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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.3 São Paulo set. 2007

 

ARTIGOS

 

Do baluarte ao enactment: o “não-sonho” no teatro da análise1

 

From bastion to enactment: the “non-dream” in the theater of analysis

 

Del baluarte al enactment: el “no-sueño” en el teatro del análisis

 

 

Roosevelt M. Smeke Cassorla2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do trabalho é discutir modelos que expressem o que ocorre na situação analítica. Demonstra-se que os modelos iniciais, relacionados à pintura e à escultura, à história e à arqueologia, se expandem para outros que indicam relação entre duas pessoas. Estuda-se, em detalhes, o modelo de campo analítico, dos Baranger, com seus baluartes obstrutivos, base para a compreensão do que atualmente se valoriza como intersubjetividade em psicanálise. Em seguida se discutem o modelo continente/contido e o fenômeno do recrutamento do analista pelo paciente. A partir de material clínico, mostra-se como esses modelos se articulam com o enactment (“colocação em cena patológica da dupla”) e, a partir desse conceito, evidencia-se a importância da imagem visual, do sonho e do “não-sonho” e do conceito de “pictograma afetivo”, como aspectos privilegiados para a compreensão e evolução do pensar. Sua importância leva à proposta do modelo do teatro como metáfora de processo analítico. Nele, analista e paciente participam, ao mesmo tempo, como personagens e co-autores das cenas.

Palavras-chave: Baluarte; Enactment; Campo analítico; Não-sonho; Modelos em psicanálise.


ABSTRACT

The objective of this paper is to discuss models which express what occurs in the analytical situation. It demonstrate how the initial models, related to painting and sculpture, to history and archeology, develop into other models that indicate the relationship between two persons. The Baranger’s “analytical field” is thoroughly studied, with its obstructive baluarts, as basic knowledge for the comprehension of what is currently valued as intersubjectivity in psychoanalysis. It is discussed the container-contained model and the phenomenon of “recruitment”. From clinical material it is shown how these models are linked with the “enactment”, and the study of this concept evidences the importance of the visual image, the dream and “non-dream”, the “affective pictogram”, as privileged aspects for the comprehension and evolution of thought in the analytical process. Its importance leads to the proposal of the theater model as a metaphor of the analytical process. In it, the analyst and the patient both participate as characters and as co-authors of the scenes at the same time.

Keywords: Bastion; Enactment; Analytical field; Non-dream; Models in psychoanalysis.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es discutir modelos que expresen lo que ocurre en la situación analítica. Se demuestra que los modelos iniciales, relacionados a la pintura y la escultura, a la historia y la arqueología, se expanden para otros que indican relación entre dos personas. Se estudia, en detalles, el modelo del campo analítico, de los Baranger, con sus baluartes obstructivos, base para la comprensión de lo que actualmente se valoriza como intersubjetividad en psicoanálisis. A seguir se discuten el modelo continente/contenido y el fenómeno del reclutamiento del analista por el paciente. Partiendo del material clínico se muestra como esos modelos se articulan con el enactment (“colocación en escena patológica de la dupla”), y a partir de este concepto se evidencia la importancia de la imagen visual, del soñar y el no soñar, y del concepto de “pictograma afectivo”, como aspectos privilegiados para la comprensión y evolución del pensamiento. Su importancia lleva a la propuesta del modelo del teatro como metáfora del proceso analítico. En él, analista y paciente participan, al mismo tiempo, como personajes y co-autores de las escenas.

Palabras clave: Baluarte; Enactment; Campo analítico; No-sueño; Modelos en psicoanálisis.


 

 

Os leopardos invadem o Templo e esvaziam os vasos sagrados. O fato não cessa de se reproduzir, até que, finalmente, […] isso passa a fazer parte do ritual.

Franz Kafka

 

Existe uma tendência, na psicanálise atual, a considerar a contratransferência como um terreno comum no qual transitam várias concepções teóricas. O conceito de identificação projetiva, como base da contratransferência, passa a ser utilizado tanto pelos analistas associados à psicologia do ego, como por outros analistas, além dos kleinianos (Gabbard, 1995). Ao mesmo tempo, ocorre uma valorização da “psicologia de duas pessoas” (Balint, 1979), como visão intersubjetiva da psicanálise, opondo-se à “psicanálise clássica”, que é considerada “psicologia de uma pessoa” e que buscaria o “intrapsíquico” do paciente. Penso que essas posições por vezes correm o risco de ser extremadas, já que a análise clássica não nega a importância da “outra pessoa” e a posição intersubjetiva levada a extremos poderia não diferenciar as “duas pessoas”. Acredito, no entanto, que essa última visão, quando se ocupa em detalhar o papel do analista e a indução mútua, nos traz contribuições valiosas. Há indicações de que as duas posições, a “intersubjetiva” e a “clássica”, tendem a se aproximar (Dunn, 1995).

Partindo de pressuposto intersubjetivo, proponho-me, neste trabalho, a discutir modelos compreensivos referentes ao que se supõe que ocorre entre os membros da dupla analítica. Nesse contexto, considerarei situações paralisantes do processo analítico. Mostrarei, também, que idéias atuais relacionadas à intersubjetividade já estavam presentes na psicanálise latino-americana das décadas de 50-60, particularmente nos países do Rio da Prata.

 

Modelos freudianos

A dificuldade em descrever o que ocorre numa sessão analítica tem feito com que se utilizem modelos auxiliares. Freud (1905) descreveu o analista como um escultor (via di levare), que desvela a obra oculta na pedra. O terapeuta sugestionador, por sua vez, agiria como pintor (via di porre), colocando algo na tela.

O modelo da escultura se aproxima do histórico-arqueológico (Freud, 1930), em que o analista como que escava camadas mentais. A partir dos elementos encontrados, poderá também efetuar reconstruções hipotéticas (Freud, 1937). Nesse modelo pareceria que, à medida que caminharmos na investigação analítica, mais profundamente chegaremos. Strachey (1934) discute complicações técnicas decorrentes dessa idéia. Bion (1965), ao discutir o conceito de “mudança catastrófica”, mostra que o analista-arqueólogo encontrará, mescladas, rochas pertencentes a diferentes “estratos geológicos”.

No modelo que chamo “militar”, a análise deverá reconquistar espaços, ocupados por um exército invasor que deixou, em seu avanço, fortalezas com tropas, pontos de fixação. O analista atrairá as tropas libidinais para si mesmo, no intuito de dominá-las, e o campo de batalha será a transferência (Freud, 1912a). Freud introduz também modelos para descrever a atitude do analista, como o “cirurgião” (1912b), “sem sentimentos”, e o analista-espelho.

Em todos os modelos descritos até aqui, o analista é ativo, enquanto o paciente parece submeter-se ou apenas resiste passivamente.3 Mas, no modelo do jogo de xadrez (Freud, 1913), em que o analista não sabe como jogará o jogo, poderíamos supor que o paciente não só se defende, mas é capaz de derrotar ativamente o analista.

