formado num passado infantil, como descreveu Freud (1969), e o Self Individual posteriormente atinge outro nível de criatividade, mas preservando o dinamismo estratégico defensivo para atuar junto aos símbolos estruturantes contidos na Sombra Patológica. Todavia, quando algum Outro é simbolizado e ativa intensamente conteúdos da Sombra Patológica, as defesas se exacerbam. O Self mobiliza o símbolo estruturante em função das necessidades do desenvolvimento, mas quando este símbolo ativa outros símbolos contidos na Sombra Patológica, a exacerbação dos sintomas, frequentemente, é inevitável. Neste caso, é o próprio crescimento saudável que exacerba a doença. As coisas então se passam como se o Self intencionasse mobilizar o símbolo estruturante, mas não o seu distúrbio. No entanto, o símbolo, ao ser mobilizado, apresenta-se com o referido distúrbio, o que tumultua o desenvolvimento e faz com que o Self não só reintensifique as defesas, como, até mesmo, as aperfeiçoe ou crie outras novas. É como se o Self ao mobilizar o símbolo estruturante necessário ao processo de desenvolvimento naquela etapa, o fizesse, cada vez com a esperança que, desta feita, ele possa ser reintegrado na dinâmica do Eixo Ego-Símbolo estruturante-Arquétipo Central. Se, porém, isso não acontece, e a disfunção estruturante conturba por demais o processo, o próprio Self propicia a reintensificação das defesas ou o seu aperfeiçoamento. Há casos, porém, em que o gênio sai da garrafa e não só se recusa a voltar como, ao ser obrigado a voltar, ameaça destruir o mundo a sua volta. Nesse caso, o Self lança mãos de recursos radicais que mantêm o gênio cercado por esforço exaustivo. É o caso do dinamismo defensivo neurótico que se transforma em psicótico no Self Grupal de Mozart e Salieri. Nesses casos, porém, o Self obtém uma vitória de Pirro pois mantém a integridade com um terrível desgaste das funções vitais. É um caso análogo aos doentes de câncer que tomam remédios que lhes prolongam a vida, mas com enormes prejuízos de muitas funções vitais.
O Self Grupal de Mozart e Salieri ativou pela inveja de tal forma símbolos estruturantes vitais para as duas personalidades que junto com a inveja foi acionada, também, sua respectiva disfunção de estruturação obrigada na sombra patológica. Da parte de Salieri, emergiu a criatividade, contaminada, porém, por uma tonelada de lixo de concessões, bajulações, covardias e um monte de rejeição, em suma, uma criatividade denegrida e ferida. Da parte de Mozart, surgiu a necessidade de um pai protetor e provedor, mas num símbolo estruturante carregado de desamparo, rejeição, vivência de exploração, superexigência e um grande número de vivências muito dolorosas. Diante da disfunção angustiante trazidas por estes símbolos necessitados, mas contaminados e, por isso, malditos, reexacerberam-se as defesas. Contudo, da mesma forma que a ativação dos símbolos estruturantes criativos no Self Grupal tem um potencial diferente e, às vezes, até mesmo maior que no Self Individual, assim também, ocorre com a reintensificação das defesas.
A humilhação de Mozart e Salieri, vista simbolicamente dentro do vínculo simbiótico do Self Grupal, tem assim um significado mais amplo do que visto exclusivamente no dinamismo do Self Individual. A humilhação vista operando na Personalidade de Mozart foi acima compreendida como uma defesa de sua inveja diante da magnífica Persona de Salieri que, apesar de apenas seis anos mais velho, já se encontrava tão bem situado na corte. Do ponto de vista de Salieri, a humilhação, como vimos anteriormente, atingiu em cheio seu orgulho e sua autoestima, já tão inseguras, devido à sua Sombra patológica da criatividade prostituída. Do ponto de vista do Self Grupal, porém, a humilhação de Mozart a Salieri atuou como um exocet no meio da ponte que poderia unir produtivamente suas personalidades. Vista dentro da psicodinâmica do Self Grupal, a humilhação, usada defensivamente por Mozart, foi a defesa de maior poder patologizador de todo seu longo relacionamento com Salieri, pois transformou de forma abrupta, radical e irreversível o vínculo simbiótico, que se iniciava com um imenso potencial criativo, num vínculo simbiótico defensivo e dissociativo. Por isso, apesar da peça centralizar-se explicitamente na psicopatologia de Salieri, do ponto de vista da operatividade do Self Grupal, residiu na patologia da personalidade de Mozart a característica defensiva decisiva para a desestruturação do Self Grupal e das duas personalidades.
