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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.76 São Paulo jun. 2009

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

Medeia, o feminino

 

Medea, the feminine

 

Medea, lo femenino

 

 

Sandra Schaffa*

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Fome de amor, a expressão vem nomear o sofrimento testemunhado por inúmeras mulheres em análise. Na tragédia de Medeia, é possível reconhecer as linhas de estruturação de um dos destinos da feminilidade, aquele que Freud chamou de compulsão de destino. Dora e um paciente do sexo masculino permitem o reconhecimento do feminino como dimensão selvagem da transferência. Medeia e seu arcaísmo intransponível designam a transferência para além de uma psicologia das relações.

Palavras-chave: Feminino, Compulsão de destino, Medeia, Complexo de castração, Arcaico.


ABSTRACT

Hunger of love, the expression gives name to the suffering experienced by many women in analysis. In the tragedy Medea it is possible to recognize the ways by which one of the destinies of femininity gets structured which Freud named destiny compulsion. Dora and a male patient allows us to recognize the feminine as a savage dimension of transference. Medea and her unsurmountable archaism denotes the transference much beyond any relational psychology.

Keywords: Feminine, Fate neurosis, Medea, Castration complex, Archaism.


RESUMEN

Hambre de amor; la expresión nombra el sufrimiento atestiguado por muchas mujeres en análisis. En la tragedia de Medea es posible reconocer las líneas de estructuración de uno de los destinos de la feminidad, lo que Freud llamó de compulsión de destino. Dora y un paciente de sexo masculino permiten el reconocimiento de lo femenino como dimensión salvaje de la transferencia. Medea y sus arcaísmos insuperables titulan la transferencia de lo más allá de una psicología de las relaciones.

Palabras clave: Femenino, Compulsión de destino, Medea, Complejo de castración, Arcaísmo.


 

 

Fome de amor. A expressão impôs-se a partir de minha análise e de analisandas que recebi. Fome de amor ou, antes, fome de ser amada. Essa fome, a palavra de mulheres a testemunha. Impasse do destino, estorvamento &– nela esbarramos em cada análise. Gostaria de antecipar esta ideia paradoxal: o feminino se opõe como resistência aos caminhos da feminilidade.

Fome de amor, a ideia compreende uma condição do feminino que desafia a referência teórica ao complexo de castração. Granoff e Perrier sublinharam “o fato de que a castração não concerne à mulher senão enquanto ameaça ou marca o outro do qual ela espera sua felicidade” (Granoff & Perrier, 1979, p. 92), fato originalmente observado por Freud. Nesse texto inaugural sobre a mulher perversa, os autores introduzem esta ideia: “Não há na mulher, propriamente falando, perversões sexuais”.

Somos, por nossa vez, inclinados a admitir que fora da homossexualidade &– e, mesmo nesse caso, a sexualidade feminina antes se engaja do que se perverte (se tomarmos como modelo estrutural da perversão sexual a perversão especificamente masculina do fetichismo) &– não há na mulher, propriamente falando, perversões sexuais. Diremos também que a relação perversa, que seguramente existe na mulher, não se apreende na relação sexual:

... para a mulher, as coordenadas não podem ser as mesmas [que as da estrutura perversa no homem], mas esse esquema pode nos servir se sublinhamos em princípio os privilégios da menina com relação à lei e o fato de que a castração não a concerne senão enquanto ameaça ou marca o outro do qual ela espera sua felicidade (Granoff & Perrier 1979, pp. 89-92).

Em 1931-1932, os escritos sobre a feminilidade testemunham a ameaça sofrida pela mulher diante da perda de amor. Freud observa: “Atribuímos portanto à feminilidade um grau mais elevado de narcisismo que influencia ainda sua escolha de objeto, se bem que ser amada é para uma mulher uma necessidade mais forte do que amar” (Freud, 1984, p. 177).