 

Baluarte e campo analítico

O reconhecimento da contratransferência não apenas como patologia do analista, mas como instrumento útil para compreender o paciente, ocorreu concomitantemente na Argentina (Racker, 1948/1977, 1953/1977) e na Inglaterra (Heimann, 1950). O analista, suportando e elaborando os sentimentos suscitados dentro de si, captando sua resposta emocional, a torna instrumento valioso de investigação do inconsciente do paciente.

Ainda que o conceito de identificação projetiva não tenha sido usado nesses trabalhos, logo se percebeu sua utilidade para compreender a contratransferência. Inicialmente a identificação projetiva era considerada uma fantasia inconsciente defensiva, e apenas isso. No processo analítico, aspectos cindidos do paciente são projetados dentro do analista, este sendo vivenciado como contendo esses aspectos expelidos.

Money-Kyrle (1955) mostra que a contratransferência pode ser “normal”, fruto da oscilação adequada, no analista, entre identificações projetivas e introjetivas. Na Argentina, nesse momento, Pichon-Rivière (1980) caminhava na mesma direção. De certa forma, esses autores antecipam o que Bion (1962) chamará identificação projetiva realística ou normal, mecanismo que permite o reconhecimento de objetos e a identificação, com finalidade de comunicação.

Grinberg (1957) mostra, através do conceito de contra-identificação projetiva, que as projeções do paciente podem atingir o analista, provocando-lhe algo “real”. Isso ocorreria independentemente de seus próprios conflitos. Nesse momento, a identificação projetiva deixa de ser apenas uma fantasia inconsciente. O paciente não só se defende, mas tem poderosas armas de ataque contra o analista. Logo se percebe que o analista pode aproveitar esse fenômeno para captar aspectos expelidos do paciente (Grinberg, 1982).

Idéias similares são trazidas por Bion (1962). Os elementos que constituem a tela beta (que não podem ser pensados e são expelidos através da identificação projetiva) têm a capacidade de despertar emoções no analista, promovendo a reação que inconscientemente o paciente deseja. O analista procurará “metabolizar” esses elementos, devolvendo-os ao paciente ressignificados e passíveis de serem pensados (elementos alfa).

O modelo militar, associado ao conceito de identificação projetiva, serve ao trabalho clássico do casal Baranger (1961-1962/1969), no qual eles descrevem o “baluarte”, obstáculo para a progressão da batalha que ocorre na situação analítica. A etimologia de “baluarte” nos indica fortificações que avançam em ângulo saliente, a partir de muralhas protetoras, permitindo vigiá-las e atirar contra os inimigos. A idéia de baluarte como fortaleza de onde se impede o trabalho analítico poderia sugerir que o analista se movimenta ativamente, enquanto o paciente fica recuado, defendendo-se. Essa impressão não é correta. Somente podemos compreender esse modelo dentro do conceito de “campo”. Nele já estão contidas idéias atuais sobre intersubjetividade.

Para os Baranger, da situação analítica participam duas pessoas envolvidas num mesmo processo dinâmico, sendo que nenhum membro da dupla é inteligível sem referência ao outro. As duas pessoas, por sua vez, mascaram estruturas multipessoais. O “campo” se constitui no conjunto de estruturas espaciais, temporais e no que é chamado “fantasia inconsciente da dupla”. Essa fantasia não é decorrente da soma de aspectos do paciente e do analista: “[…] Es algo que se crea entre ambos, dentro de la unidad que constituyen en el momento de la sesión, algo radicalmente distinto de lo que son separadamente cada uno de ellos” (p. 141). É importante assinalar que tudo o que ocorre no campo bipessoal não será simplesmente uma repetição, na medida em que surge num novo contexto.

O encontro com baluartes remete a paralisias no campo, sensação de que nada ocorre, relatos estereotipados. Ainda que por vezes os Baranger se refiram ao baluarte como pertencendo ao paciente, fica clara sua intenção de considerá-lo como produto do campo. Essa contradição se esclarece melhor posteriormente (Baranger & Mom, 1982/2002), quando se considera o baluarte um “precipitado” de campo que somente pode ocorrer entre esse analista e esse analisando e que “provém de uma cumplicidade entre ambos os protagonistas na inconsciência e no silêncio para proteger um engate que não deve ser desvelado” (p. 115). Constitui-se uma neoformação de campo, “ao redor de uma montagem fantasmática dividida que implica zonas importantes da história pessoal de ambos os participantes e que atribui, a cada um, um rol imaginário estereotipado” (p. 116). Assim, partes do paciente e do analista são englobadas, engolfadas numa estrutura defensiva. O baluarte pode parecer um corpo estranho estático, enquanto o processo analítico aparentemente segue seu curso, ou invade todo o campo, que se torna patológico.

A ruptura do baluarte provoca a destruição do status quo, dando chance à ressignificação das partes cindidas, que voltam a fazer parte do mundo emocional.

É interessante verificar a similaridade entre a descrição dos Baranger e o que veremos adiante como enactment.

 

Relação continente/contido, recrutamento

O modelo continente/contido (Bion, 1962) baseia-se na função digestiva: a mente humana deve “digerir”, “metabolizar” elementos brutos, sensoriais e afetivos– chamados elementos beta–, que devem ser contidos (acolhidos e metabolizados) por outra mente, continente, e tornados passíveis de serem potencialmente pensados– elementos alfa. O continente apropriado capaz de efetuar essa complexa função, chamada alfa, não se deixa dominar ou destruir, propiciando uma relação intersubjetiva criativamente transformadora.

Espera-se que o analista utilize sua função alfa para ajudar o paciente a dispor de elementos apropriados para o pensamento, permitindo-se ser alvo para as identificações projetivas massivas de elementos beta do paciente e capaz de transformá-los em elementos alfa. A captação intuitiva do analista se dá na “intersecção” (Bion, 1965) entre evoluções do paciente e do analista.

Os elementos alfa constituem a experiência emocional representada mentalmente, adquirindo a qualidade de “pensabilidade” sem ainda se constituírem em pensamentos. Graças a isso, estimula-se a formação de um “aparelho” para pensá-los, que cria pensamentos oníricos, o pensamento inconsciente da vigília, sonhos, lembranças, idéias e pensamentos mais complexos. A mente do analista também poderá dar novos sentidos a elementos mais evoluídos do pensamento.

Penso que a relação continente/contido mantém o modelo militar. O paciente lança projéteis-elementos beta no analista supostamente continente, e o vínculo pode ser destruído ou tornado estéril. Quando o analista “digere” os fatos mentais e os devolve metabolizados ao paciente, eles são introjetados conjuntamente com a função alfa do analista. Podemos supor que, nesse momento, a “guerra” foi substituída pela “diplomacia”.

