SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.41 número3Processo psicanalítico e pensamento: aproximando Bion e Matte-BlancoO analista trabalhando: modelos e teoria da técnica no momento atual índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.3 São Paulo set. 2007

 

ARTIGOS

 

Cabelos: da etologia ao imaginário1

 

Hairs: from the ethology to the imaginary

 

Cabellos: de la etología al imaginario

 

 

Marina Trench de Oliveira2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O atendimento de uma criança que tinha grande atração por “cabelos” levou a autora a investigar o tema. Foi realizado um apanhado da função dos cabelos do ponto de vista anatômico, biológico e etológico, concluindo-se que, tendo uma função protetora onto e filogenética, os cabelos constituem a pré-concepção de um objeto que nos contém e mantém seguros. O fato de os cabelos se prestarem a ser utilizados como defesa contra diferentes tipos de angústia encontra expressão nos hábitos e costumes dos povos, em diferentes épocas, em seus mitos e contos. Os cabelos surgem também com freqüência nas situações clínicas, e a autora aponta seu uso para fazer frente às angústias de separação, sua manipulação como defesa contra angústias persecutórias, a alopecia como expressão do medo da perda do objeto de amor e como expressão de defesa contra o risco de se tornar “não-ser”.

Palavras-chave: Reflexo de preensão; Pré-concepção; Mitos; Identidade sexual; Angústias primitivas.


ABSTRACT

The attendance of a child who had great attraction for hair led the author to do an investigation about such theme. It was gathered an amount of information about the hair’s function regarding the anatomical, biological and ethological aspects. It concluded that, having a phylogenic and ontological protecting role, the hair establishes a pre-conception of an object which contain us and keep us safe. The fact of the hair being a defense agent against several types of grief finds expression among several peoples’ costumes, in their remained myths and tales, in which the hair is pointed out. It also suggests breaking up grieves; manipulation as defense against persecutory sorrows; alopecy as expression of fear of losing an object of love and even as expression of defense against a risk of turning into “not-being”.

Keywords: Reflex of apprehension; Pre-conceptions; Myths; Sexual identity; Primitive grieves.


RESUMEN

El interés de un niño que sentía gran atracción por cabellos le ha llevado a la autora hacer una investigación sobre el tema. Se ha realizado un recogido de la función de los cabellos desde el punto de vista anatómico, biológico y etológico, concluyendo que, habiendo una función protectora onto y filogenética, cabellos constituyen la preconcepción de un objeto que nos contiene y mantiene seguros. El hecho de “cabellos” prestarse a ser utilizado como defensa contra diferentes tipos de angustia encuentra expresión en los hábitos y costumbres de varios pueblos, en sus mitos y cuentos, que son aquí mencionados. “Cabellos” surgen también con frecuencia en las situaciones clínicas, y aquí la autora señala su uso para hacer frente a las angustias de separación, su manipulación como defensa contra angustias persecutorias, alopecia como expresión del miedo a la pérdida del objeto de amor y además como expresión de defensa contra el riesgo de volverse “no-ser”.

Palabras clave: Reflejo de prensión; Preconcepciones; Mitos; Identidad sexual; Angustias primitivas.


 

 

Introdução

A partir do atendimento de Pedro, uma criança que apresentava grande atração por cabelos, fui me dando conta de quão freqüentemente estes surgem como algo da maior importância. O que “cabelos” representaria no imaginário humano para isso ocorrer dessa forma?

Haekel (1910) afirma que o embrião humano deve perfazer todos os estados evolutivos filogenéticos até chegar às características da sua espécie. Minha hipótese era que a importância psíquica de “cabelos” poderia estar relacionada com a função dos pêlos do ponto de vista da ontogênese e da filogênese. Freud (1923/1976) aponta que o núcleo do ego é o sistema perceptivo e que aquele se forma a partir das influências do mundo externo sobre o id; mais ainda, que o corpo de uma pessoa, principalmente sua superfície, é o lugar onde se originam as sensações tanto externas como internas. Superfície do corpo inclui pele e pêlos.

