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Junguiana
versão impressa ISSN 0103-0825
Junguiana vol.37 no.1 São Paulo jan./jun. 2019
A ciência simbólica. Epistemologia e arquétipo: uma síntese holística do conhecimento objetivo e subjetivo1
Symbolic science. Epistemology and archetype. A holistic synthesis of objective and subjective knowledge
La ciencia simbólica. Epistemología y arquetipo. Una síntesis holística del conocimiento objetivo y subjetivo
Carlos Amadeu B. Byington
Médico psiquiatra e Psicoterapeuta, Membro Analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. E-mail: <c.byington@uol.com.br> Site: www.carlosbyington.com.br
RESUMO
O autor analisa a unilateralidade da objetividade em detrimento da subjetividade no conhecimento científico. Contrariamente a muitos filósofos da ciência que situam esta unilateralidade como decorrente principalmente do próprio desenvolvimento científico, o autor a interpreta basicamente como uma dissociação patológica do Self Cultural do Ocidente ocorrida no final do século XVIII quando da separação ciência-religião.
Apresentando sua teoria do desenvolvimento simbólico da consciência individual e coletiva por intermédio de quatro arquétipos principais (matriarcal, patriarcal, alteridade e totalidade), o autor caracteriza a prática do método científico por intermédio do arquétipo de alteridade. Descreve cinco posições básicas para qualquer elaboração simbólica (indiferenciada, insular, polarizada, dialética e contemplativa) e assinala que o cientista e a pesquisa científica podem percorrer todas estas cinco posições na relação sujeito-objeto.
Demonstrando que o padrão de relação objetal Eu-Outro e Outro-Outro no padrão de alteridade é quaternário e que este padrão expressa a plenitude simbólica na inter-relação das polaridades durante o desenvolvimento da consciência, o autor propõe um método científico quaternário de relacionamento subjetivo-objetivo que denomina ciência simbólica e que relaciona significativamente o conhecimento objetivo e subjetivo.
A seguir, o autor descreve a metodologia da ciência simbólica e a prática de uma pedagogia simbólica. Propõe também a releitura de ensinamentos de outras culturas e de pensadores do Ocidente antes da dissociação, para que, à luz da interação quaternária, seus símbolos possam ser reelaborados, resgatando muito do saber não compreendido devido ao emprego dissociado das polaridades subjetivo-objetivo.
Concluindo, o autor assinala que esta dissociação no padrão de alteridade impede a elaboração quaternária simbólica plena e dificulta a compreensão de símbolos do Arquétipo da Totalidade no processo existencial, que prepara a consciência para a morte como vivência de transformação. ■
Palavras-chave: ciência, simbólica, padrões arquetípicos da consciência, padrão de alteridade da consciência, elaboração simbólica quaternária, causalidade mágica, causalidade demonstrativa, sincronicidade, via esotérica, via objetiva, método simbólico de pesquisa científica, pedagogia simbólica.
ABSTRACT
The author analyzes the unilaterality of objectivity to the detriment of subjectivity in scientific knowledge. Contrary to many philosophers of science who situate this sidedness as arising mainly from scientific development itself, the author basically interprets it as a pathological dissociation of the Cultural Self of the West, which occurred in the late eighteenth century at the time of the separation of science and religion.
Presenting his theory of the symbolic development of individual and collective consciousness through four main archetypes (matriarchal, patriarchal, otherness and totality), the author characterizes the practice of scientific method through the archetype of otherness. He describes five basic positions for any symbolic elaboration (undifferentiated, insular, polarized, dialectical, and contemplative), and points out that scientist and scientific research can traverse all five positions in the subject-object relationship.
Demonstrating that the pattern of object-relation I-Other and Other-Other in the pattern of otherness is quaternary and that this pattern expresses symbolic fullness in the interrelation of polarities during the development of consciousness, the author proposes a quaternary scientific method of subjective-objective relationship that denominates symbolic science and that relates significantly the objective and subjective knowledge.
The author then describes the methodology of symbolic science and the practice of symbolic pedagogy. He also proposes a re-reading of teachings from other cultures and thinkers of the West prior to the dissociation so that, in the light of quaternary interaction, their symbols can be reworked, rescuing much of the knowledge not understood due to the dissociated employment of the subjective-objective polarities.
In conclusion, the author points out that this dissociation in the pattern of alterity prevents the full symbolic quaternary elaboration and makes it difficult to understand symbols of the Archetype of Totality in the existential process, which prepares the consciousness for death as an experience of transformation. ■
Keywords: symbolic science, archetypal patterns of consciousness, pattern of alterity of consciousness, quaternary symbolic elaboration, magical causality, demonstrative causality, synchronicity, esoteric way, objective way, symbolic method of scientific research, symbolic pedagogy.
RESUMEN
El autor analiza la unilateralidad de la objetividad en detrimento de la subjetividad en el conocimiento científico. Contrariamente a muchos filósofos de la ciencia que sitúan esta unilateralidad como resultante principalmente del propio desarrollo científico, el autor la interpreta básicamente como una disociación patológica del Self Cultural de Occidente ocurrida a finales del siglo dieciocho cuando ocurrió la separación ciencia-religión.
El autor caracteriza la práctica del método científico a través del arquetipo de alteridad, presentando su teoría del desarrollo simbólico de la conciencia individual y colectiva por medio de cuatro arquetipos principales (matriarcal, patriarcal, de alteridad y de totalidad), el autor caracteriza la práctica del método científico por intermedio del arquetipo de alteridad. Describe cinco posiciones básicas para cualquier elaboración simbólica (indiferenciada, insular, polarizada, dialéctica y contemplativa) y señala que el científico y la investigación científica pueden recorrer todas estas cinco posiciones en la relación sujeto-objeto.
Lo que demuestra que el modelo de objeto relación Yo-Otro y Otro-Otro en el patrón de alteridad es cuaternario y que este patrón expresa la plenitud simbólica en la interacción de polaridades durante el desarrollo de la conciencia, el autor propone un método científico cuaternario de la relación subjetiva -objetiva que denomina ciencia simbólica y que relaciona significativamente el conocimiento objetivo y subjetivo.
A continuación, el autor describe la metodología de la ciencia simbólica y la práctica de una pedagogía simbólica. También propone una nueva lectura de las enseñanzas de otras culturas y pensadores occidentales antes de la disociación, de modo que, a la luz de la interacción cuaternaria, sus símbolos puedan ser reelaborados, recuperando gran parte del conocimiento no comprendido debido al uso disociado de la polaridad sujeto-objeto.
Concluyendo, el autor señala que esta disociación en el patrón de alteridad impide la elaboración cuaternaria simbólica plena y dificulta la comprensión de símbolos del Arquetipo de la Totalidad en el proceso existencial, que prepara la conciencia para la muerte como vivencia de transformación. ■
Palabras clave: ciencia simbólica, estándares arquetípicos de la conciencia, estándar de alteridad de la conciencia, elaboración simbólica cuaternaria, causalidad mágica, causalidad demostrativa, sincronicidad, vía esotérica, vía objetiva, método simbólico de investigación científica, pedagogía simbólica.
"O símbolo mais transcendente que existe é a verdade".
Quando percorremos os marcos históricos da ciência moderna, nos damos conta que podemos situar a reflexão sobre o conhecimento (COMMINS; LINSCOTT, 1954) em função da relação sujeito-objeto e da relação dos objetos entre si. Por mais que variem as epistemologias (HOUDE; MULLALY, 1960), estes dois parâmetros são permanentes. Existe um terceiro, inerente à metodologia do conhecimento, que também sempre foi reconhecido. Trata-se da constatação de que a busca da verdade se faz dentro de um todo imenso e desconhecido.
Examinando as maneiras como o ser humano desenvolve o conhecimento, sem refletir especificamente sobre ele, vemos uma mistura desses três parâmetros sob as mais variadas formas.
Grande parte do desenvolvimento das ciências no Ocidente, porém, se fez seguindo um caminho característico. Principalmente a partir do século XVIII, a polaridade sujeito-objeto foi considerada de modo específico, para se afastar o componente subjetivo da inter-relação dos fenômenos entre si. Isto foi feito, tanto nas chamadas ciências da natureza, quanto nas ciências humanas (BACHELARD, 1960).
