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Junguiana
versão On-line ISSN 2595-1297
Junguiana vol.40 no.3 São Paulo 2022
Entre a ordem e a desordem: leitura do conto "O papel de parede amarelo" de Charlotte Perkins Gilman
Between order and disorder: reading the short story "The yellow wallpaper" by Charlotte Perkins Gilman
Entre el orden y el desorden: la lectura del cuento "El empapelado amarillo" de Charlotte Perkins Gilman
Marcia Moura Coelho
Psiquiatra, membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica de São Paulo (SBPA-SP) e filiada à International Association for Analytical Psychology (IAAP). e-mail: marciamcoelho@uol.com.br
RESUMO
O artigo parte de dois textos da escritora Charlotte Perkins Gilman, o conto O papel de parede amarelo, de 1892 e o depoimento Porque escrevi O papel de parede amarelo, de 1913. Neste, a autora relata sua experiência prévia e insatisfatória com um tratamento médico que inspirou a criação do conto. A escolha desta narrativa literária se fez, não somente por suas qualidades, como também pela intersecção com o tema da desigualdade de gênero na saúde mental e no tratamento dirigido à mulher, direcionado pela ideologia de gênero. A partir do contexto histórico, aponta-se o surgimento da psicologia profunda e de perspectivas psicológicas no tratamento das doenças mentais e a importância do desenvolvimento do pensamento junguiano em diálogo com outras áreas de conhecimento, como estudos sociais, feministas e literários. Afora o aspecto histórico e social, o artigo faz uma leitura psicológica do conto, ressaltando aspectos e temáticas conflitivas e símbolos alquímicos presentes nesta narrativa que, passados mais de um século, continua nos assombrando.
Palavras-chave: psicologia analítica, literatura, gênero, saúde mental, Charlotte Perkins Gilman.
RESUMEN
El artículo se basa en dos textos de la escritora Charlotte Perkins Gilman, el cuento El empapelado amarillo, de 1982 y la afirmación Por qué escribí El empapelado amarillo, de 1913. En este, la autora relata su experiencia previa e insatisfactoria con el tratamiento médico, que inspiró la creación del cuento. La elección de esta narrativa literaria se hizo, no sólo por sus cualidades, sino también por la intersección con el tema de la desigualdad de género en la salud mental y en el trato dirigido a las mujeres, pautado por la ideología de género. Desde el contexto histórico, se señala el surgimiento de la psicología profunda y las perspectivas psicológicas en el tratamiento de la enfermedad mental y la importancia del desarrollo del pensamiento junguiano en diálogo con otras áreas del conocimiento, como los estudios sociales, feministas y literarios. Más allá del aspecto histórico y social, el artículo hace una lectura psicológica del relato, destacando aspectos y temas conflictivos y símbolos alquímicos presentes en esta narración que, después de más de un siglo, continúa obsesionándonos.
Palabras clave: psicología analítica, literatura, género, salud mental, Charlotte Perkins Gilman
Para as assombrações, desnecessária é a alcova, Desnecessária, a casa - A mente tem corredores que superam Os espaços materiais. Mais seguro é encontrar à meia-noite Um fantasma, Que enfrentar, internamente, Aquele hóspede mais pálido1
Emily Dickinson (BENDER, 2007, p. 57).
Introdução
Casarões antigos e isolados exercem um estranho fascínio, permeiam o imaginário coletivo e surgem como imagem recorrente em sonhos, pesadelos, livros e filmes carregados de mistério, suspense ou terror. Com o passar dos anos, os elementos tipicamente fantasmagóricos e sobrenaturais dessas histórias transformaram-se, ganhando colorido psíquico e espaço interno na mente humana, de forma que a "casa assombrada" divide protagonismo com a personagem "assombrada" por seus demônios e conflitos inconscientes, em luta consigo mesmo, com o mundo ao redor e com o risco de enlouquecimento.
"O papel de parede amarelo", conto publicado em 1892 pela norte-americana Charlotte Perkins Gilman, parte deste tema e sua leitura permite mais que o desfrute de um bom conto fantástico, entrando também na seara da literatura feminista ao introduzir questões importantes quanto ao papel social e ao "adoecimento mental" das mulheres. Escritora, jornalista e militante do nascente movimento feminista americano, a autora escreveu o conto inspirada em uma experiência pessoal prévia, conforme consta em seu depoimento "Porque escrevi O papel de parede amarelo?" publicado em outubro de 1913 na revista The Forerunner, e que tratarei mais adiante.