Levando em conta que cabelos são apenas um tipo especial de pêlos, iniciei minhas pesquisas buscando auxílio em outras ciências. Procurando informações sobre a ontogênese e a filogênese, recorri à anatomia, à biologia e à etologia; posteriormente me detive sobre como a importância dada aos cabelos se expressa através dos hábitos, da linguagem e dos comportamentos dos diferentes povos, dos seus mitos e contos, e sobre como pode surgir nas situações clínicas.

 

Uma pincelada de anatomia

O aparelho pilossebáceo surge na nona semana de vida intra-uterina; embriologicamente as estruturas epiteliais derivam da ectoderme, tendo uma origem comum com o sistema nervoso.

No ser humano, existem dois tipos de pêlos. O fetal ou lanugo é fino e claro e parte dele cai durante o primeiro ano de vida; outra, o velus, permanece sem se desenvolver. O desenvolvimento do pêlo terminal varia com a constituição e a etnia; é espesso, pigmentado, e compreende cabelos, barba, pilosidade pubiana e axilar. Antes do parto o bebê perde a maior parte dos pêlos fetais, deixa para trás os pêlos dos primatas ancestrais e segue em direção à hominização:“a ontogênese repete a filogênese”.

Os pêlos têm função protetora tanto do ponto de vista do indivíduo como da espécie, evitando o atrito, protegendo de agentes externos e dos raios UV. Sua parte mais profunda, a raiz, está ligada à papila, fazendo parte do sistema sensorial cutâneo. Estando ligados à musculatura lisa, se arrepiam quando esta se contrai. Próximo ao folículo piloso está o disco pilar; os impulsos nervosos que aí se originam têm função tátil e chegam até o tálamo, estruturas arcaicas na evolução das espécies ligadas ao aspecto afetivo das sensações; posteriormente atingem as áreas somestésicas corticais, um córtex sensitivo de alta ordem, que processa as informações, integrando os diferentes tipos de sensibilidade para que percepção e discriminação possam ocorrer.

O crescimento dos pêlos ocorre continuadamente por meses ou anos (fase anágena); depois há uma parada (fase catágena), seguida em algumas semanas de queda (fase telógena). A parte do pêlo que se alonga para fora do bulbo piloso, a haste, é filiforme, flexível e muito resistente à tensão. Constituída de células queratinizadas, portanto mortas, pode ser cortada sem provocar dor, mas, no caso dos cabelos, a aparência de volume e brilho transmite a impressão de algo cheio de vida.

O cabelo, portanto, contém as características do que é vivo e do que é morto; mesmo “morto” continua “vivo”, prestando-se às fantasias de vencer a morte, de vencer as angústias de morte.

 

Um passeio pela biologia e pela etologia

O desenvolvimento de sangue quente permitiu aos mamíferos manterem-se em atividade por períodos mais longos; para conservar o calor, desenvolveram pêlos. Os pêlos lanosos e macios, o pelame, mantêm o equilíbrio térmico; já o pêlo brilhante e mais comprido é utilizado como camuflagem e na comunicação visual. O eriçamento dos pêlos está relacionado às emoções de medo e ódio, fazendo com que o animal pareça maior e intimide os adversários. Novamente os pêlos têm função protetora.

Como os primatas não constroem ninhos e precisam carregar as crias, seus bebês desenvolveram a capacidade de se agarrar aos pêlos dos pais; como vimos, os pêlos são resistentes à tensão, se prestando a mais essa função.

Em “Comportamento instintivo: padrão fixo de ação, PFA”,3 um estudo comparado humano-animal, encontramos as seguintes informações:

Em etologia […] os atos motores instintivos aparecem no ser humano no pós-natal imediato. Um destes é o reflexo de preensão das mãos do recém-nascido, que se agarra fortemente ao redor do objeto que as toca […]; a reação é ainda mais intensa ao contato com cabelos e pêlos. Evolutivamente este reflexo surgiu nos primatas para fazer com que os filhotes, se agarrando aos pêlos dos pais, não caíssem durante sua movimentação. Este reflexo é tão intenso que, colocado num fio de varal, o recém-nascido humano fica suspenso sem a ajuda de um adulto [grifo meu].

