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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo jun. 2011
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Os dois vetores temporais de Nachträglichkeit no desenvolvimento da organização do ego: a importância do conceito para a simbolização dos traumas e ansiedades sem nome1
The two time vectors of Nachträglichkeit in the development of ego organization: significance of the concept for the symbolization of nameless traumas and anxieties
Los dos vectores temporales de Nachträglichkeit en el desarrollo de la organización del yo: la importancia del concepto para la simbolización de los traumas y ansiedades sin nombre
Gerhard Dahl2
German Psychoanalytical Association
International Psychoanalytical Association - IPA
Instituto Psicanalítico de Berlim
RESUMO
O autor descreve o conceito freudiano de Nachträglichkeit como processo ativo que, por meio do significado, preenche a lacuna entre vicissitudes afetivas passadas e o presente cognitivo. Assim, confere-se simbolização posteriormente [nachträglich] a eventos traumáticos anteriores, que se tornam suscetíveis ao controle onipotente. Discutem-se os dois vetores temporais de Nachträglichkeit: o primeiro é um processo causal que opera em direção ao avanço do tempo contra o pano de fundo da realidade factual, enquanto o segundo é um movimento regressivo que permite a compreensão de cenas e fantasias inconscientes que ocorrem no nível do processo primário. Esse movimento temporal em duas partes foi observado e descrito por Freud anteriormente. Contudo, sua importância permaneceu por vezes oculta antes do estudo do Moisés. Foi ignorado principalmente nas traduções para francês e inglês, dando assim origem a uma compreensão unilateral do conceito, nas diversas culturas psicanalíticas, como deferred action ou après-coup. O estudo de Freud sobre Moisés aborda tanto os aspectos temporais de Nachträglichkeit, procurando não só reconstruir o evento passado em base causal determinista, mas também compreender a verdade subjetiva desse evento na transferência segundo a linha retroativa do tempo. O critério decisivo para a separação conceitual e clínica dos dois vetores temporais é o desenvolvimento da organização de ego e a capacidade de simbolização. Os dois vetores não devem ser separados em nível factual, assim como ambos os aspectos de Nachträglichkeit são essenciais para a compreensão dos processos inconscientes, combinando-se como fazem em uma relação de complementaridade circular.
Palavras-chave: Après-coup, Deferred action, Traumas iniciais, Organização do ego, Realidade fatual, Nachträglichkeit, Simbolização, Vetores de dois tempos, Fantasia inconsciente, Cena inconsciente.
ABSTRACT
The author describes Freud's conception of Nachträglichkeit as an active process that bridges the gap between past affective vicissitudes and the cognitive present by way of meaning. Symbolization is thereby subsequently [nachträglich] conferred on early traumatic events, which thus become susceptible to omnipotent control. The two time vectors of Nachträglichkeit are discussed: the first is a causal process operating in the forward direction of time against the background of a factual reality, while the second is a backward movement that permits an understanding of unconscious scenes and phantasies taking place at primary-process level. This twofold temporal motion was observed and described by Freud early on. However, its significance often remained hidden prior to his study of Moses. It was mostly overlooked in English and French translations, thus giving rise to a one-sided understanding of the concept in the various psychoanalytic cultures, as either deferred action or après-coup. Freud's Moses study addresses both temporal aspects of Nachträglichkeit, seeking not only to reconstruct a past event on a causal, deterministic basis, but also to understand the subjective truth of that event in the transference along the retrograde time line. The decisive criterion for the conceptual and clinical separation of the two time vectors is the development of ego organization and the capacity for symbolization. The two vectors should not be separated on the factual level, as both aspects of Nachträglichkeit are essential to the understanding of unconscious processes, combining as they do in a relationship of circular complementarity.
Keywords: Après-coup, Deferred action, Early traumas, Ego organization, Factual reality, Nachträglichkeit, Symbolization, Two time vectors, Unconscious phantasy, Unconscious scene.
RESUMEN
El autor describe el concepto freudiano de Nachträglichkeit como un proceso activo que por medio del significado rellena las lagunas entre vicisitudes afectivas pasadas y el presente cognitivo. De esta manera, la simbolización se confiere con posterioridad [Nachträglich] a los sucesos traumáticos anteriores, pasando a ser susceptibles al control omnipotente. Se debate sobre dos vectores temporales de Nachträglichkeit: el primero se refiere a un proceso causal que opera en dirección al avance del tiempo contra la tela de fondo de la realidad factual, mientras que el segundo alude a un movimiento regresivo que permite la comprensión de escenas y fantasías inconscientes que ocurren en un nivel de proceso primario. Ese movimiento temporal que ocurre en dos partes fue anteriormente observado y descripto por Freud. Mientras tanto, su importancia permaneció oculta antes del estudio de Moisés. Principalmente fue ignorado en las traducciones para el francés e inglés, originando una comprensión unilateral del concepto en las diversas culturas psicoanalíticas, como deferred action o après-coup. El estudio de Freud sobre Moisés aporta tanto los aspectos temporales del Nachträglichkeit, buscando no solamente reconstruir los sucesos del pasado con una base causal determinista, sino comprender la verdad subjetiva de este acontecimiento en la transferencia según la línea retroactiva del tiempo. El criterio decisivo para la separación conceptual y clínica de los dos vectores temporales es el desarrollo de la organización del yo y la capacidad de simbolización. Los dos vectores no deben ser separados en nivel factual, así como los dos aspectos del Nachträglichkeit son esenciales para la comprensión de los procesos inconscientes, combinándose como sucede en una relación de complementariedad circular.
Palabras clave: Après-coup, Deferred action, Traumas precoces, Organización del yo, Realidad factual, Nachträglichkeit, Simbolización, Vectores de dos tiempos, Fantasía inconsciente, Escena inconsciente.