Em 1926, em Inibição, sintoma e angústia, Freud reconhece uma angústia feminina que ultrapassa as determinações da castração e da perda de objeto:

Uma vez que anteriormente (...) nós nos confrontamos com a importância do perigo da castração em mais de uma afecção neurótica, temos por bem não superestimar esse fator considerando que ele não poderá entretanto ser decisivo em se tratando do sexo feminino, seguramente mais frequentemente predisposto à neurose. Expus em outro lugar como o desenvolvimento da menina é conduzido pelo complexo de castração ao investimento do objeto terno. É precisamente na mulher que a situação de perigo da perda do objeto parece ter permanecido a mais eficiente. Permitimo-nos acrescentar à sua condição de angústia essa pequena modificação de que não se trata da ausência experimentada pela perda real do objeto, mas da perda do amor por parte do objeto (Freud, 1926/1992a, p. 258).

Uma angústia que se põe como motor de transformação da matéria pulsional além das determinações da castração, ou se opõe como barragem1 ante a ameaça de perda do amor &– notemos que, no texto citado, Freud não fala de recalcamento, mas de processos de defesa &–, vem sinalizar um terreno cuja pavimentação narcísica é incapaz de sustentar consistentemente os laços de ternura que se tecem como malha simbólica de investimentos.

Em 1926, a menina freudiana destaca-se como a figura freudiana prototípica do infantil que não responde ao perigo da castração. Para explorar esse terreno, convido-os a uma releitura de Medeia, reconhecendo na heroína de Eurípedes, além da mulher bárbara, a menininha freudiana, atormentada pelas forças das moções pulsionais que, fora do recalcamento, se erguem frente às ameaças da perda de amor.

É preciso, contudo, considerar a relevância deste ponto no argumento de Granoff e Perrier: “Se a castração não concerne à própria mulher, ela a concerne enquanto ameaça ou marca o outro de quem espera a sua felicidade” (Granoff & Perrier, 1979, p. 92). Ou o que Piera Aulagnier observou: “O próprio da feminilidade é de não poder ser reconhecida senão por outro” (Aulagnier, 1967, p. 78). Nessa condição, própria da feminilidade, distinguimos seu perigo intrínseco de perverter-se em fome irreprimível de amor.

Schicksalszwang, a expressão de Freud coloca o pensamento da pulsão em sua radicalidade, o sufixo Zwang evoca, tal como sublinham Laplanche e Pontalis, o caráter mais íntimo da pulsão. A expressão implica a dimensão de fatum, força implacável do destino. “Destino, do latim, destinare (fixar, assujeitar), é uma das maneiras pelas quais nas línguas romanas o homem designa aquilo que lhe escapa no que lhe acontece”, (Cassin, 2004, p. 666), dá a dimensão da tragédia na fonte dos modelos solicitados pela clínica psicanalítica. “A lenda grega apreende um Zwang que cada qual reconhece porque percebe a existência em si” (Freud, 2006, p. 344).2

A expressão merece ênfase no momento de nomear o sofrimento que se apresenta ao encontro analítico de inúmeras mulheres. Fome de amor, seria exagero atribuir-lhe o estatuto de uma tendência dirigindo os destinos da feminilidade nas análises &– de uma compulsão a resistir aos nossos esforços de compreensão, segundo a referência estrutural das perversões?

Na figura trágica do Édipo, Freud reconheceu os elementos estruturais do desejo que nos constitui. “A sentença (Zwang) do oráculo, que deve ou deveria inocentar o herói, é um reconhecimento da implacabilidade do destino que condena todos os filhos a passar pelo Complexo de Édipo” (Freud, 1992b, p. 63). Antígona serviu a Lacan para designar a significação ética do tratamento, o desejo puro; a tragédia de Medeia designaria a dimensão selvagem da transferência no limite em que esta se arrisca a ser absorvida pela compulsão de repetição (Freud, 1920/1996).

Originária do mundo bárbaro, Medeia atualiza a violência arcaica do pulsional que se afirma como limite intransponível da “civilização mino-miceniana anterior à dos gregos” (Freud, 1931/1969, p. 140). Sobre ela, Lacan afirmou que seria a mulher verdadeira. Mulher na sua inteireza.3

Não estamos distantes da definição freudiana do tipo autêntico de mulher: “O tipo autêntico de mulher não ama os homens, estancou em geral no estádio do narcisismo como uma parte dela mesma. Pela mesma razão, a superestimação dos homens não existe na mulher” (Nunberg, 1983, p. 371).

