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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.23 no.2 Rio de Janeiro  2011

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

De perto, de longe, de fora e de dentro: a formação do observador a partir de uma experiência com o método Bick1

 

Close, far, outside and inside: the training of the observer from an experience with the Bick method

 

 

Fabio Scorsolini-CominI; Angelita Zamberlan NedelII; Manoel Antônio dos SantosIII

IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro
IIPrefeitura Municipal de Içara
IIIUniversidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Este relato de experiência teve por objetivo analisar o processo de formação do estagiário de Psicologia como observador da relação mãe-bebê-família, seguindo o método Bick de observação. A perspectiva fenomenológica foi utilizada como marco teórico para a análise dos dados. Foram analisados extratos do diário de campo, que continha os registros das observações sistematizadas pelo estagiário. A análise temática dos relatos escritos focalizou as vicissitudes da atividade de observação notadamente em dois momentos de realização do estágio: na 1ª e na 20ª observação. Desses momentos, descreveram-se os movimentos de aproximação, distanciamento, reaproximação e finalização do estágio. Isto possibilitou a emergência de questionamentos acerca do fazer profissional e do estabelecimento dos vínculos com a família e seus membros, bem como do impacto dessas experiências para a vivência do observador em formação. A observação foi destacada nesta experiência como um instrumento que expande as potencialidades do futuro profissional clínico, ampliando a capacidade de continência do estagiário para fazer frente às adversidades da vida, inclusive em situações de intenso impacto psíquico.

Palavras-chave: relações mãe-criança; método Bick; métodos de observação; identidade profissional; estágio.


ABSTRACT

This experience report aimed to examine the training process of the psychology student as an observer of the mother-baby-family relationship, following the Bick method. A phenomenological perspective was used as a theoretical framework for data analysis. We analyzed the notes of the field diary that contained the records of systematic observations by the trainee. The thematic analysis of written accounts focused on the vicissitudes of the activity of observation especially at two different moments of the training: the first and 20th observation. From this selection of moments, the movements of approximation, isolation, reconciliation and conclusion of the training were described, which enabled the emergence of questions about the professional work and about the establishment of ties with the family and its members, as well as the impact of these experiences for the student. The observation was highlighted in this experiment as a tool that expands the potential of future clinical professional, expanding the containment capacity of the trainee to face the adversities of life, including in situations of intense psychological impact.

Keywords: mother-child relationships; Bick method; methods of observation; professional identity; traineeship.


 

 

Introdução

A gravidez e a maternidade são eventos singulares. Eles circunscrevem períodos do desenvolvimento marcantes na história de vida das gestantes e futuras mães, assim como também da família e da rede social constituída pelas pessoas que as acompanham (Pergher & Cardoso, 2008). No percurso de construção do conhecimento psicanalítico, a valorização das vicissitudes que envolvem a formação de vínculos afetivos dirigiu a atenção dos psicanalistas para a observação da relação mãe-bebê-família. A despeito das inúmeras particularidades que diferenciam as distintas posturas teóricas em psicanálise, essa relação é tomada como fundante no processo de constituição da subjetividade, assim como é considerada como o princípio de construção da família (Freud, 1994 [1933]; Klein, 1969; Winnicott, 1993 [1965]).

Considerando a importância atribuída à investigação da relação mãe-bebê, recursos metodológicos foram desenvolvidos para explorar esse campo. Dentre os procedimentos disponíveis destaca-se o método de observação preconizado por Esther Bick, que foi introduzido em 1948 junto à Clínica Tavistock, em Londres. Trata-se de um método criado para a observação da díade mãe-bebê em termos das primeiras vinculações estabelecidas com o objetivo de compreender a dinâmica desse relacionamento. De acordo com Oliveira-Menegotto, Menezes, Caron e Lopes (2006), Esther Bick foi pioneira ao criar um método que permite uma vivência prática nos primeiros anos de formação de psicoterapeutas infantis, auxiliando estudantes em formação a compreenderem mais claramente a experiência infantil de seus pacientes. Atualmente, o método vem sendo largamente utilizado na formação de psicoterapeutas de orientação psicanalítica de adultos e crianças (Caron, Fonseca, & Kompinsky, 2000; Martini, 2000; Meira & Nunes, 2005; Rustin, 2006; Spessoto, 2007). Além disso, os conhecimentos adquiridos, ao longo dos anos de observação, por profissionais e estudantes de todo o mundo permitiram novas aplicações no campo da profilaxia e terapêutica do vínculo entre os bebês e seus pais (Bick, 1987 [1968]; Farias & Tucherman, 1988; Mélega, 1997; Syminton, 1997; Oliveira-Menegotto, Lopes, & Caron, 2010; Vivian, 2006).

O método preconiza que o relato da observação material, feita in loco, na residência da família, esteja disponível para as discussões em seminários. O relato deve ser escrito em linguagem comum, de uso cotidiano, próxima à realidade das situações vividas. Para sistematizar os registros utiliza-se o diário de campo (Roese, Gerhardt, Souza, & Lopes, 2006), no qual constam anotações detalhadas das observações relativas às atividades do bebê e das pessoas à sua volta, incluindo os diálogos ocorridos. Posteriormente, podem ser acrescentados, para discussão nos seminários, os sentimentos dos participantes, juntamente com as impressões do observador. Todas as emoções provocadas no observador e no grupo constituem material para ser discutido e amadurecido de forma compartilhada.