Nachträglichkeit é uma das concepções mais importantes de Sigmund Freud, e sua influência no pensamento psicanalítico dificilmente pode ser exagerada. Como base do ponto de vista psicanalítico de memória e temporalidade, está intimamente relacionada com a teoria da libido. Nesse contexto, encontrou sua forma na Edição standard (Strachey et al., 1953-1974), como "deferred action". Essa tradução logo se mostrou problemática, pois era passível de ser mal compreendida como mera ab-reação depois do evento, o que não era o que Freud pretendia dizer (Laplanche & Pontalis, 1973 [1967], p. 114). Versões sugeridas depois foram "retranscrição" (Modell, 1990, 2001), "posterioridade" (Laplanche, 1991), ou, como adjetivo, "retroativo" (Thomä & Cheshire, 1991), para contradizer a possibilidade de compreensão puramente metapsicológica ou econômica do conceito. Contudo, por muitos anos dificilmente recebeu qualquer atenção científica no mundo de língua inglesa, especialmente depois que o princípio econômico de descarga foi posto em questão: "Nunca senti falta do conceito", escreveu Ignês Sodré (2005, p. 7), comentando recentemente a concepção predominante de Nachträglichkeit na psicanálise de língua inglesa. De fato, ainda na década de 1950, Jacques Lacan chamou a atenção para a importância do conceito no caso do Homem dos Lobos. Desde essa época, tem sido discutido principalmente nos círculos filosóficos franceses. Lacan propôs que Nachträglichkeit deveria ser traduzido por effet d'après-coup mais do que après-coup, já que o último era equivalente a "deferred action" em inglês com sua conotação determinista. Afinal, o Nachträglichkeit de Freud envolvia dois vetores temporais. O termo não significava "um simples adiamento na ação efetuada pelo passado no presente … o effet d'après coup é também efetivo no vetor reverso: do presente para o passado" (Bourguignon et al., 1989, citado por Thomä & Cheshire, 1991, p. 422). Atualmente, a tradução equivalente de Laplanche, après-coup, é amplamente aceita, apesar de ser explicitamente baseada na concepção inglesa. Para Laplanche, "na psicanálise, a causa, apesar de antiquada e arcaica, tem sido efetivamente reintegrada …" (Laplanche, 1992a, p. 432, minha ênfase). Laplanche rejeita o significado do segundo, efeito retroativo na tradução de Lacan (como effet d'après-coup) – ao menos para o método psicanalítico tal qual definido por Freud –, pois causalidade não pode operar para trás no tempo. Para Laplanche, Nachträglichkeit como après-coup leva a reconstruções de sequências de significados determinados historicamente que constituem a verdadeira base da psicanálise; por outro lado, a busca hermenêutica de significado (isso é, o effet d'après-coup), assim como qualquer compreensão, encontra seu lugar na transferência quando provocada pelas mensagens enigmáticas do analista (Laplanche, 1992b). A concepção hermenêutica de effet d'après coup distingue-se assim do après-coup do método psicanalítico tal qual compreendido por Freud. Contudo, ambos têm o seu lugar na interpretação psicanalítica – entre determinismo e hermenêutica (Laplanche, 1992a, 1996).
Nos últimos anos, Faimberg (1998, 2005, 2007), investigando não só o movimento à frente, mas também o aspecto retroativo de Nachträglichkeit em sua forma francesa condensada après-coup, deu novo impulso à reflexão clínica sobre esse importante conceito.
Ao longo dos anos, contudo, vários analistas britânicos se interessaram pela psicanálise francesa e seguiram seu desenvolvimento.3 Por exemplo, Kohon (1986) discute Nachträglichkeit em seu livro publicado em 1986, e Perelberg (1997) aborda o après-coup em seu trabalho de 1997, originalmente apresentado na Sociedade Britânica em 1993. Em seu artigo "Tempo e après-coup", Birksted-Breen (2003, p. 1501) descreve o indissolúvel movimento em dois tempos de antecipação e retrospecção, mostrando como "no nível micro do material da sessão, o tempo progressivo e o retrospectivo caminham inerentemente juntos, um sendo requisito para o outro". Ela também salienta que a tradução de Strachey de Nachträglichkeit como "deferred action" é uma "tradução má e o motivo pelo qual não lhe foi dada importância no mundo de língua inglesa" (Birksted-Breen, 2003).
Entre os autores de língua germânica, Eickhoff (2005, 2006), em seu artigo "On Nachträglichkeit: The modernity of an old concept", salienta a complementaridade circular de ambas as direções do tempo. Ele observa que essa tradução, a francesa après-coup e a versão inglesa deferred action, "enfatizou os dois vetores (retroatividade e efeito a posteriori) separadamente, mas os termos estão unidos na forma substantiva [Nachträglichkeit] cunhada por Freud" (Eickhoff, 2006, p. 1453).
Après-coup poderia assim complementar a versão obsoleta do conceito como "deferred action", ajudando desse modo que Nachträglichkeit assuma importância renovada também no mundo de língua inglesa – a menos e até que os falantes da língua inglesa estejam preparados para abandonar a tradução sempre enganosa e passem a usar o termo alemão. O vetor temporal em deferred action é linear e definido inequivocamente em termos causais e deterministas, exatamente da mesma forma que a compreensão de Laplanche sobre après-coup. No entanto, em seu trabalho sobre après-coup, Faimberg descreve principalmente o vetor retroativo de tempo de Nachträglichkeit. Esse é o sentido em que se utiliza o termo neste artigo.
A história desse conceito especial é também a história das dificuldades envolvidas ao se transferir conceitos metapsicológicos de uma cultura psicanalítica para outra. Algumas dessas noções – incluindo Nachträglichkeit – são neologismos criados por Freud, que lhe permitiram dar nome a processos inconscientes, e a especular sobre seus significados e dinâmicas. O conceito Nachträglichkeit não é inequívoco nem mesmo na Alemanha, e pode em última análise ser compreendido somente no contexto da obra completa de Freud, em que é usado principalmente no sentido metapsicológico determinista – econômico e temporal – mas também, desde o começo, hermeneuticamente.
A propósito das dificuldades de tradução, porém, nenhuma das duas traduções – a inglesa deferred action e a francesa après-coup – transmite o pleno significado do termo alemão tal qual utilizado por Freud. Cada uma expressa aspectos parciais distinguíveis cujo significado pode ser construído de diferentes maneiras. No caso de "deferred action", a interpretação reconstrói fatos empíricos depois do evento [nachträglich], com a intenção de explicar o presente pelo passado, enquanto em après-coup a interpretação toma a forma de uma tentativa de usar o presente a fim de conferir significado ao passado depois do evento [nachträglich]. A divergência de recepção de Nachträglichkeit nas duas culturas psicanalíticas destaca a controvérsia ainda não resolvida no que diz respeito, por um lado, ao status da realidade externa para o desenvolvimento psíquico, e, por outro, a importância do mundo interno. As traduções divergentes do termo, de fato, resultaram na separação dos seus vetores de dois tempos e, como se sabe, isso não tem acontecido sem consequências para a evolução subsequente da teoria psicanalítica.
Nas próximas páginas os vetores de dois tempos envolvidos no processo de Nachträglichkeit serão inicialmente discutidos separadamente, por meio de quatro pontos de vista.
1. Primeiro serão considerados no sentido causal e determinista de deferred action relativo a experiências reais no mundo externo.
2. O segundo aspecto a ser abordado será o sentido hermenêutico de conferir significado, de acordo com a concepção francesa de après-coup como um movimento retroativo no tempo, expresso em um nível além da experiência cognitiva real.