A defesa de Mozart foi tão destrutiva para a união extremamente fecunda que despontava porque invalidou simultaneamente o símbolo estruturante Salieri, como Pai bom, para Mozart, e o símbolo estruturante Mozart, como criatividade assumida, para Salieri. Vemos, aqui, um grande exemplo de resistência à criatividade do Self Grupal, que atua anulando a produtividade dos vínculos entre os processos individuais. Ao perceber a produtividade do Self Grupal, que se esboçava pela associação das necessidades e virtudes da interação dos processos de individuação Salieri-Mozart, o dinamismo defensivo deste mesmo Self Grupal aplicou uma defesa com um timing, tão perfeito, que contaminou para sempre todo o potencial criativo nele contido. O relacionamento produtivo, ferido de morte, deu lugar ao relacionamento defensivo neurótico, mas, mesmo assim, como já vimos, não conteve a luta do Self Grupal para associá-los produtivamente. Salieri e Mozart, já agora afastados por um abismo de mágoa e ódio, abismo este muito mais consciente para Salieri do que para Mozart, continuaram fascinados um pelo outro e indissoluvelmente ligados até o fim. É que, seus símbolos estruturantes, que se interbuscavam, estavam carregados com o potencial criativo da genialidade, da sanidade mental e até mesmo da sobrevivência. A reintensificação permanente desta busca de associação produtiva incrementou o dinamismo defensivo, de tal forma, que lançou o Self Grupal no dinamismo psicótico, no qual, as defesas passaram da estratégia neurótica projetiva ao delírio megalomaníaco persecutório paranoide bilateral, que terminou por desestruturar as duas personalidades. Podemos imaginar, para finalizar, que Salieri resistiu muito mais do que Mozart, possivelmente, porque, estando consciente do seu ódio a Mozart, foi mais saudável, menos dissociado e se manteve muito mais longamente no dinamismo neurótico. Sua Personalidade tão desenvolvida, possivelmente, favoreceu sua passagem parcial do dinamismo neurótico projetivo para o dinamismo psicopático homicida, evitando assim a entrada franca no dinamismo psicótico, que, tão aguda e drasticamente, desestruturou a personalidade de Mozart.
Não poderia encerrar este estudo, ainda que sumário, da inveja na Psicologia Simbólica, sem relacionar sua função estruturante com os diferentes estágios estruturais-evolutivos da Consciência (BYINGTON, 1983b), ou seja, com os quatro ciclos arquetípicos (Gráfico). Se não fizermos isso, muitos aspectos normais da inveja poderão ser confundidos com a sua patologia aqui apresentada e isso indiscriminaria muito o nosso estudo. Abordarei a inveja e o ciúme, lado a lado, porque a compreensão de um facilita, pela comparação, a compreensão do outro.
A inveja e o ciúme no dinamismo matriarcal são, como todas as demais funções estruturantes, subordinadas ao desejo e ao princípio da fertilidade. Adquirem aqui conotações exuberantes, fortemente impregnadas de sensualidade. (As expressões "babar de inveja" e "morrer de ciúme" são muito pertinentes neste dinamismo). Esta carga sensual-instintiva é posta, desde o início da vida, a serviço da estruturação da Consciência, e os símbolos que expressam a inveja e o ciúme tem um papel muito importante na formação da identidade do Eu e do Outro ou Não Eu. O grande papel da imitação no dinamismo matriarcal faz com que a maneira de ser do Outro invada exuberantemente o Eu. Daí o fato da imitação e da frustração estarem aqui sempre entremeadas com o desejo, em meio a ação estruturante da inveja e do ciúme.
A importância da coluna social no dinamismo matriarcal faz com que o ciúme, por ser uma função estruturante. Essencialmente pertinente ao relacionamento interpessoal, tenha aqui um papel muito importante. O ciúme fustiga permanentemente a relação de possessividade do Eu com o Outro, clivando, como um pedreiro que trabalha na rocha, a natureza fortemente simbiótica e semiconsciente do dinamismo matriarcal. A inveja opera também basicamente dimensão interpessoal. Isto faz com que pessoas com dinamismo matriarcal dominante ou exuberante com suas personalidades sejam geralmente muito invejosas e ciumentas. A inveja investe, sobretudo sobre a indiscriminação da relação Eu-Outro, não tanto no que se refere à possessividade afetiva como é o caso do ciúme, mas, muito mais, no que diz respeito ao poder em si. O ciúme é uma função mais ligada ao amor e a inveja, ao poder.