A limitação aos papéis sociais da mulher, como filha - esposa - mãe, confinada ao mundo "do lar", e a repressão social à expressão espontânea de anseios que extrapolam essa limitação podem levar ao enlouquecimento? A escolha deste conto se faz aqui, não apenas por suas qualidades literárias, mas também pela intersecção com o tema da desigualdade de gênero na saúde mental e no tratamento dirigido à mulher, direcionado pela ideologia de gênero. Afora esse relevante aspecto histórico e social, meu foco é a leitura psicológica do conto, ressaltando temas e símbolos presentes nesta narrativa que passados mais de um século, continua nos assombrando.
A mulher aprisionada
A narradora, uma jovem mulher, seu marido John, sua cunhada e governanta Jennie, seu bebê e a babá mudam-se temporariamente para um casarão antigo e isolado, distante da cidade. Ela sente-se doente e debilitada, tem um estranhamento com a casa que gera dúvidas quanto aos benefícios que a temporada de verão nesse imóvel pode lhe proporcionar. Mas fica desarmada, de certa forma impotente diante das objeções de John, seu esposo e médico, descrito por ela como alguém extremamente prático e racionalista, que não acredita que ela esteja doente:
Se um médico altamente conceituado, o próprio marido da pessoa, garante a amigos e parentes que realmente não há nada demais com ela, só uma depressão nervosa-temporária - uma ligeira tendência histérica -, o que se há de fazer? (GILMAN, 2007, p. 19).
A mulher tem recomendações explícitas para manter-se em casa, tomar vitaminas, fazer caminhadas leves, manter repouso sem trabalhar e sem dar tanta atenção à sua condição de doente. Ela está proibida de escrever, porém escreve às escondidas, pois gosta e presume que "escrever aliviaria a pressão das ideias e descansaria". Esses escritos furtivos dão corpo ao conto, narram em primeira pessoa a experiência da personagem não nomeada, em sua temporada de verão e "descanso" na casa, e assim, como leitores, temos acesso ao ponto de vista da personagem em relação ao seu mundo interno e externo. A questão é que, desde o início, a personagem sente-se desconfortável com a casa e com as limitações do tratamento imposto, e a impossibilidade de diálogo associada ao estado de fragilidade do puerpério geram cada vez mais angústia e inquietação. A temporada de três meses na casa, e particularmente, no quarto com o papel de parede do título resulta em progressivo agravamento do estado mental da protagonista, ao contrário da cura pretendida.
A condição de submissão e aprisionamento da personagem em um modelo patriarcal de comportamento conjugal e social é revelada em vários momentos do conto. Diante da incapacidade do marido em escutar e valorizar suas queixas e preferências, um crescente sofrimento, permeado de impotência, depressão e culpa, vai se instalando na narradora, como nos trechos seguintes: "John ri de mim, é claro, mas isso já é esperado num casamento" (p. 19); "Ele nem acredita que eu esteja doente! O que posso fazer?" (p. 19); "John não sabe quanto eu realmente sofro. Ele sabe que eu não tenho motivo para sofrer, e isso o satisfaz" (p. 21); "Claro que é só nervosismo. Pesa tanto sobre mim o fato de ser incapaz de cumprir meu dever de alguma maneira!" (p. 22).
A mulher aprisionada em papéis sociais, conjugais e psicológicos é o tema central do conto. A situação da personagem que vive simultaneamente maternidade e adoecimento e os limites determinados como cuidados médicos são o adicional de impacto que delimitam o tempo e o espaço da narrativa, intensificam as condições de sofrimento psíquico da personagem/narradora, criando ritmo e tensão à narrativa. Em camadas de leituras, podemos extrair múltiplas nuances e significados do conto e, como comentarei a seguir, alguns aspectos que considero importantes ressaltar.
Submissão, impotência e anulação
Aspectos conflitantes surgem aos poucos e ganham força com a narrativa em primeira pessoa. Lembremos que o conto é o diário proibido da personagem sem nome e seu tom oscila, como que acompanhando ondas emocionais e estados de humor. Entre comentários ora impotentes e resignados, ora mais afiados e irônicos, vamos entrando no mundo de uma mulher em grande carga de sofrimento, cujos anseios e opiniões são prontamente rechaçados pelo marido. Constela-se uma situação conflitante entre John, esposo e médico, racionalista e pragmático e a esposa, imaginativa e sensível. Esta inicialmente tenta conversar, expor suas impressões sobre seu tratamento, sobre a casa e o quarto que gostaria de ocupar, sobre o que intui ser o melhor para sua situação, enfim. Mas não há espaço de diálogo nesse casal, regido pelo poder do esposo/médico, que tende a considerar a criatividade e imaginação da esposa algo potencialmente patológico e que, com sua lógica patriarcal, inibe e intimida uma possível posição antagônica da esposa. Esta, por sua vez, sofre com sua instabilidade emocional, sente-se impotente, tornando-se mais ambivalente em relação ao marido, o que propicia sentimentos de culpa e confusão; afinal como pode estar sendo cuidada com tanto carinho e ainda assim recusar?