Sendo assim, o método corporifica-se em três momentos distintos e inter-relacionados, conforme descrito por Bick (1964, 1987 [1968]): (a) observação em si, momento em que o observador não toma notas e tenta não interferir na dinâmica da família, embora a sua presença possa ser disparadora de emoções e comportamentos no ambiente e nos seus membros; (b) relato da observação, sistematizado logo após a retirada do observador do cenário observado e registrado em linguagem corrente, sem necessidade de interpretações ou de uma leitura científica da observação conduzida; (c) supervisão por meio de seminários, momento de compartilhar o trabalho, que pode acontecer em grupo constituído por professores, pesquisadores, profissionais e alunos em formação.

Em seu método de observação, Bick (1987 [1968]) recomenda que, inicialmente, o observador adote uma atitude de espera, sem levantar pré-concepções. A regra número dois é que o observador permaneça apenas como receptor, deixando-se simplesmente preencher-se pela realidade observada, abdicando da tendência de solicitar mudanças, ou seja, buscando não interferir deliberadamente na situação observada – embora se admita que algum grau de interferência sobre o contexto é inevitável e inerente ao próprio ato de observar. Desse modo, o que o método preconiza é que o observador não seja de algum modo intrusivo. Devido às razões apontadas, a regra número dois tem sido cada vez mais relativizada, inclusive na prática de estágio ora investigada, que destaca o caráter participante da observação na relação mãe-bebê-família.

Segundo Bion (1991 [1962]), a experiência viva da observação é importante componente na formação do olhar clínico no contexto do treinamento do psicanalista. Assim, é possível fazer um paralelo com a formação profissionalizante em Psicologia: o estudante/estagiário, ao estabelecer contato prolongado com um bebê e sua família, pode relacionar seu aprendizado às situações clínicas posteriores e com as teorias aprendidas (Pergher & Cardoso, 2008).

Pensando no treinamento do observador durante o curso de graduação, estudos têm sido realizados como forma de compreender o papel da observação na formação do futuro psicólogo. Esses estudos abordam não apenas a observação em si como também as formas de registro e análise do caso, a postura diante da observação, os aspectos psicoterapêuticos envolvidos na atividade de observar e as orientações que dão suporte à reflexão dos futuros profissionais em reuniões de supervisão clínica (Maraschin, D’Agord, & Santos, 2006; Meira & Nunes, 2005; Oliveira-Menegotto, Menezes, Caron, & Lopes, 2006; Ribeiro, Tachibana, & Aiello-Vaisberg, 2008; Spessoto, 2007).

A construção do papel do observador constitui-se como uma possibilidade de aprendizado (Bion, 1991 [1962]) que destaca a observação como um instrumento que expande as potencialidades do futuro profissional clínico, ampliando sua capacidade de continência para fazer frente às adversidades da vida, inclusive situações de intenso impacto psíquico (Maraschin et al., 2006; Ribeiro et al., 2008). Por esse motivo, a observação de bebês se mostra cada vez mais um instrumento fundamental para a formação dos profissionais da saúde (Farias & Tucherman, 1988; Pergher & Cardoso, 2008).

Algumas universidades no Brasil oferecem treinamentos e práticas de estágio profissionalizante utilizando o método Bick, tanto como forma de propiciar um envolvimento com o método como para possibilitar uma visão mais aprofundada e empírica acerca do desenvolvimento infantil na primeira infância e da dinâmica familiar face ao nascimento e crescimento do bebê. Essa interface com a prática tem possibilitado a formação tanto de observadores quanto de pesquisadores na área (Pergher & Cardoso, 2008; Vivian, 2006).

Considerando o contexto descrito e a escassez de estudos nacionais que abordem a utilização do método em questão no marco da formação profissionalizante em Psicologia, este relato de experiência tem por objetivo analisar o processo de formação do estagiário como observador da relação mãe-bebê-família, de acordo com o método proposto por Bick (1987 [1968]). Pretende-se, com este trabalho, discutir em que medida a atuação como observador, ancorada nos pressupostos que sustentam o método, pode contribuir para o processo de formação profissionalizante do futuro psicólogo.

 

Método

Experiência investigada: trata-se de um estudo longitudinal, descritivo e exploratório, conduzido dentro de um enfoque de pesquisa qualitativa apoiada no referencial teórico da Psicologia Fenomenológica (Forghieri, 1993). Optou-se pela adoção dessa estratégia metodológica por possibilitar uma compreensão particular do objeto de estudo a partir da percepção da pessoa (o estagiário) que vivencia uma dada situação (a função de observador, segundo o método Bick). Sendo assim, este é um estudo de caráter fenomenológico acerca de uma experiência de estágio profissionalizante empregando o método Bick de observação.

Referencial teórico: embora o método Bick seja baseado na abordagem psicanalítica (Bick, 1964), a perspectiva fenomenológica foi utilizada como marco teórico neste estudo. Objetivou-se analisar o processo de formação do observador na perspectiva do aluno inserido em um estágio profissionalizante de um curso de Psicologia. A escolha de tal referencial deveu-se ao fato de que a fenomenologia busca apreender o fenômeno, que na situação investigada no presente estudo é tudo aquilo que se mostrou para o observador em seu processo de observação ancorado no seu propósito de formação profissional. A concepção de fenômeno abarca três aspectos: existe uma coisa; esta coisa se mostra; e é um fenômeno pelo próprio fato de se mostrar. O mostrar-se está relacionado tanto àquilo que se mostra quanto àquele a quem é mostrado. Assim, o fenômeno não é meramente um objeto, nem diz respeito somente a algo subjetivo; é ao mesmo tempo um objeto que se refere ao sujeito e um sujeito relativo ao objeto (Dartigues, 1992).

