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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.42 n.76 São Paulo jun. 2009

 

TRABALHOS NÃO-TEMÁTICOS

 

Curiosidade e imaginação

 

Imagination and curiosity

 

Curiosidad y imaginación

 

 

Izelinda Garcia de Barros*

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto foi escrito para a aula inaugural dos cursos do Instituto de Psicanálise, da Sociedade de Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 2009. Desenvolveu-se em torno de duas qualidades que a autora considera fundamentais para o exercício da clínica psicanalítica: curiosidade e imaginação &– e, portanto, muito apropriadas para serem evocadas naquela ocasião. Lembra a autora que curiosidade e imaginação impregnam os conceitos psicanalíticos de instinto epistemofílico e fantasia inconsciente. Após um breve preâmbulo sobre a história de tais conceitos em Psicanálise, segue-se material clínico que permite ilustrar os primeiros passos da construção de um novo conhecimento, a partir das interações da curiosidade e imaginação do paciente e do analista na sala de análise.

Palavras-chave: Desenvolvimento de conceitos, Investigação clínica.


ABSTRACT

This paper was written for the 2009 opening class of the courses in the Institute of Psychoanalysis, Brazilian Society of Psychoanalysis in Sao Paulo. It was developed around two attributes that the author considers essential for the psychoanalytic clinic exercise &– imagination and curiosity &– which for that reason were quite suitable to be evoked on the above-mentioned occasion. The paper also brings to mind that imagination and curiosity permeate the psychoanalytic concepts of epistemophilic instinct and unconscious fantasy. Following a brief preamble about the history of these concepts in Psychoanalysis, comes some clinical material that makes it possible to clarify the first steps to build new knowledge from the interactions between the patient’s and the psychoanalyst’s imagination and curiosity inside the analysis room.

Keywords: Concepts development, Clinical investigation.


RESUMEN

Este texto fue escrito para la clase inaugural de los cursos del Instituto de Psicoanálisis de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de Sao Paulo en 2009. La autora desarrolló el texto alrededor de dos atributos fundamentales para el ejercicio de la clínica psicoanalítica: la curiosidad y la imaginación, que desde su punto de vista son muy apropiadas para ser evocadas en esa ocasión. Señala también qué curiosidad e imaginación impregnan los conceptos psicoanalíticos de instinto epistemofílico y fantasía inconsciente. Después de una breve introducción sobre la historia de esos conceptos en psicoanálisis, a continuación un material clínico que permite ilustrar los primeros pasos de la construcción de un nuevo conocimiento desde de las interacciones de la curiosidad y de la imaginación tanto del paciente como del analista en el consultorio de análisis.

Palabras clave: Desarrollo de conceptos, Investigación clínica.


 

 

Caros amigos, a palavra aula, em sua origem latina, designa um grande pátio que dá acesso à entrada de um edifício. Dispunham, então, as universidades de um anfiteatro imponente, chamado Aula Magna, usado para eventos especiais que congregavam grande número de pessoas.

Por extensão, a aula inaugural, que marca o início do ano letivo e das atividades acadêmicas, passou a receber o nome de Aula Magna, e é definida como uma solenidade na qual uma pessoa conhecida expõe à comunidade universitária seus conhecimentos sobre um assunto de interesse compartilhado.

Segundo os costumes desta Casa, uma aula inaugural marca e comemora o início dos trabalhos no Instituto de Psicanálise &– e aqui estou eu, uma pessoa conhecida de quase todos, para dar continuidade a essa tradição.

Penso, entretanto, que tais cerimônias encontram suas raízes simbólicas nos procedimentos rituais de passagem, segundo os quais o jovem é recebido na comunidade adulta.

Nessa passagem de gerações, o aspirante tem, a acompanhá-lo, como padrinho ou guardião, um dos decanos do grupo, representante dos conhecimentos sobre a cultura e os padrões éticos do grupo.

Um grande banquete, com música e dança, traz o esperado fecho do período probatório. Assim, bem alimentados, todos se sentem honrados e felizes.

Os aspirantes, por terem vencido com garbo as tarefas exigidas; o mentor, por ter sido o escolhido para apadrinhá-los.

E, com eles, os demais membros se alegram com a certeza da continuidade de sua história.