Às vezes eu sinto uma raiva irracional de John. Eu não costumava ser tão sensível. Acho que é por causa desse problema nervoso [...] Ele é muito cuidadoso e carinhoso, dificilmente deixa que eu fique sem atenção especial. Eu tenho uma lista de prescrições para cada hora do dia; ele toma todo o cuidado comigo, o que faz com que me sinta ingrata por não valorizá-lo mais (p. 20).
Seguindo assim, o conflito fica silenciado e a esposa, intimidada: "É tão difícil falar com John sobre meu caso, porque ele é tão sensato e me ama tanto" (p. 27).
É uma comunicação conjugal comum em situações de duplo vínculo 2 e outros tipos de manipulação psicológica, em que a voz dominante do esposo/médico vem permeada de ambiguidades, duplas mensagens, ameaças sutis:
John disse que se eu não melhorar mais rápido, ele vai me mandar para o dr. Weir Mitchell no outono. Mas eu não quero ir de jeito nenhum. Tive uma amiga que esteve sob os cuidados dele antes e me disse que ele é como John e meu irmão. Até pior! (p. 24).
Confinada na casa, a esposa deve ficar no tal quarto com o terrível papel de parede amarelo, que foi anteriormente quarto de bebê e de brinquedos. Não pode ir à cidade nem receber amigos. No feriado de 4 de julho, quando recebem visitas, ironicamente o Dia da Independência dos Estados Unidos, ela deve se resignar aos convidados do marido e não os que desejaria rever. Há uma perda de autonomia e infantilização da personagem, que se torna mais insegura e desorientada diante de um tratamento que a leva à anulação total - ela deve ficar sem trabalhar, sem imaginar, sem escrever, sem se relacionar com outras pessoas externas à casa.
O conflito no papel
Afora a escrita proibida do diário e as frustradas tentativas de conversas com o marido, a atenção da personagem dirige-se ao quarto com o papel de parede amarelo. Ao passar horas deitada, pela fadiga crescente e estimulada pelo marido a dormir "tanto quanto possa", a personagem observa o papel, suas formas desalinhadas, sua cor "repelente". O que começa como fantasia, algo que a faz se lembrar das brincadeiras infantis, cresce em intensidade, adquirindo um tom sombrio. A narradora passa a viver uma vida dupla, a esposa obediente que cumpre as orientações do marido médico sob a vigilância da cunhada, e, às escondidas, a mulher obcecada por um papel de parede amarelo. A duplicidade se manifesta também no papel de parede, que se transforma conforme a luz do dia e da noite, sol e lua. Ao luar, o arabesco florido do papel transforma-se em grades que aprisionam a mulher por trás do papel.
O papel de parede despertou a atenção da personagem desde o começo da história, e pode-se observar uma transformação no papel e na relação da personagem com ele, que se dá de forma dinâmica, não tão separadamente como aqui descrevo, com aspectos que se interpenetram, simultaneamente - rejeição, atração, fusão e revelação, destruição e libertação:
a.Inicialmente há rejeição ao papel de parede, aversão até - é interessante que a personagem se refere a ele com expressões mais ácidas e sarcásticas: o papel de parede é descrito como "horrendo", de uma cor "odiosa", "repelente", "doentia", com um desenho que é uma "tortura". É como se todo seu potencial de revolta se concentrasse contra o papel de parede. Mas também nota algo estranho nele.
b.Da estranheza surge interesse e atração, quando percebe que o papel tem um desenho de fundo, revelado por uma certa luz, e descobre "uma figura estranha e amorfa, que parece caminhar às escondidas por trás desse desenho (padrão) idiota que aparece à frente" (p. 24).
c.O movimento seguinte é de cumplicidade e fusão, quando nota peculiaridades no papel que só cabem a ela decifrar, o que lhe deixa mais animada: "tem coisa nesse papel que ninguém sabe e saberá, só eu" (p. 26). "Agora eu tenho alguma expectativa, algo para ansiar, para observar. Estou comendo melhor, e ando mais calma" (p. 29).