3. Explicaremos então por que os dois aspectos não devem ser entendidos como alternativos, mas, ao contrário, complementando necessariamente um ao outro de acordo com o desenvolvimento do ego e do princípio da realidade, enquanto ao mesmo tempo formam um movimento duplo indissolúvel de antecipação e retrospecção no processo analítico de transferência/contratransferência. Dessa maneira, a realidade factual reprimida pode ser cognitivamente construída (ou reconstruída), por exemplo, com ajuda da interpretação psicanalítica, pelo processo de Nachträglichkeit; e, similarmente, pode-se conferir significado depois do evento [nachträglich] a uma fantasia inconsciente cuja existência não se baseia em experiências da realidade externa.
4. Por fim, então, Nachträglichkeit é concebido como processo ativo que simbolicamente preenche a lacuna entre um evento reprimido que não era compreendido – ou certamente cenas sem nome do período muito inicial da vida – e o presente cognitivo por meio do significado de um afeto traumático.
Deferred action
Em toda a sua obra, o próprio Freud mencionou repetidamente os dois aspectos de Nachträglichkeit, chamando a atenção para o fator tempo desde seus primeiros textos. No Projeto (Breuer & Freud, 1895, p. 356), por exemplo, ele descreve o caso da sua paciente Emma, em que "a memória [suscita] um afeto que não surgiu como experiência, pois nesse ínterim a mudança [ocasionada] na puberdade tornou possível uma compreensão diferente do que foi lembrado". Ele acrescenta que, nesse exemplo, "reprime-se uma lembrança que só se tornou trauma por deferred action [nachträglich]. A causa desse estado de coisas é a demora da puberdade em comparação com o resto do desenvolvimento do indivíduo" (ibidem, ênfase de Freud). Posteriormente, a história do caso do pequeno Hans é "outro bom lembrete de que o que surge do inconsciente não é para ser compreendido à luz do que vai antes, mas do que vem depois" (Freud, 1909a, p. 66). Novamente, em nota de rodapé do caso do Homem dos Ratos do mesmo ano, Freud deixa inequivocamente claro que as "'lembranças da infância' das pessoas somente se consolidam em um período posterior, geralmente na puberdade, e isso envolve um complicado processo de remodelação". Isso diz respeito às fantasias do sujeito sobre sua infância "na medida em que cresce [ele] se esforça para apagar as recordações das suas atividades autoeróticas [ênfase de Freud] tal como um historiador verá o passado à luz do presente" [minha ênfase] (1909b, p. 206, n. 1). Nesses exemplos, Nachträglichkeit confere um significado traumático perceptível não ao evento, mas à memória. Em virtude do caráter difásico e à latência em relação à compreensão das relações temporais e causalidade psíquica, essa concepção é, como Eickhoff (2006, p. 453) escreve, "indispensável…". "Como princípio implícito está ligada ao adiamento e ao início bifásico da vida sexual". No entanto, reteve com frequência seus significados ocultos até a época do estudo de Moisés, em que Freud chamou explicitamente a atenção para "descoberta desconfortável" de que o que separava esse aspecto de Nachträglichkeit do seu vetor temporal linear era um fator particular de tempo – isto é, uma questão de desenvolvimento do ego. Isso será discutido em detalhe abaixo.
Uma concepção inicial de Nachträglichkeit aparece, como se sabe, em carta de 1896 a Wilhelm Fliess, em que Freud escreve que eventos muito iniciais na vida são posteriormente [nachträglich] retranscritos e revisados no aparelho psíquico por novas experiências (Masson, 1985, p. 207). Isso representa a fundação de uma teoria causal da neurose, pois "impressões do período pré-sexual que não produziram efeito na criança alcançam poder traumático mais tarde como lembranças" (Breuer & Freud, 1895, p. 133). Desde o começo, o fenômeno de Nachträglichkeit era tão significativo para Freud que ele mais tarde pôde de fato atribuir-lhe "uma participação importante na determinação dos sintomas da doença" (Freud, 1909a, p. 35). O que teve efeitos em data posterior [Nachträglich] foram eventos muito iniciais cujas "lembranças reprimidas se relacionam com o atual … entre 1 ano e meio e 4 anos de idade" (Masson, 1985, p. 208f; ver também Freud, 1918, p. 48). Aqui sua atribuição para a data da lembrança possivelmente mais remota é surpreendentemente exata – a idade de 1 ano e meio, época em que o ego em processo de maturação já é capaz de perceber fatos reais, mas ainda não pode entendê-los. Freud ocupou-se repetidamente com a questão do que acontecia com eventos antes de 1 ano e meio de idade, nas primeiras fases da vida, quando o ego imaturo ainda não é capaz de formar representantes ideativos. Sua teoria pulsional não lhe deu uma resposta metapsicológica para essa questão, ou deu, no máximo, apenas uma resposta genérica.
As pulsões, conceito-limite entre o mental e o somático, só são percebidas como evento psíquico em forma de representantes. Freud distinguiu o representante ideativo, representações de coisa e representações de palavras, do montante de afeto ou representante afetivo:
Para designar esse outro elemento do representante psíquico já tem sido geralmente adotado o termo montante afetivo; ele corresponde ao instinto, na medida em que esta se desligou da ideia e acha expressão, proporcional à sua quantidade, em processos que são percebidos como afetos. (Freud, 1915, p. 152)
No entanto, somente com o surgimento do representante ideativo é que as experiências iniciais podem tornar-se eventos que podem ser lembrados. O montante de afeto por si só não pode ser pensado nem lembrado cognitivamente; em um primeiro momento, aparentemente não tem efeito. No entanto, a experiência emocional surge com as necessidades da vida. Para descrever um evento traumático que ainda não pode ser simbolizado, Freud dá o exemplo de um bebê necessitado que não consiga "descarregar" a tensão relativa à excitação. Para esse evento, não se tem ainda um representante ideativo. Ele remonta a muito antes da época em que essas lembranças seriam possíveis e permanece silencioso na medida em que o trauma só pode ser psiquicamente representado por seu montante de afeto. Não há dúvida de que a mais forte influência na vida é exercida por experiências muito remotas, anteriores a 1 ano de idade, para qual a medida da realidade factual que pode ser lembrada é menor quanto mais precoce for a experiência. Novamente, é somente a realidade histórica atual do evento sexual – por exemplo, a sedução no caso de Katharina ou a cena primária no caso do Homem dos Lobos – que pode ser reconstruída com o auxílio de uma interpretação. Mas como eventos de um período muito inicial, que para o sujeito não são eventos, podem ser psiquicamente percebidos e tornar-se passíveis de apreensão psicanalítica? Naturalmente, esse problema também ocupou Freud, pois lança dúvidas sobre a teoria causal e determinista das neuroses, em que esses eventos de um período muito inicial não parecem ter explicação adequada. Freud encontrou uma resposta inicial para essa questão espinhosa na observação de que o complexo de Édipo representa, em data posterior [nachträglich], o todo da sexualidade infantil – isto é, incluindo o período mais remoto da infância. Aqui, o efeito pós-factual se liga ao efeito pós-hermenêutico-interpretativo, que já envolveu um "complicado processo de remodelação" (ver acima): vestígios de lembranças remotas são elevados ao nível do amor objetal edipiano e agora podem ser contemplados após o evento [nachträglich] à luz das fantasias edipianas via o vetor retroativo temporal. O exemplo clínico a seguir tenta ilustrar esse problema de forma mais detalhada.