É o que encontramos na exclamação de Medeia:

Minhas amigas, minha decisão está tomada: sem perder mais um instante, matar meus filhos e fugir deste país. Não quero, pela minha demora, abandoná-los aos golpes de uma mão inimiga. De todo jeito, eles estão condenados. Já que é assim, sou eu que os vou matar, eu que lhes dei a vida.
Arme-se, meu coração. De que serve hesitar para realizar esse ato terrível, inelutável?
Vamos, minha mão, minha audaciosa mão, pegue a faca, vamos até a barreira que se abre para a vida maldita, não te enfraqueças, esqueça que esses meninos são teu bem mais caro, que tu os puseste no mundo.
Esqueça por um curto instante. Chorarás depois. Tu os matarás e, contudo, tu os amas. Ah! Pobre mulher que sou!4 (Eurípedes, 1962, pp. 187-188.)

Penso em Eurípedes como um psicanalista avant la lettre: alheio aos interesses do Estado, o poeta teria sido criticado em sua época como partidário do individualismo, como nota Otto Maria Carpeaux,5 e, ainda mais, pelo que sublinha Delcourt-Curvers (Delcourt-Curvers,1962, p. 131): “...de todos os poetas gregos, Eurípedes foi o único que ultrapassou a misoginia popular e ousou dizer a atroz situação das mulheres” (Eurípedes, 1962).

Medeia foi representada em Atenas, em 431. Em 1895, em Viena, os Estudos sobre histeria constataram a atroz condição feminina. Eurípedes teria sido o primeiro arquiteto da loucura feminina. O poeta grego deu lugar ao sofrimento do feminino despedaçado, sofrimento que nos tempos modernos tomaria a forma do romance pela escrita de Simone Beauvoir. A mulher despedaçada (Beauvoir, 1967), revelou a dor da demolição de uma mulher cuja história não deixa de parecer àquela testemunhada pela fala de pacientes.

Medeia encarna a atroz condição das mulheres. Mas o que é atroz? Não o modo pelo qual, feiticeira sanguinária, perpetra sua vingança de mulher traída. Atroz não seria também o infanticídio posto em ato. O que denuncia a atrocidade na sua condição de mulher seria, antes, a anulação temporal que é compelida a realizar: retomar a vida que ela havia dado. Medeia nos dá a dimensão da compulsão de destino, Schicksalzwang, o feminino como destino além do reino de Eros, o pulsional indomável que anula os traços. O que a heroína de Eurípedes expõe, em seu furor de amante abandonada, é o excesso de nossa humanidade a anular as marcas inscritas pela cesura original que nos consagra à civilização. Sua selvageria emprestaria trama ao fantasma original constitutivo do narcisismo primário no ponto em que encontra a pulsão de morte. “O narcisismo dito primário esboça o modelo do primeiro objeto de amor que é o corpo próprio” (Montrelay, 1977, p. 44).6 O que está em jogo no ato de dar morte aos filhos precisaria ser compreendido nesse nível.

A peça se inicia no momento em que Jasão está prestes a esposar a filha do rei de Corinto. Ele vai deixar o leito. Notemos que, para nomear leito e esposa, os gregos empregavam a mesma palavra. Na tragédia, essa palavra insiste ao longo da peça; essa palavra, como sublinha Delcourt-Curvers, “...repete-se sem cessar, para designar com uma sumária precisão isso que a faz sofrer” (Delcourt-Curvers, 1962, p. 129).

Ao consagrar Antígona como heroína ética, Lacan aconselhou uma tradução justalinear do texto de Sófocles que fosse sensível aos significantes gregos que traçam as linhas de articulação da ação trágica. Minha leitura deve a Cláudio Oliveira (2007), em seu texto “Os significantes gregos em Medeia”, a possibilidade de especificar o campo de significantes que marcam essa tragédia.