d.Revelação - A figura amorfa por trás do padrão é uma mulher que durante o dia fica "contida, quieta" e durante a noite rasteja por trás das grades do padrão de desenhos do papel. Aos poucos, além de rastejar, essa mulher balança as grades. "Ela está o tempo todo tentando trespassá-las" (p. 31).
e.Destruição e libertação - o papel precisa ser destruído para libertar aquela mulher que rasteja e toda uma legião de mulheres aprisionadas no papel. Ao não conseguir arrancar todo o papel, chega a pensar em pular da janela pelo desespero, porém desiste.
Assim que a luz da lua bateu na parede e aquela pobre criatura começou a rastejar e balançar o desenho, eu levantei e fui ajudá-la. Eu puxava e ela balançava, eu balançava e ela puxava, e antes do amanhecer nós arrancamos metros e metros de papel (p. 32).
Eu não gosto nem de olhar pela janela - há tantas mulheres rastejando, e rastejam tão rápido. Será que todas elas saíram do papel de parede como eu? (p. 33).
A vida psíquica no papel
O papel propicia um campo de fluxo imaginativo para a personagem em uma interação que reanima sua vida psíquica, de forma que a partir dessa fusão mulher - papel de parede, as fronteiras entre mundo externo e interno tornam-se mais permeáveis, menos nítidas e as imagens inconscientes da mulher ganham vida por trás do papel de parede. Ela tentou lidar objetivamente com sua situação incômoda, mas os diálogos com o marido a deixaram exausta. Em situações desse tipo, a tendência é de que ocorra um refluxo, um recolhimento, a energia psíquica volta ao inconsciente, como acontece com o fluxo de um rio que segue seu curso e, ao encontrar barreiras, retorna. Ocorre uma regressão, mas a energia psíquica não se esgota, segue buscando caminhos, mesmo que por vias tortuosas, perigosas e/ou doentias. A protagonista encontra brechas para fantasiar livremente no papel de parede, tentando manter-se viva. E o papel de parede torna-se tela fértil para suas projeções. A linguagem do mundo inconsciente é outra, simbólica, metafórica, revelando aspectos da vida interior da personagem, e o que teria uma função decorativa transforma-se em prisão, em alusão direta ao papel decorativo (e aprisionador) da mulher-esposa-mãe-do lar na sociedade patriarcal.
Podemos compreender alguns elementos do conto como símbolos do conflito vivido pela narradora, entre marido e esposa, masculino e feminino e, ao mesmo tempo, como conflitos entre consciente e inconsciente da personagem. A luz da lua, com seu simbolismo ancestral ligada ao feminino e ao inconsciente, e a luz do sol, ao masculino e à consciência, fazem uma curiosa dança de luz e sombra e participam das projeções e revelações no papel de parede.
A sombra como duplo, inicialmente uma "figura estranha e amorfa", aos poucos se revela prisioneira por trás do padrão externo do papel. A figura arquetípica da sombra, aquilo que não está na consciência, que geralmente nos assombra e/ou provoca reações desagradáveis, aparece aqui como um duplo da personagem que a luz do dia revela uma mulher insatisfeita com as condições impostas de tratamento, mas esforçada ao nível do esgotamento mental, presa à persona - o papel de esposa e mãe bem-adaptada às convenções patriarcais.
Interessante notar que a palavra inglesa pattern, utilizada pela autora no texto original, em algumas traduções em português: "desenho", perdeu o duplo sentido que a palavra padrão traz: estampa do papel e condição da personagem aprisionada em um padrão social e em um tratamento padronizado, repetido, coletivo, que segue regras sociais e médicas, mas não lhe servem. O duplo inconsciente, a mulher por trás do padrão que é uma prisão, rasteja e submete-se ao aviltamento da prisão no papel. E o padrão do papel de parede é torturante, impossível de ser seguido ou decifrado, expressão aguda do conflito: "Ele bate na sua cara, joga você pra baixo e pisa em cima. É como um pesadelo" (p. 28).