O Sr. A, alto funcionário de 27 anos, esteve em análise por muitos anos, quatro vezes por semana, devido a dificuldades de relacionamento e ansiedades a respeito de impotência. Seus sintomas logo mostraram ser expressão de uma depressão narcísica contra ansiedades primitivas de separação. Ele era filho único de uma família de classe média. Enquanto seu pai ficava ausente de casa durante a semana, e só voltava nos fins de semana, o paciente desenvolveu uma intensa relação incestuosa e narcisista por sua mãe, que era, entretanto, neutralizada em parte pela proximidade dos avós. Ele recorda sair para passeios a pé com seu avô quando tinha 4 ou 5 anos, quando eles frequentemente passavam por um gasômetro cuja aparência mudava constantemente: algumas vezes parecia alto e outras, muito baixo. Isso, ele achava tremendamente fascinante, mas também despertava ansiedade.
Essa lembrança do fato do gasômetro, e sua mudança de tamanho, progressivamente tornou-se mais compreensiva no contexto dos problemas narcisistas do paciente. Era a expressão simbólica das fantasias narcísicas de onipotência e grandiosidade do menino, mas também as ansiedades de castração e aniquilação que subsequentemente o trouxeram para a análise. A lembrança relatada em si de forma alguma teria recebido qualquer atenção particular a não ser por um detalhe adicional digno de nota de que ele subjetivamente a considerava uma lembrança verdadeira absolutamente definida:
Na infância, ele carregando na mão uma boneca que ele então arremessava para o topo do gasômetro, em sua altura máxima, com um "sentimento de triunfo", fazendo-o imediatamente se encolher. Porém, como ele nunca tivera uma boneca, e, além disso, certamente não conseguiria arremessá-la tão alto, esse detalhe da sua lembrança lhe era totalmente inexplicável.
A boneca foi um enigma que durante muito tempo resistiu a qualquer solução. Foi um projétil fálico onipotente usado em rivalidade contra o pai edipiano ausente para atacá-lo e privá-lo da sua potência? Ou a boneca era uma encarnação da parte depressiva do seu self de menino de 5 anos? Mas, nesse caso, qual teria sido o aspecto intolerável de si mesmo que deveria ser eliminado com a boneca? Era a sua própria agressão fálica? A importância decisiva da boneca permaneceu obscura por muito tempo. A ideia óbvia de um bebê também não me ocorreu até o paciente mencionar, de passagem, depois de uma visita a sua mãe, um detalhe biográfico que aprendera, provavelmente de modo incidental, na puberdade, e depois esquecera novamente: quando ele tinha 2 anos, a mãe dera à luz um bebê que morreu em poucos dias. O Sr. A não tinha lembrança disso, nem se recordava de o assunto ser comentado na família. Entretanto, na análise essa informação trouxe novo enfoque para o real significado da boneca, que não tinha sido compreendido e tinha sido rechaçado, mas que tinha sido simbolizado pela lembrança encobridora: o menino de 2 anos destruiu a gravidez da mãe na sua fantasia onipotente destrutiva. Em nível totalmente inconsciente, esse ato posteriormente encontrou representação simbólica na percepção do gasômetro que inchava e depois encolhia. Isso tem a ver com um irmãozinho bebê que desaparece de volta na barriga da mãe – fantasia representada na imagem da boneca. O menino de 2 anos vivenciou as mudanças na aparência e no comportamento da mãe de modo traumático como realidade factual, mas não as entendeu. Com 4 ou 5 anos, com o progresso de desenvolvimento do seu ego, ele construiu ativamente por si uma lembrança (encobridora), que nessa fase posterior [nachträglich], deu expressão simbólica a essa situação dramática e sua dinâmica interna. Dessa forma, ele tomou posse de um evento sem nome que tinha percebido, mas não entendido, mas que agora tinha mais recursos para lidar. Em forma de lembrança encobridora, preencheu-se a lacuna que o separava de um passado histórico inconsciente e que subsequentemente foi possível integrar por meio de interpretação na sua história, em que o ódio aos objetos primários finalmente não mais necessitava ter um papel central. A explicação causal da lembrança encobridora nesse caso está nos eventos reais da primeira infância do paciente. Entretanto, será que isso significa que o evento primitivo já tenha sido totalmente compreendido? Foi feita uma tentativa de reconstruir os fatos externos, mas como foi possível ter acesso ao mundo interno da criança, ao seu ódio, fantasias e seu sentimento de culpa?
Esse exemplo ilustra, em primeiro lugar, o conhecido vetor linear temporal de Nachträglichkeit. A ideia de explicar causalmente o presente (a lembrança encobridora do exemplo) com base no passado não é uma descoberta nova. Freud desde cedo reconheceu que eventos reais para uma criança abaixo de 2 anos jamais são compreendidos como percepções (sexuais) e a princípio parecem não ter qualquer efeito. Entretanto, representantes ideativos e, ao mesmo tempo, representantes afetivos relevantes também, foram armazenados e conferem significado ao evento não compreendido; e é isso que apoia e move a criança posteriormente [nachträglich], em uma segunda fase e depois de um período de tempo quando a impressão – nesse caso, as mudanças observadas no gasômetro – são reativadas (cf. Freud, 1918, p. 44).