O polo subjetivo foi identificado com o erro e sistematicamente afastado da observação científica, vendo-se nele apenas o que poderia atrapalhar a observação e não o que poderia contribuir para ela (MARGENAU, 1950). Criou-se, com isso, um preconceito contra a subjetividade e um gigantesco viés na epistemologia.
As dissociações mente-corpo, indivíduo-sociedade, psique-natureza e racionalidade-irracionalidade (consciente-inconsciente) são consequências da grande dissociação sujeito-objeto. Apesar de muitos historiadores considerarem esta maior ênfase no polo objetivo como uma consequência natural da avalanche de descobertas objetivas e da revolução industrial tecnológica (CAPRA, 1982). Estes fatores, ainda que muito importantes, não me parecem a causa principal da dissociação subjetivo-objetivo, ocorrida no humanismo ocidental. Como analisarei adiante, a causa principal disto foi provavelmente a ruptura ciência-religião no século XVIII e as raízes históricas deste rompimento na obra persecutória e repressiva da Inquisição. Não se tratou, pois, simplesmente da ocorrência de uma maior ênfase cultural no polo objetivo, o que poderia ser explicado por intermédio da revolução tecnológica, mas de uma dissociação patológica do Self Cultural europeu.
Acumulou-se assim um enorme saber sobre a natureza, lado a lado com um mínimo conhecimento sobre a subjetividade. É comum encontrar-se um currículo de 18 anos de estudo (que culminou com diploma universitário), durante o qual não foi estudado, durante um semestre sequer, a formação e o desenvolvimento da consciência e as vicissitudes de amar, criar e morrer.
Um engenheiro pode se especializar por mais dez anos sem nunca aprender os padrões arquetípicos que regem o pensamento. Antropólogos, sociólogos e cientistas políticos podem chegar ao mestrado e ao doutoramento após 25 anos de estudo (18 de graduação, três de mestrado e quatro de doutorado) sem saber o que quer dizer a estruturação da consciência através de símbolos a partir de relações indiferenciadas. Um médico pode se tornar professor titular de Anatomia, Fisiologia ou Clínica Médica sem ter a menor noção do que é o corpo simbólico e sua função na estruturação normal da consciência, na formação de sintomas e na relação médico-paciente. No entanto, todos estes especialistas trabalham convictos de que sabem como é o ser humano.
Os resultados produtivos deste caminho estão aí inegáveis na imensa aquisição de conhecimento expresso, entre outras coisas, pela tecnologia moderna. Este imenso acúmulo de saber ocorre, porém, com frequência, indiferente ao destino humano: fome e miséria em mais da metade do mundo, devastação e desequilíbrio ecológico em larga escala, uso alienante progressivo de psicotrópicos, envenenamento alimentar com pesticidas e corrida armamentista mundial com potencial genocida aterrador, exaustão progressiva das reservas e contaminação da atmosfera e dos mananciais.
À volta e no centro desta alienação humanista e holística, distinguimos a ignorância defensiva e orgulhosa sobre como se forma e desenvolve a consciência humana, a principal reguladora do saber e da conduta.
Nesse sentido, quero, neste trabalho, refletir sobre os limites da ciência em duas grandes fronteiras, ambas relacionadas com a negligência do estudo do polo subjetivo na relação subjetivo-objetivo.
A primeira, diz respeito ao próprio conhecimento do polo objetivo. Damo-nos cada vez mais conta de que o estudo da natureza, da macro e da microfísica, do universo dos átomos e das galáxias, em meio do continuum espaço-tempo, para prosseguir, necessita conhecer o funcionamento da psique. De fato, o aprofundamento do conhecimento de categorias básicas como gravidade, energia, matéria, eletromagnetismo e espaço-tempo implica no aumento do conhecimento da imaginação (CAPRA, 1983). Soma-se a isso a noção crescente resultante das pesquisas em psicologia da criatividade, segundo a qual, a descoberta científica, longe de depender exclusivamente da lógica, surge por vias frequentemente irracionais tais como intuições, sonhos e fantasias, ainda dificilmente compreensíveis pelo conhecimento atual (KOESTLER, 1964).
A segunda diz respeito à inter-relação ética entre conhecimento e conduta. O posicionamento do cientista diante do bem e do mal tem que acompanhar o desenvolvimento do conhecimento. O conhecimento atual da formação do caráter e dos seus distúrbios situa a ética como uma função arquetípica inata no desenvolvimento da personalidade. Nesse sentido, a defesa da separação da pesquisa e da responsabilidade moral do emprego do conhecimento adquirido é claramente uma proposta psicopática, isto é um distúrbio da formação do caráter do cientista. Isto quer dizer que a função ética é inerente à aquisição do conhecimento e que a proposta da necessidade de se submeter artificialmente a pesquisa científica à ética advém da dissociação anormal da polaridade subjetivo-objetivo.
A necessidade crescente do estudo do conhecimento objetivo como um fenômeno humano, com a participação do parâmetro subjetivo no próprio desenvolvimento da ciência a partir da teoria restrita da relatividade, publicada por Einstein em 1905, coincidiu significativamente com as descobertas de Freud e Jung sobre a natureza da psique.
O problema de trazermos a psicologia para socorrer a dissociação subjetivo-objetivo da ciência é que ela própria - também como ciência que é - nasceu e floresceu dentro desta dissociação. Assim, as descobertas geniais dos seus pioneiros foram por eles mesmos consideradas num conceito de psique identificada com o subjetivo e dissociada da natureza em sua própria essência. Como analisaremos adiante, o resgate da dissociação subjetivo-objetivo só pode ser feito por uma psicologia que perceba a energia psíquica como uma das formas de energia física.
É à luz deste enfoque que edificaremos o conceito de símbolo, como ponto de união do subjetivo e do objetivo, viga-mestra de uma teoria de ciência simbólica.
Com Freud, percebemos a estruturação da consciência a partir do inconsciente e com Jung aprendemos que o inconsciente é formado por matrizes criativas de símbolos. A união das duas obras permite relacionar dinamicamente a estruturação de padrões operativos da consciência, coordenada por arquétipos do inconsciente coletivo do início ao fim da vida através de símbolos. Isto quer dizer que a consciência opera arquetipicamente através de padrões de relacionamento independentemente da natureza dos símbolos em si.
As obras psicológicas de Freud e Jung e as pesquisas delas decorrentes - desde que pensemos a energia psíquica como uma diferenciação da energia física - permitem-nos hoje perceber o desenvolvimento arquetípico da consciência, através dos símbolos, do início ao fim da vida, como uma atualização do potencial do arquétipo central, com suas características de criatividade e centralização coordenada. Permitem-nos, também, descrever quatro ciclos arquetípicos que regem, lado a lado, esse desenvolvimento e, com isso, diferenciar quatro padrões básicos de funcionamento da consciência: matriarcal, patriarcal, alteridade e cósmico (BYINGTON, 1983).
Estas descobertas nos mostram que a atitude da consciência, com a neutralidade necessária para o exercício sistemático do método científico, coincide com o terceiro ciclo arquetípico, ou seja, com o ciclo de alteridade. Com efeito, depois de sofrer a estruturação matriarcal e patriarcal, é somente neste terceiro ciclo que a consciência ultrapassa o narcisismo inerente aos ciclos parentais e se capacita para relacionar o Ego e o Outro (bem como as coisas entre si) dialética, criativa e igualitariamente: condições essenciais para o exercício da crítica científica sistemática. Percebemos aí, nitidamente, que a permanência da ciência no estudo da relação das coisas entre si, excluindo a subjetividade, não só não é necessária para o método científico, como é mutiladora para o funcionamento da consciência (BYINGTON, 1986a).
O conhecimento da estruturação de padrões da consciência através dos arquétipos nos permite ver que o padrão de alteridade, requerido para o método científico é o mesmo padrão necessário para as mais diversas atividades humanas, tais como a atividade política democrática, a interação conjugal e familiar igualitária, a ecologia balanceada, a imunologia e a pedagogia criativa (BYINGTON, 1981).
