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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.28 no.65 São Paulo set./dez. 2019

https://doi.org/10.38034/nps.v28i65.537 

ARTIGOS

 

Percepções parentais sobre coparentalidade e comportamento infantil: um estudo com famílias homoafetivas

 

Parental perceptions about coparenting and child behavior: a study with gay e lesbian families

 

 

Thaiany Domingues MatosI, Carina Nunes BossardiII, Carolina Duarte de SouzaIII, João Rodrigo Maciel PortesIV, Marina MenezesV

I Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Itajaí/SC, Brasil.

II Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Itajaí/SC, Brasil.

III Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC, Brasil.

IV Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Itajaí/SC, Brasil.

V Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC, Brasil.

 

 


RESUMO

As diversas configurações parentais da contemporaneidade trazem questões ainda pouco abordadas em pesquisas no Brasil. O presente trabalho apresenta um estudo de casos múltiplos sobre as percepções parentais de casais homoafetivos acerca de sua relação coparental e o comportamento de seus filhos através da aplicação de questionários sobre a temática em forma de entrevista para enriquecimento das respostas. Foram entrevistados quatro casais, com filhos entre 6 e 8 anos de idade. Os resultados permitiram a identificação de altos índices de coparentalidade positiva apresentados por pais e mães entrevistados com identificação de dificuldades de comportamento das crianças, mas também de capacidades, por meio do relato, de altos índices de pró-sociabilidade infantil.

Palavras-chave: Homoparentalidade; Coparentalidade; Comportamento infantil.


ABSTRACT

The various parental configurations of contemporaneity bring questions still little addressed in research in Brazil. This paper presents a multiple case study on the parental perceptions of homosexual couples about their coparental relationship and their children's behavior through the application of questionnaires on the subject in the form of interviews to enrich the answers. Four couples with children between 6 and 8 years old were interviewed. The results allowed the identification of high rates of positive coparenting presented by interviewed fathers and mothers with identification of children's behavioral difficulties, but also of capacities through the report of high rates of child prosociability.

Key Words: Homoparenting; Coparenting; Child behavior.


 

 

Introdução

A concepção de família na contemporaneidade é bem mais ampla que a tradicional nuclear. A diversidade de configurações familiares nos tempos atuais abre um campo de pesquisa investigativo para além dos papéis de homem e mulher com suas concepções de gênero. As famílias homoafetivas são cada vez mais comuns, validando assim a necessidade de compreensão dos papéis exercidos por pais e mães de mesma identificação de gênero no desenvolvimento de seus filhos (Cecilio & Scorsolini-Comin, 2016). Para fins deste estudo, considera-se que família vai além de laços consanguíneos, compreendendo sua construção social e diversificada, a qual ressalta a não necessidade de uma estrutura nuclear composta por pai, mãe e filho(s) propriamente ditos.

De acordo com Souza e Corrêa (2012), pesquisas realizadas e divulgadas pelo site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) revelam a não existência de dados concretos sobre a incidência de famílias constituídas por casais homoafetivos. Até a presente data, consta um dado da existência de 60 mil casais homoafetivos no Brasil, mas sem pesquisas específicas envolvendo tal levantamento e a composição familiar com filhos ou não (Souza & Correa, 2012).

Os novos arranjos familiares, segundo Cecilio e Sorsolini-Comin (2016), vêm sendo investigados em busca de uma compreensão das dinâmicas familiares que não passam mais pela consideração exclusiva da configuração nuclear, heteronormativa e reforçada por laços biológicos de parentesco. A visibilidade da homoafetividade e da homoparentalidade na contemporaneidade tem motivado a discussão e a pesquisa sobre o fenômeno. Conforme indicado por Santos, Scorsolini-Comin e Santos (2013), pesquisadores se interessam por diversas questões que repercutem desse novo arranjo familiar, em especial no que se refere à adoção de crianças e à formação da parentalidade em casais homoafetivos. A adoção, assim como o nascimento de um filho, impulsiona preparações para a chegada da criança; dentre estes, se incluem ajustes materiais e de rotina e de construção da identidade parental, juntamente com a aquisição de novos papéis sociais e familiares. A parentalidade, sob uma perspectiva das funções parentais exercidas por pais adotivos ou não, perpassa uma relação de afeto e das repercussões entre os subsistemas, apontando para a vivência parental como fator interferente na dinâmica conjugal (Cecilio & Sorsolini-Comin, 2016).

A formação de uma família, bem como o processo de tornar-se mãe e pai, é parte de uma construção social e cultural. A forma como o casal se une e forma o subsistema parental e também as relações estabelecidas entre os subsistemas conjugal e parental pode exercer influências no desenvolvimento infantil. Influências estas constituintes de uma interação entre todos as pessoas em desenvolvimento envolvidas. Com interesse nas relações dinâmicas que ocorrem nas famílias, pode-se utilizar o conceito de coparentalidade. Tal conceito foi difundido para investigar as interações entre os sistemas familiares no contexto da separação conjugal ou divórcio. Hoje é utilizado também para a compreensão das construções sociais e dos relacionamentos existentes nas diferentes configurações familiares e de como tais relações influenciam o desenvolvimento infantil. Outrossim, a coparentalidade, nas mais diversas configurações familiares, é investigada em relação ao comportamento infantil, ou seja, ao modo de ser/estar das crianças no contexto social ao qual pertencem (Böing & Crepaldi, 2016).

Deste modo, entende-se por coparentalidade a extensão na qual mães e pais, independentemente do gênero, dividem a liderança e se apoiam na “chefia” da família e seus papéis parentais. Feinberg (2003) complementa que a relação coparental não se refere a aspectos legais, românticos, sexuais, emocionais ou financeiros do relacionamento entre mães e pais quando estes não estão relacionados aos cuidados exercidos sobre a criança. Assim, a coparentalidade é observada no envolvimento conjunto e recíproco de ambos mães e pais na educação, formação e decisões sobre a vida dos seus filhos, ou seja, pais e mães dividem a liderança e se apoiam nos seus papéis de chefes da família e nos papéis parentais (Feinberg, 2003).