Acompanhamos o trabalho desse autor, que toma o método de comentário de significantes proposto por Lacan, atento aos limites do texto, aos seus pontos de ultrapassagem. Se Medeia partilha com Antígona as determinações próprias do trágico, em que: “A Sym-phorá é definida pelo concurso de circunstâncias, pela com-juntura, muito mais do que por seus outros sentidos derivados: o acontecimento, o evento, o acaso, e, sobretudo, com conotação negativa, a infelicidade, o infortúnio, o acidente, a desgraça” (Oliveira, 2007), o autor designa o significante que demarcará a especificidade da Medeia euripideana.

Eu diria que o significante mestre dessa tragédia é hórkos, um significante em torno do qual se definem todos os outros. Hórkos quer dizer ‘jura, juramento’, no sentido de ‘o que encerra, o que prende’, sentido primordial da raiz Herk-. Daí o adjetivo hórkios significar ‘ligado a um juramento, preso a um juramento’. Em todas as ocasiões, mesmo que essa jura esteja envolvida em algum tipo de ritual, cerimônia, sacrifício ou libação, o aspecto fundamental é ser algo que se realiza no campo da fala: daí os sentidos de ‘palavra dada, palavra jurada, promessa’ (Oliveira, 2007).

Assim, roga Medeia a Egeu: “Jure pelo solo da Terra, pelo Sol, pai de meu pai”.7

Estar ligada a um juramento é, pois, a condição própria de Medeia. Não será essa a condição do feminino exposto à situação de perigo, não da castração ou da perda de objeto, mas da perda de amor da parte do objeto? Atroz não seria a condição de estar ligada a um juramento como a um totem cujo desmoronamento condenará à compulsão de destino, Schicksalzwang?

Meu grande pecado, eu o cometi no dia em que deixei a casa paterna, confiando nas palavras de um grego, o mesmo que, com a ajuda dos deuses, vai me pagar com sua pena. As crianças nascidas de mim, jamais ele as reverá vivas depois deste dia. E não será sua jovem esposa que lhe dará outras...8

Medeia figura-nos uma situação que transborda o terreno da lei, não porque a heroína irá transgredi-la, mas sim porque jamais a conheceu. Em Totem e tabu, encontramos esta referência freudiana sobre a posição do juramento com relação ao totem: “Os juramentos, pensa Fraser, eram no início ordálias; é assim que se remetiam à decisão do totem desde que se tratasse de resolver questões de descendência e autenticidade” (Freud, 1986, p. 122).

A personagem de Eurípedes, sustentada pelo juramento de amor de Jasão, condena-se com seus filhos à ruína, à repetição pura, Schicksalzwang, abolição de traços: destino do pulsional no reino de Tânatos. “Nenhum casamento regular pode unir um grego e uma bárbara, por mais alta que seja a linhagem desta. As crianças nascidas de tal união serão sempre bastardas” (Delcourt-Curvers, 1962, p. 705). O que está atado por uma jura está fadado à perdição. Fado palavra portuguesa que diz o destino. Em Horkós, o leito jurado está fadado à perdição: jura é palavra que, como totem, desconhece seu valor de transferência simbólica.

Outra versão da tragédia permite-nos iluminar a questão da jura rompida a partir da qual o mundo vai desabar. Chico Buarque e Paulo Pontes, na concepção urbana contemporânea da tragédia, situam o ponto crítico do desenlace no terreno da relação perversa entre Jasão e Creonte. Gota d’água, escrita em 1975 (Buarque & Pontes, 2006), testemunha o período de autoritarismo que dirigiu a sociedade brasileira durante os anos de ditadura militar. Na tragédia brasileira, Creonte representa o poder corruptor ao qual Jasão vai ceder abandonando Joana. A medeia brasileira se vê assim lançada à sua perdição e a de seus filhos.