O amarelo "doentio de enxofre" do papel não é um amarelo vivo e brilhante, o que nos leva a concluir que este padrão está estragado, envelhecido, com cheiro de podre: "A cor é repelente, quase revoltante, um amarelo sujo, reprimido, estranhamente desbotado pela lenta deslocação da luz do sol. É de um laranja insípido e lúrido, em alguns lugares, e de uma cor doentia de enxofre em outros" (p. 21). Esse amarelo "estranho" a faz pensar em "coisas velhas e defeituosas, coisas amarelas e más" (p. 30). O cheiro sutil e persistente exalado pelo papel invade a casa, acompanha a personagem e lhe impregna o cabelo, deixando-a perturbada: "Com esse tempo úmido ele é medonho, e quando acordo de noite eu o sinto pairando sobre mim. No começo ficava perturbada. Pensei seriamente em tocar fogo na casa - só para atingir o cheiro" (p. 30).
Tais descrições assemelham-se ao processo de apodrecimento, como o que observamos na natureza, nas folhas que passam por várias tonalidades de amarelo até a sua decomposição. E o amarelo tão odiado do papel vai exalando seu cheiro de enxofre, característico de coisas em estado de putrefação, e associado ao perigo e ao mal. No simbolismo alquímico, aplicado aos processos psíquicos, esse "amarelo enxofre" indica o apodrecimento da obra, a putrefação que precede a morte. Em seus textos alquímicos, Jung considera que "o enxofre é uma substância espiritual ou anímica de importância universal" (JUNG, 2012, par. 132). Mais interessante, ele fala de uma força inconsciente impulsionadora na consciência, "que vai desde o simples interesse até a possessão propriamente dita" correspondente ao efeito inflamável do enxofre:
[...] essa força é constituída, de uma parte, pela vontade, que concebemos muito melhor como um dinamismo subordinado à consciência, e de outra parte, pelo "estar-sendo-impelido", que é uma motivação involuntária, ou um "estar-em-movimento", que vai desde o simples interesse até a possessão propriamente dita. O dinamismo inconsciente poderia corresponder ao sulphur (enxofre), pois o "estar-sendo-impelido" é o grande mistério de nossa vida humana, o cruzamento da nossa vontade consciente e de nossa razão, por uma entidade inflamável, que ora se manifesta como incêndio destruidor, ora como calor a dispensar a vida (par. 146).
Os alquimistas consideravam o enxofre como um dos atributos habituais do inferno e do diabo, e Jung fala de uma natureza paradoxal do enxofre e dos processos inconscientes de transformação, em que veneno e remédio podem se originar da mesma matéria.
O desfecho do conto acontece no ápice de um processo em que a personalidade consciente da personagem se funde totalmente com seu duplo inconsciente, em evidente surto psicótico. A destruição foi total? Haverá restauração do eu consciente em novas condições?
Para além da ficção: a história do tratamento
O texto "Porque eu escrevi o papel de parede amarelo" foi publicado na edição de outubro de 1913 da revista mensal The Forerunner, produzido pela própria Charlotte Perkins Gilman. Neste relato, a escritora conta ter procurado um "famoso especialista" em doenças nervosas no terceiro ano de contínuo colapso mental com tendências melancólicas. Ela afirma ter passado pela "terapia do descanso" prescrita por ele em 1887, e que este, ao percebê-la fisicamente bem, a enviou para casa "com o solene conselho de 'viver a vida mais doméstica possível', 'ter apenas duas horas de vida intelectual por dia' e, enquanto vivesse 'nunca mais tocar em caneta, pincel ou lápis novamente'"3 (GILMAN, 2011). Após três meses obedecendo as instruções médicas, relata ter chegado próxima da ruína mental e, seguindo sua própria percepção e com o apoio de uma amiga, abandonou o tratamento e retomou seu trabalho e a vida normal: "o trabalho, no qual se encontram a alegria e o crescimento e o serviço, e sem o qual a pessoa é um indigente e um parasita - e acabei recuperando certa medida de poder" (GILMAN, 2011).
Ela descreve a satisfação de ter escrito o conto com seus acréscimos ficcionais, revela, com bom humor, não ter tido alucinações ou qualquer objeção a suas "decorações murais" e afirma ter enviado o conto para o médico que quase a enlouqueceu. Sua satisfação cresceu ao saber da valorização de seu conto por outros médicos alienistas, e pela ajuda e estímulo que representou para outras mulheres. Seu maior ganho, porém, foi saber anos depois que o célebre médico admitiu para amigos ter alterado seu tratamento para neurastenia a partir da leitura do conto.