Devido à relação Eu-Outro ser muito simbiótica no dinamismo matriarcal, a inveja age aqui, de forma importante como função estruturante, por sua capacidade de humilhar o Eu e clivar sua relação indiscriminada e onipotente com o Outro. "Eu tenho poder sobre as pessoas e as coisas", fantasia, magicamente, com frequência, o Eu no dinamismo matriarcal. Surge então a inveja e contra argumenta humilhando: "Você não tem isto, aquilo, e aquilo outro e, por isso, você é fraco e pobre. Você é muito pior do que fulano e beltrano que têm muito mais que você". A indiscriminação da relação Eu-Outro é elaborada pelo ciúme mais na dimensão afetiva. "O Outro é meu e ama só a mim", fantasia o Eu. O ciúme entra atuando basicamente não por intermédio da humilhação, e sim da rejeição: "Esse Outro não é seu e não te ama nada. Você não viu como ele olhou e falou com sicrano ou deu tanta atenção para beltrano? Esse Outro ama a eles e não a você. Em vez de possuir o amor do Outro e ser um bem-amado sempre acompanhado, você é um rejeitado, desamparado e sozinho". É a natureza da intimidade intensamente simbiótica do vínculo Eu-Outro nos símbolos que expressam o dinamismo matriarcal que torna a função da inveja e do ciúme tão pujantes nesse dinamismo e, ao mesmo tempo, faz com que a Consciência matriarcal sofra tanto de inveja e de ciúme.
Pelo fato de o Dinamismo Patriarcal ativar basicamente, por intermédio da delimitação e sublimação a partir de posições dogmáticas apriorísticas, o ciúme e a inveja são aqui alvo de grande enquadramento, exatamente devido ao seu poder mobilizador. Sua função estruturante é encaminhada para o desempenho de tarefas e, por isso, ciúme e inveja são canalizados juntos e subordinados à competição. O Eu tem ciúme de um Outro que funciona como arbitro da sua importância. A própria autoestima se torna inseparável do cargo, da tarefa e do que "os outros vão dizer". O ciúme de quem está perto do chefe subordina o amor à eficiência, pois aqueles que estão mais próximos à liderança têm aqui mais direitos e responsabilidades no exercício do poder. A inveja é aqui tão canalizada em função do desempenho da tarefa, que suas manifestações genéricas ou sensuais são delimitadas frequentemente por proibições. "Não cobiçarás a mulher do próximo". Nesse sentido, ao excluir a inveja da esposa do próximo, e, por conseguinte, da dimensão da sensualidade, intensifica-se a ação da inveja sobre as tarefas desempenhadas pelo próximo. Isto faz com que o ciúme e a inveja sejam canalizados para missões no desempenho de tarefas que irão paulatinamente aumentando o poder do Eu e o diferenciando do Outro. Devido a esta intensa delimitação, porém, restringe-se muito a atuação da inveja e do ciúme no campo psíquico. Como as demais funções estruturantes no dinamismo patriarcal, a inveja e o ciúme atuam dentro de uma malha de codificações regidas pelas polaridades certo-errado, bonito-feio, deve-não deve, bom gosto-mal gosto etc. que limitam muito sua exuberância operacional. É comum, pois, neste dinamismo a inveja e o ciúme terem que atuar escudadas em alguma justificativa. É o caso, por exemplo, do marido ciumento que arma situações estratégicas para provar a infidelidade de sua mulher e aí, então, atacá-la em nome, não da possessividade do seu ciúme, mas preservação da moral familiar. No caso da inveja atuando no dinamismo patriarcal, é comum percebermos o invejoso atuar sobre as coisas alheias escudado em alguma racionalização religiosa, política ou humanista. No caso de nossa cultura, tão dissociada e com a intensa formação defensiva patriarcal oriunda da Inquisição, estas ocorrências são ainda mais frequentes, pelo fato da inveja e do ciúme, como funções psíquicas serem codificadas em bloco como pecaminosas, indesejadas e prescindíveis no desenvolvimento da personalidade.