Joseph (Feldman & Spillius, 1989) detalha como as identificações projetivas do paciente podem engolfar o analista, fazendo com que este represente papéis complementares àqueles que o paciente necessita para manter o status quo, o equilíbrio psíquico. Desta forma, é como se o paciente “recrutasse” o analista a participar dos enredos estereotipados, preestabelecidos. Este não deve se deixar recrutar, mostrando ao paciente o que este inconscientemente faz. Eventualmente o analista, ampliando as identificações projetivas que o engolfaram, pode também recrutar o paciente. Elementos próprios do analista podem entrar em jogo. Nessas situações o processo analítico se estanca. A situação se assemelha aos baluartes e à relação continente/contido estéril. Lembremos que o termo “recrutar” tem também uma conotação militar, e não é possível resistir a ele na vida corrente.

Enactment

Na década de 90 passou a ser bastante utilizado o termo enactment– “colocação em cena patológica da dupla”.4 Indica descargas mútuas que ocorrem na relação analítica e que costumam se manifestar como comportamentos e ações da dupla analítica5 (Cassorla, 2001, 2003b). O enactment se aproxima, nos modelos estudados acima, de baluartes, relações continente/contido estéreis, recrutamentos mútuos efetivos. A etimologia da palavra (MacLaughlin, 1991) nos indica fatos que têm forte poder de influenciar, algo que tem força de lei, a mesma conotação do termo “recrutamento”.

No intuito de explicitar os modelos e conceitos mencionados acima, descreverei uma situação clínica comum entre analistas iniciantes, e não impossível entre analistas experientes.

K tinha 20 anos quando foi atendida, há 25 anos; será mantido o relato daquela ocasião.6 Quando K me procurou e durante bastante tempo, lamentava-se intensamente de sintomas corporais, vagos, constantes, que na falta de outras palavras eram chamados “vertigens”. Sua vida estava limitada, fazia anos; os sintomas a impediam de estudar, de sair, de ter amigos. Passava a maior parte do tempo em casa, de cama, seu único refúgio. Dezenas de médicos “nada” haviam encontrado em seu corpo. Ansiolíticos e antidepressivos não faziam efeito e pioravam os sintomas. Em poucas semanas, a essas vertigens acrescentaram-se enxaquecas, diarréias, gripes, febres e outros sintomas que demandavam tratamentos médicos. K se queixava agora também do analista, acusando-o de incompetência e causador desses novos sintomas. Este, incomodado, se sentia ameaçado pelas queixas e pela piora.

Com o tempo, nesses sintomas passaram a intrometer-se ansiedade, mal-estar psíquico, medos, percepções ainda quase indizíveis, que se diferenciavam dos sintomas corporais. Adiante, eles predominariam, substituindo o corpo como lugar do sofrimento.

Nessa fase inicial, sentia-me inútil e impotente, invadido pelas queixas. K permanecia inacessível a qualquer colocação. Percebia-me lutando para não ser engolfado por suas lamentações e sentia-me presa de sentimentos estranhos, confusos, bastante incômodos. Não os compreendia, e podia observar-me, assim como a K, ambos nos debatendo. Tinha de me controlar para não devolver os ataques que recebia de K. Em outras ocasiões, via-me tentando manter-me indiferente, mas logo me percebia sofrendo, atingido por K. Constantemente me perguntava se minha capacidade analítica estava comprometida. Mas nunca pensei em desistir: sentia um vínculo forte e tinha certeza de que com o tempo as coisas ficariam claras.

A mãe de K tomava antipsicóticos e o pai, falecido, era desprezado por K. Ela se orgulhava de não sentir culpas e colocava seus objetos persecutórios principalmente na família, onde pais e irmãos eram sentidos como falsos e chantagistas.

Com o tempo, os objetos projetados e encapsulados no corpo e na família passaram a ocupar outros espaços. Desenvolveram-se defesas fóbicas intensas, as quais a impediam de permanecer em variados espaços. A situação analítica, no entanto, ficou como depositária de aspectos protetores e um dos poucos lugares onde se sentia bem.

Selecionarei dois trechos de sessões. Estamos no início do terceiro ano de análise, com quatro sessões semanais. No primeiro trecho mostro como K me envolveu num conluio sadomasoquista. No seguinte, o momento M, o analista se descontrola.

A sessão ocorre após um fim de semana prolongado, em que, a despeito de suas fobias, K tentaria fazer uma viagem. Inicia desesperada, dizendo que tem muito a contar sobre a viagem, a sessão não vai ser suficiente, está mal, muito mal, a viagem foi horrível. Segue-se, sem interrupção, uma ladainha de queixas, num tom de voz que intensifica sua importância, tentando mostrar-me seu sofrimento. Conta que tudo foi muito cansativo, horas viajando, muito calor, insônia; ela ficou muito ansiosa antes da viagem, quase desistiu, o hotel era péssimo, a comida, intragável. E sempre se sentindo mal, medindo a pressão a cada hora. Não sabe como conseguira, com muito esforço, passear um pouco. Mas ficou isolada, os companheiros de viagem eram muito desagradáveis. Chegou de madrugada. Teve de acordar cedo para vir à sessão. Está com muito sono. Nunca mais vai viajar de novo. Etc.

Sinto-me invadido pelas queixas e lamentações. A essa altura, já aprendi que interpretações de conteúdos (e ela me oferece tantas…) de nada adiantam. Tento não me confundir com esses objetos, sentidos como odiosos, torturantes, mas mal consigo. Vem a minha mente uma imagem, uma espécie de máquina de tortura que reduz tudo a pó, cinzas de morte. Sinto que preciso tentar brecar rápido o seu funcionamento.

Interrompo as lamentações de K. Ela não gosta. Digo-lhe que percebo o funcionamento de uma “máquina de tortura” trituradora, que transforma tudo em merda. Não gosto de me ouvir– meu tom de voz saiu raivoso e estranhei escutar-me falando “merda”. Não costumo falar assim.

Em resposta a minha intervenção, K se queixa, violentamente, que eu não a deixo falar, que não pode se queixar. Grita comigo e me acusa de ter gritado com ela. Digo-lhe que está gritando comigo para que possa continuar a se lamentar, e que seria bom se pudéssemos pensar juntos que função tem o que está ocorrendo. K responde dizendo que eu não acredito no seu sofrimento e detalha mais suas lamentações, com o intuito de me convencer da realidade e da intensidade de suas desgraças.

Assinalo-lhe sua desconfiança e também a dificuldade em perceber coisas boas, a viagem, a primeira em tantos anos, a despeito das dificuldades. (Percebo, imediatamente, que tentava lhe mostrar um “lado bom”, para escapar da ansiedade persecutória, e me sinto inadequado.)