O dinamismo de alteridade, como padrão estruturante da consciência coletiva, surge culturalmente através de expressões míticas e históricas do inconsciente coletivo como, por exemplo, no Taoismo e no I Ching (oráculo quadrimilenar chinês), na interação consulta-êxtase-revelação do Oráculo de Delphos e na relação morte-vida dos Mistérios de Eleusis, ambos na Grécia, no caminho do meio do Budismo e no "amar ao próximo como a si mesmo" do Cristianismo (BYINGTON, 1982).
O exposto nos demonstra que a prática do método científico faz parte de um estado de consciência e que, por isso, a mentalidade científica não pode ser restrita a uma mera busca da objetividade, sob pena de não compreendermos seu contexto humano. Reduzir a mentalidade científica à objetividade por ela estudada é equivalente a estudarmos as cores da natureza sem jamais nos ocorrer a necessidade da compreensão do fenômeno da visão.
A formação do Ego, seu amadurecimento e sua capacidade de relacionamento com os objetos como um fenômeno inseparável foi uma descoberta da Psicanálise e tem sido um tema extensamente estudado por sua Escola Inglesa através do que passou a ser chamado de teoria do relacionamento objetal. Nesse sentido, Melanie Klein distingue duas posições básicas do Ego, a esquizoparanoide e a depressiva. Na primeira, o Ego é basicamente "maniqueísta", pois não consegue se relacionar com os polos ódio e amor no mesmo objeto. Na segunda, isto se torna possível (KLEIN, 1952 p. 292-94).
Algo muito importante nas posições de Melanie Klein é que ela inicialmente as descreveu como fases evolutivas do Ego. Posteriormente, porém, percebeu que podiam ser adotadas diante de qualquer relacionamento objetal, em qualquer fase da vida, sempre mantendo uma relação evolutiva entre elas. Esta noção abre a teoria de formação da consciência para a noção de que o Ego, mesmo adulto, passa necessariamente por situações "menos lúcidas" para adquirir lucidez diante de novas experiências.
O psicanalista argentino José Bleger seguindo os trabalhos ingleses de Melanie Klein e de Margareth Mahler (1958) descreveu uma fase anterior à posição esquizoparanoide, como um estado simbiótico, no qual, o Ego não pode perceber o objeto por estar em fusão com ele. Denominou a esta posição gliscocárica (BLEGER, 1977).
Quando aplicamos, em vez de fases, também a noção de posição a esta situação primária do Ego chegamos, então, a três posições, ou seja, simbiótica, esquizoparanoide e depressiva.
Ora, descrevermos posições em vez de fases significa admitirmos que estes padrões de relacionamento não só se encontram na formação do Ego, como também na sua maneira de se relacionar diante de vivências novas durante a vida. É o mesmo que dizer que estas posições do Ego são arquetípicas, ou seja, são formas inatas de relacionamento, acionadas diante de determinadas situações existenciais e culturais. Resta-nos, então, procurar a ligação entre estes padrões e os arquétipos do inconsciente coletivo para compreendermos a relação do conceito de arquétipo com a teoria do conhecimento científico.
Esta aproximação entre psicologia e ciência para chegarmos à compreensão do que é ciência simbólica requer admitirmos que o Ego, diante de situações novas, passa por estados de menor discriminação através dos quais se desenvolve à medida que adquire conhecimento. Este estado de menor discriminação ou de indiscriminação do Ego não é então uma regressão, pois é inerente e, por isso, indispensável ao seu crescimento normal junto com a aquisição do conhecimento.
Dentro da filosofia da ciência objetiva, o filósofo Carl Popper referenda esta possibilidade, ao descrever as condições necessárias para o conhecimento objetivo. Segundo Popper, a mentalidade científica se abre para a verdade na medida em que admite não só o erro como parte do caminho, mas, também, o próprio saber como inadequado e imperfeito. Para Popper, a descoberta nova contribui para a verdade de duas formas. Uma quando surge e explica novos fenômenos. Outra, quando percebe o que ela ainda não explica. Nesse sentido, o estado de constatação do não saber é tão importante para a busca científica da verdade quanto o saber (POPPER, 1974). Deste modo, o correspondente psicológico à constatação do não saber é exatamente o estado de indiscriminação do Ego que lhe permite percorrer as posições simbiótica, esquizoparanoide e depressiva diante de objetos a cada nova situação de crescimento e transformação dentro do ciclo arquetípico em que o objeto ou símbolo está naquele momento sendo elaborado.
A correlação do conhecimento e dos estados de transformação do Ego com os quatro ciclos estruturantes da consciência (matriarcal, patriarcal, alteridade e cósmica) permite-nos perceber os padrões de relacionamento do Ego com objetos (Eu-Outro) de forma mais ampla que as três posições acima referidas (simbiótica, esquizoparanoide e depressiva), pois a forma como estas posições estão descritas tem três grandes limitações.
A primeira é a evidente mistura com a patologia, presente já na sua denominação. A segunda é a não percepção de que estas posições do Ego ou padrões de consciência são diferentes em cada ciclo arquetípico, apesar de em cada ciclo, passarem pelos estágios de simbiose, com indiscriminação e discriminação, a cada nova transformação do Ego. A terceira é a não percepção de que a posição depressiva, ao caracterizar o estado pleno da relação objetal, pela presença dos dois polos no mesmo objeto, permanece muito aquém de expressar a capacidade total psíquica de relacionamento.
Por isso, adoto para caracterizar os graus de diferenciação da relação Eu-Outro durante a elaboração simbólica cinco posições denominadas indiferenciada, insular, polarizada, dialética e contemplativa.
A posição indiferenciada caracteriza-se por tal fusão entre sujeito e objeto que frequentemente nem percebem que uma relação está em andamento. Esta posição geralmente dá início a toda elaboração simbólica.
A posição unilateral ou insular ocorre geralmente logo após a relação indiferenciada e aqui somente alguns aspectos das polaridades são enfatizados separadamente, como, por exemplo, nas vivências sexuais para pura satisfação pessoal, nas reações agressivas que não consideram suas consequências, nos julgamentos que dão razão a parentes e amigos independentemente do que fizeram etc.
A posição polarizada, antagônica ou conflitiva é aquela na qual ambos os polos do símbolo são discriminados essencialmente em função do seu aspecto de oposição. Percebe-se a oposição entre a saúde e a doença mental, a opulência e a miséria social, o amor e o ódio, a vida e a morte, por exemplo, mas não se percebe a relação dialética entre seus polos dentro de um todo processual.
Na posição processual ou dialética, a relação Eu-Outro ou Outro-Outro é percebida dentro de um processo no qual as polaridades interagem significativamente dentro de um todo. O termo processual provém da obra de Alfred North Whitehead intitulada "Process and Reality" e o termo dialética foi assim empregado por Marx e Engels na interpretação das transformações sociais. Esta posição não inclui a teoria política da luta de classes porque esta teoria enfatiza somente os aspectos conflitantes das classes sociais e, por isso, pertence à posição polarizada da consciência e não à posição dialética (BYINGTON, 1981).
Os termos dialética e processual, a meu ver, referem-se a relação Eu-Outro e Outro-Outro na plenitude da interação do processo de elaboração simbólica. Esta posição é aquela na qual a consciência adquire a capacidade de exercer o relacionamento quaternário das polaridades e por isso, ela opera na elaboração dos símbolos predominantemente dentro do ciclo de alteridade.
No caso do estudo dos antibióticos, por exemplo, na época anterior ao microscópio, vivíamos em relação indiferenciada com os micróbios. Algo que embolorasse ou apodrecesse fazia simplesmente parte da realidade. Com o advento do microscópio e da microbiologia, conhecemos os microrganismos e muitos dos seus defeitos nocivos e benéficos (posição insular). A partir de Fleming, descobriu-se cada vez mais que fungos e bactérias formavam uma polaridade frequentemente antagônica (posição polarizada). Foram necessários, porém, muitos anos de pesquisa com os antibióticos para se chegar à posição dialética, aprofundar o conhecimento da relação entre fungos e bactérias e descobrir o segredo da formação da resistência das bactérias aos antibióticos.