Estudos relacionados à coparentalidade e ao comportamento infantil concluem que a coparentalidade positiva, seja nas mais diversas configurações familiares (divorciadas, recasadas, heteroafetivas ou homoafetivas), pode facilitar o desenvolvimento infantil e de comportamentos saudáveis, relacionando o suporte coparental e a satisfação parental como fatores positivos para o desenvolvimento da criança (Böing & Crepaldi, 2016).

Considerando que mães e pais são os primeiros modelos para o desenvolvimento social de uma criança, assim como seu repertório de comportamentos para seu desenvolvimento, a coparentalidade e suas especificidades são de relevância para o desenvolvimento infantil, na medida em que o relacionamento de mães e pais para consigo mesma(o)s e para com seus filhos torna-se a primeira fonte de comportamentos a ser apreendido e replicado (Böing& Crepaldi, 2016; Feinberg, 2003). Compreender a relação coparental no comportamento infantil é relevante para o desenvolvimento do sujeito, tendo em vista que mães, pais ou outros cuidadores são objetos das primeiras interações deste com o mundo e a sociedade na qual se insere. A compreensão do cuidado para além do financeiro, o qual envolve os laços afetivos que propiciam um desenvolvimento saudável para a criança, se transforma em objeto de estudo como ferramenta facilitadora do conhecimento dessa complexidade nomeada coparentalidade (Beiras & Souza, 2015; Böing & Crepaldi, 2016; Feinberg, 2003).

Compreender como a coparentalidade afeta o desenvolvimento humano é considerado fator importante, seja para fins teóricos como para intervenções. Feinberg (2003) afirma que o relacionamento coparental é diretamente relacionado às fronteiras familiares que influenciam na qualidade do funcionamento e estrutura destas famílias. Pesquisas brasileiras, em sua grande maioria, versam sobre famílias nucleares e tradicionais e pouco se conhece sobre as demais configurações familiares existentes. É preciso que os conhecimentos científicos e orientadores de práticas profissionais possam ser embasados em configurações também representativas na sociedade. Pesquisas neste campo podem fornecer indicativos do funcionamento dos diversos tipos de famílias existentes na sociedade, agregando conhecimentos às conquistas recentes no campo dos direitos de casais e famílias homoafetivas, na perspectiva da compreensão das relações coconstrutoras de significados, conceitos e sistemas.

A coparentalidade é um fenômeno multidimensional complexo, que não permite uma investigação profunda por meio de um único instrumento de pesquisa. Para investigar a coparentalidade, as estratégias metodológicas utilizadas envolvem observação direta das relações familiares e indireta por meio de instrumentos de relato, como as entrevistas e as escalas/questionários (Bouchard, 2014). Uma possibilidade de abordagem da coparentalidade de modo a alcançar a singularidade e complexidade da relação desse fenômeno com o comportamento infantil é o estudo de caso (Simons 2014). Portanto, foi objetivo deste artigo realizar um estudo de caso múltiplo sobre a percepção parental de pais e mães de famílias biparentais homoafetivas acerca de sua coparentalidade e do comportamento infantil de seu/sua filho/a. Para tanto, pretendeu-se (a) caracterizar o histórico de constituição familiar; (b) descrever quanti-qualitativamente a percepção do relacionamento coparental; (c) caracterizar a percepção das figuras parentais do comportamento de seu/sua filho/a; (d) descrever similitudes e diferenças em cada caso. Isso porque estudos de caso múltiplos possuem a finalidade de enriquecer a compreensão de um fenômeno (Stake, 2006) por meio de diferentes indivíduos ou ambientes. Como a coparentalidade é influenciada pelo contexto, principalmente pela família, estudar pais e mães em diferentes famílias contribui para a compreensão de fenômenos complexos.

 

Método

 

Delineamento da pesquisa e participantes

 

Tabela 1: Caracterização sociodemográfica das famílias

Família

Figura parental

Idade em anos

Escolaridade

Profissão

Tempo de união

Tempo parental

Criança

Idade da criança

1

Eric

46

MC

Conselheiro Tutelar

3a 4m

3a

Guilherme

6a

Leonardo

35

SC

Promotor de vendas

2

Ana

28

SC

Auxiliar administrativa

8a

3a

Jonas

8a

Carolina

48

SI

Empresária

3

Jordana

31

MI

Vendedora afastada por acidente de trabalho

4a

6a

Beatriz

6a

Gabriela

41

SI

Auxiliar administrativa

4a

4

Emanuel

40

SI

Empresário

9a

6m

Marina

8a

Giovani

50

PG

Empresário

Legenda: MC - Ensino médio completo; MI - Ensino Médio incompleto; SC - Ensino Superior completo; SI - Ensino Superior Incompleto; PG - Pós-Graduação completa; a - anos; m - meses.

 

Para alcançar esses objetivos, a pesquisa foi observacional, com abordagem indireta dos dados por meio da aplicação de questionário e escala para acessar a coparentalidade e o comportamento infantil segundo entrevistas com vistas a enriquecer as informações obtidas pelos instrumentos psicométricos. A natureza dos dados produzidos foi quali-quantitativa, com a realização de estatísticas descritivas, e identificação das percepções dos entrevistados sobre as dimensões preestabelecidas pelos instrumentos, visto que o objetivo do estudo é de caráter exploratório-descritivo quanto à compreensão da coparentalidade e do comportamento infantil em cada família em si e em comum entre as famílias, o que o caracteriza como um estudo de casos múltiplos.

Participaram da pesquisa quatro famílias homoafetivas, cujos dados sociodemográficos encontram-se descritos na Tabela 1. Os critérios de inclusão para os sujeitos participantes desta pesquisa foram: casais homoafetivos que residissem juntos por, no mínimo, seis meses até o momento da coleta de dados e que tivessem, no mínimo, um filho ou filha.