K aparentemente não me ouve, mas me surpreendo porque surge um novo material, aparentemente diferente. Conta que chegou em casa de madrugada e não encontrou a mãe no quarto. Ficou assustada. Sem qualquer pensamento consciente, me escapa uma frase: “E você pensou que a tinha matado?” Responde que sim, que havia pensado exatamente isso. Foi tomar banho. Depois abriu a porta do quarto e a mãe estava lá, dormindo. “Mas fingiu que não me ouviu.” Pergunto-lhe como sabe que ela ouviu. Diz que fez muito barulho na casa.

A sessão continua com K retomando suas queixas.

 

O momento M

A despeito de existirem momentos férteis durante o processo, a maioria é abortada; mal se tem alguma consciência deles. Tenho a sensação de me defrontar com um muro, intransponível, em que qualquer tentativa de compreensão é rejeitada ou desvitalizada. É como se K acionasse uma metralhadora giratória, capaz de destruir indiscriminadamente qualquer coisa que se aproximasse.

Ainda que incomodado, tenho a percepção desses meus sentimentos. Imagino que seguramente as coisas ficarão mais claras com o tempo. Minha sensação é de que “água mole em pedra dura…” Ao mesmo tempo que me sinto alvejado e doído, penso que isso me faz sentir vivo, capaz de me recuperar para a próxima fala, para a próxima sessão. Mas, quanto mais vivo eu me sentia, mais intensos eram os ataques.

Ocorreu então o que chamo momento M, quatro meses após o trecho de sessão relatado. Como em outras ocasiões, K transformou uma intervenção minha, deformando-a, e se sentiu perseguida, atacando-me por isso. Não me ouve e insiste teimosamente que eu a acusara injustamente, que falara algo absurdo etc. Grita comigo, enquanto eu me percebia defendendo-me desajeitadamente, querendo convencê-la de que não dissera aquilo.

Nesse momento, sem pensar, bato a mão com força no braço de minha poltrona, ao mesmo tempo que, gritando mais alto que ela, interrompo K. Reclamo que não me deixa falar e não me ouve. Nesse instante ela pára com seus gritos e me diz calmamente, com ar vitorioso, num tom irônico, que eu gritei com ela. Respondo-lhe que sim, que ela tem razão, realmente fiquei nervoso, sou um ser humano. Acrescento: “Ainda bem que posso ficar nervoso, porque senão você me obrigaria a concordar com tudo o que você diz, e nesse caso eu estaria com medo de você, dominado, e você não teria mais um analista”.

Depois desse episódio, e nas sessões seguintes, diminuíram as queixas e lamentações. A metralhadora giratória parava por algum tempo, ou parecia menos ameaçadora.

O episódio me deixou preocupado, e foi tomado como uma falha minha. Refletindo, na ocasião, supus que até então me sentira como um analista paciencioso, procurando não me contaminar com as violentas identificações projetivas de K (o que não era fácil) e procurando, com a calma possível, tentar digeri-las e significá-las. O pouco efeito de minhas intervenções e a constância de seus ataques, eu os atribuía a aspectos destrutivos, que tentava interpretar. Quando o momento M ocorreu, supus que a violência das identificações projetivas havia sobrepujado meu limiar de continência e que eu havia sido engolfado pela parte psicótica de K.

Imaginei que a melhoria da relação após o momento M era uma tentativa de evitar uma maior destruição do analista, poupando-me. Supus que K estaria apenas esperando que eu me recuperasse para voltar a me atacar. Sentia-me culpado, certo de que havia atuado por falta de condições mentais.

Mas essa visão autocondenadora não coincidia com o que observava nas sessões subseqüentes. K estava não apenas menos violenta, mas mais próxima, coerente, com uma boa capacidade de observar o que estava ocorrendo com ela e na situação analítica. O mesmo ocorria comigo. Logo percebi que K não estava me poupando. Os ataques continuavam, mas minhas colocações eram ouvidas e faziam efeito. Ambos podíamos pensar mais claramente.

Reformulei então minhas idéias: sim, certamente eu havia me contra-identificado com os objetos de K, e também reagido a eles por problemas contratransferenciais meus. Mas isso vinha ocorrendo antes do momento M, por bastante tempo, e eu não o havia percebido. Eu me transformara numa vítima sofredora, num mártir que masoquistamente suportava a dor, não tendo consciência de estar contra-identificado com os mesmos aspectos de K. Assim, submetia-me de forma inconscientemente prazerosa (sentindo-me feliz em ser um analista paciencioso…) à violência dos aspectos psicóticos de K, sem o perceber.

Minha reação no momento M foi uma espécie de grito de alerta, de basta de identificações com partes masoquistas de K. Tomei consciência também de aspectos meus envolvidos. De alguma forma, durante o momento M fui capaz de verbalizar o que estava ocorrendo até então, e penso que esse foi um fato importante para a mudança, abrindo a possibilidade para reflexões em nova área.

Evidentemente M somente poderia ter ocorrido nesse momento. Com certeza situações similares já haviam acontecido, mas sem que se pudesse torná-las úteis.7

 

Discussão do material clínico

Antes do momento M o processo analítico vinha estagnado, paciente e analista envolvidos numa paralisia, numa colusão, enredados através de identificações projetivas massivas. O conceito de baluarte, tomando quase todo o campo, estaria correto. Podemos também pensar em elementos beta em busca de transformação, de pensadores, funcionando também como “projéteis” que atacavam a capacidade de pensar do analista, substituída por uma crença patológica em sua capacidade analítica, sua “paciência” sendo vivida em reversão de perspectiva (Bion, 1963). Isto é, o analista fora recrutado (Joseph, 1982) a exercer o papel predominantemente masoquista no conluio sadomasoquista.

Esse conluio resulta da externalização de aspectos internos do paciente em contato com os do analista e pode ser chamado enactment (“colocação em cena patológica da dupla”). Tudo isso é exposto no campo ou teatro analítico, buscando figurabilidade e pensamento, ao mesmo tempo que se o impede. Analista e paciente passam a ser alvo de identificações projetivas um do outro, e o processo se realimenta, tornando-se circular.

Um suposto observador da cena analítica descreveria duas pessoas maltratando-se mutuamente e paralisadas, sem condições de escapar de um mundo torturante e paradoxalmente prazeroso. Não saberia discernir os elementos provindos do paciente daqueles do analista, e esse discernimento também estaria prejudicado para ambos, identificados massivamente. Há, portanto, indicações de que a interação entre elementos de analista e paciente criam outros elementos, novos, que se constituiriam em algo além da somatória de ambos.