Finalmente, a posição contemplativa é aquela capaz de perceber as coisas na realidade unitária, na qual o Ego contempla o todo que o envolve em suas relações com o outro.
Estas cinco posições geralmente operam de forma evolutiva e se relacionam com os quatro ciclos arquetípicos da seguinte forma: a posição indiferenciada no mais das vezes está presente no início da elaboração simbólica em todos os ciclos. A insular é característica do dinamismo binário matriarcal, mas pode também ser exercida evolutivamente nos dinamismos patriarcal, de alteridade e cósmico. A posição polarizada é característica do dinamismo patriarcal, mas pode ser exercida evolutivamente nos dinamismos de alteridade e cósmico. A posição dialética é básica no dinamismo de alteridade, mas pode ser exercida evolutivamente no dinamismo cósmico. Finalmente, a posição contemplativa é característica do dinamismo cósmico.
Não podemos subestimar a importância da passagem do saber pelo não saber no crescimento do conhecimento objetivo, fato que aqui correlacionamos com a passagem e repassagem habitual do Ego pela posição indiferenciada durante suas transformações. Vimos como Popper se abre na filosofia para este fato, ao valorizar a função da constatação do não-saber na busca da verdade objetiva.
As dificuldades do saber e sua inter-relação com o não saber sempre existiram em qualquer reflexão sobre o conhecimento. Lembremos apenas como ilustração, como Zenão de Eléia explicou o ceticismo de Parmênides, para compreender o movimento, através da corrida entre Aquiles e a tartaruga. Para chegar ao final, Aquiles deveria chegar à metade do caminho. Mas, para atingir a metade, deveria primeiro atingir a metade desta e assim por diante, com infinitas metades, de tal forma que Aquiles não sairia do lugar e jamais ultrapassaria a tartaruga. Ou, então, o célebre mito da caverna, de Platão, no qual nosso conhecimento das coisas é comparado à visão que teríamos das sombras das coisas no fundo de uma caverna, coisas essas que jamais veríamos diretamente.
A "Crítica da Razão Pura", de Kant, ao descrever a limitação da razão, continua esta tradição, mas dela se distingue por ter sido escrita em pleno século XVIII, quando o saber científico objetivo se avolumava extraordinariamente. Nesse sentido, a argumentação de que o conhecimento racional é limitado e se apoia num a priori sensorial que constata intuitivamente o fenômeno do espaço e do tempo formou um baluarte do subjetivo contra a atitude unilateral e preconceituosa que tenta até hoje reduzir a verdade ao objetivo no pensamento científico.
Continuando Kant, a lógica de Hegel baseada na dialética dos contrários, segundo a qual a tese e a antítese geram a síntese, abre o pensamento para a interdependência ou mutualidade dos contrários, que caracteriza a consciência quaternária de alteridade. Ao chamar a atenção para o fato de que as polaridades se relacionam de tal modo igualitário e criativo e que são até mesmo intercambiáveis, Schelling contribuiu de forma importante para o tema.
Dentro da redução ao socioeconômico, o materialismo histórico aplicou a dialética dos contrários abundantemente. Além do redutivismo do cultural ao socioeconômico, sua grande limitação foi reduzir a dialética das classes sociais exclusivamente à luta de classes para fundamentar teoricamente a luta armada pelo poder do comunismo. Com isso, a interação não só conflitiva, mas também criativa das polaridades (indispensável para que qualquer relação seja realmente dialética), foi deixada de lado. No entanto, sua importância política favoreceu o estudo e a difusão da dialética, à qual deu imensa importância, a ponto de se autodenominar materialismo dialético. Engels, em sua "Dialética da Natureza", chama especial atenção para o fato de os opostos serem intercambiáveis (ENGELS, 1976 p. 7).
Sob este ângulo, podemos dizer que a Filosofia foi muito mais longe que a Psicologia, no desenvolvimento do conhecimento da inter-relação Eu-Outro, sobretudo se acrescentarmos a estes exemplos, os estudos contemporâneos da relação Eu e Tu por Martin Buber (BUBER, 1977).
No entanto, somente a relação dialética igualitária, criativa e intercambiável entre as polaridades, mesmo quando trazida para a relação Eu-Outro é insuficiente para compreender o que é o fundamento arquetípico do padrão da consciência de alteridade. Não basta sabermos que o subjetivo interage com o objetivo em igualdade de condições no conhecimento científico. É preciso percebermos que a diferenciação de ambos emerge de uma raiz comum que é o símbolo. Para isso, precisamos compreender e reformular o conceito de símbolo, pois a psicologia tradicional o identificou unilateralmente com o subjetivo, em razão da mesma unilateralidade cultural que equacionou a verdade científica com o polo objetivo do saber.
A menos que a energia psíquica inclua nas suas apresentações simbólicas uma representação igual para o subjetivo e o objetivo, para o eu e o outro, a descrição dos padrões psicológicos de relacionamento será sempre forçosamente mutilada pela dissociação psique-mundo e a psicologia nada poderá fazer para resgatar a metodologia científica desta dissociação. Mais uma vez, a Filosofia caminhou muito na frente da Psicologia.
Paralelamente ao movimento em direção ao estudo da subjetividade na Psicologia e na Física, registramos na Filosofia, através das obras de Chardin e Heidegger, duas contribuições de grande importância para a interação da polaridade sujeito-objeto, ultrapassando a dicotomia psique-mundo, em nosso século. Chardin descreve a formação da consciência sem solução de continuidade com a diferenciação da matéria (CHARDIN, 1956). Heidegger ultrapassa a dicotomia sujeito-objeto, tornando o Ser-no-Mundo a essência da ontologia e o conceito central de sua obra (HEIDEGGER, 1962). A partir destas duas obras, torna-se incorreto o estudo de qualquer símbolo expressivo da energia psíquica que exclua a polaridade subjetivo-objetivo.
O conceito de símbolo é antigo, nas ciências, tanto físicas quanto humanas, mas a partir dos estudos da formação e transformação da consciência pertencente a uma realidade psíquica não alienada do mundo, percebemos que antes das polaridades se formarem na consciência, mesmo as polaridades subjetivo-objetivo e Eu-Outro estão reunidas dentro do símbolo.
A partir desta perspectiva, o símbolo se torna o conceito central da Psicologia, pois passa a operar como intermediador simultâneo entre os processos conscientes e inconscientes, entre o individual e o cultural e entre o subjetivo e o objetivo. Nessas funções, o símbolo se torna o grande transformador da energia psíquica.
Sabemos de há muito que a consciência funciona através de polaridades. Ao descobrirmos que os símbolos contêm as polaridades, antes de estas se separarem na consciência, eles devem ser considerados a fonte de formação e transformação da consciência. Surge, assim, o conceito de símbolo estruturante, pois é o símbolo que dá origem à formação da polaridade Ego-Outro na consciência, seja este outra natureza, corpo, sociedade ou até mesmo ideias e emoções (Gráfico 2).
Assim, em função do conhecimento da estruturação da consciência, damo-nos conta de que o crescimento do conhecimento objetivo não necessita ser exclusivamente racional e pode naturalmente ser acompanhado do crescimento do conhecimento subjetivo, posto que ambos partem de uma raiz simbólica que os engloba e confunde em sua origem. A partir desse fato, não precisamos mais continuar "ignorando" que o conhecimento e a criatividade científica emergem tanto de fontes misteriosas, como fantasias e sonhos, quanto da mais pura lógica racional.
Esta função de veicular polaridades para a transformação da consciência, outorga ao símbolo a capacidade de formar a identidade do Ego e do Outro na consciência, raiz do conhecimento subjetivo e objetivo. A partir desta formulação emerge o conceito de ciência simbólica que engloba o da ciência objetiva.
A ciência simbólica amplia, assim, o conceito de identidade do Eu na Psicologia e do Outro na epistemologia da objetividade nas ciências naturais, ao estudar a formação da identidade do Eu junto com a formação da identidade do Outro na estruturação da consciência. Desta maneira, a ciência simbólica postula que todo acontecimento humano é sempre também simbólico, pois, de alguma forma, inclui consciente ou inconscientemente a vivência da polaridade Eu-Outro.