Com relação à pessoa para quem o fenômeno se mostra, é preciso tecer algumas considerações, tendo em vista que o foco do presente estudo é colocado no observador e não nas pessoas e situações observadas. O fenômeno comporta três características fenomênicas sobrepostas: ele é (relativamente) oculto; ele se revela progressivamente; ele se torna (relativamente) transparente. Essas fases sobrepostas estão correlacionadas às etapas da vida: experiência vivida; compreensão; testemunho. O trabalho da fenomenologia consiste nessas duas últimas relações. A experiência vivida diz respeito à vida presente juntamente com sua interpretação, sua significação, formando uma unidade. A vida enquanto tal é inapreensível e, no momento em que nossa atenção se volta para ela, ela já evanesceu, desapareceu. Revela-se, assim, a necessidade de uma busca pela experiência de alguma coisa. Deste modo, a escolha do referencial fenomenológico justifica-se pelos pontos de articulação com o método Bick, favorecendo o diálogo em torno da formação do observador.

Participantes: participou do estudo uma família, composta por mãe (do lar, 22 anos, identificada no presente estudo pelo pseudônimo Giovana), pai (churrasqueiro, 32 anos) e bebê (durante o primeiro ano de vida, aqui designada como Clara), além de pessoas que coabitavam a residência, como uma amiga (desempregada, 25 anos, identificada por Marina) e seu filho (cinco anos, identificado por Vítor). Na perspectiva assumida por este estudo – o postulado de que o observador não é neutro, é considerado também um participante –, incluímos nesse cenário Fabio, estudante de Psicologia, 21 anos. À exceção do observador, todos os participantes foram identificados com nomes fictícios em respeito às disposições éticas. O primeiro contato com a família foi feito pelo próprio observador a partir da indicação de uma agente comunitária que atuava como colaboradora no estágio. Embora o método Bick aconselhe que o contato com a família se inicie durante a gestação (Vivian, 2006), tal cenário não se mostrou possível devido ao fato de se tratar de um estágio curricular, delimitado temporalmente por um cronograma que determina início e encerramento do ano letivo e normas acadêmicas que organizam o processo de ensino-aprendizagem.

Instrumento: utilizou-se o diário de campo, uma espécie de "diário de bordo" no qual o observador anota, dia após dia, com estilo telegráfico, os eventos da observação, documentando a progressão da pesquisa (Beaud & Weber, 1998). É o relato escrito daquilo que o investigador vê, ouve, experiencia, sente e pensa no decurso da coleta de dados. Pode ser utilizado como recurso complementar em investigações científicas (Roeseet et al., 2006). Para Bogdan e Biklen (1994), o diário de campo envolve um componente descritivo e uma parte reflexiva. No presente estudo, o componente descritivo compreendeu a preocupação em captar imagens e palavras do contexto local observado, o que incluiu pessoas, ações e conversas presenciadas. A partir do método Bick utilizado, este diário de campo foi constituído pelos relatos escritos das observações do estagiário de Psicologia, realizadas após as observações domiciliares, ou seja, trata-se do segundo momento da observação, destacado anteriormente. Nesses relatos, havia a descrição da observação, seus participantes, os eventos passados, bem como a descrição de sentimentos experienciados pelo observador sem interpretações ou aportes teóricos acerca do que era observado.

Embora o método Bick seja desenvolvido em três momentos principais, optou-se pela discussão do relato escrito de observação como material privilegiado para a análise qualitativa da vivência do estudante de Psicologia. No entanto, tal opção não obscurece a importância ou as possibilidades de interpretação e de discussão da observação em si, nem das supervisões por meio de seminários. Em uma perspectiva de análise da identidade profissional como sendo fluida e continuamente construída a partir de diferentes interações, cenários e reflexões (Bock, 1999; Ciampa, 1987; Scorsolini-Comin, Souza, & Santos, 2008), deve-se destacar que a opção por um dos momentos é apenas uma escolha de caráter didático, visando facilitar a explicitação da experiência e o diálogo com demais pesquisadores, docentes e acadêmicos que se enveredam por essa temática.

Como forma de ilustrar e discutir o processo de formação do observador segundo este método, foi priorizado um recorte com duas observações (a 1ª e a 20ª). A escolha desses dois episódios deveu-se ao fato de que, nessas ocasiões, o observador referiu-se de modo mais direto, em seus relatos, à construção do seu papel de observador e à repercussão dessa experiência para a sua formação como futuro psicólogo. Como o foco do estudo não foi o processo de desenvolvimento da tríade mãe-bebê-família, mas, fundamentalmente, do observador nessa situação em particular, a escolha justificou-se pela maior possibilidade de discussão dos elementos envolvidos nessa formação.

Coleta dos dados: esta investigação colocou em foco a experiência do observador, sistematizada em anotações de diário de campo, que constituíram o segundo momento da observação, segundo o método Bick. Esse diário continha os relatos escritos das observações realizadas ao longo dos meses de março a dezembro de 2005 na disciplina-estágio Observação da Relação Mãe-Bebê-Família oferecida a quartoanistas e quintoanistas do curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). O estágio é desenvolvido dentro de uma proposta de seminários clínicos em equipe multidisciplinar. A observação foi realizada semanalmente no domicílio da família, com duração de uma hora.