 

Instrumentos

Os dados foram coletados por meio de uma entrevista estruturada que iniciava com a investigação de dados sociodemográficos e histórico de composição familiar. Em seguida ocorreu a aplicação da Escala da Relação Coparental - ERC (Coparenting Relationship Scale - CRS) e do Questionário de Capacidades e Dificuldades da Criança (SDQ - Strengths and Difficulties Questionnaire). É importante enfatizar que, após cada resposta do participante aos instrumentos, a pesquisadora solicitava justificativas ou ilustrações para o número elencado.

A adaptação para o Brasil da ERC (Carvalho, Barham, Souza, Böing, Crepaldi, & Vieira, 2018) é composta por 35 itens, avaliados por uma escala de sete pontos que varia de não verdadeiro (0) a completamente verdadeiro (6), exceto para a subescala Exposição ao conflito, na qual as categorias de resposta variam de nunca (0) a muito frequentemente (6). Suas sete subescalas são: (a) Concordância coparental; (b) Divisão do trabalho; (c) Suporte coparental, (d) Apoio à parentalidade do parceiro, (e) Sabotagem coparental; (f) Exposição a conflitos e (g) Proximidade coparental. Desse modo, quanto mais próxima de seis mais alta é a percepção do participante naquela dimensão; por outro lado, quanto mais próxima de zero, menor é sua percepção da dimensão coparental.

A versão brasileira do SDQ (Fleitlich, Cartázar,& Goodman, 2000) foi utilizada para rastreamento de problemas de saúde mental das crianças. Composto por 25 itens, que se distribuem em cinco escalas: sintomas emocionais, problemas de conduta, hiperatividade, problemas de relacionamento com pares e pró-sociabilidade são respondidas por uma escala Likert de três pontos entre 0 e 2 (falso, mais ou menos verdadeiro e verdadeiro) para os comportamentos da criança nos últimos seis meses (Vitolo et al., 2005). Dessa maneira, as crianças podem ter pontuações nas escalas variando entre zero (ou seja, não apresenta aqueles comportamentos) a 10 (apresenta todos os comportamentos descritos).

 

Procedimento de coleta, análise de dados e aspectos éticos

Os participantes foram contatados por meio de uma Instituição de Educação da região. A coleta de dados foi realizada na residência dos participantes. Os participantes foram entrevistados individualmente. As entrevistas com pais e mães tiveram duração entre 40 a 80 minutos. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra. A análise dos dados quantitativos ocorreu por meio de estatísticas descritivas, e o conteúdo que emergiu na aplicação dos instrumentos foi analisado em categorias análogas às dimensões dos instrumentos.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) sob o Registro nº 1.758.468 de 03 de outubro de 2016. Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram orientados quanto à participação voluntária e possibilidade de desistência a qualquer momento. Os nomes dos respondentes são fictícios para garantir o sigilo da identidade dos participantes.

 

Resultados e discussão

Os resultados serão apresentados primeiramente por cada família, buscando compreender as singularidades existentes em cada uma. Em seguida se buscará fazer uma comparação daquilo que for comum e do que for específico para cada família, realizando interpretações a partir da fundamentação teórica sobre o tema. As informações sobre as respostas aos questionários de coparentalidade e comportamento da criança podem ser visualizadas na Tabela 2.

 

Tabela 2: Médias nas dimensões de coparentalidade e pontuações brutas de comportamento infantil de cada figura parental por família

Família

Figura parental

Coparentalidade

Comportamento Infantil

Acordo

Proximidade

Suporte

Reconhecimento

Divisão de tarefas

Conflito

Sabotagem

Sintomas emocionais

Problemas de conduta

Hiperatividade

Problemas de relacionamento com pares

Pró-sociabilidade

1

Eric

3,0

5,4

4,0

5,4

6,0

1,2

1,0

4

8

10

4

8

Leonardo

5,3

6,0

3,5

4,6

5,5

1,2

1,3

0

6

9

1

8

2

Ana

4,5

4,8

5,7

3,9

6,0

0,8

0,0

3

0

8

0

10

Carolina

3,8

3,2

6,0

6,0

3,0

0,8

0,0

6

0

6

0

10

3

Jordana

5,3

6,0

4,5

6,0

4,5

1,6

1,5

6

6

10

1

9

Gabriela

1,8

4,6

5,5

5,4

6,0

1,6

2,7

1

5

10

1

8

4

Emanuel

5,8

5,8

5,7

5,9

5,0

0,0

0,0

3

6

9

0

9

Giovani

5,8

6,0

6,0

5,6

6,0

0,0

1,0

3

5

9

0

10

 

Família 1

Eric e Leonardo se conheceram 4 (quatro) meses antes de requererem a guarda de Guilherme, que mora com o casal desde os 3 anos de idade. Eric trabalhava no corpo administrativo de um abrigo para menores em uma cidade do Vale do Itajaí quando teve a iniciativa de levar Guilherme, que morava no abrigo, para passar as comemorações de final de ano consigo. Após alguns dias recebeu então a notícia de que Guilherme estava na fila de adoção e entrou com o processo requerendo a guarda provisória do menor. Foi então que Leonardo e Eric decidiram residir juntos e dividir a paternidade de Guilherme. Guilherme residiu no abrigo por histórico de negligência e abandono da família biológica. Aos 3 (três) anos de idade Guilherme não falava ou caminhava devidamente. A família está junta há 3 (três) anos aproximadamente.