Pela tragédia de Eurípedes, desde seus primeiros versos, somos levados para o interior de uma cena em que a potência arcaica posta em movimento pela linguagem poética não nos deixa escapatória, nosso espírito é obrigado a aí se reconhecer:

Jamais o navio Argo deveria ter chegado à Cólquida, forçando a passagem cor de noite das Simplégadas!
Jamais nas profundezas do Pélion o pinho deveria tombar para entregar o ramo nas mãos dos heróis que Pélias encarregou de trazer o tosão de ouro!
Sua frota não teria trazido minha ama Medeia, com o coração aturdido de amor por Jasão, até as torres de Iolcos.9

Kêr, o destino de morte; ‘na Grécia, até o fim do século 5, o destino faz planar sobre o homem sua temível e irreprimível presença. Pois é literalmente ‘destruição’ que ameaça o ser humano quando se apresenta sob a palavra kêr. Um termo que, como diz P. Chantraine, tem um conteúdo muito rico, uma vez que “participa a um só tempo das noções de destino, de morte e de demônio pessoal”. Em 1937, em “Análise com fim e análise sem fim” o feminino se coloca como limite último, como resistência maior. Os destinos da análise subordinam-se aos destinos da feminilidade.

Entretanto, o feminino, não é: a mulher. O senhor J. retomou sua análise depois de dois anos de interrupção. Veio me procurar pela primeira vez no momento de sua separação, desenrolada em meio a uma tempestade na qual as crianças, mais do que como alvos, eram colocadas como projéteis da guerra entre o casal. Sua mulher transformou-se em Medeia. Seríamos tentados a considerá-la uma criatura abominável fora do terreno da transferência, que permitiria acolher a estrangeira que assombrava a fala do analisando. De fato, a Senhora J., tal como se construía através das palavras do paciente, além da reverberação no plano singular da história dessa análise, não deixava de evocar a cólera que atravessa a fala de mulheres que testemunham suas experiências de separação. Situação cotidiana que traz no seu bojo a consequente incapacidade de poupar aos filhos a carga do sofrimento: enlouquecimento feminino, que vem encarnar o da heroína de Eurípedes.

O senhor J. interrompera sua análise no momento em que estava prestes a se casar com uma mulher por quem sentia uma ternura na qual pensava encontrar antídoto ao vínculo passional que mantivera com sua primeira mulher. No momento da retomada da análise, não lhe foi nada fácil dizer o que o havia feito voltar. A vida retomara seu curso, obedecendo a seus planos, e a nova união se fortalecera tal como havia previsto sobre uma base consistentemente afetuosa. Tudo ia muito bem. No entanto, indícios de um estranho mal-estar perturbavam a felicidade ansiada. ‘De onde vem essa insatisfação? ‘Por quê?’, perguntava-se. Uma intolerância diante de pequenos detalhes do cotidiano viera solapar o espírito dinâmico do homem de outrora. ‘Tornei-me um velho rabugento’, diz. Essa observação figurava bem a impressão que me produziam o ritmo e a tonalidade de sua fala: sobre a tela de suas associações, a sombra opressiva de Medeia se insinuava.

Na versão cinematográfica de Medeia realizada por Pier Paolo Pasolini, com uma notável economia de diálogos, a plasticidade das imagens transporta-nos ao primitivismo do infante: o mundo de sensações que envolvem Medeia, seu reino bárbaro. No encontro com o mundo arcaico pelo herói grego, assistimos à acoplagem de duas temporalidades irredutíveis. Mas irredutíveis são também as temporalidades que Pasolini como mestre introduz na formação do herói. As primeiras sequências mostram o pequeno Jasão, mergulhado no tempo mítico de sua história, ouvindo de um centauro, seu companheiro pré-histórico, a saga de seus ancestrais; adormece o menino acalentado pelas palavras que se inscrevem como restos de um sonho, preparam a viagem que o lançará a bordo do navio Argo, em busca do carneiro dourado que lhe devolveria o trono usurpado de seu pai por seu tio Pélias. Será preciso atravessar os rochedos vacilantes de Simplégadas, alcançando a Cólquida, engastada no fundo do Mar Negro, para se unir a Medeia.