Os registros foram elaborados logo após as observações. Ao desenvolver esses relatos, o estagiário esteve atento aos pressupostos do método de observação utilizado, que afirma que é interessante que o observador reserve lugar para a sua vivência pessoal e não apenas forneça um relatório descritivo e superficial a respeito do que aconteceu (relato dos fatos, do que foi visto, do que foi ouvido) (Oliveira-Menegotto et al., 2010; Oliveira-Menegotto et al., 2006; Vivian, 2006). Os relatos foram lidos e discutidos em seminários clínicos (supervisões semanais), dos quais participavam estudantes, estagiários, pesquisadores e docentes.

Procedimento de análise dos dados: na pesquisa qualitativa de fundamentação fenomenológica, o pesquisador está preocupado com os significados que o indivíduo atribui às suas experiências. Não parte de uma teoria pré-estabelecida, mas, movido por sua inquietação original, busca compreender o fenômeno como algo que pede um desvelamento, mostrando-se de maneiras distintas para aqueles que o vivenciam (Boemer, 1994). Desse modo, todos os relatos das observações foram lidos na íntegra, elegendo-se a primeira e a vigésima observações como representativas do processo de formação do estagiário, justamente pelo fato de que nelas houve um relato mais direto e extenso sobre a atividade de formação do observador – em termos da seleção do que olhar, do que ouvir, do que relatar, do que refletir. Selecionadas as observações, as mesmas foram lidas novamente, buscando os pontos de convergência e divergência no que se referia, especificamente, à formação do observador ou a fatos relacionados a essa formação. Posteriormente, esses trechos foram organizados segundo temas recorrentes, possibilitando a discussão acerca das transformações ocorridas durante a realização do estágio, com foco na formação do observador. Os temas prioritariamente escolhidos para discussão se referem, portanto, às experiências recorrentes de aproximação, distanciamento e reaproximação entre observador e a família, ilustradas pelas observações sistematizadas ao longo de um ano. Esses critérios permitiram delimitar as unidades temáticas.

Em uma pesquisa de inspiração fenomenológica procura-se desvelar a vivência do sujeito (neste caso, do observador). O pesquisador busca ter acesso às descrições e informações fornecidas pelo próprio sujeito – no caso, a partir de seu relato escrito, uma vez que as situações vivenciadas não encerram um sentido em si mesmas, mas adquirem um significado particular para quem as experiência, e esse significado é relacionado à sua própria maneira de existir (Valle, 1997). Compreender a experiência vivida envolve extrapolar a ótica do fato e ir ao encontro da essência do fenômeno. Nesse sentido, buscou-se configurar um pensar que, necessariamente, tem de fazer sentido para o pesquisador, não se tratando apenas de um entendimento intelectual.

 

Resultados e discussão

(1) A primeira observação: o estranhamento inicial e seus impactos

A família foi acompanhada durante um ano. Na elaboração dos resultados será destacada, em um primeiro momento, a análise da primeira observação, que ocorreu a partir de uma visita à família. Em um segundo momento será apresentada a análise da vigésima observação, que foi uma das últimas realizadas pelo estagiário. O estagiário narra, de início, suas impressões e expectativas ao chegar à casa da família depois das tentativas anteriores fracassadas. O sentimento trazido ao relato é de forte entusiasmo não com respeito ao caso em si, mas à aceitação da mãe em participar.

1.1. Desvelando a expectativa do observador

No trecho inicial, o observador discorre sobre suas expectativas e ansiedade diante da primeira observação na casa da família, ocorrida quando o bebê tinha um mês e 20 dias. A descrição extrapola os aspectos emocionais contidos na situação, abarcando questões como o tempo, a temperatura, o contexto no qual o observador se colocava dentro de uma casa desconhecida. A suspensão de suas crenças e (pré)conceitos não foi claramente visualizada nesse momento. O referencial fenomenológico, no excerto selecionado a seguir, contribui para que o observador não retire as suas concepções no momento de observar, mas que ele possa, realmente, estar ciente dessas limitações e suspender esses conteúdos e vivências de modo a estar autenticamente disponível para estabelecer uma relação genuína.

O dia estava chuvoso, muita água, frio, uma vontade louca de aproveitar o feriado. O encontro estava marcado e eu nem estava mais tão ansioso. Mas o sentimento de torcida para que o estágio desse certo era o mesmo. Eu tinha mais certeza agora, me sentia mais pronto, já havia explicado para meio mundo os objetivos do estágio, pensei que agora eu estaria mais à vontade e talvez mais preparado, com o embasamento das supervisões, das experiências das outras estagiárias e também pelo meu próprio percurso até este dia.

O observador destaca o seu "sentimento de torcida" para que o estágio dê certo, para que ele seja aceito na família. Isso pode influenciar (e, de fato, se fez presente) no modo como ele irá se apresentar diante da família, na postura assumida no contexto. Ele parte de sua experiência de leituras, supervisões, seminários clínicos e contatos com os demais estagiários para estar com a família, mostrando que as suas falas não estarão apenas relacionadas aos seus desejos e demandas, mas também a um desejo que é coadunado por um coletivo, por uma rede de apoio pessoal que se coloca em seu contexto de observação. 