O famoso especialista que Charlotte Perkins Gilman procurou foi o Doutor Weir Mitchell, que tem seu nome e sobrenome citado no conto como ameaça sutil do marido John de levar a esposa a ele caso ela não melhorasse logo. Neurologista, ele descreve seu método no livro "Fat and blood", a terapia do descanso (rest cure), que implicava repouso no leito, superalimentação, massagem e estimulação elétrica dos músculos. Weir Mitchell desenvolveu o método a partir de sua experiência como médico do exército, tratando veteranos da Guerra Civil traumatizados por ferimentos e/ou outras experiências na batalha e, posteriormente, passou a aplicá-lo em doenças nervosas, como neurastenia e histeria. O diagnóstico de neurastenia surgiu na segunda metade do século XIX, nos Estados Unidos, e foi descrito por um neurologista novaiorquino, que entendia a doença como uma exaustão nervosa em parte provocada pelo desgaste da vida moderna, em parte por predisposições orgânicas ou genéticas. A nova designação da doença atravessa o Atlântico e ganha a Europa, assim como o tratamento proposto por Weir Mitchell. Respeitado em seu tempo, ele realmente fez sucesso com seu método, que beneficiou muitos de seus pacientes, homens e mulheres, e teve ampla aceitação, inclusive na Inglaterra, onde consta que seu método de rest cure foi aplicado no tratamento de Virginia Wolf, que também o detestou (STILES, 2012).
Independentemente dos prós e contras do método criado pelo Dr. Weir Mitchell, interessa-nos aqui a diferenciação que ele fazia no tratamento aplicado a homens e o aplicado a mulheres, prática que hoje seria considerada sexista. Se para as mulheres a restrição de atividades era rígida e mesmo na alta, eram desestimuladas para a vida intelectual e profissional, os pacientes homens podiam escolher o método, entre o Rest cure mais flexível ou West cure ou "Cura do Oeste", que incluía viajar para o oeste e envolver-se em atividades típicas da região e de cowboys: laçar gado, cavalgar, caçar em companhia de outros homens. Beneficiaram-se desse método personalidades como o futuro presidente dos EUA Theodore Roosevelt, o pintor Thomas Eakins e o poeta Walt Whitman (STILES, 2012). Esse modelo gênero-divergente foi amplamente difundido no tratamento da neurastenia, que teve seu auge no final do século XIX e início do século XX, e seguia uma ideologia patriarcal marcada pela vinculação da atividade intelectual e do trabalho como atribuição dos homens e a vida familiar e doméstica como atribuição das mulheres (ZORZANELLI, 2010).
O modelo médico mais mecanicista e organicista era dominante nessa época, tanto em relação ao diagnóstico quanto ao tratamento das doenças nervosas, e mesmo métodos como o do Dr. Mitchell, considerados relativamente avançados para a época, ainda priorizavam o restabelecimento físico e não psicológico. A psiquiatria dinâmica, como definida por Henri Ellenberger (1981) em seu clássico "A descoberta do inconsciente", vai se estabelecer de forma mais consistente na virada do século XIX para o século XX, com as ideias de Pierre Janet, Freud, Jung e Adler, segundo Ellenberger (1981). A partir daí, a cura pela fala, como ficou conhecida a psicoterapia, tornou-se progressivamente um método de tratamento reconhecido e difundido, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Vale lembrar que em 1909, período situado entre a publicação do conto e o depoimento de Charlotte Perkins Gilman, Freud e Jung participaram de palestras na Clark University, em Worcester, Massachusetts, junto do renomado William James, a convite de Stanley Hall, o primeiro Presidente da American Psychological Association (APA).
Entre a ordem e desordem
Voltando ao conto e ao desfecho da personagem, então a loucura é a saída? A transgressão desmedida? Em situações de conflito psíquico, o equilíbrio consciente/ inconsciente e a estrutura da identidade consciente nos dão parâmetros para avaliar as condições de suporte de uma crise. A capacidade para assimilar e encontrar sentido nos conteúdos que irrompem na consciência é fundamental na avaliação e repercussão de um transtorno mental, e o ideal é que possa ocorrer com auxílio profissional. O surto que irrompe na personagem do conto é o portal para uma possível saída do aprisionamento - da frustração e impotência à fúria para libertar a mulher do papel. O papel velho e apodrecido fede a enxofre e deve deixar de existir para que surja o novo. A mulher está aprisionada nos papéis e padrões sociais, sob a vigilância do marido e da cunhada/governanta. E por ela mesma, em conflito com sentimentos e desejos dissonantes provavelmente pela internalização do modelo de opressão social. O duelo inicial entre sombra e persona, ou entre as incômodas imagens projetadas no papel de parede e a persona relativamente adaptada ao marido médico e aos papéis sociais, transformou-se em aliança e defesa dos anseios libertadores vindos do inconsciente.