Inspirada por esse modelo, cumprimento os novos candidatos afiliados aqui presentes pela sua conquista; agradeço aos colegas da SBPSP, na pessoa de João Baptista Novaes Ferreira França, atual diretor do Instituto, a honra de ser indicada para conduzir este evento; lembrando de Durval Marcondes, Lygia Amaral e Virgínia Bicudo, agradeço o esforço pioneiro e o exemplo de integridade dos que nos antecederam; finalmente, compartilho com esta assembleia o estimulante sentimento de vitalidade que acompanha a chegada de uma nova geração.

A família humana alimenta, dá abrigo e transmite habilidades e conhecimentos à prole, que, graças a qualidades inatas, busca no ambiente apoio para seu desenvolvimento.

Hoje, somos unânimes em concordar que curiosidade e imaginação fazem parte desse grupo privilegiado de condições que possibilita os mais altos empreendimentos da espécie.

Mas nem sempre foi assim.

Em meados do século 19 e início do século 20, quando a Psicanálise dava seus primeiros passos, dificilmente o tema de hoje teria o aval da Academia para uma aula inaugural, dada as conotações negativas frequentemente associadas às suas características.

É verdade que a curiosidade científica, disciplinada pela razão, gozava de enorme prestígio &– o que dizer, no entanto, da curiosidade infantil reprimida e desestimulada pelos padrões que regiam os métodos de bem criar e educar as crianças?

É verdade também que a escola romântica, que presidia a literatura, a música e as artes plásticas, valorizava enormemente o exercício da imaginação.

Mas, fora essas manifestações sublimes do espírito humano, outras atividades imaginativas eram vistas com desconfiança e consideradas prejudiciais ao estudo e à formação do caráter.

Entre tantos outros assuntos, Freud também lançou um olhar novo sobre a curiosidade das crianças e a imaginação das histéricas e, com isso, iniciou o extenso caminho que hoje percorremos com nossos pacientes, ora com alegria, ora com desespero, em busca de uma mirada mais fresca para o familiar, para o já conhecido, e com um propósito mais desarmado diante do que é estranho e inusitado.

Assim, em torno da clínica, forma-se nosso acervo pessoal de leituras, reflexões e aprendizado.

Tenho claro que a curiosidade e a imaginação, estimuladas diariamente pelo encontro analítico, são parte integrante do arcabouço que sustenta meu compromisso com a Psicanálise e que me levam sempre de volta ao que ensinam os autores clássicos &– nossos antepassados &– e orientam, em grande parte, meu interesse por obras e artigos contemporâneos.

Entendo que sobre esse amálgama entre intuições-na-sessão e a busca de formas adequadas de pensamento, que permitam dar comunicabilidade a tais experiências, é que se desenvolve o estilo de trabalho de cada analista.

Baseada nessas premissas, organizei minha exposição em torno de um material clínico que considero ilustrativo das interações entre a curiosidade (ou a ausência dela) e imaginação do paciente e do analista na sala de análise, com uma breve menção à capacidade criativa da dupla analítica.

Era no começo de sua análise. À época, Antônio tinha 3 anos e meio. Um pouquinho rechonchudo, no seu rosto claro, emoldurado por franja e cabelos loiros, destacavam-se os olhos escuros e grandes. Um fofo, como se diz, não fosse ele tão taciturno e seu olhar tão distante.

Ocupava-se em movimentar (pelo chão, pelas paredes e móveis da sala) carrinhos e aviões, replicando com perfeição assustadora o ruído característico dos motores a explosão. Impossível imitá-lo: os sons que emitia não pareciam estar dentro do espectro da voz humana. Então, eu lhe dizia que aqueles sons eram a conversa dos carrinhos e dos aviões.

No meu entender, carrinhos e aviões intermediavam sua pesquisa sobre a sala: texturas, consistências, luminosidade, reflexão de sons &– que sei eu. No entanto, quando havia um pequeno silêncio, eu encaixava alguma tradução da linguagem dos carrinhos em conversa de gente, baseada em indícios sutis e muita imaginação.

Estávamos nisso quando notei que flashes quase imperceptíveis de um segundo tema, tendo como centro uma das janelas da sala, apareciam nas frestas de sua ruidosa atividade principal.

De qualquer lugar da sala, lançava olhares furtivos para a tal janela. Sem aparente intencionalidade, esbarrava na cortina, modificando sua abertura ou aspirando seu tecido, passava a mão ‘distraidamente’ pelo vidro, ao mesmo tempo em que movimentava um carrinho pela parede.