1.2. A chegada à casa: o encontro com a família reunida

A chegada do estagiário à casa de uma família marca o primeiro contato face a face, que é fonte de ansiedades e alguns medos, atualizados no modo como as pessoas se colocam diante desse "outro", dessa "nova família". A elevada expectativa do aluno se mostra no horário de chegada à casa, de sua pontualidade, o que também fala um pouco a respeito da ansiedade enfrentada pelo mesmo. Novamente, a descrição do tempo, das condições climáticas, é retomada e por parte da mãe observada, para falar um pouco a respeito de sua expectativa com o estágio – um observador que consegue de fato estar "junto", ainda que com chuva. A chegada pode ser disparadora de angústia tanto da parte do observador como da família, já que ambos "desconhecem" um ao outro. A família, apesar de estar em sua própria casa, circulando, portanto, em território conhecido, precisa se organizar para receber o estagiário. Sua presença é mobilizadora de algumas fantasias persecutórias (quem é essa pessoa, como ela é, do que ela gosta, onde ela vive, por que ela escolheu aquela família, o que ela está olhando, como devo me portar, o que devo dizer?). Por outro lado, é preciso que se aborde a questão dos modelos de ensino nos quais a maioria dos profissionais é formada, aqueles que veem as relações e os acontecimentos em termos de "certo" ou "errado", buscando respostas únicas. A chuva, enquanto um contexto, acaba aproximando observador e mãe observada, tanto que o primeiro assunto surgido na díade é justamente a chuva, como expresso no excerto:

Cheguei, como combinado, às 14 h 30. Giovana veio me receber no portão e disse que achava que eu nem iria, pois estava chovendo. Respondi que havia marcado e que para mim não havia qualquer problema. Perguntei se eu estava atrapalhando e ela disse que não, me parecendo bem simpática e surpresa com a minha chegada. Quando entrei, cumprimentei a todos que estavam na sala: Pâmela (filha do primeiro casamento do marido de Giovana), Marina (que mora com Giovana), Vítor (filho de Marina) e um senhor, que me pareceu ser o pai de Marina.    

Outra possibilidade é que a conversa sobre a chuva fosse uma forma de permanecer nos aspectos superficiais, não aprofundando em outros, ou mesmo um modo de iniciar uma conversa, um contato. Falar sobre algo externo (a chuva) é algo mais "fácil" do que abordar aspectos relacionados aos sentimentos.

O observador também narra o seu impacto diante da presença de outras pessoas na sala da casa. A impressão que ocorre é a de que o estagiário tinha expectativa de que deveria observar apenas a relação mãe-bebê. Essa relação é estendida para que se abarque a relação com a família, que se mostra extremamente rica e importante para que compreendamos mais a fundo o vínculo estabelecido entre mãe e bebê e entre o par com o observador, que passa a fazer parte da série de interações possíveis nesse cenário. É importante notar que o estagiário trouxe as suas próprias concepções (expectativas, fantasias, idealizações) de uma observação "ideal", como se houvesse um padrão a ser seguido, procurando se comportar como tal (Bion, 1991 [1962]). Geralmente, movido por essa expectativa, acabou voltando seu olhar para a observação do bebê e da mãe, não se colocando nessa relação.

1.3. Estabelecendo negociações sobre o estágio: observação e gênero

Na ocasião do primeiro encontro, o estagiário conversou com a mãe acerca do contrato a ser estabelecido. Isso normalmente é feito considerando a sequência das observações, o período em que serão realizadas, entre outros aspectos, como o sigilo profissional. Na experiência do observador em foco, ele se deparou com a questão do gênero, o ser homem, estagiário, em uma residência que recebe um bebê. O observador, frequentando a casa da família, acabou despertando a curiosidade, principalmente da mãe, que lhe perguntou se ele observava mais alguma criança e qual era a sua formação. Novamente, encontramos a questão do modelo médico, a partir do qual essa forma de estar junto, de "observar" bebês, estaria fortemente comprometida com a Medicina, especificamente a Pediatria. A mãe demonstrou não ter muita certeza do que é ser psicólogo e mostrou estranhamento diante da resposta do observador. "Ela me perguntou se eu observava mais algum bebê e eu disse que não. Também me perguntou se eu era pediatra. Disse a ela que seria psicólogo, ao que ela mostrou um ar de mais tranquilidade. Disse que qualquer coisa que fizesse teria que fazer com amor".

As dúvidas e questões maternas giravam em torno de aspectos tipicamente médicos (a questão do peso da filha, da altura, de seu desenvolvimento motor). O que permite pensar na possibilidade de que ela estivesse atribuindo ao observador um possível papel de "controlador" desse processo – devido a diversas falas da participante, que enfatizava sempre que a sua filha estava normal, dentro do peso e altura esperados, entre outros. Como será explicitado a partir da segunda transcrição – referente ao final do processo, essa percepção da mãe sofreu algumas modificações, embora tenha ainda se mantido arraigada à tradição médica. Poderia ainda ser uma interpretação de que o observador fosse uma espécie de agente comunitário, ou mesmo um médico da família. Outra leitura possível seria a de que o observador estivesse em uma posição de testemunhar a capacidade materna de cuidar da filha, ou seja, sua competência tanto de ser uma boa mãe como de oferecer um bom campo de estágio para o estudante.

1.4. Fim da primeira observação, início de um processo

Ao final da observação, a mãe do bebê e o observador acordaram a respeito da próxima observação. Giovana mencionou o cuidado que teria em marcar na agenda para não esquecer o combinado. Revelou também que estava vivenciando um sentimento de confusão sobre os dias, sobre o tempo; apresentou como razão que justificaria essa confusão sua permanência durante longo tempo dentro de casa. Tal sentimento pode estar relacionado também às novidades, às mudanças advindas da maternidade, ou mesmo a uma dificuldade de aceitar o estabelecimento de uma relação tão próxima com uma pessoa ainda desconhecida. Outra leitura possível é que essa confusão seja um evento normal ligado à maternidade, sendo algo desconhecido pelo observador, talvez pelo fato de ele ser homem e, em função disso, apresentar certa dificuldade de empatizar com aspectos da maternidade.