Freud jamais abandonou sua concepção de Nachträglichkeit como processo causal funcionando em direção ao avanço do tempo, concepção que baseia a tradução de Strachey como deferred action na Edição standard. Em sua discordância com Jung, ele ressaltou mais uma vez a prioridade que vinculava à importância da realidade dos fatos traumáticos. Ele persistiu na afirmação de que o complexo de Édipo e a cena primária eram experiências reais e não reflexões simbólicas de fantasias de renascimento, tal que Jung acreditava. Com relação à questão de fantasia ou realidade, o ponto de vista de Freud era que a resposta "na verdade não tem mais importância" (Freud, 1918, p. 97). Porque, mesmo que a relação sexual dos pais não tivesse sido observada em realidade, tais cenas – seduções ou ameaças de castração na infância – eram "indubitavelmente patrimônio herdado" (Freud, 1918, p. 97). Nesse momento, porém, ele chama a atenção para uma exceção que ao mesmo tempo constitui uma diferença crucial entre as ideias de Freud e de Jung:
O que vemos na história primitiva da neurose é que a criança recorre a essa vivência filogenética, quando sua própria vivência não basta. Ela preenche as lacunas da verdade individual com verdade pré-histórica, põe a experiência dos ancestrais no lugar da própria experiência.
(Freud, 1918, p. 97, minha ênfase)
Mais tarde, quando o aparelho psíquico torna-se mais receptivo, o que conta são os fatores reais da vida, de cuja importância patogênica Jung, todavia, discorda. Freud comenta o seguinte: "Considero erro de método recorrer a uma explicação da filogênese antes de esgotar as possibilidades da ontogênese; não vejo razão para obstinadamente negar à pré-história infantil a importância que de boa vontade se concede à pré-história ancestral" (Freud, 1918, p. 97).
Entretanto, até que ponto no tempo se deve buscar uma explicação filogenética e o que pode ainda ser atribuído à fantasia autônoma da criança? "Admito que essa é a questão mais espinhosa de toda a teoria psicanalítica. … sem dúvida preocupou-me muito, nenhuma outra incerteza me impediu mais resolutamente de publicar minhas conclusões" (Freud, 1918, p. 103, nota de rodapé).
Afinal, como as expressões de "vivências infantis esquecidas – vividas em uma infância improvavelmente precoce!" (Freud, 1918, p. 103, n. 1) podem ser entendidas em data posterior [nachträglich] se nem a atividade da fantasia autônoma, nem a realidade factual existem no ego inicial?
No seu rico e perspicaz estudo, Ingrid Kerz-Rühling (1993, ver também 2000), mostra-se uma defensora comprometida da "realidade factual" causal e determinista de Freud como única realidade válida para o conceito de Nachträglichkeit. Ao mesmo tempo ela se opõe veementemente à ideia hermenêutica de uma projeção de significado se desdobrando em direção retroativa, segundo a qual "o evento anterior, o processo de repressão só [poderia exercer] seu efeito patológico à luz do evento a posteriori" (Kerz-Rühling, 1993, p. 921ff, traduzido). Essa autora também ressalta a dificuldade apresentada pela versão hermenêutica de Nachträglichkeit se tiver como consequência que a realidade factual seja desconsiderada em favor de uma presumida realidade a priori. Do seu ponto de vista, a concepção meramente hermenêutica de Nachträglichkeit corre o risco de construir relações de significado que, ao mesmo tempo em que influenciam o paciente sobre a base de uma verdade narrativa, ainda assim não têm acesso às experiências infantis causadoras. Esse dilema pode ser resolvido pelo método indutivo de estabelecer fatos em análise, que ela descreve como o terceiro nível de Nachträglichkeit (ibidem, p. 930f).
A crítica de Kerz-Rühling levanta duas questões essenciais. Primeiro, como opera Nachträglichkeit no processo de transferência, em que um evento anterior é repetido na transferência vigente e só pode ser esclarecido e compreendido depois do evento [nachträglich] por meio de interpretação? Segundo, será que eventos traumáticos anteriores a 1 ano e meio de idade não têm efeitos posteriores [nachträglich] porque não existe realidade factual em relação a eles, mas apenas a presunção de uma herança filogenética? Ou, é necessário que a disposição filogenética preservada deva ser considerada como um fato tendo efeitos causais? Essa é uma questão delicada que também instigou Freud repetidamente.
Escolhi a ilustração clínica acima em uma tentativa de responder a essas questões. No contexto de compreensão causal de Nachträglichkeit, parece totalmente plausível considerar as mudanças no gasômetro representando a lembrança, não entendida naquele momento, do corpo grávido da mãe, e reconhecer o bebê desaparecido na boneca arremessada no gasômetro. Entretanto, a análise do Sr. A reativou também minhas próprias experiências da infância associadas às minhas fantasias e ansiedades, de modo que eu temporariamente me impedi de ter qualquer concepção da boneca como um bebê ou um irmãozinho. Como o Sr. A com a boneca, na realidade eu arremessei seu significado como irmãozinho para fora da minha consciência em um processo defensivo conjunto com meu paciente. Somente quando recebi a informação biográfica fui capaz de discernir essa minha identificação projetiva com a defesa do paciente, de modo que a posteriori [nachträglich] fui capaz de entender o material importante do qual eu estava me defendendo.
Après-coup
Outro aspecto de Nachträglichkeit é revelado por esse termo.
A princípio, eu não pude prestar qualquer atenção específica à boneca como parte da comunicação no processo de transferência/contratransferência. Minha identificação com a projeção da defesa do Sr. A, de forma manifesta, também significou: mantenha-se bem afastado da antiga culpa fantasiada do menino com a qual ele se sobrecarregou devido aos ataques destrutivos ao corpo da mãe e a morte do irmão recém-nascido. Afinal, abordar essa questão resultaria em ruptura da defesa narcísica contra ansiedades depressivas – defesa que encontrou expressão nas fantasias triunfantes, quase maníacas, de grandeza e onipotência, incorporadas na lembrança encobridora. Apenas com a dissolução da identificação projetiva tornou-se possível considerar essas fantasias como processo interno, na transferência do paciente, elaborar a catástrofe primitiva, e construir (ou reconstruir?) esse processo. A interpretação desse processo intrapsíquico não pode se basear em qualquer evento factual; tal interpretação é concebida como hipótese criativa de atribuição retroativa de significado (Laplanche, 1992b). Por isso, a concepção retroativa de Nachträglichkeit denota um vetor retrógrado de tempo. Situada na hermenêutica, pode esclarecer os fenômenos em análise em que pela primeira vez a transferência vigente – como em meu exemplo – pode iluminar processos intrapsíquicos que datam de muitos anos antes. Esses fenômenos, que não se baseiam em fatos reconstituíveis, podem ser chamados cenas do processo primário, para distingui-los dos eventos reais. Eles incluem afetos sem nome, um clima emocional ou uma atmosfera que parece não ter qualquer possibilidade de representante cognitivo e são armazenados na memória afetiva. O analista pode aprender a respeito deles no processo de transferência/contratransferência ao escutar cuidadosamente como o paciente reage a suas intervenções. Isso foi investigado durante muitos anos por Haydée Faimberg que, no contesto das suas reflexões sofre a função "de escuta da 'escuta'" (Faimberg, 1996), descreveu Nachträglichkeit de modo muito similar, com o processo na transferência que torna possível – après-coup, nachträglich – detectar e compreender eventos ou cenas sem nome do passado.