Um dia, enquanto manipulava os aviões, Antônio voltou-se para mim e perguntou com clareza: “Como chama?”.

Acompanhei seu rápido olhar para a janela aberta naquele dia de sol. Dentre as largas folhas escuras da pequena touceira de estrelítzias no jardim, destacava-se o forte colorido de sua exótica flor que, pelo seu formato, costuma ser conhecida como ave-do-paraíso. Disse-lhe que era uma flor, que parecia a cabeça de um galo, e juntei os dedos em forma de bico.

Atento, seu olhar ia da minha mão para a flor e, dela, voltava-se para mim, avaliando o que acabara de ouvir. Uma expressão mais leve, quase sorridente, foi aparecendo em seu rosto. Voltou-se para mim e afirmou, com a satisfação do artista diante da sua criatura: “Parece uma cabeça de galo”.

Talvez a alegria que acompanhou esse encontro criativo entre nossas mentes me leve a afirmar que a sala tenha ficado mais clara naquele momento, mas é certo que essa minha lembrança, aqui articulada em uma narrativa, contém, para além das palavras, algo que Klein nomeou como “memories in feelings”, isto é, vivências muito primitivas, anteriores à aquisição da linguagem, e que se atualizam como emoções na relação transferencial-contratransferencial.

Antônio não mostrava a rica paleta de afetos que as crianças de sua idade exibem diante das pessoas. Não que fosse indiferente a elas: sua forma de reagir à sua presença lhe era tão peculiar que facilmente podia se inferir que ele não se interessava mesmo por elas.

No exemplo acima, sugiro que sua atividade incessante, circulando com os carrinhos pelas paredes, pelo chão, pelos móveis, cheirando as cortinas, era uma expressão primitiva de sua curiosidade pela analista-ambiente.

Entendo também que os ruídos que acompanhavam sua rota, faziam parte do movimento contrário &– isto é, furtar-se a qualquer contacto comigo, proteger-se, por assim dizer, da sua própria curiosidade. Eram como uma casca rígida, a resguardá-lo e a nos separar.

Como aparentemente ele ignorava minha presença e ocupava-se com sua atividade repetitiva, eu ficava a observá-lo e a recolher fiapos de reação às minhas interferências, que eram curtas, discretas, mas constantes.

Começou a se estabelecer certa convergência entre sua curiosidade e minha imaginação, que inventava a conversa dos carrinhos e as traduzia para linguagem de gente. Minha perseverança em manter essa conduta contribuía para me dar um contorno particular, destacado das demais pessoas, que costumavam reagir com desespero, complacência ou indiferença diante da teimosia, das birras, do isolamento que o tornavam inacessível.

Pois bem, a flor da estrelítzia demora alguns dias para abrir. Certamente, Antônio vinha acompanhando esse processo, daí seu interesse pela janela. Eu percebia aquele interesse, mas não identificava seu foco, provavelmente porque nem a flor nem sua maturação eram novidades para mim.

Neste ponto da narrativa, encontramos, então, o pequeno Antônio às voltas com o aguilhão de sua curiosidade. Vencendo, por fim, todas as barreiras, surgira a pergunta. Ao fazê-la, deixara implícita a esperança de que eu de fato estaria interessada nele, pois a doutora não vivia atribuindo sentido às suas bizarrices?

No encontro da sua pergunta com a minha resposta, criou-se para Antônio uma flor, até então um objeto sem sentido para ele. Uma experiência valiosa para ele e uma surpresa agradável para mim, uma vez que revivi, naquele momento, o encantamento de ‘criar’ uma flor sempre presente no meu jardim.

Com a afirmação de Winnicott: “Criatividade consiste em ser capaz de manter, durante a vida, algo que pertence à experiência infantil de criar o mundo”,1 resumo e encerro a ilustração clínica deste trabalho.

A seguir, retomarei algumas considerações teóricas a respeito do tema proposto.

Curiosidade e imaginação, qualidades observáveis no comportamento humano, foram o ponto de partida para o desenvolvimento dos conceitos psicanalíticos de fantasia inconsciente e de instinto epistemofílico. Ambos surgiram bem cedo na obra de Freud. A fantasia inconsciente já está configurada nos seus primeiros estudos sobre histeria; a pulsão epistemofílica &– ou, como gosto mais, instinto para o conhecer &– aparece na edição de 1915 dos Três ensaios, no item sobre as pesquisas sexuais da criança.