Em seguida ao agradecimento do estagiário sobre a oportunidade de realizar o estágio em sua casa, Giovana também agradeceu. Apresentou sua expectativa de que também fosse beneficiada pelo estágio, a possibilidade de conversarem, de que o estagiário lhe fizesse companhia de modo a ficar menos sozinha. Esta pontuação de Giovana nos possibilita discutir a importância do observador naquele contexto de solidão da mãe, ainda que rodeada de pessoas, o que deve ser analisado em termos da construção da relação mãe-bebê-família. A presença de uma pessoa externa à família foi narrada pela mãe como uma companhia, o que posiciona o observador como alguém que também pudesse acolher de modo positivo as demandas dessa mãe. Ela confirmou o horário combinado, reafirmando, desse modo, o interesse na realização do estágio e nas próximas observações. O impacto positivo da primeira observação, o sentimento de ser acolhido, bem recebido e aguardado / esperado para as próximas observações proporcionaram ao observador uma outra percepção da situação e do próprio estágio, do processo que se iniciara, dos seus aspectos internos, de si mesmo, até mesmo do clima (tempo).

(2) A vigésima observação

A vigésima observação ocorreu quando o bebê já estava com oito meses e 11 dias. Essa observação ocorreu em um momento bastante interessante: por conta de um episódio de doença do estagiário em uma semana, da ausência de Giovana e Clara em outra e de um feriado, o observador não ia à casa da família há um mês. As observações passaram, também, a ocorrer aos fins de semana. O estagiário narrou, nessa transcrição, a sua apreensão ao não conseguir entrar em contato com a família (devido ao roubo do celular utilizado pelos familiares). Durante um mês, o observador não conseguiu estabelecer qualquer contato com a família. Essas circunstâncias são narradas no trecho seguinte.

Depois de exato um mês sem realizar uma observação, voltei à casa da família. Nesse período, muitas coisas aconteceram. Passei a realizar as observações aos sábados, tanto por compromissos pessoais quanto por sugestão de Giovana, que voltara a trabalhar e me dissera que aos sábados seria mais tranquilo para ela. Em um fim de semana, ela não estava em casa, no outro eu estava muito gripado e, no seguinte, havia sido feriado. Receava que Giovana pudesse estar diferente comigo por essa minha ausência. Eu não consegui entrar em contato com ela, pois, quando ligava em seu celular (na verdade, o celular é de Branca, irmã de Mariana, que divide a casa com ela), recebia a informação de que o telefone havia sido vendido. Alguns desencontros depois, fui, neste sábado, retomar as observações.

2.1. A distância entre o observador e a família: o papel das fantasias

Era o primeiro sábado em que se dava uma observação. O estagiário foi à casa da família para restabelecer contato com a mãe a fim de que pudesse dar continuidade à observação. Nesse reencontro, a mãe revelou a sua preocupação pela ausência prolongada do estagiário, demonstrando o seu envolvimento com o estágio e o vínculo já estabelecido. O observador se mostrou apreensivo, com receio de que algo mudasse na relação, com medo de que a mãe pudesse até desistir de sua participação no estágio. Na verdade, ele não sabia o que aconteceria, pois ficara muito tempo sem ter contato com a mãe; além disso, as experiências negativas vivenciadas antes de conseguir uma família que concordasse com o processo, a rejeição das duas outras famílias, eram de algum modo atualizadas naquele momento.

Deve-se destacar as fantasias (Bick, 1987 [1968]; Bion, 1991 [1962]) construídas tanto pelo observador quanto pela mãe acerca do distanciamento entre o par. Por parte do estagiário, este imaginou que a mãe estaria com algum problema e pensou na questão do telefone, do que estava acontecendo realmente. Essas preocupações podem denotar o receio de rompimento do vínculo e uma reação à separação – separação esta que seria iniciada a partir dessa observação (depois da 20ª observação, houve mais três observações).

Giovana comentou que "eu não morreria mais", pois tinha pensado muito em mim naquele dia. Disse que tinha ficado preocupada, achando que eu não estava indo por causa da faculdade. Eu pedi desculpas pela ausência, mas reafirmei que tinha tentado entrar em contato quando estava doente e contei sobre o meu receio de passar gripe para Clara. No dia da observação, há duas semanas atrás, em que eu estava gripado, fiquei pensando muitas vezes se deveria ir ou não. Como eu tossia muito, achei melhor não ir, com medo de Clara se resfriar também. Nesse dia, fiquei muito preocupado.

2.2. O impacto do reencontro com o bebê

O observador relata o impacto do reencontro com o bebê. Em um mês, ele aponta, em seu relato, que a menina havia crescido e estava bem diferente da observação anterior. Essa constatação, além de conter um dado de realidade (os bebês mudam rapidamente, pois estão em franco processo de crescimento), tem um aspecto afetivo importante, que é o de mostrar o impacto gerado pela passagem do tempo. Também pode conter um pouco de culpa pela separação, ou mesmo um saudosismo pelo que foi perdido, pelo que foi deixado para trás, pelo que não pôde ser acompanhado. O impacto é percebido no trecho: "Giovana chegou com Clara nos braços. Ela estava muito grande, seu rosto parecia bem maior, embora eu a achasse mais magra. O bebê estava dormindo nos braços da mãe, apenas com uma blusinha rosa e com uma fralda. Fiquei conversando um tempo com Giovana, enquanto o bebê não acordava" .