A família 1 apresentou percepções semelhantes em quase todos os aspectos investigados, com percepção idêntica sobre o conflito, com índices baixos, os quais são considerados de efeito positivo para o relacionamento harmônico do casal e o desenvolvimento infantil. O casal relata que os conflitos até existem, mas nem sempre são verbalizados. Leonardo relata: “Eu acho que falta muito, isso de a gente conversar mais e chegar a um consenso e desenvolver um tipo de ordem, e o outro acompanhar e se não tiver certo chegar e conversar”. A percepção da coparentalidade do casal é divergente quanto ao acordo coparental e reconhecimento da parentalidade do parceiro, mas bastante similar nos demais aspectos. Apresentam altos índices de divisão de tarefas e proximidade, medianos quanto ao suporte e baixos de sabotagem.

Percebemos que os pais têm visões diferentes sobre alguns aspectos do comportamento do filho. Enquanto para Eric o menino possui alguns sintomas emocionais e problemas de relacionamento com pares, Leonardo não identifica nenhum ou quase nenhum desses comportamentos. Apesar de os pais identificarem que Guilherme possui uma considerável quantidade de comportamentos de problemas de conduta e hiperatividade, eles também apontam que o filho apresenta alta pontuação em comportamento pró-social, o que funciona como um fator de proteção para o desenvolvimento infantil.

 

Família 2

Ana e Carolina se conheceram por meio de amigos em comum após o divórcio de Carolina, que anteriormente mantinha um relacionamento heteroafetivo. Desse casamento prévio Carolina tem uma filha de 20 anos, que hoje reside com o casal, e Jonas, que fora adotado com cinco anos depois de 4 (quatro) anos de união do casal. A criança residiu com a mãe biológica e dois irmãos mais velhos até os 4 (quatro) anos de idade, quando sua mãe biológica faleceu, deixando a guarda da criança com seus avós paternos. Ana é prima distante de Jonas, sendo assim, foi oferecido a ela e à Carolina a guarda da criança.

A família 2 apresenta percepções diferentes quanto ao acordo parental, divisão de tarefas e proximidade do casal. Ana tem uma visão mais positiva em comparação à Carolina. Já no aspecto de reconhecimento da parentalidade do parceiro Carolina se sente mais reconhecida em comparação à Ana. Os índices de conflito do casal são baixos e de sabotagem inexistentes, indicando que, embora o casal não concorde em vários aspectos, consegue manter um relacionamento amigável sobre as divergências, o que é corroborado pelos altos índices de suporte coparental.

Jonas reside com as mães há 3 (três) anos. As mães possuem visões diferentes sobre os sintomas emocionais da criança; enquanto Ana considera a presença de poucos comportamentos dessa categoria, Carolina percebe uma frequência mediana. Carolina mantém essa mesma visão sobre a hiperatividade, enquanto Ana considera que o filho possui elevado índice desses comportamentos. Por outro lado, ambas as mães consideram a ausência de problemas de conduta e de relacionamento com pares e elevado índice de pró-sociabilidade.

 

Família 3

Jordana havia rompido um relacionamento turbulento com uma parceira quando conheceu e se envolveu com o pai biológico de Beatriz. Eles mantiveram um relacionamento não estável por aproximadamente 6 (seis) meses, quando Jordana engravidou de Beatriz. Durante o quinto mês de gestação o pai biológico de Beatriz sofreu um acidente automobilístico e faleceu. Jordana criou Beatriz até os 2 (dois) anos de idade sozinha, quando conheceu Gabriela. O casal vive junto há 4 (quatro) anos.

Há discordância na percepção de dimensões coparentais; enquanto Jordana percebe mais proximidade e reconhecimento de sua parentalidade pela parceira, Gabriela percebe maior divisão de tarefas e suporte coparental. Ademais, Jordana percebe alto acordo coparental, enquanto, para Gabriela, as mães possuem visões diferentes sobre como criar a filha. Por outro lado, ambas concordam que há pouco conflito e sabotagem entre elas. Esses escores indicam que, embora o casal discorde sobre a criação da filha, elas tentam encontrar uma alternativa sem conflitos e evitam sabotar o papel de mãe uma da outra.

As mães têm visões bem semelhantes sobre o comportamento de Beatriz, com exceção dos sintomas emocionais: Jordana percebe a presença mediana de comportamentos desse tipo, enquanto Gabriela os considera muito raros. Elas consideram que a menina possui um índice mediano de comportamentos de problemas de conduta, todos os comportamentos referentes à hiperatividade, quase nenhum comportamento de problema de relacionamento com pares e elevado índice de comportamento pró-social.

 

Família 4

Giovani e Emanuel viviam juntos há 7 (sete) anos quando decidiram entrar na fila de adoção. Começaram a frequentar cursos e seminários de adoção, se inscreveram na fila nacional de adoção e aproximadamente 2 (dois) anos depois receberam Marina, que vive com o casal há 6 (seis) meses. A menina viveu seus primeiros anos de vida com sua mãe biológica, que é considerada incapaz e o padrasto foi denunciado por maus tratos com a menina, que foi levada para residir primeiro com o pai biológico, depois com a avó paterna e, em seguida, com a madrinha. Novamente por indícios de maus tratos, a criança foi então residir no abrigo. Ocorreu uma tentativa falha de adoção de Marina por outro casal. Emanuel e Giovani foram contatados pela assistente social, que lhes propôs a aproximação da criança e então decidiram entrar com o processo de adoção permanente.

A família 4 apresentou índices semelhantes ou idênticos para todas as categorias coparentais. Eles apresentaram escores altos para todas as dimensões positivas coparentais e índices extremamente baixos para as dimensões negativas. Também a percepção dos pais sobre a filha é muito similar. Para eles, Marina possui alguns sintomas emocionais. Índice mediano de problemas de conduta, nenhum problema de relacionamento com pares e elevados índices de hiperatividade e pró-sociabilidade. Marina apresenta histórico de abuso físico e abandono familiar repetidamente pelos primeiros anos de vida. A menina está aprendendo agora a ler e escrever, encontra dificuldades em respeitar os limites, visto que muitas vezes sofria punições físicas em situações diversas que podem causar confusão na criança sobre qual comportamento é adequado e qual não é. Os pais de Marina relatam que o primeiro mês foi muito difícil. Giovani diz: “nós procuramos saber tudo sobre a Marina, mas não para decidir se vamos ou não ficar com ela, mas para saber como ajudar ela”.