Nas situações de perigo, os primatas adultos certamente são tomados por emoções violentas que os bebês captam; há o reflexo de preensão e a captação do risco. Isso permanece presente na espécie humana e pode ser observado no comportamento reflexo neonatal; permanece presente também em nosso inconsciente, no “terror de cair” (Tustin, 1990), sendo os pêlos/cabelos identificados a algo que oferece proteção e sustentação.

 

Expressões da língua portuguesa

Encontramos em Caldas Aulete (1986):

•    Horripilante: que arrepia ou produz horripilação; (fig.) que horroriza
•    Horror: sensação física e moral que faz com que a pele e os cabelos se arrepiem
•    Horrorizado: amedrontado, cheio de horror e de espanto, enojado

E em Cunha (1982):

•    Horror: coisa repelente, ódio, aversão. Do lat. horror, -oris
•    Horripilar: do lat. horripilare, de horrere + pilus (pêlo)
•    Horripilação: do lat. horripilatio, -onis

Assim, o pêlo, que anatomicamente, em sua porção mais interna, é ligado ao aparelho sensorial da pele, auxiliando na função tátil e reagindo às emoções, principalmente às de medo e asco, encontra expressão em nossa linguagem a ponto de a palavra “horripilante” englobar a idéia de arrepiar por medo e horror. Temos também algumas expressões que apontam para as emoções e das quais o cabelo participa:

•    Arrancar os cabelos
•    Ficar de cabelo em pé
•    É de arrepiar os cabelos
•    Ter um problema cabeludo

 

O uso de “cabelos” em diferentes culturas

Os cabelos são da maior importância para os mais diferentes povos, em diferentes regiões e nas diferentes épocas. Têm a mesma origem embrionária que as unhas e, como elas, sendo formados por células queratinizadas, não se decompõem facilmente. O fato de continuarem a crescer mesmo depois da morte do indivíduo favorece o surgimento de fantasias de mortos que se levantam do túmulo para atacar os vivos.

Muitos povos acreditam que os cabelos e as unhas continuam relacionados ao indivíduo mesmo depois de cortados; por isso, são considerados tabu, não devendo ser cortados nem jogados fora. Na quimbanda podem ser utilizados para a realização de atos de bruxaria.

Associada à idéia de cabelos = virilidade, vem a do corte dos cabelos como emasculação, mutilação, humilhação. Isso é encontrado no mito bíblico de Sansão, na China e entre alguns índios da América do Norte. Em todo o mundo a entrada para o estado monástico inclui o corte dos cabelos como sinônimo de renúncia e sacrifício. Uma variante é o uso da tonsura pelos clérigos. No caso de criminosos, cabelos cortados rente marcam a humilhação, publicam o delito e expõem socialmente a pessoa. Criminosos e loucos tinham os cabelos raspados quando recolhidos às instituições, como forma de tirar-lhes a identidade.

Para as pessoas submetidas à quimioterapia, a perda dos cabelos é muito difícil de ser aceita; à conscientização da perda da vitalidade soma-se a sensação de humilhação e exposição.

O corte e a disposição da cabeleira demarcam a personalidade, a função social ou uma mudança no tipo de vida. É também algo civilizatório: cabelos e crianças não podem crescer desordenadamente, precisam ser “cortados” para que ganhem “forma”.

Para muitos povos, o primeiro corte dos cabelos é ocasião de importante cerimônia para proteger contra os maus espíritos. Entre os incas, o primeiro corte de um príncipe herdeiro ocorria quando ele completava dois anos. O futuro rei recebia seu nome definitivo e se tornava uma pessoa; perdia os cabelos ligados à vida pré-natal, dissociando sua força vital da de sua mãe, o que era confirmado pelo desmame. O corte dos cabelos simbolizava a cesura do nascimento psíquico, o rompimento do estado simbiótico da primeira infância, permitindo que se alcançasse a individuação e uma identidade própria.