O papel é destruído, e dele saem inúmeras mulheres que rastejam e exploram o jardim, e a narradora no quarto com o papel de parede amarelo sente-se livre por "rastejar por aí como eu quiser." O rastejar, chocante e louco aos olhos da consciência, pode indicar regressão a uma condição infantil ou, algo mais arcaico, animal, que no texto, vem junto da essencial liberdade de escolha: "como eu quiser". O final em aberto com o surto da personagem provoca o suspense e nos inquieta. Não sabemos como a personagem evolui dessa crise. A regressão psicótica indica o início de uma nova consciência ou a desorganização mental estabelecida em forma de doença? A destruição do papel foi remédio ou veneno?
A personagem escreve e dialoga consigo mesma, o que poderia fornecer um prognóstico favorável para elaborações futuras. Dialogar com as imagens do inconsciente, como Jung propôs, poderia criar um caminho de compreensão das imagens inconscientes para a consciência com base em uma linguagem simbólica, mítico-poética. Em seu primeiro livro, Símbolos da Transformação, publicado em 1912, um ano antes de Charlotte Perkins Gilman publicar seu depoimento, Jung analisa os escritos de uma jovem norte-americana, Miss Miller, que havia sido tratada pelo médico Theodore Flournoy, e demonstra as bases do que posteriormente nomearia de arquétipos e de inconsciente coletivo. No livro, Jung formula sua compreensão psicodinâmica inclusive para casos graves, propondo que a psicoterapia nesses casos poderia inibir ou diminuir a dissociação da psique, ou mesmo melhorar o prognóstico em casos limítrofes (JUNG, 1995, par. 682). No epílogo do livro, Jung afirma o quanto a assimilação do inconsciente pode proteger contra o "perigoso isolamento" que sente alguém diante de uma "porção incompreensível de sua personalidade". O isolamento pode levar à psicose e "quanto mais se alarga a brecha entre consciente e inconsciente, tanto mais iminente a cisão da personalidade" (JUNG, 1995, par. 683).
Essa compreensão vai depender da abertura da consciência para assimilar e encontrar ressonâncias nos conteúdos inconscientes, tecendo então novos significados. Nessa perspectiva de transformação, novas formas são criadas a partir de antigas, a psique é um processo dinâmico em constante transformação e para se alcançar alguma nova ordem, transita-se por uma situação de desordem, criação-destruição-recriação - o processo de individuação passa por um ciclo de morte e renascimento, a morte de um eu antigo para um novo eu mais em harmonia com o Self.
Papel/papéis
A personagem tenta salvar-se pelo diálogo com o esposo/médico, infrutífero, e pela escrita de um diário que imprime seu tom de isolamento e angústia crescente e dá forma ao conto. O conto "O papel de parede amarelo" expressa o trabalho literário da autora em busca da criação de uma história de ficção baseada em sua experiência pessoal. Ela tira a mulher do papel na ficção e põe a mulher no papel pela escrita literária:
Eu escrevo um pouco, a despeito deles, mas fico exausta por precisar ser tão dissimulada para não ter de enfrentar uma oposição feroz (GILMAN, 2007, p. 19).
Às vezes acho que se eu estivesse bem o suficiente para escrever um pouquinho isso aliviaria a pressão das ideias e me faria relaxar (p. 23).
Eu fico cansada fazendo isso, acho que vou tirar um cochilo.
Não sei por que escrever isso.
Eu não quero.
Eu não consigo.
E eu sei que John acharia absurdo. Mas eu tenho que dizer o que sinto de alguma forma - me dá um alívio tão grande!
Mas o esforço está ficando maior do que o alívio (p. 25-26).
Da destruição do papel sufocante, surge a libertação de inúmeras mulheres que saem e rastejam durante o dia, como crianças explorando um novo mundo, e a narradora rasteja passando por cima do marido que cai abatido por sua "loucura".