 

Discussão das similitudes e singularidades dos casos

As quatro famílias participantes deste estudo apresentam constituições diferentes e escolhas distintas sobre o como ou por que decidiram se tornar pais e mães. A família 1 relatou namorar por quatro meses, mas que a solidificação do casal enquanto instituição familiar veio por meio da decisão da adoção. A família 2, por sua vez, relata que já tinha um relacionamento consolidado quando decidiu adotar. Já o casal 3 se constituiu após a concepção de Beatriz. Por fim, a família 4 tem um histórico longo enquanto casal e uma preparação de dois anos antes de adotar Marina.

Sobre a coparentalidade, a entrevista acerca de temas que focalizavam as dimensões da coparentalidade propostos pelo instrumento psicométrico utilizado explorou as categorias acordo, divisão de tarefas, proximidade, reconhecimento da parentalidade, suporte, sabotagem e conflito. Na dimensão acordo coparental, os casais responderam sobre as concordâncias e divergências, assim como as expectativas frente às negociações conjuntas envolvendo a parentalidade. Emergiram como elementos as expectativas iguais versus expectativas diferentes, o consentimento, a concordância e a parceria. Os casais relatam que divergências existem, mas que frequentemente conseguem chegar a um acordo. Os sujeitos de pesquisa quase sempre atribuem essas divergências ao fato de terem tido criações diferentes das dos parceiros e que são influenciados por elas no modo de como criar seus filhos. Atribuem também a seus modelos de criação as diferentes expectativas que precisam ser alinhadas, mas que, para eles, é perceptível a evolução nos acordos com o tempo e diálogos sobre a criação dos filhos. Acordos na relação coparental são importantes para indicar segurança e estabilidade à criança. Casos de desacordos podem sugerir instabilidades e estar relacionados a problemas de comportamento ao longo da vida das crianças, já que, muitas vezes, terão que seguir as indicações de um dos membros do casal e não de outro (Beiras &Souza, 2015).

A compreensão sobre o acordo fica clara na fala de Ana, do casal 2:

A gente estava falando disso ontem à noite ... isso a gente tem bem diferente, assim as ideias sobre a criação, a gente pensa bem diferente, até mesmo por coisa de como nós fomos criadas né, a Carolina se baseia mais em como os pais dela criaram e a minha mãe era mais do diálogo e da criança saber tudo.

Feinberg (2003) correlaciona os desacordos parentais com problemas de comportamento infantil, mas ressalta que o desacordo não deve ser considerado isoladamente, pois este, sozinho, não acarreta efeitos negativos. O autor considera a possibilidade de negociação dos pais sobre os aspectos parentais desacordados, assim como suas capacidades de suporte coparental, as quais podem se sobressair ao desacordo.

Mães e pais entrevistados indicaram os seguintes elementos temáticos sobre divisão de tarefas: divisão igualitária, divisão baseada na rotina familiar, divisão estabelecida previamente à criança e divisão desigual. Os casais relatam que não existem tarefas determinadas para cada membro. No entanto, costumeiramente um leva ou busca a criança na escola, o outro ajuda mais com os deveres de casa. Quando existem emergências, o outro entra para ajudar aquele que está em dificuldades, conforme pode ser observado na fala de Eric, da família 1: “Em casa no sábado o Leonardo trabalha e ele é de organizar, e eu não gosto e eu faço o resto, mas se eu não consigo fazer ele ajuda também. Ele se vira se eu não estou, mas cozinhar eu cozinho mais que ele”.

Böing e Crepaldi (2016) apontam que a satisfação quanto à divisão de tarefas é um indicador desta categoria, relacionando a divisão do trabalho com as expectativas e crenças do casal sobre o cuidado com a criança. Deste modo, caso as expectativas não sejam alcançadas, o estresse parental pode interferir na responsividade dos pais em relação aos filhos. A pesquisa de Farr e Patterson (2013) apontou, por meio de relatos e observações, que casais homoafetivos dividiam os cuidados dos filhos de modo mais igualitário, enquanto em casais heteroafetivos as mães cuidavam mais do que pais. Os casais de lésbicas apresentaram mais suporte coparental e menor nível de sabotagem, enquanto os casais de gays apresentaram o menor nível de suporte coparental, e os casais heterossexuais o maior nível de sabotagem. No geral, o suporte coparental foi associado a um melhor desenvolvimento da criança.

A dimensão proximidade abordou elementos como filho que une ou distancia o casal; dedicação maior ao filho do que ao casal; felicidade na interação do parceiro com o filho; amadurecimento; prazer na parentalidade; gratidão por ter filhos e desejo de ter mais uma criança. Dentre esses elementos, o fato de ser pai ou mãe foi citado três vezes como fator de consolidação da união do casal, como exemplificado na fala de Ana, do casal 2:

A gente acaba não pensar [sic] só no casal e os objetivos mudam e o casal acaba tendo que ficar mais próximo e a criança é uma alegria muito grande pra dentro de casa e não tem como não crescer juntos.

Foram expressos sinais de ambivalência sobre a parentalidade e a proximidade do casal, porém a forma pela qual os conflitos são explorados pode resultar em o/a filho/a distanciar o casal, como exemplificado na fala de Carolina, também da família 2:

Tem coisas que a gente discorda e estamos afastadas pra gente conseguir administrar e manter uma relação nós duas com ele junto e agora estamos conseguindo entrar num consenso apesar da distância e agora estou entendendo mais esse lado superprotetora [sic] dela e ela entender mais esse meu lado rígido.