Por exemplo, tanto paciente como analista “visualizaram”, num clima fantasmagórico, a mãe morta, assassinada. Penso que esse produto comum foi fruto, entre outros fatos, da intersecção entre a sensação do analista de não estar compreendendo e da paciente de não ser compreendida, e vice-versa. Analista-mãe e paciente se sentem morrendo e assassinos. Esse processo já fora mobilizado quando K abandona o analista para viajar e este não a acompanha. O analista morto foi levado ameaçador, dentro de K, na viagem, e K ficou moribunda dentro do analista, este sentindo-se também dessa forma. A descrição de K de seu banho, como que limpando vestígios do crime, pode ser vista como contraparte das “coisas boas”, a viagem, que o analista mostra como que “limpando” o campo analítico de aspectos destrutivos, assassinos. Ainda que se grite e se faça muito barulho, mãe-analista e filho-paciente não ouvem. Ambos compartilhamos aspectos “fingidos”.

Até o momento M, defrontamo-nos com um enactment obstrutivo, que vinha funcionando de forma crônica, produto da reversão da função alfa (Bion, 1962). Quando M ocorre, pareceria que o enactment obstrutivo adquirira tal força que a desvitalizada relação continente/contido ameaçava explodir. Os “projéteis” elementos beta que transitavam pelo campo de batalha analítico poderiam liquidar violentamente com o processo. Chamo enactment agudo à situação em que ambos gritam e se queixam, culminando com o analista batendo na poltrona.

Entretanto, o processo analítico não foi interrompido, e, como vimos, a dupla pôde se beneficiar do fenômeno. Suponho que os elementos beta que explodiram agudamente a relação– elementos em busca de pensadores– os encontraram de alguma forma. Foi, portanto, um enactment que resultou produtivo, mas teria sido obstrutivo se não tivesse sido compreendido e interpretado.8

Por ser um conceito controvertido, vou me deter no fenômeno enactment. Como vimos, nele ocorrem descargas que envolvem tanto o analista como o paciente e que tornam atuais situações ou fantasias arcaicas, reflexo de medos e esperanças transferenciais e contratransferenciais, às vezes colocando em cena situações traumáticas reais ou fantasiadas, e ocorrendo inconscientemente. O enactment é conseqüência da impossibilidade de externalizar essas situações ou fantasias inconscientes a elas vinculadas, através da simbolização verbal. Por envolverem elementos beta, serão mais comuns quando predomina o funcionamento da parte psicótica da personalidade.

Insisto, ao contrário de outros autores, em que paciente e analista não têm consciência do que estão efetuando; se percebem o que está ocorrendo– e isso é função do analista–, compreendendo sua função e significado, o enactment não mais será necessário, sendo substituído pela comunicação simbólica verbal. Alguns autores (Gabbard, 1995) enfatizam mais o papel do analista, utilizando a expressão “enactment contratransferencial”.

Identificam-se variados graus de severidade nos enactments. No extremo mais benigno teríamos “atualizações” (Sandler, 1976), gratificação de desejos transferenciais em relação ao analista, tornando atuais fatos passados ou externalizando conteúdos do mundo interno. E, no mais maligno, comprometimento da capacidade do analista, levando-o a ultrapassar as fronteiras do que seria um tratamento analítico. A diferença em relação ao acting out seria que neste o analista não se incluiria, participando apenas como observador das ações do paciente. Já no enactment o analista, sujeito a suas próprias transferências, pontos cegos, é levado pela relação, em vez de acompanhá-la (Bateman, 2001).

Penso que o processo analítico, como um todo, pode ser descrito como um contínuo de enactments, normais e patológicos. O analista tenta transformar, voluntariamente, os conteúdos do mundo interno do paciente “colocados em cena” na interação com os do próprio analista, usando também os derivados de sua contratransferência inconsciente. Isto é, ele entra intencionalmente, como co-participante, nos enactments, que ocorrem constantemente na situação, pela sua necessidade de ser analista. Sua função será identificar precocemente e ir desfazendo os enactments contínuos.

À maioria desses enactments– derivados de identificações projetivas realísticas, e que acompanham a comunicação simbólica verbal– ou a sua série constante, que o analista vai desfazendo com suas intervenções, sugiro que os chamemos “enactments normais”. Os “enactments patológicos”, derivados de identificações projetivas massivas, mas difíceis de evitar ou desfazer, poderiam ser assim classificados: agudos– quando aparecem com grande intensidade, mobilizando violentamente a dupla analítica e durando apenas instantes, se compreendidos; e crônicos– quando se prolongam, numa colusão que demora bastante tempo até ser identificada, ou que leva a um impasse impossível de ser desfeito. O uso corrente do termo enactment se refere aos patológicos.

Comparem-se as considerações efetuadas sobre “enactments normais” com Baranger e Mom (1982/2002): “Há processo à medida que se vão detectando os baluartes e vão se desfazendo-os”(p. 130; itálicos no original). Não haverá, portanto, processo analítico quando os baluartes tomam o campo. Dessa forma, poderíamos considerar baluartes e enactments como similares, estes enfatizando a externalização dos baluartes internos. Ou, se levamos em conta as etimologias, considerar os baluartes como os espaços-tempos em que os enactments ocorrem.

Como vimos, o enactment patológico pode se tornar produtivo quando o analista o percebe, separando parte de sua própria contribuição conflitiva daquela do paciente e interpretando o que ocorreu. Mais ainda, os enactments nos podem revelar falhas e êxitos no desenvolvimento inicial, que não podem ser recordados nem esquecidos, porque essas capacidades ainda não se desenvolveram. Dessa forma, podemos vivenciar com o paciente não somente conflitos, mas também situações deficitárias.

No caso da paciente K e em outras situações, verifica-se que um enactment crônico pode ser desfeito através da compreensão de um enactment agudo. Por vezes, verifica-se que o enactment crônico se constitui numa espécie de interação simbiótica, que coloca em cena fases da evolução: a simbiose necessária como pré-condição para a tomada de consciência da individuação– e é possível que a agudização seja resultado de alguma elaboração inconsciente que clama por ser compreendida (Cassorla, 2001).9

O conceito de enactment foi desenvolvido inicialmente pela psicologia do ego (Ellman & Moskovitz, 1998), mas a idéia já estava presente em vários autores. Neste trabalho enfatizei os Baranger, Bion e Joseph e assinalei a contribuição de Sandler (1976), que mostra o analista pressionado a assumir um papel complementar às atualizações do paciente (role-responsiveness). Na tradição britânica independente (Kohon, 1994) e entre os kleinianos contemporâneos, encontraremos descrições de fenômenos similares ao que ocorre no enactment, mas sem nomeá-los (Cassorla, 2003b).