O conceito de fantasia inconsciente surge na resolução do impasse criado pelo insucesso da teoria da sedução ou do trauma infantil.

A incontestável superioridade da realidade psíquica sobre a realidade externa levou Freud a concentrar interesse na compreensão das fantasias inconscientes que, recalcadas, se exteriorizam em sintomas conversivos. Tais fantasias inconscientes tinham fonte nos devaneios diurnos e pareciam obedecer a certa estrutura básica universal, preenchida e colorida pela história pessoal de cada paciente.

A escola kleiniana, por sua vez, desenvolve o conceito de fantasia inconsciente, propondo que o fantasiar é uma atividade inata e as fantasias inconscientes são hipóteses que preparam a mente para a aproximação de novas experiências. Tais fantasias primitivas, onipotentes, modificadas pelo teste de realidade &– que, ainda que embrionário, também faz parte do equipamento original da mente &–, dão origem aos pensamentos. Essas transformações acontecem no interior das relações com objetos externos e, mais tarde, também na relação com os objetos internos. A importância ímpar do objeto materno nessas transações afetivas se deve tanto às funções de continência quanto à função primordial &– aliada do senso de realidade inato no ser humano &– de ensinar a pensar.

Entre as várias manifestações do comportamento das crianças, Freud atribuiu à curiosidade um lugar especial, conferindo-lhe o status de instinto secundário, mas, como todos os instintos, dotado de energia própria, derivada da escopofilia, e nomeou-o instinto para o conhecer.

Não é de se admirar que Freud tenha criado um nome próprio para esse instinto, considerando-se a enormidade de energia psíquica que ele despendia a serviço do seu próprio instinto para o conhecer. Tal conceito, de instinto para o conhecer, veio bem a propósito para nomear as observações de Klein a respeito da curiosidade das crianças.

A curiosidade inaugural, cujo foco era o misterioso interior do corpo materno, estava encadeada às pulsões genitais e às manifestações primárias do complexo de Édipo, que surgem, no seu entender, em torno dos seis meses de idade.

Klein percebeu também que, quando os adultos eram verdadeiros em suas respostas, a capacidade de fantasiar das crianças se expandia em explorações cada vez mais amplas, dirigindo-se para os acontecimentos do mundo externo, para os estudos e para o aprendizado em geral. Nesse modelo, a sinergia entre curiosidade e imaginação &– ou, no registro do inconsciente, instinto epistemofílico e fantasias inconscientes &– conduzia à formação de um sistema simbólico com ilimitada capacidade de desenvolvimento.

Tenho para mim, e sei que alguns não concordarão, que também Bion, em sua teoria sobre os vínculos emocionais, valeu-se do partido freudiano ao descrever as três emoções básicas que impregnam nossas transações afetivas, como Amor, Ódio e Conhecimento.

Creio que esses conceitos, rapidamente esboçados aqui, dão um corpo especialíssimo, raro mesmo, ao exercício da curiosidade e da imaginação do analista.

Embora apresentados sob forma conceitual, só fazem sentido emocional quando maturados e introjetados de tal maneira que passem a fazer parte não digo do DNA do analista, mas certamente daquele seleto grupo de aminoácidos essenciais para a síntese protéica de cada um de nós.

Ao encerrar minha fala, reitero meus cumprimentos aos novos membros afiliados e agradeço novamente o honroso convite para ocupar esta cadeira.

Lá atrás, no começo, falei que as comemorações rituais de passagem eram coroadas por um grande banquete.

Quanto ao banquete, aqui, nesta aldeia, o costume é diferente.

Pratos com nomes sugestivos, como seminários teóricos à moda vienense, discussões clínicas ao molho kleiniano, e a surpreendente combinação de ingredientes consagrados pelo talento bioniano vão sendo oferecidos, um a um, ano após ano, sem data para acabar.

Espero que este aperitivo, à moda de uma crônica, estimule seu apetite para os pratos principais.

 

 

Endereço para correspondência
Izelinda Garcia de Barros
R. Monte Alegre, 1.623
05014-002 São Paulo, SP
E-mail: izebarros@uol.com.br

Recebido em: 21/04/2009
Aceito em: 07/05/2009

 

 

* Membro efetivo e analista didata da SBPSP.
1 Citado por J. Amati Mehler, em “Algumas considerações sobre criatividade”. Conferência realizada na SBPSP, em 17 de novembro de 1997.

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