Carolina ainda completa sua fala comparando a interação da parceira com o filho e como sua parceira: “ela se dedica mais ao filho do que ao relacionamento”.

Outros aspectos relevantes foram o amadurecimento relatado pelo casal através da experiência de parentalidade e o prazer na execução destas funções, indicando a gratidão por ter filhos e o desejo por aumentar a família. Giovani (casal 4) exemplifica esse sentimento ao relatar: “Eu digo que temos que ser muito gratos pela mãe dela, porque ela nos trouxe a Marina pro mundo”. Sentimento complementado na fala de Emanuel, também do casal 4, que indica querer ter mais filhos: “até porque a nossa intenção é ter mais, mas como veio só a Marina a gente tem que dar um tempo pra ela se sentir mais segura”. Frizzo et al. (2005) indicam as relações existentes entre os sistemas parental e conjugal, na medida em que a satisfação da relação coparental perpassa pela satisfação com a parentalidade e com a vida conjugal. Neste sentido, a qualidade positiva ou negativa da coparentalidade pode ter relação direta com a deterioração ou sucesso da relação conjugal ao passo que a proximidade coparental pode ser influenciada também pela relação entre os sistemas conjugal e parental.

Sobre o reconhecimento da parentalidade do parceiro foram identificados os seguintes elementos nas falas dos participantes: reconhecimento como bom pai ou boa mãe; balanceamento entre vida pessoal e parentalidade e parentalidade vem antes da vida individual. Os entrevistados apontaram reconhecer seus parceiros como bons pais e boas mães, mas tiveram dificuldade em relatar situações onde se sentiam reconhecidos. Referem também o fato de que muitas vezes pecam em expressar seu reconhecimento com o outro, mas poderiam se manifestar com maior frequência ou intensidade. Os participantes relataram que o fato de seus parceiros colocarem a família antes de suas necessidades individuais é um marco para esse reconhecimento, assim como a importância de balancear os vários aspectos em suas vidas com suas funções parentais. Leonardo (casal 1) fala sobre essa questão ao referir: “Eu sei que eu deveria falar mais, eu sou mais calado, acho que a gente pode melhorar nisso, mas eu também queria ouvir mais, eu sei que eu estou pondo eles primeiro e eu mostro isso pra eles.” Essa fala é confirmada por Eric (casal 1), quando relata: “ele não fala, eu acho que ele não demonstra pela criação dele, mas eu sinto que ele acha que eu sou um bom pai”.

Acerca do suporte coparental elementos como alívio na carga; diálogo e apoio sobre as decisões são evidenciados nos relatos. Leonardo, do casal 1, diz que percebe o suporte, mas que reconhece espaço para melhoras: “Eu acho que falta muito isso de a gente conversar mais e chegar a um consenso e desenvolver um tipo de ordem, e o outro acompanhar e se não tiver certo chegar e conversar”. Ao mesmo tempo, todos os entrevistados relataram que quando chegam ao seu limite sabem poder contar com o auxílio de seus parceiros. A rede de suporte é considerada como um fator de proteção por facilitar o enfrentamento familiar de experiências estressantes (Böing & Crepaldi, 2016).

Quanto à sabotagem apareceram indicações de sarcasmo; ciúmes do parceiro com o filho e complementação do papel do parceiro. Além disso, os entrevistados relataram que estar juntos, em família, é mais divertido em comparação a momentos onde estão sozinhos com os filhos. Jordana (família 3) reconhece sentir ciúmes quando Gabriela brinca com Beatriz, mas que a satisfação de vê-las juntas supera esse sentimento: “eu tenho muito ciúmes das duas juntas, mas eu amo mais a Gabriela quando eu vejo ela amando a minha filha”. Para Feinberg (2003), a qualidade do suporte ou, nesse caso, da sabotagem parental, está associada aos sentimentos de competência parental do casal e do comportamento dos filhos, impactando suas capacidades adaptativas. As crianças que vivenciam a constante sabotagem do papel parental entre os pais internalizam esses comportamentos como modelos a serem repetidos e podem ter dificuldades em se relacionar com outras crianças.

Em conflito coparental surgiram situações de brigas, agressões, discussões sobre relacionamento do casal em frente à criança, gritos durante as discussões e xingamentos. Os quatro casais relataram raramente entrarem em conflito e não se agredirem, pois conseguem dialogar quando não concordam entre si, mas que mesmo nas ocasiões em que uma discussão ocorre, a criança não está presente. Neste aspecto, Leornardo (casal 1) refere: “Eu tento, quando o Guilherme já tá dormindo, eu tento buscar pra conversar”. Já Ana (família 2) faz referência sobre as brigas na frente dos filhos e a resolução dos impasses: “não isso também não, pelo menos na frente dele nunca acontece”.  Feinberg (2003) afirma que a relação coparental é responsável por estabelecer limites que norteiam a qualidade do funcionamento estrutural da família e relata que, em casos de dificuldades de manejo dos conflitos do casal, o mesmo acaba por expor a criança a situações de hostilidade que podem potencializar o prejuízo no desenvolvimento infantil e da família.

Uma boa relação coparental é perceptível nos diálogos com as famílias, mas os sujeitos também indicam a necessidade de melhora no manejo das relações cotidianas enquanto mães e pais. Isso pode representar o comprometimento destes casais com a criação dos filhos e os desafios da parentalidade como um todo. Beiras e Souza (2015) relatam que uma coparentalidade po­sitiva pode funcionar como fator protetivo que executa a mediação da relação com os fatores de risco; fatores estes compreendidos como características pessoais dos(as) pais/mães e do ambiente: contextos extrafamiliares e histórico do relacionamento fami­liar anterior à parentalidade, contribuindo para o desenvolvimento integral da primeira infância.