Nossos índios do Xingu raspam os pêlos do corpo, incluindo as sobrancelhas, desde muito cedo, para não parecerem macacos, mas os cabelos são considerados sensuais. Quando ocorre a morte de alguém muito próximo, as mulheres os cortam, expressando assim como essa perda as mutilou. Entre os carajás, a duração do luto será determinada pelo crescimento dos cabelos.

Muito freqüentemente encontramos a fantasia de “lindos cabelos” como idênticos à capacidade de atração, situação na qual quem atrai detém o poder, já que faz aflorar o desejo do outro. A idéia de provocação sexual ligada à cabeleira feminina– desejo e sensualidade tomados como pecado– está na origem, na tradição cristã, do fato de as mulheres não poderem entrar na igreja de cabeça descoberta e, na tradição muçulmana, de não poderem se apresentar assim em público; entre os judeus ortodoxos, a partir do casamento elas não se apresentam com os cabelos à mostra, passando a usar perucas ao sair. Também entre eles, para os meninos, os cachos laterais (o peiot) são mantidos sem nenhum corte, assim como, posteriormente, a barba.

Cabelos desgrenhados estão associados ao luto, como expressão de dor e desespero, e, nos rituais das lojas das sociedades secretas, à não submissão às regras sociais. Entre os hippies, os cabelos desalinhados eram um sinal de liberdade e de não aceitação dos valores vigentes. Cabelos black power foram utilizados como afirmação da negritude; já o “tererê”, enfeite colorido entremeado aos cabelos, tem uma conotação de retorno às origens.

 

Um olhar pela nossa “civilização”, nossa cultura

Vivemos numa sociedade que privilegia a juventude como sinal de potência e vitalidade; o envelhecimento é visto como castração e, dessa forma, não há possibilidade de considerar o amadurecimento e a sabedoria– alcançados com o “aprender com a experiência”– como algo bom. Na cultura do rápido e descartável, não há tempo para assimilação; procura-se a todo custo destruir o mundo mental responsável pela percepção e pela consciência da finitude.

A palavra “têmpora” está associada a “tempo” e indica a região da cabeça onde geralmente aparecem os primeiros cabelos brancos, que mostram que o tempo passou; sinal de aproximação da morte, precisam ser rapidamente pintados para ocultar este horror: “Somos mortais!” Quando olhamos à nossa volta, damo-nos conta de uma quantidade imensa de produtos para cabelos, de tipos de escovas, pentes e técnicas, conforme o que se deseje obter. O número de pessoas que se submete a isso tudo não é nada pequeno e o tempo despendido, enorme, medida da importância que os cabelos têm para nossa economia psíquica.

Dentro desse quadro, seja numa situação narcísica de exagerado culto à vaidade, seja de cuidados com a vida, os cabelos têm posição de destaque.

Ao entrar num salão de beleza, algumas pessoas estão curvadas, cabisbaixas, silentes, deprimidas. Conforme seus cabelos vão sendo cortados, a postura vai se alterando: levantam o corpo e a cabeça, sorriem para a imagem no espelho e para a cabeleireira. Os cabelos, tendo crescido, perderam o formato; com isso a pessoa sente que perdeu a beleza, a identidade. Com o novo corte, restabelece-se o contorno que marca os limites, restaura-se a pele psíquica, ela se recupera, se re-encontra.

Entre as jovens, geralmente os cabelos são mantidos longos, tratados, coloridos; podemos pensar em cabelos como substitutos do pênis. Observamos, no entanto, que quando se casam, e principalmente quando têm filhos, elas os cortam, abrindo mão desse “poder”, dessa representação de onipotência e bissexualidade. Ao se tornarem capazes de serem mulheres e mães, com limitações e possibilidades reais, os longos cabelos perdem o sentido, passando a ser vistos como “dando trabalho demais”.

 

As contribuições da psicanálise

Freud (1923/1976) nos ensina que o ego resulta das sensações da superfície do corpo– portanto, da pele–, como uma diferenciação do id no contato com a realidade, representando as superfícies do aparelho mental.

A partir das sensações corporais que o bebê vivencia (através dos contatos físicos e psíquicos que tem principalmente com a mãe), vai se estabelecendo uma primeira noção de pele, algo que envolve e demarca um limite do corpo e do eu, que contém as partes do corpo e da personalidade e que permite que as trocas aconteçam (Bick, 1967/1991).