Uma paciente de Faimberg, Brigitte (Faimberg, 2005), fala quase sem emoção de seus relacionamentos promíscuos, com homens, nos quais tentou engravidar. O parceiro anterior teria sido um pai em potencial se não cheirasse tão mal. Parecia-lhe totalmente indiferente quem pudesse ser o pai, contanto que ele cheirasse bem. Faimberg escuta esse comentário e tenta compreender seu significado contra o pano de fundo do clima inconsciente da história da paciente. Ela presume, e interpreta de acordo, que o desejo de ter um bebê evidentemente cheira mal. A paciente, por sua vez, fica irritada ao ouvir essa interpretação, que toma como repreensão moral, e se sente totalmente incompreendida. Escutando a escuta, Faimberg reconsidera que só por meio dessa má compreensão ela pôde ter acesso à história das identificações inconscientes da paciente: quando criança, a paciente soube pela mãe, de forma quase incidental, como se isso fosse sem consequências, que o pai não era seu pai biológico. A mãe posteriormente explicou que não fez um aborto porque o pai de Brigitte a reconhecera como filha. Seu pai era o pai verdadeiro; ele salvou sua vida.4 Assim, Brigitte viu a analista na imagem do seu pai, de acordo com a atitude da sua mãe em relação a ela e ao pai. Portanto, não foi capaz de aceitar uma interpretação em que ela não conseguia escutar nada além dessa atitude – uma interpretação em que seu desejo de ter um filho sem pai só se tornou compreensível depois. Como Faimberg escutou, no curso da sessão, o que Brigitte tinha escutado, tornou-se possível perceber a identificação inconsciente que permanecera silenciosa até que o significado da má compreensão também pudesse ser elucidado e, portanto, um trecho da história da paciente reconstruído.
Esses exemplos – a consideração da identificação projetiva do caso do Sr. A e a escuta da escuta no caso da Brigitte – demonstram o vetor temporal retrógrado de Nachträglichkeit. A ideia de um movimento de tempo linear à frente – deferred action –, por outro lado, é decisivo em todas as histórias de casos do Freud, assim como no meu próprio exemplo do gasômetro e da boneca. Nos dois exemplos, Nachträglichkeit se apresenta como um processo intrapsíquico ativo pelo qual significado preenche a lacuna entre os dois eventos separados no tempo.
Em virtude do processo de Nachträglichkeit que, como Winnicott,5 considero uma procura ativa, o evento significativo sem nome, com o aumento da organização do ego e a capacidade de simbolização, torna-se um evento consciente que é lembrado, ainda que de forma distorcida, ou interpretado analiticamente em "este é simplesmente um segundo caso de efeito a posteriori" [Nachträglichkeit] (Freud, 1918, p. 45). Dessa forma, lança-se luz ao passado obscuro de Brigitte como um après-coup da transferência vigente; a reflexão da identificação projetiva [nachträglich], no caso do Sr. A, permite depois a compreensão do processo de culpa primitiva e a defesa contra ela; e, como deferred action, um evento de cena primária do passado que não foi compreendido, mas foi perceptível na realidade, oferece uma explicação causal do sonho de ansiedade do Homem dos Lobos no presente, como a lembrança do gasômetro e a boneca como percepção real da gravidez da mãe e sua consequência percebida, mas não compreendida, do desaparecimento do bebê.
O conceito de Nachträglichkeit inclui esses dois vetores temporais em uma relação de "complementaridade circular" (Eickhoff, 2005, 2006).
Todavia, o conceito de après-coup se mostra útil na compreensão de experiências traumáticas para as quais não existe realidade factual. Pode permitir a compreensão de eventos que datam de antes de 1 ano de idade, que Freud definiu como limite da capacidade cognitiva de lembrar. Uma memória factual de períodos ainda anteriores da infância não existe nem nunca existiu em nível subjetivo. Freud preenche essas lacunas da verdade individual com a experiência dos antepassados. Ainda assim, traumas individuais muito iniciais, a cujos efeitos posteriores não se pode responsabilizar a disposição filogenética, também são imagináveis. Essas cenas iniciais têm mais probabilidade de serem aquisições no nível do processo primário. Contudo, são extremamente significativas como cenas silenciosas adquiridas em termos dos seus efeitos sobre o aparelho psíquico. Freud salientou repetidamente que traços afetivos de tais cenas – seu "montante de afeto" − são inscritas, por assim dizer, no sistema mnêmico. Ele estava convencido de que o montante de afeto não descarregado permanecia fixado como representante da pulsão, de maneira que seu traço mnêmico fosse armazenado na memória. A recente prova neurocientífica dessa proposição pode de fato ser celebrada como "triunfo da psicanálise" (Solms, 2006, p. 849). O afeto armazenado na memória na verdade sustenta o evento traumático sem ser seu representante ideativo. Na forma de afeto inconsciente, o evento então – como cena sem nome do processo primário – leva uma existência psíquica que só é percebida em virtude do seu significado. Foi Susan Isaacs quem investigou precisamente esse fenômeno, descrevendo-o em detalhe na sua discussão de narcisismo primário sem objeto. Ela observou que "o caráter especial do mental, ao ser comparado com processos físicos, é que eles têm significado" (Isaacs, 1943, p. 272, ênfase no original), enquanto processos físicos apenas existem. Ela usou o termo um pouco infeliz "fantasias inconscientes" para indicar o conteúdo dos processos psíquicos inconscientes. Esses representantes psíquicos sem nome de pulsões libidinais e agressivas estão ativos desde o nascimento. Eles adquirem seu significado totalmente independente da experiência do mundo externo e sempre se relacionam com objetos.