No que tange ao comportamento infantil, buscou-se perceber como cada pai ou mãe percebe seu filho ou filha em relação a capacidades e/ou dificuldades infantis. A concepção de saúde infantil considera o comportamento social positivo, a ausência de problemas de relacionamento com colegas ou problemas de conduta, assim como a ausência de sintomas de ansiedade ou depressão, ou hiperatividade (Ferriolli, Marturano, & Puntel, 2007).

A respeito dos sintomas emocionais sob uma visão geral de mães e pais, as crianças apresentaram bom humor, coragem e autoconfiança na maioria das situações exploradas, como exemplificado na fala de Emanuel (casal 4): “ela tem o humor muito bom mesmo, não se assusta fácil é muito corajosa”. Também apareceram relatos de choro frequente, tristeza, ansiedade, preocupação e medo. Carolina (casal 2) e Jordana (casal 3) apresentam visões diferentes de suas parceiras nessa categoria, acreditando que seus filhos têm mais sintomas emocionais. Essa diferença em percepção pode influenciar na interação entre mães, pais e filhos, assim como em conflitos sobre a forma de suprir as necessidades da criança. Embora essas mães tenham percepções distintas, ambas relatam sempre se comunicar com suas parceiras antes de tomarem atitudes, o que pode diminuir o impacto dos diferentes pontos de vista.

Para Ferriolli, Marturano e Puntel (2007), diferentes problemas de saúde mental estão associados a fatores ambientais diversos, que podem servir como fatores de risco, mas também de proteção para o desenvolvimento de transtornos de saúde mental. Com exceção de Jonas, que ainda elabora o luto da mãe biológica e o abandono do pai biológico, todas as famílias relataram que as crianças têm bom humor, se sentem felizes e confiantes na maior parte do tempo.

Quanto aos problemas de conduta, foram elencados elementos como birra, mentira, furto e falar a verdade. O comportamento de birra foi o comportamento mais indicado pelos pais como indicativo de problemas de conduta, alinhado ao comportamento de mentiras, como ilustrado na fala de Giovani, da família 4:

Já teve mais e já foi muito mais intenso ela é mais ou menos verdadeiro ... Antes era todos os dias agora umas duas vezes por semana ainda, mas era forte antigamente ... Tem a ver com a segurança e com a atenção que a gente dá, porque ela quer a plateia pra birra e nós não damos mais atenção pra birras.

São atribuídas a essa questão as situações vivenciadas por essas crianças prévias à adoção, seus históricos e as possibilidades encontradas por elas ao vivenciar situações aversivas, nas quais o comportamento de birra e mentiras pode ser considerado estratégias de defesa utilizadas por essas crianças para sua sobrevivência emocional e afetiva. Os problemas de conduta são analisados em associação com a rotina familiar. Ao se considerar a organização da família e principalmente da vida da criança, compreendemos que essa organização do tempo requer a supervisão de um adulto, dando qualidade a essa supervisão e à forma na qual ela acontece, que também interfere no ambiente propício para o desenvolvimento saudável para crianças e adolescentes (Ferriolli, Marturano, & Puntel, 2007). De tal modo, os problemas de conduta identificados pelos pais entrevistados apresentam relação com o ambiente hostil no qual essas crianças cresceram nos primeiros anos de vida, corroborando também o potencial de evolução advindo do ambiente acolhedor no qual se encontram atualmente.

Na categoria hiperatividade foram relatadas situações de atenção e concentração, em adição às situações de agitação excessiva e impulsividade. Embora todos os pais tenham percebido sintomas relevantes quanto à impulsividade, todos, sem exceção, consideraram que seus filhos estão apresentando melhoras nesses sintomas. Giovani (casal 4) atribuiu os sintomas às situações de ajuste da rotina familiar, assim como da nova escola:

Quando ela chegou lá da casa-lar ela tomava ritalina e risperidona e daí eu levei ela num neurologista e ele disse que foi considerado o meio que ela vivia e eles no lar disseram que a mais difícil do lar era a Marina ... daí o neurologista diminuiu o medicamento e depois cortou e estivemos acompanhando e ele disse que se ela tivesse algum problema neurológico ela não aguentaria ter cortado o medicamento ... eu acho que é muito porque lá ela era chamada de menina do abrigo e não tinha amigos e agora ela está sendo amada.

Ferriolli, Marturano e Puntel (2007, p.257) também indicam, em seu estudo, que encontraram “associação entre persistência de sintomas de hiperatividade e indicadores de desvantagem social e instabilidade familiar, o que inclui a instabilidade econômica”. Embora a condição de insegurança ambiental, de instabilidade financeira e emocional das famílias de origem possa constituir fatores relacionados à incidência de transtornos de hiperatividade e déficit de atenção, não se pode ignorar a característica relacional na compreensão dos comportamentos infantis. Muitas são as variáveis contextuais que, em interação ativa com a pessoa em desenvolvimento, podem melhor explicar a existência de tais características em uma criança. Características estas que se manifestam em diferentes ambientes, como na família e na escola (Vitolo et al., 2005). Como relatado por Giovani, pai de Mariana: “não tem criança para adoção com história bonita, todas as histórias ali são tristes”. Deve-se considerar também o histórico das crianças ao se analisar o quadro atual de saúde mental.

No que se refere aos problemas de relacionamento com colegas, foram levantados elementos como a preferência por estar sozinho ou entre amigos, a amabilidade demonstrada por essas crianças com crianças menores, situações de bullying e o fazer amizades. Neste aspecto, destaca-se a fala de Eric, da família 1, quando cita uma situação de bullying vivenciada por Guilherme na escola:

A professora ensinou os coleguinhas a fazerem com o dedão pra baixo e olharem pra ele dizendo que foi feio quando ele faz algo errado, então tivemos que intervir, mas só descobrimos quando veio um coleguinha da sala falar se a gente sabia que o Guilherme só faz coisa errada.

Muitas vezes as situações de bullying interferem no relacionamento com os colegas e é de essencial atenção dos adultos a adoção de estratégias a serem tomadas para que estas possam ser sanadas (Ferriolli, Marturano, & Puntel, 2007).