Além do conceito de símbolo, um dos principais conceitos da Psicologia Simbólica é o conceito de Self que reúne a interação dos fenômenos conscientes e inconscientes no nível individual e cultural. Ao admitirmos a estruturação da consciência coletiva pelos símbolos, junto com a consciência individual, abrimos a ciência simbólica para a antropologia e a história e passamos a compreender a separação unilateral da ciência objetiva da subjetividade, no final do século XVIII, não somente como a maravilha que o iluminismo supôs, mas também como uma grave dissociação patológica do Self Cultural europeu, pela qual o mundo inteiro haveria de sofrer.
A cultura ocidental, no que concerne a suas raízes greco-romanas e judaico-cristãs, empreendeu sua busca do desenvolvimento da alteridade em condições históricas e culturais, nas quais o padrão arquetípico patriarcal da consciência coletiva predominava nitidamente sobre o padrão matriarcal.
Sumariando ao máximo a descrição dos quatro grandes padrões arquetípicos, devemos iniciar pela descrição do padrão matriarcal que é o primeiro a estruturar a consciência. Seguem-se os padrões patriarcal, de alteridade e cósmico. Todavia, é importantíssimo aplicar a estes padrões o conceito estrutural-evolutivo, segundo o qual eles são constelados sequencialmente, mas, depois, operam lado a lado na sua função coordenadora dos símbolos estruturantes da consciência.
Mesmo sucedendo o padrão matriarcal no seu aparecimento histórico, o padrão patriarcal pode ou não ser dominante mesmo quando intensamente operativo. Na personalidade individual e nas culturas, podemos até mesmo falar de uma tipologia matriarcal-patriarcal, formando os tipos matriarcal e patriarcal dominante, que não excluem a presença dos outros dois dinamismos na estruturação da consciência.
Isto quer dizer que, ainda que frequentemente sejam intensamente conflitantes, estes quatro padrões arquetípicos de funcionamento da consciência não são mutuamente exclusivos na psique. Achar que um exclui o outro é tornar-se vítima do evolucionismo não estrutural, que tem contaminado e invalidado o emprego do conceito evolucionista em inúmeras obras de psicologia e antropologia, tornando-o instrumento do redutivismo mutilador.
O conceito de evolucionismo-estrutural é especialmente necessário para se compreender a formação da identidade na sociedade multicultural brasileira, evitando o racismo pelo etnocentrismo conceitual. Das quatro culturas e raças que compõem nossa sociedade, as culturas índias e negras são matriarcal-dominantes e as culturas japonesa e europeia são patriarcal-dominantes.
O dinamismo matriarcal caracteriza-se pelo relacionamento íntimo da polaridade consciente-inconsciente e se expressa principalmente pela afetividade, pelo corpo e pela natureza. Apesar de dominante no início da vida, é um grande erro reduzi-lo à infância. Orientado pelo desejo, pela sensualidade e pela fertilidade, este dinamismo é coordenado pelo Arquétipo Matriarcal (NEUMANN, 1955) e perdura até o final da vida. A proximidade da polaridade consciente-inconsciente propicia seu funcionamento normalmente na possessão, na magia e na vidência, erroneamente confundidas com suas manifestações patológicas na histeria e delinquenciais no charlatanismo.
As polaridades operam na consciência matriarcal bastante separadas e entremeadas de inconsciência como um arquipélago de ilhas no oceano. Isto fez com que o "seio bom" fosse descrito como incompatível com o "seio mau" na descrição da posição esquizoparanoide. Parece-me ter havido aqui uma confusão entre a patologia e a normalidade. No dinamismo matriarcal, seja na criança, seja no adulto, é perfeitamente possível a vivência do ódio e do amor com a mesma pessoa. O que acontece é que isso se passa em momentos diferentes sem que a memória necessariamente registre os dois momentos e os situe em antagonismo. Não se trata de um split, como na patologia, e sim da própria condição insular da consciência matriarcal, na qual, ora se ativa um polo, ora outro polo de uma polaridade.
A criança pode e até mesmo costuma vivenciar o amor e o ódio com sua própria mãe. O que ela geralmente não faz é, durante o amor, lembrar-se do ódio e refletir sobre como é possível amar assim alguém que, na véspera, tanto se odiou. Por isso, o padrão matriarcal é binário. O Eu se relaciona com o Outro que é polo de uma polaridade numa vivência e com o outro polo, noutra. Cada vivência matriarcal se expressa assim por uma relação Eu-Outro num contexto binário.
O padrão ou dinamismo patriarcal é coordenado pelo Arquétipo do Pai e nele, a consciência opera assimetricamente suas polaridades, devido a sua estruturação ser feita por uma delimitação intensa através de fatores dogmaticamente codificados.
Um exemplo exuberante da estruturação da consciência coletiva patriarcal é, por exemplo, o caso dos Dez Mandamentos no Velho Testamento. Sua característica autoritária é profundamente estruturante pela delimitação das polaridades, mas, ao mesmo tempo, isso torna a relação Eu-Outro desigual e incapaz de se relacionar igualitariamente. Devido a essa codificação assimétrica da consciência, o Eu ou o Outro opera geralmente de forma autoritária, não raro despótica. Esta organização abstrata e apriorística dota o dinamismo patriarcal de grande capacidade planejadora, dirigida pela busca de perfeição e sempre orientada pelo princípio da tarefa e da causalidade.
Um belo exemplo do dinamismo patriarcal é a interpretação que José dá ao sonho do Faraó, das sete vacas magras que viriam depois das sete vacas gordas. Sob a orientação de José, o Egito construiu silos por todo o país, que permitiram a estocagem da produção e a organização da economia a logo prazo. O direito patriarcal, outorgando, exigindo e dirigindo a responsabilidade individual, estriba-se na herança da propriedade privada, que enraíza a família e a sociedade numa organização de classes sociais, com uma hierarquia legal de poder e privilégios, rigidamente codificada e hereditariamente mantida e aperfeiçoada.
Devido à sua codificação apriorística e, naturalmente tradicionalista e preconceituosa, o dinamismo patriarcal é ternário. O Eu se relaciona com o outro que, de antemão, deve amar e não odiar, por exemplo. A polaridade amar está, assim, necessariamente determinando o não odiar e o Eu não pode se relacionar exclusivamente com ela.
Os símbolos do Self individual e cultural operam ao longo do eixo simbólico e sofrem em maior ou menor grau a influência das quatro principais dimensões simbólicas: socioeconômica, ecológica, corporal e ideológica-emocional, e, ao mesmo tempo, são coordenados, em maior ou menor grau, por cada um dos quatro padrões arquetípicos expressos através dos quatro principais ciclos estruturantes: matriarcal, patriarcal, alteridade e cósmico.
O padrão de alteridade estrutura a consciência individual e coletiva sempre através de polaridades, como nos demais padrões, com a diferença de que, na alteridade, a inter-relação entre as polaridades é simétrica, igualitária, dialética criativa e, até mesmo, intercambiável. Este intercambiável aqui quer dizer que o relacionamento do Eu com o Outro necessita ser igualitário a ponto de o Eu, ao menos na imaginação, poder trocar de posição com o Outro.
Um bom exemplo de alteridade é aquele governo democrático no qual governantes e governados necessitam interagir dentro da noção de liberdade, igualdade e fraternidade e, até mesmo, serem capazes de se imaginar um no papel do outro para interagirem com toda a produtividade da alteridade. Outro exemplo é o da medicina imunológica, na qual a polaridade anticorpo (defesa) e antígeno (micróbio) é estudada em sua capacidade de gerar tanto a saúde quanto a doença. Com isto, aprendeu-se que a falta de micróbios em crianças superprotegidas pode diminuir as defesas e propiciar doenças. Aprendeu-se também que o uso apropriado dos micróbios através de vacinas é a maneira mais adequada de se evitar a doença.