Podemos pensar o sexismo como um complexo cultural em seus efeitos danosos à psique coletiva. Thomas Singer considera que o complexo cultural surge de experiências históricas "que se enraizaram na psique coletiva de um grupo e nas psiques dos membros individuais de um grupo" (2019). Este complexo cultural continua vivo e atuante "como uma sociologia interior" e expressa valores arquetípicos para a coletividade (SINGER, KAPLINSKI, 2019). Infelizmente algo ainda cheira mal e nos acompanha na clínica, na sociedade, no noticiário, como o cheiro de enxofre do papel de parede amarelo no conto. Há algo de podre e estrutural no que se convencionou chamar de cultura do patriarcado, que como um complexo vivo debate-se e não quer morrer. A analista Demaris S. Wehr (2015), em seu livro "Jung and feminism: liberating archetypes", afirma que:
o sexismo e seu companheiro psicológico na mulher, a opressão internalizada, ainda são tão difundidos em nossa sociedade que qualquer teoria e política psicológica que não leve esses fatos em consideração e se oponha a eles implacavelmente não é uma terapia libertadora para as mulheres (p. 100).
Muitos estudos têm sido realizados contrapondo as teorias feministas e o pensamento junguiano, e cito aqui o trabalho da analista Susan Rowland, que trouxe preciosas revisões da teoria junguiana tendo o feminismo e as questões de gênero como eixo, em seu livro "Jung: a feminist revision" (ROWLAND, 2002). Nesse livro, ela reitera que, mesmo considerando a herança de motivos patriarcais, a psique é arquetipicamente andrógina e inevitavelmente desafia o patriarcado.
Conclusão
Retomando a questão inicial quanto às limitações impostas pela cultura patriarcal como fonte de adoecimento mental, podemos concluir que este é um fator presente na clínica, gerador de inúmeras situações de sofrimento, que vão desde quadros mais leves a traumas graves e surtos psicóticos. Novas formas de compreensão e tratamento para o sofrimento mental surgiram desde o período descrito no conto e a escuta e o acolhimento da pessoa em sofrimento fazem, ou deveriam fazer, parte da assistência básica a essas pessoas. Nos estudos e pesquisas em saúde mental, especialmente nas escolas médicas, a interação com outros campos de estudos humanos, sociais e políticos é fundamental, inclusive para evitar práticas discriminatórias em todos os níveis de atenção humana. No campo da psicologia analítica, há muito por se fazer e repensar em um mundo em permanente mudança. Nesse sentido, novos estudos e revisões teóricas vêm trazendo importantes contribuições para o pensamento junguiano, em diálogo com outras disciplinas.
No que diz respeito a desigualdades sociais em questões de gênero, passado pouco mais de um século, vivemos grandes transformações. O movimento feminista, que teve Charlotte Perkins Gilman como ativa militante em sua época, teve grandes e inquestionáveis conquistas, e o movimento de mulheres em defesa de liberdade e direitos continua forte e necessário diante de uma cultura patriarcal que apodrece, mas não morre, persistindo em formas ainda hoje grotescas e violentas.
O conto O papel de parede amarelo, de 1892, e o texto Porque eu escrevi o papel de parede amarelo, de 1913, mostram que arte, ciência e transformações sociais podem caminhar alinhadas em fértil diálogo, como constata Charlotte Perkins Gilman em seu ensaio. Jung considerou a importância de uma função social da arte na educação do espírito da época ao resgatar do inconsciente coletivo imagens necessárias para a consciência coletiva (1991, par. 130). Considero a literatura, em sua força criativa e transformadora, uma preciosa aliada na formação do analista, estimulando a conexão com nossa complexa humanidade, antecipando e problematizando questões. O conto termina com um desfecho que sugere a fúria destruidora dos papéis impostos por uma cultura patriarcal e sexista que subjuga e aliena as mulheres. Fúria rebelde, determinada a romper todos os papéis aprisionadores, mesmo que o ato de libertação possa ser visto como loucura. Loucura essa que atende, neste caso, um propósito criativo, pois Charlotte Perkins Gilman propõe a escrita como arma poderosa para a luta.
Referências
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Recebido: 02/08/2022
Revisado: 03/12/2022
1 One need not be a chamber to be haunted,/ One need not be a house;/ The brain has corridors surpassing/ Material place./ Far safer, of a midnight meeting/ External ghost,/ Than an interior confronting/ That whiter host.
2 O duplo vínculo é um dilema comunicativo devido à contradição entre duas ou mais mensagens. A tese introduzida pelo antropólogo Gregory Bateson e equipe (1956), considera que, em condições recorrentes, tais padrões de comunicação e interação em relacionamentos familiares, podem ser fator gerador de transtornos mentais, inclusive a esquizofrenia e outras psicoses. Comunicação e linguagem passaram a ser objetos de estudo e de novas propostas terapêuticas na área da saúde mental.
3 Tradução do inglês feita pela autora.