O senhor J. descreve-me o difícil processo da partilha que, concluída, lhe deveria ter devolvido a autonomia em frente ao futuro. Nova e ansiada vida, construída cuidadosamente longe das exigências insaciáveis que conhecera junto de sua primeira mulher. Mas um humor sombrio o captura e o obriga a reconhecer a permanência de restos indesejáveis. ‘É como se dentro de mim a insatisfação dela continuasse a ditar as regras’, reconhece, espantado. “A melancolia é menos a reação regressiva à perda do objeto que a capacidade fantasmática (ou alucinatória) de o manter vivo como objeto perdido”, propõe Fédida em “O canibal melancólico” (Fédida, 1972, p. 126). Nesse texto, totemismo, fetichismo e canibalismo erguem-se como barreiras conservadoras, impasses, diferentes formas de irresolução da perda da realidade primitiva alucinatória.

Freud não foi poupado desde muito cedo da prova da força indomável que a sexualidade feminina oporia ao tratamento da ‘pequena histeria’, iniciada em 1895. O fundo arcaico do feminino em que se enraíza a histeria denuncia-se na ocasião do ‘segundo sonho’, prenunciando o fracasso do tratamento de Dora. Transferência e destino, aquilo que escapa no que nos acontece: “Eu ainda não percebera (e não soube senão dois dias depois) que teríamos apenas duas horas de trabalho à nossa frente” (Freud, 1972, p. 116).

É verdade que podemos ler os historiais clínicos como romances. Dora, o romance de uma mulher ferida. Dora, a jovem medeia freudiana, iria romper repetidamente com os homens de sua vida, seu analista, em princípio, aquele que encarnou excessivamente bem os outros: o Senhor K. e seu pai. No seu tratamento, podemos também notar a condição de subordinação da mulher à castração do outro. A constelação incestuosa da transferência guardava as possibilidades analíticas para Dora de libertação do ‘continente negro’ de sua sideração pela ‘madona’, denunciando o fato de que a castração não a concernia senão enquanto ameaçava ou marcava o outro de quem esperava sua felicidade. Freud não o deixou de notar:

Eu não podia de maneira geral contestar a caracterização que Dora fazia do pai; e havia um determinado aspecto com relação ao qual era fácil perceber que suas censuras eram justificadas. Quando ela ficava aborrecida, costumava ser assaltada pela ideia de que ela fora entregue ao Herr K. como prêmio por tolerar ele as relações entre sua mulher e o pai de Dora; e sua ira por seu pai fazer uso dela era visível atrás de sua afeição por ele. Outras vezes ficava bem ciente de que era culpada de exagero de falar assim. Os dois homens naturalmente nunca fizeram um acordo formal em que ela fosse tratada como um objeto de troca; seu pai, em particular, teria ficado horrorizado com tal insinuação. Mas ele era um desses homens que sabem fugir a um dilema falsificando uma das alternativas em conflito (Freud, 1972, p. 32).

Rosolato, no trabalho que vimos considerando, assinala que no fundo do pai idealizado a imagem primeira do feminino da mãe se insurge. Certamente o arcaico não pode ser admitido senão après-coup. Mas essa constatação não nos abstém de enfrentar a desmesura que o contacto com a fala de nossos pacientes suscita. O que fazer com o arcaico incestuoso que a transferência traz ao encontro analítico?

Acolher o arcaico da transferência para que ele encontre lugar tal como matéria que se procura esculpir, como escreve Miguel de Azambuja, evocando o romance de Sturgeon, A escultura lenta. Ou para que essa matéria em sofrimento se escreva através da língua do outro. Escrever-se através do outro. Perder-se como substância de gozo, renunciando ao poder de anular o parto. Parir a palavra junto do outro seria entregar-se à operação simbólica da castração pela escuta analítica ao preço de uma perda real de vida &– criança que matamos como matéria de gozo &– para que, mulheres, possamos nos tornar mães simbólicas.10

Mata-se uma criança, o título da obra de Serge Leclaire volta aqui com toda a sua força. Matar “sua majestade, a criança”, a criança tirânica que é outra figura do pai primevo (ou da mãe arcaica); o assassinato é inevitável para o nascimento do traço que inscreve a perda como palavra no tempo. Assim, a morte da criança seria o lugar da origem da fantasia; o que está em jogo aí é outra coisa que retirar a vida que foi dada. O feminino em Medeia pela eliminação dos traços realiza a compulsão de destino fechando-se aos destinos (possíveis) da feminilidade para dirigir-se a um passado voltado sobre si mesmo, sem transferência possível.