Os comportamentos pró-sociais são considerados os fatores que protegem e auxiliam a superação das dificuldades e foram identificados nos elementos socialização, consideração por outros, trabalho em equipe, oferta de ajuda aos outros e cuidado com outras crianças. Os pais indicaram a facilidade destas crianças em se socializar, assim como a amabilidade destas com as crianças mais novas. Gabriela argumenta: “demais, assim às vezes ela deixa de brincar pra cuidar das outras crianças”. Essas e outras habilidades de socialização são consideradas fator essencial para a superação das dificuldades de comportamento. Para Beiras e Souza (2015), a coparentalidade positiva contribui diretamente para o bem-estar e desenvolvimento dos filhos, facilitando o apego seguro da criança, seu desenvolvimento emocional e o comportamento pró-social. Sugere-se que a qualidade da relação coparental pode facilitar o desenvolvimento infantil e de comportamentos saudáveis, assim como um ambiente negativo e de inseguranças pode afetar esse desenvolvimento de forma negativa. O ambiente familiar instável, fora de controle ou caótico, é concebido como prejudicial ao desenvolvimento infantil (Ferriolli, Marturano, & Puntel, 2007).

Pode-se perceber que, apesar de algumas características de hiperatividade e de sintomas emocionais identificadas por mães e pais, comportamentos pró-sociais foram relatados nas famílias de todas crianças. Os comportamentos pró-sociais são considerados fatores de proteção, e quando presentes muitas vezes corroboram a superação dos demais sintomas rastreados em doenças mentais (Ferriolli, Marturano, & Puntel, 2007).

Os relatos expressam a qualidade do investimento afetivo exercido por estes pais e mães em relação a seus filhos. Desta forma, relaciona-se o suporte coparental e a satisfação parental como fatores positivos para o desenvolvimento de comportamentos saudáveis da criança. Diferentes níveis de funcionamento familiar e sua interação com a coparentalidade podem afetar a qualidade das relações entre pais e crianças, os quais trazem implicações para o desenvolvimento infantil (Böing & Crepaldi, 2016).

Conforme indicam Cecilio e Sorsolini-Comin (2016), independentemente da orientação sexual dos pais adotivos, os mesmos encontram desafios similares quanto aos fatores de risco para problemas comportamentais infantis, assim como os fatores que intensificam esses comportamentos. Características da adoção, dos sentidos e do vínculo estabelecido em casos de adoção devem ser levadas em consideração e estudadas numa compreensão familiar. Essas condições implicam desafios para esses pais e mães enquanto provedores de estratégias para o alcance do desenvolvimento infantil adequado e o enfrentamento positivo dos sentimentos referentes aos seus históricos e implicam estratégias do casal para suprir necessidades psicológicas e promover seu desenvolvimento saudável (Fernandes & Santos, 2019).

 

Considerações finais

Com este estudo foi possível compreender a percepção de pais e mães sobre as relações coparentais e o comportamento das crianças que compõem famílias homoafetivas.  Os casais entrevistados relataram indicativos de coparentalidade positiva, em prol das crianças, embora desafiadora. Foi possível caracterizar a forma de organização do casal para os cuidados com os filhos, bem como a intensidade do investimento afetivo aplicado em sua parentalidade. O suporte e a proximidade coparental indicam qualidade coparental dos casais como estratégias para a superação dos problemas de comportamento das crianças. O acordo entre os casais e o reconhecimento da parentalidade do outro possibilitam a segurança na execução do papel parental e provêm consistência para a criança, favorecendo um desenvolvimento saudável.

É evidente na fala de pais e mães os desafios enfrentados por eles em sua história pessoal, assim como na vivência de sua parentalidade. O diálogo e o consenso nas decisões do casal influenciam diretamente nos comportamentos das crianças, tornando a criação dos filhos um processo mais agradável. A coparentalidade é um fenômeno ainda pouco estudado no Brasil, consequentemente, ainda menos estudada é a coparentalidade homoafetiva, indicando a necessidade de mais estudos e maior aprofundamento destes. Evidenciou-se que as famílias constituídas acabaram atuando como fatores de proteção ao desenvolvimento infantil nos casos observados. Para tanto, sugere-se a relevância de ampliar os focos de análise a respeito desse fenômeno, considerando os diferentes históricos familiares das crianças, bem como a importância de se realizar pesquisas longitudinais que possam acompanhar o comportamento infantil antes e após a adoção ou constituição familiar. Espera-se que os resultados desse estudo possam gerar discussões (na sociedade, nas escolas, na saúde, nas famílias) que atentem para a importância de se considerar as diferentes configurações familiares e incentivar e promover interações de qualidade entre pais-crianças para, assim, contribuir com o desenvolvimento infantil.

 

 

Referências

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Recebido em: 15/09/2019
Aprovado em: 26/10/2019

 

 

I Thaiany Domingues Matos (https://orcid.org/0000-0003-3704-1001): Graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Itajaí/SC, Brasil. E-mail: thaianymatos88@gmail.com

II Carina Nunes Bossardi (https://orcid.org/0000-0003-3542-501X): Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Professora do curso de Psicologia e do Mestrado em Saúde e Gestão do Trabalho da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Itajaí/SC, Brasil. Florianópolis/SC, Brasil. E-mail: carinabossard@yahoo.com.br

III Carolina Duarte de Souza (https://orcid.org/0000-0003-3555-1120): Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC, Brasil. E-mail: carolzunino@gmail.com

IV João Rodrigo Maciel Portes (https://orcid.org/0000-0003-2512-4491): Professor do curso de Psicologia da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Itajaí/SC, Brasil. E-mail: jrmportes@gmail.com

V Marina Menezes (https://orcid.org/0000-0002-8518-8684): Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC, Brasil. E-mail: menezemarina@yahoo.com.br

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