 

Pictograma afetivo e “não-sonho”

O termo act da palavra enactment também se refere a uma representação teatral, e minha proposta de tradução enfatiza isso: “colocação em cena patológica da dupla”. Seguindo as idéia de Bion (1962, 1963), considero que, na situação analítica, ocorre um “sonho a dois” (Meltzer, 1984; Ogden, 1994; Caper, 1996), onde “sonho” se refere ao pensamento onírico da vigília. Com isso valorizo as imagens, as cenas organizadas visualmente, como um ponto privilegiado em que se identifica o reprimido e seu retorno (Freud,1915; Isaacs,1952). No referencial bioniano, as imagens visuais manifestam elementos alfa, e sua seqüência narrativa é a forma como se identificam elementos da categoria C da grade (pensamento onírico, sonhos, mitos). A apreensão do objeto psicanalítico ocorre através de uma alternância entre formulações visuais primitivas (categoria C) e formulações de palavras (categoria F ou G) (Junqueira Filho, 1986).

No entanto, quando a função alfa está perturbada, o paciente não tem condições de sonhar. Os elementos beta por ele eliminados deverão ser “sonhados” pelo analista. Isto é, o analista transformará experiências emocionais brutas do paciente em imagens visuais, que ele interpretará como se fosse um sonho próprio, fruto de sua capacidade analítica (Meltzer, 1984).

O conceito de pictograma afetivo (Rocha Barros, 2002) aprofunda a compreensão das maneiras como pulsões e fantasias inconscientes se manifestam no teatro da análise. O processo onírico implica um trabalho de elaboração de experiências emocionais, em busca da “migração para a figurabilidade” (Freud, 1900). Essa migração ocorre numa atmosfera afetiva que inconscientemente determina o sonho, produzindo-se imagens que captam e expressam as formas iniciais de constituição do significado dessas experiências, numa espécie de metabolização da vida emocional. O pictograma afetivo constitui-se na primeira forma de representação mental de experiências emocionais, fruto da função alfa, constituindo o pensamento onírico por meio de imagens fortemente expressivas e evocativas. O pictograma afetivo contém, potencialmente, no processo de sua constituição e na própria figuração, significações ocultas e ausentes que pressionam a mente a ampliar seus instrumentos de representação.

Certamente o analista será chamado a responder a essa pressão com sua mente, a contracenar com os elementos imagéticos colocados em cena. Correndo os riscos de engolfar-se nessa pressão, sua função será tentar desvendá-la, mostrando e criando significados rumo a novas formas de representação, principalmente pelas palavras. Num primeiro momento, ou mesmo depois, é possível que ele também não as encontre, e a cena continuará numa busca de significação, até que símbolos verbais surjam. Estes atraem novos símbolos, sensoriais, imagéticos e principalmente verbais, ampliando os significados. Com isso, alarga-se o universo mental, abrindo a experiência para novas conexões simbólicas, novos significados, maior desenvolvimento emocional e riqueza do trabalho da dupla. Cenas e enredos que ocorrem no teatro da análise se ampliam e se sofisticam, e isso nunca se completa, numa expansão contínua do mundo interno.

Evidentemente, o analista pode também ter prejudicada sua função alfa, atingida pelos “projéteis” do paciente, ou porque a formação simbólica incipiente é destruída para fugir de dor mental (reversão da função alfa), ou ainda devido a aspectos próprios do analista. Nesse momento, o “não-sonho” do paciente não pode ser transformado em sonho pelo analista, e ambos passam a “não sonhar”– na verdade, a “anti-sonhar”. Esse “não-sonho” que ocorre a dois faz parte do enactment. O material não tem significado, não há espaço para ligações, não existe ressonância emocional para novas conexões e o analista é engolfado pela situação, não percebendo o que está ocorrendo. O “não-sonho” implica a destruição da barreira de contato que permitiria a separação consciente/inconsciente.

Por exemplo, com K, não raro me sentia sonolento, não podendo dormir nem manter-me acordado. Durante enactments crônicos, é possível que o analista, com ou sem sono, imagine que “sonhou”, mas não raro esse suposto sonho foi, na verdade, uma alucinação ou outra transformação em alucinose. Penso que isso também ocorreu com o suposto “sonho” em que eu me via como um analista paciencioso, convencido de que “água mole em pedra dura” seria uma atitude produtiva. Esse “sonho” seria produto da tela beta, formada de algo similar a elementos beta com traços de ego e superego. Esses traços eram evidentes na “idéia” de que a “paciência” era adequada. Graças a essa crença, evitava-se a possibilidade de simbolização do conluio sadomasoquista, mantendo-se o status quo.10

Evidentemente, quando o estado de sonolência se acompanha de capacidade de rêverie produtiva, o analista sonhará o sonho ou não-sonho do paciente, sinal de que sua função analítica está íntegra ou foi recuperada.11

 

O teatro da sala de análise

Escolho, entre as artes narrativas, o teatro como melhor modelo para articular com o “sonho” ou “não-sonho a dois” que ocorre na situação analítica (Cassorla, 2003).

No teatro, e também no teatro analítico, as estórias/história ou “não-estórias/histórias”, encenadas, ocorrem “ao vivo” e têm forte componente visual real ou potencial. Para a percepção dos sentimentos, além do enredo como conteúdo e forma, é extremamente importante a capacidade do ator de viver o personagem, permitindo que o espectador se identifique com ele, quase sem mediação.

As coisas acontecem no aqui-e-agora das cenas, tanto em seu conteúdo como em sua forma. Por ser “ao vivo”, nos teatros tudo pode ocorrer, incluindo a possibilidade de as cenas extrapolarem o cenário, por problemas com os atores, os técnicos ou o local.

Ao mesmo tempo, as cenas-sonhos ou não-sonhos, no teatro da mente e da análise, nunca serão refeitas, pois ocorrem no aqui-e-agora e, na verdade, não há texto: o espectador-analista vê um exercício de improvisação, não um exercício– na verdade, uma estória ou não-estória imprevisível com atores imprevisíveis… No decorrer da análise, da multiplicidade de enredos e estórias poderão emergir alguns padrões, mas, caso o analista se prenda a esses supostos padrões, ele nunca perceberá o que de novo está ocorrendo, sempre, em cada cena.

Na sala de teatro, a separação entre espectadores e atores existe, mas pode ser transposta sem dificuldade. O mesmo ocorre no processo analítico. O personagem pode se apresentar em outros lugares e em tempos pretéritos ou futuros, mas esses lugares e tempos ocorrem no aqui-e-agora, sem que se mude o cenário. Dessa forma, consideraremos que analista e paciente participam de cenas dividindo-se em personagens variados, que contracenam, ao mesmo tempo que observam o desenrolar do enredo teatral.