Aproximei Eurípedes de Freud pela vocação afirmada à contracorrente de sua época em reconhecer o desejo feminino. Serge Leclaire, depois de Freud, ofereceu uma resposta à pergunta: “O que quer uma mulher?” Através da apresentação do caso de Sygne, Leclaire discute o problema do amor de transferência.

Nesse caso de amor, é toda minha vida que ressoa em harmonia; não somente meus amores, as palavras (ou os silêncios) das mulheres inscritas no meu corpo, as crianças, mas também meu interesse pela psicanálise, meu questionamento sobre a origem da palavra, meu trabalho sobre o discurso do recalcamento, minha busca da metade do céu (Leclaire, 1975, p. 109).

Pelo trabalho da escuta, mostra-nos como é possível junto da paciente “dar corpo, encontrar algum ponto de ligação com as palavras que a assombram, alguma parte de frescor aos fogos de verdade que a consomem” (Leclaire, 1975, p. 107).

A resposta de Leclaire à questão freudiana é de uma felicidade ímpar:

O que quer uma mulher, é, antes de mais nada, o reconhecimento, pelo homem, de sua fala de mulher, pois nenhum recalcamento assegura originalmente sua perenidade; suas palavras conservam fundamentalmente o valor de representante inconsciente (significante) e não entram senão acessoriamente no sistema de significações; astros e corpos gloriosos do sistema fálico eles não dizem senão a sombra dos objetos de todo o corpo. O que ela espera do discurso do homem é que ele fixe na tela do recalcamento os signos de sua glória em corpo de carne e que ligue sua esperança de ver um pedaço de céu (Leclaire, 1975, pp. 106-107).

O trabalho de escuta do feminino, como ligação entre corpo e palavra, para que essa palavra descubra o frescor do sentido partilhável, em troca do fogo carnal de sua verdade, situa o trabalho do analista como trabalho épico. Sobre a dimensão épica da escuta, Fédida escreve: “Face à iminência do trágico, o herói do épos tenta re-instaurar o memorável exigindo em princípio do outro que responda à questão: ‘de onde vem você?’” (Fédida, 2004, p. 10). O arcaico, sempre après-coup, está no fundo de toda a análise.

De onde vem você, Medeia? A pergunta impôs-se ao senhor J., trazendo-o de volta à análise. Medeia, o feminino que habita sua pré-história como a de Jasão. Poderíamos tomar Medeia como figura do passado anacrônico no limite do memorável (Fédida, 2004). A ruptura da aliança que a destina à perdição assinala o ponto de ruptura da aliança entre a transferência e compulsão da repetição. Evocando Fédida, nela reconheceríamos a força de “insurreição de um humano pressentindo a potência hipnótica da horda” (Fédida, 2004, p. 10). Medeia, a estrangeira, a menina anacrônica, é figura privilegiada do Zeitlos, de nossa radical estranheza no limite do memorável. Medeia, o feminino, na borda da transferência. Seu arcaísmo intransponível designa a transferência em seu caráter selvagem, irredutível a uma psicologia de relações.