O padrão de alteridade estrutura a consciência através da busca do encontro e do princípio de sincronicidade que, como descreveu Jung (1952), é um princípio de conexão acausal. A consciência de alteridade busca relacionamentos em situações que se lhe acontecem. Pelo fato de não ser determinada dominantemente pelo desejo ou pela necessidade (fertilidade, sobrevivência), ela não é binária como a matriarcal. Por razão de não ser predeterminada por nenhuma categorização ideológica, ela também não é ternária, como a patriarcal. Assim, para desempenhar seu potencial estruturante, ela necessita deixar acontecer as polaridades do Eu dialeticamente com as polaridades do Outro naquele momento, o que a torna quaternária. Associo o padrão de alteridade com a função estrutural dos arquétipos da anima, do animus e do coniunctio. São estes os arquétipos cuja força é capaz de antagonizar os arquétipos parentais e diferenciar a consciência individual e coletiva durante o exercício da consciência quaternária. Assim, Beatrice, de Dante e Dulcinea, de Cervantes são imagens da anima a nível individual e coletivo, tanto quanto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade (BYINGTON, 1986b).
Alteridade, assim, não é o hieros gamos ou casamento psíquico entre o matriarcal e o patriarcal, ainda que a alteridade, entre outras coisas, o propicie. O padrão arquetípico de alteridade é uma "mutação" no funcionamento da consciência humana, que a permite operar de forma quaternária plena e isto a faz conflitar frontalmente com os dinamismos matriarcal e patriarcal para se impor e se diferenciar.
O fato de situar o exercício sistemático do método científico no padrão de alteridade não quer dizer que achemos que culturas com o predomínio da magia, que ocorre predominantemente na vigência do padrão matriarcal, sejam incapazes de ciência. Estas culturas, como mostrou Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1962 p. 3-47), mesmo praticando a magia são perfeitamente capazes de adquirir e exercer o conhecimento da natureza.
Entretanto, podemos parcialmente concordar com James Frazer (1900 p. 52-4), quando afirma que a magia é a ciência bastarda, que, por isso, confunde o conhecimento. É que a magia reúne intencionalmente a polaridade subjetivo-objetivo, em função da realização de um desejo, enquanto que a ciência procura diferenciá-las para chegar ao conhecimento.
Vejamos um ritual de magia no qual uma garrafa arrolhada é colocada à noite em baixo da cama de uma parturiente, cujo parto se retarda. À meia-noite, a rolha é retirada com o pronunciamento de palavras cabalísticas evocando o parto.
Temos que analisar a magia sob três aspectos, o objetivo, o subjetivo e o subjetivo-objetivo. Do ponto de vista objetivo, seria errado supor que o modelo imitativo mágico tenha resultados objetivos sistemáticos. Aqui, a magia é realmente a ciência bastarda e tem sido, por isso, historicamente uma das grandes razões para o uso indevido do subjetivo sobre o objetivo que tanto pode dificultar e atrasar o conhecimento.
Do ponto de vista subjetivo, porém, a magia pode ser altamente eficaz. Sua ritualização costuma propiciar um grande reforço do Ego e aumentar a autoconfiança, a coragem e a esperança a ponto de contribuir decisivamente para uma melhoria extraordinária da performance.
O terceiro aspecto importante do fenômeno da magia é a ocorrência, não sistemática, mas possível, da influência direta do subjetivo sobre o objetivo na qual situamos, dentre outros, os fenômenos descritos como levitação e materialização. Esta dimensão ainda é praticamente desconhecida na ciência moderna e seu progresso dependerá de uma das maiores, senão a maior de suas descobertas que será o controle da energia psíquica. A partir daí, poderemos registrar e estudar "laboratorialmente" todos os fenômenos psíquicos como a imaginação, as emoções, os sonhos e o próprio pensamento.
A descoberta do controle da energia psíquica desvelará a essência do simbólico e permitirá estudar cientificamente a relação subjetivo-objetivo. Nessa perspectiva, ela será uma descoberta com um significado para nossa espécie ainda maior do que o da energia atômica. Com ela, possivelmente, poderemos registrar os sonhos, fantasias e pensamentos mais íntimos de pessoas à distância, até mesmo sem o seu conhecimento. Devido ao estado de imaturidade psicológica em que se encontra ainda a humanidade, porém, apesar de o cientista almejá-la, o humanista deseja ardentemente que ela tão cedo não se realize.
Jung descreveu muitas vezes o quatérnio como símbolo expressivo da totalidade psíquica. O fato de a relação Eu-Outro no dinamismo de alteridade ser quaternária permite que a elaboração da situação preencha a consciência plenamente com conhecimento, tanto objetivo quanto subjetivo. A causalidade pode ser então empregada para a demonstração do fato, mas a estruturação da consciência se faz pela sincronicidade. O julgamento de que a causalidade é o princípio básico do conhecimento científico, como fez, por exemplo, Comte no Positivismo (COMTE, 1954), é errôneo e contribui para o desconhecimento do funcionamento quaternário da consciência na mentalidade científica plena
Exemplifiquemos com a descoberta da penicilina por Alexander Fleming (Figura 1). As placas de agar-agar estavam semeadas com bactérias e um descuido do técnico do laboratório permitiu que elas se contaminassem com fungos. O raciocínio patriarcal ternário, regido essencialmente pela causalidade, determinaria que Fleming repreendesse o técnico, mandasse jogar fora aquelas placas e semeasse outras, livres de fungos. Assim procederia o técnico, mas não o cientista. Aberto para a revelação permanente do desconhecido, o cientista deixou o erro acontecer criativamente. Ao abrir-se para a sincronicidade, pôde ver que aquele "erro" continha também um acerto. A contaminação poderia talvez ser usada para o combate às bactérias nas infecções. Mesmo sem ter chegado ao uso clínico, o que foi feito posteriormente por Chain e Florey, sua descoberta inaugurou a era dos antibióticos.
O raciocínio triangular predeterminado causalmente estabelecia que o Eu deveria se relacionar com uma placa de agar-agar sem fungos. Caso tivesse fungos, estaria contaminada.
A causalidade preconcebida excluiria forçosamente o 4 e teria bloqueado o insight, mas a sincronicidade permitiu na consciência de Fleming a abertura para o relacionamento com o fator 4, a placa com bactérias também com fungos. O raciocínio causal ternário caracterizaria o técnico. A elaboração consciente quaternária pela sincronicidade consagrou o cientista (Prêmio Nobel, 1945).
O funcionamento quaternário da consciência de Fleming, dentro do princípio da sincronicidade, estrutura a consciência, transformando-se a nível das polaridades Eu-outro (sujeito-objeto), consciente-inconsciente e indivíduo-coletividade.
A nível do Outro, descobre-se que o fungo penicillium, até o momento maléfico pelo seu poder de contaminação, torna-se agora também benéfico quando seu poder é usado no combate a bactérias. A nível do Eu, descobre-se ou reafirma-se que o eu "errado" pode ser cientificamente genial.
Com relação à polaridade consciente-inconsciente, verifica-se que seu não enquadramento apriorístico na causalidade pode ser muito mais criativo que a sua predeterminação. Já com referência à polaridade indivíduo-sociedade, aprendemos pela sincronicidade quaternária que um indivíduo errando isolado no seu laboratório, sem nenhuma preocupação social específica naquele momento, pode contribuir significativamente para o prolongamento da vida de toda a humanidade durante as gerações futuras.
Ao exercermos a alteridade plena na consciência quaternária, percebemos que é uma dissociação absurda equacionarmos a mentalidade científica e o crescimento da ciência objetiva com a eliminação sistemática do polo subjetivo. Na realidade, o contrário deveria ocorrer. À luz do funcionamento da consciência quaternária, mesmo numa pesquisa da maior objetividade como o tratamento do câncer, por exemplo, ao invés da preocupação com a eliminação da subjetividade, deveríamos aguçá-la ao máximo.
Imaginemos esquematicamente como esta proposta poderia se realizar. Paralelamente às dosagens químicas e às experiências biológicas sujeitas ao mais rigoroso controle objetivo, teríamos, simultaneamente, a parte subjetiva ativada registrando-se as fantasias e os sonhos dos pesquisadores. A meditação, as técnicas simbólicas expressivas, a vidência e as consultas oraculares, como o Oráculo de Ifá, o Tarot e o I Ching, por exemplo, fariam parte do trabalho dos pesquisadores, tanto quanto suas atividades em função, especificamente, da pesquisa em andamento e não de seus problemas pessoais, que seriam atendidos, em caso de necessidade, por um analista no departamento pessoal. A equipe seria formada por pesquisadores objetivos e sensitivos e o laboratório convidaria para seminários, tanto cientistas especializados, quanto videntes para estabelecer suas diretrizes de pesquisa.