Ao escolher o modelo do teatro como equivalente ao espaço analítico, poderei ser acusado de valorizar a ação ou, ainda, a atuação (no sentido psicanalítico), a descarga, o funcionamento psicótico. Penso que o hipotético acusador tem razão, mas não de todo, já que apenas retomo a asserção freudiana de que, frente à resistência, o paciente atua (acts out) em vez de recordar (Freud, 1914). Consoante essa afirmação, e utilizando outros desenvolvimentos teóricos e técnicos, penso que o analista, por mais que valorize as imagens visuais e se perceba conversando com seu paciente através de símbolos verbais coerentes, deverá estar o tempo todo observando e participando da cena, procurando intuir aqueles aspectos que lutam por ser simbolizados ou resistem a isso– e esses aspectos emergirão nas entrelinhas do suposto discurso verbal adequado, nos silêncios, no tom e no timbre de voz, na música ou ruído do discurso, nos gestos, maiores ou minúsculos, na forma de olhar, nos cheiros e em tudo o mais que entra pelos sentidos e, principalmente, naquele indescritível que ocorre quando afetos, emoções, sentimentos buscam manifestar-se, sobretudo se essa manifestação for tão sutil que somente a intuição12 do analista poderá captá-la. Tudo isso será transformado pela função alfa do analista, se íntegra, em imagens-elementos alfa-pictogramas afetivos.

Nas cenas que ocorrem nesse teatro interagem “personagens” (não necessariamente antropomórficos), produto da externalização de aspectos do self, objetos internos e relações objetais internas do paciente e também de aspectos similares do analista. Os “personagens” inicialmente trazidos pelo paciente apresentam-se manifestando modos de funcionamento mental, e, nessa manifestação, o analista é pressionado a participar da cena.

O analista, com função analítica preservada, desempenhará ao mesmotempo as seguintes funções, durante as colocações em cena:

1. Personagem do enredo, contracenando com os demais “personagens” colocados em cena pelo paciente.

2. Espectador da cena, observando e tentando compreender o que está ocorrendo. O poder participar da e, ao mesmo tempo, de separar-se dela é o que lhe permitirá exercer as funções seguintes.

3. Co-autor da cena, na medida em que, ao contracenar com os “personagens” inicialmente colocados em cena pelo paciente, ele não necessariamente o fará da forma como se sente pressionado. Pelo contrário, grande parte de sua atividade analítica será “denunciar” essa pressão, tornando-a compreensível para o paciente (para quem, em geral, não é consciente); desse modo, o analista abre espaço para ressignificação e mudança psíquica.

4. Diretor da cena, na medida em que, contracenando analiticamente com os personagens colocados em cena pelo paciente, procurará determinar as melhores formas para que o enredo inicial seja compreendido e alterado.

5. Crítico teatral, função em que se afasta da cena e utiliza seu conhecimento para avaliar, de forma crítica, como o enredo ocorreu, como os personagens se comportaram, se a cena poderia ter ocorrido de outra forma (aqui, ele dará ênfase à crítica da função do analista) etc. O papel de crítico continua e se torna mais potente após a cena ter ocorrido. Serão avaliadas que teorias psicanalíticas foram usadas, tanto para a observação como para a compreensão dos fenômenos, como eles poderiam ser entendidos a partir de outras teorias, ou ainda se não se exigem novos conceitos e modelos. A capacidade crítica do analista será fator importante para definir seu modelo de observação.

6. Iluminador: este auxilia o diretor, ao focalizar, ao lançar luzes sobre aspectos da cena que se escondem, se mascaram ou mesmo escapam para os bastidores. Ainda que o papel do iluminador (associado ao técnico de som) pareça ser o de um coadjuvante menor de uma representação teatral, ele é indispensável, e a representação não poderá acontecer se o teatro permanecer no escuro e o diálogo for inaudível. Será ele também quem focalizará os personagens, com nuances de luz e de cor indispensáveis: se não for um bom iluminador, deixará partes da cena no escuro ou iluminará de forma inadequada, atrapalhando ou impedindo todo o desenrolar e a compreensão das cenas. A arte do iluminador é extremamente importante para que não se perca a visão de personagens em potencial, mas ainda inexistentes, e também para identificar “buracos negros”, que engolem a luz e são impossíveis de iluminar.

A função iluminadora do analista depende da capacidade de o profissional se permitir entrar no contexto das cenas, “vivendo-as”, utilizando acuidade visual em função da forma como as cenas são produzidas e se apresentam. “Acuidade visual” é, neste modelo, equivalente a intuição psicanaliticamente treinada (Sapienza, 2001). Como o analista é também co-autor, personagem e diretor, essas funções complementarão sua capacidade de observação psicanalítica. E será essa mesma capacidade de observação que lhe permitirá exercer criativamente aquelas funções. No entanto, nada disso será possível, ou ficará perturbado, se o analista não for capaz de efetuar cisões adequadas, ativas, em seu funcionamento mental.

Ainda que no começo da cena analítica seja possível identificar quem (geralmente o paciente) está colocando em cena seus “personagens” internos, logo se percebe que esses “personagens” acabam se mesclando, e logo não mais se sabe a quem pertencem, ou melhor, sabe-se que eles são o resultado da interação entre as mentes de paciente e analista, e pode postular-se que mesmo o início da cena já inclui essa mistura.13 Dessa forma, novos “personagens” são criados, produtos da fertilização de aspectos do analista e do paciente.14 Lembremos que esses “personagens” não são necessariamente pessoas, podendo ser, por exemplo, no material clínico aqui apresentado, as vertigens, o banho, a viagem, os gritos, ou um sintoma, uma carta, um ideal, uma relação, uma instituição etc., criações “terceirizadas” da dupla paciente-analista. Em área psicótica são importantes os “não-personagens”, que solicitam autores, pensadores, para poder existir.15

O fato de ambos os membros da dupla viverem o que ocorre no teatro analítico nos afasta da idéia de “saber sobre” a cena e nos conduz ao “ser” na cena, ao at-one-ment de Bion (1962), re-união da dupla e do paciente consigo mesmo.

Nas cenas “sonhadas” vemos e vivenciamos pictogramas afetivos, produtos da alfa-betização de experiências emocionais brutas. Esses pictogramas, em seqüência, constituem enredos pregnantes de aspectos visuais– por exemplo, no material clínico de K, “água mole em pedra dura…”, viagem sofrida, máquina de tortura triturando, pó de morte e merda sendo criados, banho limpando vestígios de crime, mãe sendo assassinada etc., incluindo-se também emoções, como desespero, desesperança, raiva, medo, menos as contadas e mais as sentidas no contato emocional da dupla. Será nesse “teatro”, ao vivo, que se viverão lágrimas, esgares de ódio, tons de desprezo, carinho, súplica, esperança e tudo o mais que o enredo exige para existir. Esses elementos, altamente evocativo-expressivos, no dizer de Rocha Barros (2000), se constituem no alicerce do pensamento, aquilo que o analista busca para poder verbalizar, sua função primordial no trabalho analítico.