 

Referências

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Schaffa, S. (2008). Entre a violência e o vazio: a escuta do feminino. Revista Brasileira de Psicanálise, 42(4), 55-66.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Sandra Lorenzon Schaffa
R. Iquitos, 388
05444-20 São Paulo, SP
Fone: (11) 3031-9215
E-mail: sandralorens@uol.com.br

Recebido em: 25/06/2009
Aceito em: 02/07/2009

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Em “Entre a violência e o vazio: a escuta do feminino” (Schaffa, 2008), utilizo a expressão barragem, emprestada de Marguerite Duras, para nomear uma modalidade de defesa própria ao feminino que ultrapassa a ordem da castração. A partir de um caso clínico, em que a resistência configurava-se radicalmente como dissolução da palavra analítica, a tese de Michèle Montrelay, de que feminilidade faz fracassar a interpretação, na medida em que ignora o recalcamento, é explorada. A ideia de barragem supõe a constituição da feminilidade a partir de uma relação simultaneamente autoerótica e narcisista da mulher com seu corpo e implicará tecnicamente o reconhecimento da transferência em sua extensão autoerótica, do autoerotismo na fonte das condições de perlaboração própria ao trabalho analítico.
2 Carta a Fliess, 15/10/1897.
3 Cf. “Juventude de Gide ou a letra e o desejo” (Lacan, 1966, pp. 769-764).
4Mes amies, ma décision est prise: sans perdre un instant, tuer mes enfants et fuir de ce pays. Je n’entends pas, par mes délais, les livrer aux coups d’une main ennemie. De toute façon, ils sont condamnés. Puisqu’il est ainsi, c’est moi qui vais les tuer, moi qui leur ai donné la vie. Arme-toi donc, mon coeur. À quoi bon hésiter pour accomplir l’acte terrible, inéluctable? Allons, ma main, mon audacieuse main, prends le couteau, allons vers la barrière qui ouvre sur la vie maudite, ne faiblis pas, oublie que tes enfants son ton bien le plus cher, que tu les mis au monde. Oublie-les pour un court instant. Tu pleureras ensuite. Tu les tues et cependant tu les aimes. Ah! Pauvre femme que je suis!”.
5 Um individualista como Eurípedes encontraria fatalmente oposições em todas as épocas. Mas nenhuma época lhe teria respondido como a Atenas de seu tempo &– pela comédia de Aristófanes (Carpeaux, 2008, p. 68).
6 Em “Entre a violência e o vazio: a escuta do feminino” (Schaffa, 2009), a ideia de constituição da feminilidade, a partir de uma relação simultaneamente autoerótica e narcisista da mulher com seu corpo, tem relevo na apresentação de um caso em que a resistência configurava-se radicalmente como dissolução da palavra analítica. Discutindo a tese de Michèle Montrelay, de que feminilidade faz fracassar a interpretação, na medida em que ela ignora o recalcamento, conduzimo-nos a admitir a importância de abordar a transferência em sua extensão autoerótica, ao reconhecimento do autoerotismo como fonte das condições de perlaboração própria ao trabalho analítico.
7Jure par le sol de terre, par le Soleil, père de mon père” (Eurípedes, 1962, p. 167).
8Mon grand péché, je l’ai commis le jour où j’ai quitté la maison paternelle, me fiant aux paroles d’un Grec, le même qui, les dieux aidant, va me payer sa peine. Les enfants nées de moi, jamais il ne les reverra vivant, aprés ce jour. Et ce n’est pas sa jeune femme qui lui donnera d’autres...” (Eurípides, 1962, p. 169).
9Non jamais le navire Argo n’aurait dû parvenir en Colchide/ Forçant au vol la passe couleur de nuit des Symplégades!/ Jamais dans les creux du Pélion, le pin abattu n’aurait dû tomber pour mettre la rame aux mains des héros que Pélias chargeait de rapporter la Toison d’or!/ Leur flotte n’aurait par ramené ma maitresse Medée le coeur étourdi d’amour Jason, jusqu’aux tours d’Iolco” (Eurípides, 1962, p. 135).
10 Segundo Michèle Montrelay: “Quando ela se perde como substância de gozo que excede, ao mesmo tempo contendo as bordas do corpo e seus objetos, quando dá à luz, pega pelo infinito do outro ‘não-toda’, nesse momento uma mulher torna-se mãe simbólica” (Montrelay, 1977, p. 139).

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