Nachträglichkeit e organização do ego
Fantasias inconscientes evidentemente descrevem conteúdos intrapsíquicos similares a cenas sem nome do processo primário que têm significado e em certas circunstâncias são capazes de acarretar experiências filogenéticas. Isso constitui uma possível interface entre a teoria da libido e a teoria de objeto. Freud (1931) de fato preparou o caminho para a transição na passagem pouco conhecida do seu artigo sobre sexualidade feminina. Ele escreve que certas expressões da atividade sexual manifestam-se cronologicamente em tendências orais, sádicas, e finalmente até mesmo fálicas:
frequentemente obscuros impulsos instintuais [dunkel Triebregnungen], que a criança não podia apreender psiquicamente na época em que ocorreram, e que por isso receberam apenas uma interpretação posterior [nachträglich], surgindo na análise em formas de expressão que com certeza não tinham originalmente. Às vezes damos com eles como transferências para o posterior objeto-pai, onde não cabem e dificultam sensivelmente a compreensão. (Freud, 1931, p. 237, minha ênfase)
Ele acrescenta em parêntesis que:
encontrei apenas em homens o medo de ser devorado; ele se refere ao pai, mas provavelmente é produto de uma transformação da agressividade oral dirigida à mãe. A criança quer comer sua mãe …; com relação ao pai, falta esse motivo determinante para o desejo. (Freud, 1931, p. 237)
Nessa passagem, Freud complementa sua concepção de Nachträglichkeit como um processo causal, determinista com aspecto hermenêutico. Afinal, tais impulsos instintuais obscuros não podem se basear em fatos reais suscetíveis à reconstrução. Contudo, eles se expressam na transferência, na qual eles podem ser significativamente interpretados em um período posterior [nachträglich] – après-coup. Dessa maneira, eles adquirem uma estrutura narrativa que preenche a lacuna na verdade individual.
Freud volta à questão dos impulsos instintuais obscuros e experiências iniciais alguns anos depois, no seu estudo de Moisés. Ele mais uma vez levanta a questão dos eventos que ainda não podem ser apreendidos pelo ego imaturo da criança em uma idade anterior à capacidade de simbolização: por muito tempo foi conhecimento comum, ele escreve, que as experiências dos primeiros cinco anos influenciam o curso subsequente da vida da pessoa. A seguir, contudo, vem uma explícita mudança de ênfase: "Contudo, pode ser menos conhecido que a influência compulsiva, mais forte surge de impressões que incidem na criança em uma época em que teríamos de encarar seu aparelho como ainda não completamente receptivo" (Freud, 1939, p. 126, minha ênfase).
Essa é uma "descoberta desconfortável", observa Freud – pois dilui a prioridade do relacionamento causal entre eventos reais e efeitos posteriores [nachträglich], a que ele confere responsabilidade pela gênese das neuroses.
Nesse momento, Freud toma como ponto de partida dois eventos cruciais da primeira infância que "exerceram efeito determinante na … vida" (1939, p. 125). Esses são manifestamente diferenciados pelo grau de maturidade das funções egoicas. O primeiro consiste em impressões vivenciadas desde cedo pelas crianças, mas que elas não são capazes de compreender devido à imaturidade do ego e que nunca precisam lembrar exceto em sonhos. São impressões que depois controlam as ações da pessoa na vida, que lhe impõem simpatias e antipatias, e que com muita frequência determinam a escolha do objeto amoroso. O segundo tipo de evento é exemplificado por impressões como a da cena primária, que faz surgir uma demanda instintual que busca satisfação, mas contra a qual um ego mais maduro já se defende – tanto "porque é paralisado pela magnitude da demanda ou porque a reconhece como perigo" (Freud, 1939, p. 127). Esses mecanismos que, em última instância, levam à neurose são agora conhecimento comum.
A "descoberta desconfortável" se relaciona mais com o caso anterior, envolvendo as experiências puramente afetivas sem representantes ideativos descritos acima que, embora silenciosas, não são insignificantes. Para essas primeiras cenas do processo primário que invadem totalmente o ego imaturo, Freud entende "a distância do período em questão" como: "… o verdadeiramente determinante – no estado especial da lembrança que, por exemplo, no caso dessas experiências infantis, classificamos de 'inconsciente'. Esperamos encontrar nisso uma analogia com o estado que estamos procurando atribuir à tradição na vida mental do povo" (Freud, 1939, p. 125, minha ênfase).
Ele acrescenta: "Não foi fácil, com certeza, introduzir a ideia de inconsciente na psicologia de grupo" (Ibidem). A reserva de Freud no que diz respeito a esse pressuposto é evidente. Contudo, a suposição de um esquema filogenético poderia também oferecer uma explicação causal para esse "estado especial de memória", se ele for considerado transmissão transgeracional para o inconsciente; e, além disso, recuperar a realidade ao seu devido lugar.
É possível especular que essa descoberta, descrita por Freud como desconfortável, pode ainda ter fornecido o alicerce sobre o qual o pensamento psicanalítico sobre processos mentais da infância – por exemplo, a obra de Melanie Klein e de seus sucessores – foi positivamente obrigada a desenvolver ainda mais. Afinal, a realidade factual é irrelevante na primeira infância, pois nesse período não existe. Assim, a mudança da ênfase de Freud descreve o segundo aspecto de Nachträglichkeit: o da temporalidade retroativa. Assim como as "fantasias inconscientes" de Melanie Klein, os "impulsos instintuais obscuros", que datam de período tão remoto, são armazenados psiquicamente apenas como afetos sem nome, que, talvez desde o começo, estejam à procura de um símbolo, uma metáfora, ou como preconcepção, de uma realização. Essas impressões, vistas como cenas do processo primário, e armazenadas na memória, não descrevem fatos. Sua vivência é observada no máximo como um clima ou atmosfera. Os eventos traumáticos também não podem ser reconstruídos. Contudo, os traços de memória sem nome das catástrofes primitivas podem se combinar em data posterior [nachträglich] com os conteúdos simbólicos do complexo de Édipo, tomando assim sua qualidade traumática específica (Dahl, 2001). Nesse caso, podem ser compreendidos e interpretados na transferência e por meio da identificação projetiva.
Afetos, símbolos e metáforas
Esses afetos primários significativos, para os quais não existe representante ideativo, geralmente só se tornam perceptíveis em forma de humor básico difuso de vida. É geralmente o "pressentimento obscuro" de uma catástrofe que traz a pessoa à análise quando a necessidade de simbolização cognitiva surge depois na vida. Sem se referir diretamente ao conceito de Nachträglichkeit, Winnicott, também citado por Faimberg e Eickhoff, há mais de trinta anos descreveu essas manifestações afetivas sem nome de cenas traumáticas do passado como "medo do colapso" (Winnicott, 1974). É uma ansiedade que precisa permanecer como pressentimento sinistro enquanto lhe faltar um símbolo cognitivo ou metáfora por meio dos quais possa ser vivenciada conscientemente e organizada. Aqui novamente – como também no caso da compulsão por repetição – pode-se presumir que Nachträglichkeit seja sustentado por um processo psíquico que ativa e, talvez, até compulsivamente busque simbolização a fim de conferir estrutura a uma ansiedade vital difusa, tornando-a assim controlável.