É no terceiro ciclo estrutural-evolutivo, ou Ciclo de Alteridade, porém, que a inveja e o ciúme atingem características extraordinárias, pois, junto com os demais símbolos e funções estruturantes, tem sua função criativa plenamente reconhecida e devidamente avaliada. Podemos mesmo afirmar que sem confrontar criativamente a inveja e o ciúme, a Consciência humana nunca chega a conhecer a alteridade, ou seja, a importância do Outro no desenvolvimento da personalidade. Confrontar a inveja e o ciúme, porém, na Consciência de Alteridade, certamente não quer dizer codificá-los aprioristicamente, como ocorre no dinamismo patriarcal, mas também não quer dizer exercê-los à vontade, como ocorre no dinamismo matriarcal. Trata-se de algo maior e mais complexo. Confrontar a inveja e o ciúme significa admitir a sua necessidade e acompanhar a sua função estruturante buscando compreender sua direção e sentido. Confrontar a inveja e o ciúme significa, pois submeter-se a sua ação em função da compreensão de sua atuação no todo processual da Psique.
No Ciclo de Alteridade, regido pelos Arquétipos da Anima, do Animus e da Conjunção (Coniunctio), o ciúme e a inveja necessitam ser, então, plenamente aceitos como funções estruturantes. "Amar ao próximo como a si mesmo", expressa um dinamismo dialético extrovertido, pregado no Mito Judaico-Cristão que significa considerar o Outro distante e abrir-se para ele (este dinamismo é dialético porque propicia a interação Eu-Outro em nível de igualdade e é extrovertido porque acentua a importância do amor ao próximo). "Virar a outra face" expressa um dinamismo dialético introvertido que significa tolerar a presença do Outro distante, ao invés, de patriarcalmente antagonizá-lo. Esta atitude modifica inteiramente o triângulo amoroso do ciúme, proporcionando uma abertura do Eu para o Outro que engloba necessariamente o ciúme como função estruturante.
O desapego ao Eu que permeia o Budismo, também impede, por intermédio de um dinamismo dialético introvertido, o antagonismo sistemático do Outro distante no triângulo amoroso do ciúme. Ao desapegar-me do Eu, abdico de qualquer posição de poder assimétrico sobre o Outro e, assim, exponho-me para confrontar qualquer força psíquica, incluindo o ciúme.
Simultaneamente a esta abertura para a vivência plena do ciúme no Ciclo de Alteridade, vamos encontrar a mesma ocorrência com relação a inveja. A abertura para o Outro e o desapego ao orgulho defensivo do Eu abrem a Consciência para avaliar e compreender a importância do Outro. Isto permite duas coisas. Do ponto de vista do Eu, a dor humilhante da inveja é muito melhor tolerada e assimilada. Do ponto de vista do Outro, o amadurecimento das uvas é plenamente admitido, por ser esta a verdade objetiva.
Com isto, podemos agora acrescentar, que Mozart e Salieri não se abriram para sua inveja em sintonia com nossa cultura, na medida em que não ultrapassaram suas defesas parentais narcísicas e não puderam transcender seu orgulho defensivo, oriundo de uma fixação no seu desenvolvimento simbólico. Arquetipicamente falando, vemos agora, também, porque a inveja destrutiva de Mozart era mais grave e inconsciente que a de Salieri. É que a inveja de Mozart, ao funcionar patologicamente em torno de um complexo paterno negativo, era mais muda do que a de Salieri por ser sociossintônica e se ocultar sob defesas parentais, basicamente patriarcais. Já a de Salieri tornou-se mais emergente por não ser tão sociossintônica, posto que atuante predominantemente dentro das defesas de alteridade. Mozart foi símbolo da Anima de Salieri no seu Processo de Individuação. Ao negá-la, Salieri desvirtuou defensivamente o poder estruturante do seu Ciclo de Alteridade e perdeu o sentido do seu desenvolvimento existencial.
No Ciclo Cósmico do desenvolvimento simbólico da personalidade, as funções do ciúme e da inveja, que, normalmente atingem seu ápice de reconhecimento e liberação no Ciclo de Alteridade, diminuem de importância cada vez mais, na medida em que a Consciência admite a interação Eu-Outro, como uma unidade com polaridade distensionada, no qual o todo é absolutamente dominante e as partes, uma simples contingência.
A inveja de Mozart e Salieri e o ciúme de Otelo permaneceram nos dinamismos matriarcal, patriarcal e de alteridade. Sua dinâmica não atingiu a problemática da Consciência Cósmica.
Referências
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Recebido em: 25/03/2019
Revisão: 31/05/2019
1 Este artigo foi escrito inicialmente em julho de 1982 para o Seminário de Psicopatologia Simbólica da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Revisto e ampliado para publicação na Revista Junguiana nº 3, 1985 p. 81-120.