Anzieu (1985/1988, p. 26) aponta:

[…] os bebês mamíferos se agarram aos pêlos de suas mães como forma de alcançar segurança física e psíquica […]. É agarrando-se ao seio, mãos, corpo e roupas da mãe que [o bebê] desencadearia como resposta condutas atribuídas a um utópico instinto maternal. A catástrofe que persegue o psiquismo nascente do bebê humano seria a do separar-se e depois– assinala mais tarde Bion, de quem retomo a expressão– isso o mergulha em um “terror sem nome”.

Ele nos remete à proposição de Bowlby (1958), da existência de uma pulsão de apego; esta explicaria a observação dos etologistas de que os bebês, tanto de aves como de mamíferos, se desesperam com a ausência da mãe tanto quanto os bebês humanos, e de como isso não está ligado à alimentação ou à oralidade, pois os filhotes apenas ficam junto delas ou as seguem. Essa pulsão tem por finalidade proteger os filhotes de predadores, mantendo a mãe a uma distância segura, e é estendida aos machos que protegem o grupo.

Anzieu fala também das idéias desenvolvidas por Hermamm (1930), de como os filhotes de mamíferos se agarram aos pêlos dos pais e de como o desaparecimento dos pêlos no corpo humano tornou aleatória a satisfação dessa pulsão e transformou as áreas cobertas de pêlos nas zonas erógenas favoritas da pulsão sexual. Em decorrência, os cabelos foram erotizados, considerados belos e atraentes.

Lembra ainda como Harlow (1958), estudando variáveis da relação mãe-bebê, realizou experimentos com bebês macacos e suas reações a “mães de pano” e “mães de arame”, observando como eles sempre preferiam as primeiras como objeto de apego. O reconforto alcançado com o contato com a maciez de uma pele foi sempre maior do que com aleitamento, calor físico ou acalanto. Anzieu propõe também um desejo tanto de incorporar como de ser incorporado pela pele, anterior à incorporação oral, e, supomos, possivelmente fetal.

De nossas origens como primatas vem a necessidade de agarrar-se aos pêlos para não “cair”, mantida como reflexo neonatal. Podemos dizer que os cabelos, dada a nossa perda dos pêlos, oferecem suporte anatômico para isso, atendendo a essa necessidade. Estamos, portanto, diante de aspectos muito primitivos, ligados à nossa herança filogenética, a um agarrar-se aos “pêlos-cabelos” para não correr risco de queda.

Na posição autista-contígua (Ogden, 1986/1989), a criança tem uma captação sensorial, concreta, procurando aderir à superfície do objeto para alcançar a sensação de segurança; as defesas são por identificação adesiva (Bick, 1967/1991), e a vivências de bidimensionalidade (Meltzer, 1975/1979); posteriormente, com o desenvolvimento da noção de pele-superfície para a de pele-bolsa, que contém as partes tanto do corpo como da mente (Anzieu, 1985/1988), surgirá a noção da tridimensionalidade e conseqüentemente a possibilidade do uso de defesas por identificação projetiva (Klein, 1946/1982).

Francis Tustin (1990) nos lembra que o recém-nascido provavelmente passa por estados em que estão presentes terrores atávicos, associados ao medo inato de animais predadores; eles asseguraram a sobrevivência da espécie, e, embora rudimentares, continuam presentes. Esses terrores são atenuados por uma mãe que, no estado de “preocupação materna primária” (Winnicott, 1958/1978), envolve o bebê num continente que amortece os impactos. Quando isso não ocorre, o bebê fica exposto a esses impactos e é obrigado a reagir a eles numa tentativa de se proteger, ficando preso a um universo de sensações táteis de superfícies; isso é conseguido através do desenvolvimento de defesas autistas. Sendo este um estado protomental, não podemos falar em fantasias, mas talvez em sensações físicas de terror.