Neste caso, poderíamos realmente falar em pesquisa científica, pois a consciência do pesquisador seria treinada para gerar quaternariamente. No entanto, apesar de este parecer o óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, por que é que à luz de nossa tradição científica universitária isto soa como blasfêmia? Se omissão também pode, às vezes, ser catalogada como criminosa, parece-me um crime contra a criatividade humana o fato de as universidades excluírem os videntes de suas pesquisas científicas e das sociedades evoluídas, e perseguí-los como curandeiros marginais em vez de perceber, educar e encaminhar adequadamente seus dons psicológicos.
O tratamento marginalizado dos sensitivos expressa de forma exuberante a exclusão das funções tipológicas da intuição e do sentimento de nossa pedagogia que deu lugar a uma verdadeira tirania do pensamento e da sensação. Este desequilíbrio tipológico da pedagogia, predominante, sobretudo no curso secundário e universitário, por si só, já é uma mutilação sistemática da psique individual e coletiva em nossa cultura (JUNG, 1961).
Nesse sentido, a busca de uma identidade nacional na sociedade multicultural brasileira, cuja diferenciação coincide com a mudança de sua capital para o planalto central, não deve se ater ao reconhecimento da individualidade e riqueza de suas quatro grandes culturas formadoras, mas também cultivar e exercer o que tem delas de mais expressivo através da consciência quaternária.
Não basta louvar a sanidade ecológica das tribos indígenas. É preciso que a consciência coletiva do país respeite a natureza e lide com ela como os índios o fazem. Não basta admirar e incentivar a arte popular influenciada pelas culturas negras. Por que não introduzir nas universidades a participação da música, da dança e do corpo no ensino? Não basta louvarmos a minúcia, a dedicação e a técnica da cultura japonesa. Por que não introduzirmos nas fábricas o congraçamento diário entre dirigentes e dirigidos? Por que não transformarmos o bem-estar cotidiano do operário num problema espiritual do empresário, como faz a indústria japonesa? A pedagogia do oprimido no terceiro mundo tem sido frequentemente reduzida à revolta e à luta de classes, enquanto que as forças criativas quaternárias presentes e negligenciadas são do mesmo modo ignoradas. Nestes casos, até mesmo louváveis lutas sindicais são dirigidas alienadamente para reivindicar para si modelos empresariais alienados, consumistas e humanisticamente empobrecedores da classe operária.
A dissociação subjetivo-objetivo na metodologia científica se instituiu no Self Cultural europeu no final do século XVIII e permaneceu camuflada até hoje por uma grande defesa racionalista autointitulada de iluminismo.
A separação da Igreja Católica do Estado pôs fim ao poder secular do Santo Ofício e da Inquisição, encerrando uma longuíssima era de perseguição na Europa. Apesar de a Igreja ter oficializado a Inquisição do século XII e principalmente do século XIII em diante, a perseguição religiosa às variações da fé acompanharam a institucionalização do Cristianismo desde o seu início. De fato, já no ano 385 a.C., isto é, no próprio século IV em que se deu a conversão do Império Romano e a sua institucionalização, o espanhol Prisciliano foi declarado herege e condenado à morte em nome de Cristo.
Se situarmos o início das ciências modernas no Renascimento a partir do século XVI até a Revolução Francesa (1789), temos três séculos em que o pensamento científico emergente foi severamente perseguido e cerceado principalmente nos dois primeiros.
Fazer ciência e ser vigiado e ameaçado de morte tornaram-se sinônimo no Self Cultural europeu católico. O confisco e a queima de livros eram habituais. A prisão, a tortura e a morte de pensadores, às vezes, do maior valor, como no caso de Giordano Bruno, mantinham a comunidade científica sob ameaça permanente. O patrulhamento ideológico lançado contra Darwin pelo Bispo de Wilberforce, em 1860, que teve lugar na famosa sessão da Associação de Ciências de Oxford e pôde ser brilhantemente combatido por T. Huxley, nos séculos anteriores, teria ocorrido provavelmente num tribunal eclesiástico e provavelmente terminado com a condenação de Darwin, mesmo em se tratando de um país protestante como a Inglaterra.
Por isso tudo, ao adquirir o controle das universidades e do saber no século XVIII, os cientistas inauguraram uma nova era na qual a liberdade, o saber, a tolerância, a criatividade, a inteligência e a reflexão progressista foram identificadas com a objetividade, enquanto que a subjetividade ficou identificada com a fé, a irracionalidade, a intolerância, a prepotência, a superstição, a ignorância e a burrice.
Ora, como vimos, a ciência, ao expressar o padrão da consciência de alteridade, configuraria não apenas um maior conhecimento do mundo, mas um novo padrão de funcionamento da consciência coletiva, isto é, um novo humanismo. Assim, os filósofos do século XVIII como, por exemplo, os enciclopedistas precursores da revolução francesa, estavam num caminho criativo quando denominaram este acontecimento cultural de era das luzes, de iluminismo, pois com isso reconheciam, ainda que intuitivamente, que o novo humanismo configurava um novo padrão arquetípico de consciência. No entanto, ao equacionarem este humanismo com a objetividade e a intolerância religiosa passada com a subjetividade, racionalizaram defensivamente os fatores dissociativos do Self Cultural europeu que acabaram conduzindo à sua dissociação no final do século XVIII e formando o seu gigantesco Complexo de Frankenstein.
Esta dissociação foi tão grave e afetou de tal forma o humanismo europeu que dela sofremos até hoje, sobretudo porque o extraordinário desenvolvimento industrial e tecnológico da Europa e, posteriormente, dos Estados Unidos e da União Soviética, encarregou-se de exportá-la para o resto do mundo, levando de roldão inúmeras culturas que dela não padeciam. A industrialização do terceiro mundo no século XX tornou a exportação dessa dissociação culturalmente devastadora. Culturas mais antigas como as da Índia e do Japão estão aguentando este impacto, mas culturas mais recentes e frágeis como muitas da Ásia, da África e das Américas estão sendo levadas no torvelinho. Diante dessa dissociação, a divisão atual política econômica do mundo entre países capitalistas e comunistas empalidece, sobretudo porque tanto o capitalismo quanto o comunismo têm em suas raízes a dissociação subjetivo-objetivo da consciência de alteridade no Self Cultural europeu.
A perseguição cultural traumatizou de tal forma o humanismo da ciência que a dissociação subjetivo-objetivo é até hoje mantida como algo natural. Basta dizer que um filósofo como Carl Popper, considerado por muitos o maior filósofo da ciência do nosso século, em sua extensa obra não percebe esta dissociação como tal. É difícil para filósofos e cientistas compreenderem esta ideia de uma dissociação do humanismo europeu, posto que ela está baseada na patologia do Self Cultural e da consciência coletiva, conceitos novos para a psicologia e a sociologia. Ao confrontarem esta dissociação, evidente para todos, os filósofos tendem a enraizá-la no dualismo de Platão e Aristóteles ou no de Descartes. Acho isso um engano que confunde o dualismo normal com o patológico.
O pensamento dualista não deixa necessariamente de ser unitário, sobretudo quando se mantém dialético. De fato, a dualidade na unidade é a base da consciência quaternária de alteridade que opera dentro de um todo integrado. Isto é completamente diferente da dissociação que separa as polaridades e as mantém separadas e inacessíveis por mecanismos de defesa do Self cultural (BYINGTON, 1986c).
A psicologia moderna é muito responsável por não ajudar filósofos e cientistas a compreenderem a diferença entre dissociação (patológica) e dualidade (normal), posto que descreve a formação da consciência normal por splits e defesas que não diferencia conceitualmente a patologia (BYINGTON, 1984).