Quando é impossível “sonhar” as experiências emocionais brutas, caso exista esboço de enredo ele é estanque; não há conexões possíveis, nada acontece, não se encontram sentidos ou significados. Estamos frente a cenas teatrais monótonas, que parecem incompreensíveis, frente a personagens e enredos estereotipados, confusos ou bizarros. Quando ambos os membros da dupla estão envolvidos sem perceber o que ocorre, estamos no teatro do enactment, do não-sonho– se fosse uma peça teatral, um crítico não a recomendaria ao público. Um espectador ousado tentaria compreender o “enredo” ou o “não-enredo”, “sonhá-lo”, mas outro poderia assistir à peça sentindo-se torturado, identificando-se com o conluio obstrutivo. Outra possibilidade, socialmente perversa, envolve a “propaganda” (ideológica, religiosa, política, pessoal), em que o teatro é usado para manipular corações e mentes, impedindo o pensamento.

O analista deve ser também um espectador ousado, ficando alerta e desconfiado de situações analíticas em que faltam elementos evocativo-expressivos ou nas quais eles aparecem falsificados, “propagandísticos”, podendo enganar o profissional.

 

Conclusões

Os vários modelos descritos neste trabalho não são excludentes, e muitos são bastante similares. O analista escolherá aquele que lhe fizer mais sentido. Penso que o significado daquilo que é colocado em cena (ou o modelo que o analista vai escolher) dependerá basicamente do modelo de observação (da “escuta”, para alguns) ou, melhor ainda, da capacidade crítica do analista, do seu poder de se colocar como um crítico teatral e observar toda a cena a partir de certos pressupostos.

Isto é, as cenas (ou os modelos) irão tomando forma influenciadas pelo vértice de observação do analista-crítico teatral. Espera-se que esse vértice decorra da coesão de sua identidade analítica, em que ele se sente ele mesmo. Ideal é que ocorra uma oscilação contínua entre numerosos vértices, que identifiquem os eventos mais significativos, o analista deixando-se penetrar pela cena e vivendo-a de forma controlada. E essa “vivência” será efetuada a partir de certos padrões, correspondentes à forma com que o analista vive aquela análise, como processo e conhecimento. Para tanto, não podemos desprezar, ao contrário, a influência da “pessoa real do analista” (Cassorla, 1998). Nem tudo o que ocorre na situação analítica pode ser explicado por identificações projetivas, mesmo as normais. Há algo dentro do analista, algo que faz parte dele, que o torna diferente de todos os demais analistas. Penso que os modelos estudados nos obrigam a levar em conta essas características a cada momento do trabalho analítico. Lembrando que muitas vezes será o paciente quem nos ajudará a identificar aspectos que nós mesmos, como analistas, não havíamos percebido, e isso somente será possível se deixarmos de lado qualquer pretensão de superioridade em relação ao paciente.

Caso isso ocorresse, o analista nunca se sentiria co-participante dos baluartes, dos enactments, das patologias do continente/contido, dos não-sonhos, das cenas ocorridas no teatro da análise. E, não aceitando a possibilidade de perder a direção do enredo, de não mais ser co-autor, de estar impossibilitado de exercer sua capacidade crítica, nunca se libertaria disso. Não se permitiria um “segundo olhar” (Baranger e Mom, 1982/2002), e qualquer fracasso seria tomado, no extremo, como responsabilidade do paciente ou como responsabilidade do analista, o que tornaria a psicanálise uma religião, com seus sacerdotes infalíveis ou fracassados, e não uma arte-ciência que está sempre trabalhando através de aproximações, de ensaio-erro.

 

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Endereço para correspondência
Roosevelt M. Smeke Cassorla
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Av. Francisco Glicério, 2331/24– Centro
13012-000 Campinas - SP – Brasil
E-mail: rcassorla@sbpsp.org.br

Recebido em 11.11.2006
Aceito em 30.8.2007

 


1 Publicado originalmente como “From bastion to enactment: the ‘non-dream’ in the theater of analysis”, International Journal of Psychoanalysis, 86 (3):699-721, 2005. Republicado como “Du bastion à la mise en acte: le ‘non-rêve’ dans le théâtre de l’analyse”, L’Année Psychanalytique Internationale, 4 (67):86, 2006. Primeira versão: “Del baluarte al ‘enactment’: el ‘no-sueño’ en el teatro del análisis”, apresentado em 2004 no evento Marcas Identifi catórias del Psicoanálisis en América Latina – Conferencia Latinoamericana del International Journal of Psychoanalysis, Rio de Janeiro, Anais, p. 82-105.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP; professor titular colaborador da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
3 O analista-espelho também é ativo: ele deve refl etir aquilo que entende (Balint, 1968).
4 Em trabalho anterior, justifi quei a escolha da tradução do termo enactment como “colocação em cena da dupla” (Cassorla, 2003b). Atualmente (2006), penso que a adjetivação “patológica” deve ser incluída.
5 “Comportamentos” e “ações” como descargas remetem a evacuação de elementos beta e incluem também descargas no corpo, fala e sonhos evacuativos, crenças, delírios e outras transformações em alucinose (Cassorla, 2003a).
6 Algumas informações foram transformadas, reforçando o sigilo ético.
7 Pacientes como K foram bem descritos por Joseph (1982) como “viciados pela quase-morte”. Para mais material clínico de K, ver Cassorla, 1995.
8 Evidentemente, não proponho que o enactment seja algo bom. Ideal seria que o analista tivesse percebido, antes, o que estava ocorrendo.
9 Essas idéias são desenvolvidas em trabalho posterior (Cassorla, 2005).
10 Ogden (2003) levanta a possibilidade de que, em situação de sonolência obstrutiva, o analista pode sonhar para se certifi car de que sua função alfa continua íntegra. Suponho, nesse caso, que sonhará algo que não o “não-sonho” do paciente, numa área fora do enactment.
11 Penso na possibilidade de identifi car um espectro para o “não-sonho”, envolvendo talvez um contínuo entre elementos beta rumo aos alfa – portanto, caminhando na direção do “sonho”. Como exemplos, num dos extremos teríamos um paciente catatônico, que absolutamente não consegue falar nem movimentar-se, nada ocorrendo ao analista; próximo ao outro extremo do “não-sonho” (quase chegando ao “sonho”), o paciente jorra ruído sem signifi cação, mas juntamente comunica imagens visuais que querem esboçar um enredo, mas há obstrução na verbalização simbólica e as cenas permanecem estanques.
12 A palavra “intuição” traz em seu signifi cado o “ver cuidadosamente”.
13 Essa turbulência emocional prévia ocorre em qualquer relação humana. As expressões “transferência antecipatória” e “contratransferência antecipatória” são formas de nomear essa potencialidade.
14 Essas idéias, derivadas do conceito de campo dos Baranger, foram desenvolvidas por vários autores da tradição independente britânica (Kohon, 1994), por Ogden (1994), com o conceito de “terceiro analítico”, e por Ferro (1995), com o conceito de “holografi a afetiva”.
15 Como em Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello.

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