2.3. A mãe volta a trabalhar

O estagiário perguntou à mãe sobre a retomada de seu trabalho. No mês anterior, no qual havia se dado a última observação, ela ainda não havia voltado a trabalhar por conta da filha e dos ajustes que precisaria fazer em sua rotina e na organização familiar. Ao voltar ao trabalho, o pai da criança foi levado a assumir um novo papel nessa organização, passando a cuidar da filha nas horas de folga. Esse reordenamento de funções acabou por despertar outras significações, como a maior ligação entre pai e filha e a forte identificação entre ambos, destacada pela própria Giovana. Esse arranjo, que se impôs, acabou modificando o contexto. Essa observação marcava, para o delineamento da mesma, uma importante mudança no padrão que vinha sendo estabelecido anteriormente – a mãe saiu de casa e começou a se "separar" da filha, vivenciando os primórdios do luto pela descontinuidade introduzida na relação/unidade mãe-filha. Tal fato pode também ter sido disparador de angústia no observador, uma vez que ele também se separaria daquela família, iria se formar em Psicologia e também "sairia para trabalhar" como psicólogo dali a algum tempo.

Perguntei à Giovana sobre seu emprego, como estava. Ela me disse que não estava mais trabalhando na casa de sua ex-patroa, que agora estava fazendo faxinas durante o dia, até às 15 h. Perguntei se ela estava gostando, ao que ela me respondeu afirmativamente, dizendo que não era tão "puxado" quanto ela esperava. Perguntei com quem ela deixava a menina e ela disse que é o pai quem está tomando conta dela, enquanto ela sai para trabalhar (o pai trabalha à noite). Ela disse que o pai está adorando, que ele tem muito jeito com Clara, que eles se dão muito bem.

(3) Tocando no assunto do desfecho do estágio

Nessa observação, na qual o vínculo estagiário-mãe estava sendo retomado, o observador iniciou uma conversa sobre o desfecho do estágio, que acabaria no mês seguinte. Foi interessante notar o movimento que o observador fez ao comunicar o término das observações dali a algum tempo. Ele iniciou a conversa falando sobre o fim do ano e as férias. Giovana falou que estava programando uma viagem de fim de ano para visitar a família do marido e perguntou ao observador quantas semanas faltavam para o término do ano. Essa pergunta voltou a aparecer em mais um dos trechos da transcrição, com uma função não explícita de comunicar ao estagiário que ela não queria se separar dele, que ela não queria que ele parasse com as observações, tentando adiar ao máximo a suspensão das mesmas. O observador entendeu essa "comunicação" ao analisar a transcrição, podendo estar mais atento a esse processo na observação que se seguiria. A pergunta sobre as últimas observações evidenciou a reação à separação e uma tentativa de manutenção da realidade que vinha se mostrando, ou seja, a manutenção do estágio de observação. Esses aspectos são expressos no trecho:

Como tinha que tocar no assunto do fim do ano e do término do estágio (e queria encontrar a melhor forma de fazê-lo), perguntei à Giovana se ela iria viajar no fim do ano. Ela disse que seu marido estava querendo viajar para Minas Gerais (casa da mãe), aproveitar para descansar uma semana e levar Clara para que os avós paternos a conhecessem. Ela disse que não tinha certeza, pois o marido dependia da dispensa em seu trabalho. [...] Então, eu comentei que o ano estava acabando e que eu faria apenas mais algumas observações. Ela comentou: "Você vem mais umas três vezes, né?". Eu disse que não havia olhado no calendário, mas que achava que sim, que seriam três. [...] Ela perguntou se eu ia me formar nesse ano, ao que disse que tinha mais um ano ainda, mas que as aulas já estavam acabando.

3.1. Retirando-se do campo: a despedida

Ao final da observação, a mãe comentou que a filha já reconhecera o estagiário, possivelmente aludindo ao fato de o vínculo ter sido restabelecido e agora ela ter uma certeza de que o estágio se prolongaria por mais três semanas, ou três observações. Uma constatação importante de ser destacada é o sentimento do observador, ao sair da casa, diante do restabelecimento das observações. O observador narrou suas impressões e sensações diante de tudo o que havia emergido do contato com a família após a separação de um mês. Pode-se pensar nessa suspensão das observações como uma forma de se preparar para o término do estágio, como uma espécie de "ensaio". Na verdade, havia uma série de términos que foram se desvelando na situação observada. O término do estágio, a perda da dependência extrema da mãe por parte do bebê, a perda do estagiário e das observações, o afastamento de muitos sentimentos, bem como a experimentação, por consequência, de muitos lutos. Essas vivências foram atualizadas em diversos sentimentos do observador, que ficou fascinado pela possibilidade de crescimento da criança, com o seu lançamento ao mundo como reflexo de sua própria experiência de aprendizado, conforme pontuou Bion (1991 [1962]).

A dependência entre o estagiário e família havia se instalado desde o início das observações. Em outras palavras, a família se tornou dependente, ao mesmo tempo que o estagiário dependia da família para realizar as observações. É aqui que se pode perceber o amadurecimento da relação e do estagiário no exercício de sua função de observador (Bick, 1987 [1968]), alguém que aprende a olhar de dentro para fora e de fora para dentro.