As consequências desta dissociação são inúmeras e foram exportadas para o mundo junto com o desenvolvimento industrial e tecnológico. Entre estas consequências, figura a pretensão de que se pode prescindir da subjetividade para se diferenciar a objetividade (Figura 2).
Outra consequência é que inúmeros métodos de vivência simbólica entre as quais a intuição, a imaginação, a premonição e os sonhos, ligados desde tempos imemoriais à busca de conhecimento, estão bloqueados na universidade. A própria formação da consciência através dos símbolos é omitida no ensino "superior" e os fatos objetivos são transmitidos com se a psique aprendesse exclusivamente através da objetividade. O resultado tem sido uma esterilização crescente da pesquisa universitária, detectada universalmente pela pouca criatividade de suas teses, acompanhada de um esquecimento quase total do que se aprende em tantos anos de estudo. É evidente que o desperdício deste procedimento para o indivíduo e o estado é incomensurável. Para se manter esta alienação, convencionou-se escrever teses e analisar descobertas científicas, depurando-se as análises de qualquer subjetividade, de forma a manter a aparência fictícia de que a objetividade por si só se gera e se mantém.
Outra consequência é que pessoas com subjetividade muito desenvolvida - como os sensitivos - são impedidas de se aproximar do saber objetivo e condenadas à marginalidade cultural. A criatividade da imaginação e da intuição perseguida durante a Inquisição como herética continuou marginalizada, durante a era científica, no esoterismo e no ocultismo. Gênios como Helena Blavatsky foram impedidos de partilhar o seu saber com os centros de pesquisa vigentes, pelo fato de predominar a vidência em seu método. Com isso, fundaram-se escolas esotéricas de saber como a Teosofia que formam ilhas marginalizadas dentro da cultura.
Isto levou um grande número de pessoas a confundir o esotérico com o objetivo. Não percebendo e diferenciando os componentes subjetivos dos objetivos no conhecimento esotérico, estas pessoas tratam o conhecimento intuitivo e mediúnico como objetivo. Ao invés de percebê-lo como simbólico e submetê-lo a um escrutínio quaternário para diferenciá-lo, passam a afirmar o subjetivo como se objetivo fosse e, com isso, desmoralizam o conhecimento esotérico.
Estas pessoas podem ser honestas e bem-intencionadas, mas estão privadas do conhecimento da prática da objetividade, em parte por culpa do método científico-cultural dissociado que excluiu de sua prática diária a subjetividade. Intuem fenômenos e passam a descrevê-los por vezes, com tantos detalhes objetivos, que se tornam ridículos perante a comunidade (CHURCHWARD, 1972). No caso de serem psicologicamente mal estruturadas, a confusão do subjetivo com o objetivo pode lhes conduzir a um quadro mental patológico.
Ainda outra consequência é a barreira cultural que impede ainda hoje a ciência do Ocidente de receber a fertilização cruzada de outras culturas como, por exemplo, culturas antiquíssimas como as da Índia e da China. Ciências como as da yoga e da acupuntura, no mais das vezes, permanecem como práticas ocultas, praticadas como curiosidades sem poder ser estudadas e melhor compreendidas. É que a yoga e a medicina chinesa, não sofrendo das dissociações subjetivo-objetivo e mente-corpo como a medicina ocidental, não encontram uma relação comparativa e de mútua fertilização.
O estudo das contribuições de outras culturas pela ciência simbólica permite a busca da compreensão de suas descobertas objetivas discriminando-as das subjetivas. Afora a aproximação intercultural que isso traria, novos caminhos seriam abertos para a ciência objetiva somente pelo reconhecimento da validade desta abordagem tão diferente.
Dentro da cultura europeia, a ciência simbólica permite e estimula uma releitura das obras de cientistas e pensadores anteriores à dissociação subjetivo-objetivo no final do século XVIII, como fizeram Jung (1952) e Pauli (PAULI, 1955) com as obras de Paracelso e de Kepler, respectivamente.
Nesse sentido, os padrões arquetípicos da consciência, pelo fato de existirem em todos os indivíduos e culturas, podem servir de instrumento para se compreender diferenças, empreender pesquisas e armazenar conhecimento, valorizando-se igualmente subjetivo e o objetivo num todo holístico.
Uma consequência natural de uma teoria de ciência simbólica é, por conseguinte, a pedagogia simbólica. A discriminação quaternária dos símbolos dentro do padrão de alteridade traz um aprendizado da inter-relação criativa subjetivo-objetivo que caracteriza a teoria do desenvolvimento simbólico comum da consciência individual e coletiva. Dentro de uma pedagogia simbólica é praticamente impossível o ensino objetivo alienado que desconhece o subjetivo e ignora o processo de formação e amadurecimento da consciência.
Ao valorizar igualmente os dinamismos matriarcal e patriarcal, a pedagogia simbólica busca sempre um equilíbrio entre a vivência corporal e a abstração no aprendizado. Lado a lado com o pensamento e a sensação, são valorizados também igualmente a intuição e o sentimento. Com a vivência simbólica, o ensino se torna iniciático e a transferência criativa adquire papel central na relação professor-aluno.
A prática quaternária da consciência de alteridade, como já mencionei, não engrandece somente a ciência, pois se trata de um padrão de relacionamento dialético que se aplica a todas as atividades humanas. Sua vivência leva a elaboração dos símbolos ou vivências às suas últimas consequências e prepara a consciência para operar no quarto ciclo arquetípico, que é o ciclo cósmico. Neste ciclo, a consciência opera de forma unitária. Em vez de contrapor os polos Eu-Outro de formas variáveis como nos outros três padrões, aqui a consciência opera integrando o Eu e o Outro num sentido global que insere o significado da vida no cosmos formando um todo inseparável.
Desenvolvida extraordinariamente em civilizações muito antigas como as da Índia, da China e do Tibete, a consciência cósmica tem sido descrita, principalmente no Oriente, mas também no Ocidente, como uma consciência além do Eu e da própria consciência (supraconsciência). Isto ocorre principalmente quando identificamos o Eu e a consciência com os dinamismos matriarcal e patriarcal. Quando entendemos, porém, a diferença entre os quatro padrões arquetípicos da consciência, podemos perfeitamente admitir que o Eu e a consciência continuam existindo na consciência cósmica, só que de uma forma unitária com o cosmos, característica esta que os diferencia muito dos demais padrões. Apesar de a consciência cósmica poder ser ativada e se desenvolver muito cedo na vida, sobretudo em determinados indivíduos, sejam cientistas, como Einstein, ou místicos, como Ramana Maharshi, este ciclo de consciência é aquele que nos integra no todo e, assim fazendo, nos prepara para a morte.
A dissociação subjetivo-objetivo no Ocidente não paralisou somente a integração da industrialização e do desenvolvimento científico-tecnológico num todo humano. Ao centralizar a problemática político-social no regime econômico, esta dissociação impede ideologicamente a busca do regime social-democrático, mesmo quando a ela se dedica. Ao bloquear, através da formação universitária, a vivência cultural quaternária do conhecimento objetivo e da própria vida, a dissociação subjetivo-objetiva impede a vivência simbólica plena de alteridade, condição essencial para a prática da consciência cósmica. Isso nos mutila a sabedoria em vida e nos impede o preparo para a morte. Como na lenda do holandês errante de Wagner, vagamos pelo desconhecido, condenados por nosso próprio orgulho a não saber morrer. Ao descobrir a energia atômica, chegamos à posse do fogo mais íntimo da matéria. Incapazes de integrar tamanho segredo de forma construtiva na psique individual e coletiva jazemos, como Promoteu, acorrentados na onipotência de nossa objetividade dissociada. Enquanto somos devorados pela culpa das consequências crescentes de nossa insanidade, buscamos ainda no escuro, a integração holística da genialidade científica dissociada, cuja vinda se confunde cada vez mais com a esperança de sobrevivência de nossa espécie. ■
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Recebido em 25/03/2019
Revisão em 22/05/2019
1 Conferência pronunciada no I Congresso Holístico Internacional. Brasília, março 1987, publicada no livro "O Novo Paradigma Holístico", São Paulo, Summus Ed., 1991. Publicado originalmente na Junguiana 5, 1987, p. 5-21.