No começo da vida, ainda não existe conexão entre afetos, símbolos, metáforas e memória. Contudo, pesquisadores de bebês ressaltaram que os primeiros afetos começam a ser armazenados logo depois do nascimento, sendo organizados por experiências esperadas e repetidas em um padrão de tempo (Stern, 1985), que as representa psiquicamente. Daí em diante, a experiência afetiva é sempre igualmente ligada ao vivenciar do ambiente. Símbolos ou metáforas só começam a ser usados com a progressiva maturação do ego. A concepção psicanalítica de símbolo baseia-se nas importantes investigações clínicas de Hanna Segal, que a levaram a descrever a formação simbólica (Segal, 1957) como atividade do ego. Os primeiros símbolos da posição esquizoparanoide são concretos. Contra o pano de fundo da fantasia inconsciente, o símbolo é o objeto, e o símbolo e o simbolizado são idênticos: essa é a conhecida "equação simbólica de Segal". O "símbolo propriamente dito" só surge na posição depressiva depois do desenvolvimento da consciência de diferenciação e de separabilidade. Ele representa então o objeto (ausente) cuja perda não é mais negada, como no caso do percussor desses símbolos reais, a equação simbólica; ao contrário, tenta-se superar a perda.
O conceito de metáfora evidentemente passou por uma mudança sob a influência do pensamento psicanalítico: em vez de apresentar simplesmente um problema semântico, considera-se que a metáfora tenha suas origens não só na linguagem, mas também e, especialmente, no pensamento. Não podemos pensar sentimentos e afetos; eles estão, por assim dizer, fora do nosso controle. Entretanto, quando esses afetos estão ligados a metáforas e símbolos, eles podem se organizar em grande medida e, com sua ajuda, podemos perceber nosso mundo de forma nova – e até, em casos afortunados, nos reconciliar com objetos do passado, tanto internos como externos. Isso se faz exatamente por meio da interpretação analítica correta. Símbolos são o que, em data posterior [nachträglich], preenche a lacuna entre o presente cognitivo e um passado significativo, mas sem nome. Sem o conceito fundamental de Nachträglichkeit, a eficácia da psicanálise seria totalmente inexplicável.
O traumático não é o evento real, mas seu significado. Isso foi compreendido por Goethe, cujo herói Tasso diz: "Das,was geschehen ist kränkt mich nicht so tief, allein das kränkt mich, was es mir bedeutet" ["minha mais profunda dor não vem do acontecimento; só seu significado é que me aflige"] (Goethe, 1854, p. 94). Apenas o afeto, em seu significado, confere existência psíquica às cenas sem nome. Tais cenas não têm nome principalmente quando datam do período pré-verbal, antes da existência da representação de palavra. Como experiências pré-verbais essas cenas presumidamente sucumbem à representação primária, formando assim o conteúdo de um "passado inconsciente", tal qual descrito por Sandler e Sandler (1984), que então encontra expressão posteriormente, por exemplo, na transferência. Contudo, tais cenas não existem de forma alguma como fatos reais que podem ser lembrados; elas permanecem perdidas para sempre.
A concepção de fantasia inconsciente de Melanie Klein como representante instintual é a descrição mais pertinente do conteúdo psíquico dessas cenas sem nome. A cena sem nome é o significado, que é armazenado no alicerce de um afeto traumático como um clima psíquico difuso na memória processual. Uma imagem real da cena em si não é suprida por essa memória. Em Reflections on metaphor and affects, Modell (2001) nos faz lembrar que até mesmo nossa memória declarativa não nos fornece uma réplica confiável do evento original. Esse autor refere-se aos estudos do cérebro de Gerald M. Edelman, que descreveu a memória em termos absolutamente gerais como a capacidade de esperar ativação: "uma potencialidade aguardando ativação". As experiências primitivas são armazenadas como "categorias potenciais". Inicialmente conteúdos inconscientes desse tipo aguardam ativação; eles podem surgir e se estruturar em data posterior [nachträglich] com símbolos e metáforas apropriadas. Isso se exemplifica na lembrança do gasômetro. Outro possível pressuposto é de que afetos significativos, por sua parte, procuram simbolização ativamente tal qual sugerido na construção da lembrança encobridora da boneca. Um processo de busca desse tipo é também sem dúvida um fator determinante na formação do sintoma: ele sempre busca locus minoris resistentiae. Afinal, símbolos e metáforas preenchem a lacuna entre o presente cognitivo e o passado significativo, mas sem nome. À luz de uma interpretação correta, que aborda o afeto em uma metáfora apropriada, o passado obscuro pode possivelmente ser reconstruído como deferred action ou interpretado après-coup como verdade narrativa subjetiva e, por esse meio, ser também organizado e controlado; o que decisivamente ajuda a lidar com a ansiedade. Possivelmente, também há aqui o envolvimento de uma retranscrição da memória; "retranscrição" é a palavra usada por Modell (1990) para traduzir Nachträglichkeit de acordo com a referência inicial bem conhecida de Freud (Masson, 1985, ver acima). Em todos esses casos, Nachträglichkeit manifestamente abrange a ação de uma força, análoga à da compulsão à repetição, que busca simbolizar a não familiaridade e a confusão da experiência original – tanto como evento real que não foi compreendido quanto como cena difusa do processo primário –, assim pode ser subsequentemente [Nachträglich], de acordo com o princípio da realidade, ser estruturado, pensado, compreendido e possivelmente também dominado.
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Endereço para correspondência
Gerhard Dahl
Berliner Pschoanalytisches Institut (DPV/IPA),
Beuckestr. 31, D-14163 Berlin, Deutschland
E-mail: drdahl@t-online.de
Tradução: Daniel Santos Kauffmann
Revisão técnica: Tania Mara Zalcberg
1 Artigo publicado originalmente no Int. J. Psychoanal. (2010) 91: 727-744.
2 Psicanalista, membro da German Psychoanalytical Association e ipa, analista didata no Instituto Psicanalítico de Berlim.
3 Gostaria de agradecer a Dana Birksted-Breen por chamar a minha atenção para essa circunstância.
4 Gostaria de agradecer à Dra. Faimberg por ampliar certos pontos no seu texto.
5 "o paciente tem de continuar procurando o detalhe passado … Essa procura toma forma de uma procura desse detalhe no futuro" (Winnicott, 1974, p. 105, minha ênfase).
Nota do tradutor: Nas citações de Freud, utilizamos quando possível a tradução feita por Paulo César de Souza para a Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Na citação do texto de Freud: Moisés e o monoteísmo, foi utilizada a tradução coordenada por J. Salomão para a Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
© Gentilmente cedido pelo International Journal of Psychoanalysis para publicação no Jornal de Psicanálise.