Passei a mão na cabeça de Clara e me despedi. Giovana brincou que ela já tinha me reconhecido e que estava sorrindo normalmente. Eu comentei que ela já estava uma moça linda, ao que ela sorriu novamente. Giovana me agradeceu e eu reforcei que voltaria na semana seguinte. Saí da casa com muitas sensações. Senti saudade pelo estágio estar acabando. Senti alegria por ter conseguido fazer a observação, mesmo depois de tanto tempo. Senti Clara maior, mais independente, e isso mexia comigo. Lembrei da última supervisão e pensei que eu também, neste contexto, era um bebê que, a exemplo de Clara, partia para ganhar o mundo, engatinhar/andar com as próprias pernas.

Por fim, pode-se discutir que no referencial fenomenológico atenta-se para as essências – do fenômeno, das experiências. Nas observações/visitas, o estagiário procurava entender como se dava a relação entre a mãe, o bebê e a família, bem como atentar para as relações da família com ele próprio, em seu papel de observador. Sendo assim, evidenciava-se uma postura fenomenológica, de busca pelo sentido de tais fenômenos. Sendo a consciência intencional, no percurso de realização do estágio a consciência do estagiário voltava-se para a observação das relações ali estabelecidas, com foco no desenvolvimento da relação mãe-bebê, como pode ser percebido em vários excertos de transcrições analisadas.

No que se refere à relação mãe-bebê, a existência de dois seres humanos em relação, com tal nível de intimidade psicológica, por vezes se mistura, mesclando-se às necessidades, aos desejos, sentimentos em múltiplas projeções. As vicissitudes do desenvolvimento alcançado pela dupla em relação, bem como a vivência das conquistas e a vibração diante das mesmas, possibilitam que se conheçam reciprocamente, às vezes mais do que parecem saber. Esses elementos mostraram-se ao observador, mas também ocultaram outras facetas do fenômeno (Boemer, 1994), pois o processo de velamento e desvelamento é contínuo e inesgotável, não cessando na "última" observação ou com a "despedida" do estágio.

A análise dos registros de observações realizadas no contexto familiar sob a perspectiva fenomenológica mostrou-se um valioso recurso para apreender em que medida a atuação como observador da relação mãe-bebê-família contribui para o processo de formação profissional em Psicologia. Como destacado por Pergher e Cardoso (2008), na observação de bebês aprendemos sobre a importância de estarmos abertos à investigação do novo, despojados do que já temos como intervenções prontas, que nos impedem de escutar o que não sabemos. É neste ponto que destacamos um dos maiores desafios do observador.

 

Considerações finais

As informações encontradas em campo e registradas em diário resultaram em um estudo que permitiu alcançar o objetivo de examinar algumas dimensões envolvidas no processo de formação do estagiário de Psicologia como observador da relação mãe-bebê-família, seguindo os passos preconizados pelo método proposto por Bick (1987 [1968]; 1964). Os resultados possibilitaram demarcar algumas das singularidades da construção do papel de observador, levando à necessidade de que se discuta não apenas a presença do observador no campo, mas também a sua atividade de relato do que observou, o registro de suas impressões e a possibilidade de ressignificação desse quadro ao participar do seminário clínico/supervisão.

Assim, faz-se necessário que esses três momentos possam ser explicitados em profundidade em estudos vindouros, favorecendo uma visão completa do processo a partir da aplicação do método Bick no processo de formação em Psicologia. Elegendo o segundo momento como fundante da formação do observador, buscamos alinhavar esses registros à história de formação do observador. Desse modo, foi possível identificar que o uso do diário de campo (segundo momento), escrito logo após a observação (primeiro momento), favoreceu a discussão acerca do conhecimento e do autoconhecimento obtidos pelo aluno no desenrolar do estágio, ampliando sua capacidade de compreensão do alcance de seu papel de estagiário, o que é fundamental para a identificação e superação de obstáculos vivenciados ao longo do processo de formação. Esse resultado é congruente com achados de estudo anterior, realizado com alunos de Enfermagem (Matheus, Moreira, Ohl, & Castro, 1996) e também de Psicologia (Pergher & Cardoso, 2008).

Obviamente, esse processo não ocorre apenas como uma autorreflexão, como um trabalho hermético e de responsabilidade única do observador. Isso destaca a necessidade de que o seminário clínico dê espaço também para a discussão acerca da experiência do observador, garantindo uma formação que, efetivamente, contribua para a construção do olhar daquele que observa, mas também da escuta para quem ouve os múltiplos sentidos, as diferentes entoações expressivas e as diversas ressonâncias das pessoas em interação no contexto familiar. Ao observador deve ser dada a possibilidade (e treino) de olhar, de ouvir, de sentir e também de trabalhar esses sentidos em supervisão, a fim de garantir um processo válido, sério e que possa favorecer o desenvolvimento de todas as pessoas envolvidas. É mister, portanto, sublinhar a formação de profissionais de saúde também como observadores, o que, inevitavelmente, passa pela assunção deste papel como requisito relevante para a constituição do ser profissional.

 

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Recebido em 23 de março de 2010
Aceito para publicação em 8 de setembro de 2011

 

 

Notas

1 Os autores agradecem à Profa. Dra. Carmem Lúcia Cardoso e à Dra. Trude Franceschini pela supervisão do estágio profissionalizante que inspirou as reflexões iniciais que, posteriormente, permitiram a elaboração deste artigo. do em 23 de março de 2010

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