Se relacionarmos as sensações terroríficas de “um cair sem fim” à nossa herança como primatas, teremos de pensar nos padrões inatos “esperados” pelo bebê e como nesse contexto pêlos-cabelos têm a função de proteger a vida e diminuir a ansiedade. Ogden (1986/1989, p. 151) esclarece essas questões:

Para Klein, o objeto interno tem sua origem nas pré-concepções herdadas associadas às pulsões. […] Não se herda a pré-concepção mental do objeto, mas a estrutura para a representação, e se dá forma à representação mental quando o bebê encontra os objetos concretos. […] O bebê não prevê o seio concreto no sentido de ter uma imagem mental dele antes de encontrá-lo; por outro lado, ele o reconhece quando o encontra porque é parte de suaordem interna biologicamente estruturada que estava silenciosamente disponível para lhe dar forma [tradução livre da autora].

Se tomarmos “seio” como abarcando todas as funções maternas, tanto as concretas como a capacidade de continência e de “sonhar” (Bion, 1961/1991), o cabelo também estará aí incluído.

Segundo a hipótese que formulo, uma das pré-concepções que nossa espécie desenvolveu é que existe algo– “pêlos-cabelos”– que nos protegerá de “cair”; assim, a função de defesa biológica dos “cabelos” é estendida às nossas angústias mais precoces. A partir disso, sua importância fará parte do imaginário humano, aparecendo nos hábitos e costumes de cada povo, em seus contos e mitos, e conforme a história de cada indivíduo.

Mas o que pode ocorrer com respeito a cabelos quando mãe e bebê se re-encontram depois da separação imposta pelo parto?

Quando uma jovem mãe amamenta ou afaga seu filho, muito provavelmente seus cabelos caem sobre o bebê. Temos uma conjugação: o reflexo de preensão, que está filogeneticamente relacionado à sobrevivência e à proteção contra as ansiedades de um “cair sem fim”, e a importância que os cabelos têm para o imaginário materno. Que objeto é oferecido ao bebê pelas fantasias inconscientes da mãe no jogo de projeções/introjeções que essa relação necessariamente contém e que se acasala com as pré-concepções existentes?

Num trabalho de anos de observação, Souza-Dias verificou que bebês cujas mães tentaram desesperadamente abortar apresentam intensa reação a estranhos, quase nenhuma capacidade para tolerar frustrações e se agarram aos cabelos delas com um ódio intenso (comunicação pessoal, março de 2006). Fazemos a suposição de que expressam sua luta desesperada para sobreviver e um ódio a esses “cabelos-mãe” que não oferecem sustentação; estes tentaram lançá-los no “abismo da morte”, e, ainda assim, são tudo o que têm para se “segurar”.

 

Mitologia e contos de fadas

Ao contar a história da origem e criação do mundo, recriando uma memória, os mitos permitem ao homem tornar-se participante dos ciclos da vida, integrado à natureza, podendo aceitar a morte e superar as angústias levantadas por saber-se frágil e mortal.

Em sua origem, o mito é uma experiência emocional que emerge numa etapa muito primitiva, anterior à linguagem; quando os mitos chegam até nós, da maneira como os conhecemos, já sofreram muitas transformações, evoluíram para uma forma oral e posteriormente literária (Azoubel Neto, 1993); passam então a ser como os sonhos de uma cultura, expressando nossas angústias, desejos, conflitos e sua elaboração. Os contos de fadas, de forma semelhante, nos falam sobre as questões mentais a serem enfrentadas a cada etapa do desenvolvimento.

Nesse contexto, a importância dos cabelos para nosso imaginário é representada por várias figuras: Medusa, com seus cabelos de cobra; Sansão, cuja enorme força estava nos longos cabelos; as sereias, que seduzem cantando e se penteando; e ainda Rapunzel, a meninota de longas tranças pelas quais o príncipe subia, para visitá-la na torre onde se encontrava encerrada.

Na evolução do nosso tema, o que era um reflexo de preensão filogenético, visando à sobrevivência física do indivíduo e da espécie, passa a ser também uma sensação tátil que ameniza as angústias terroríficas de “cair”, o que Tustin (1990) chamou “formas”; posteriormente, após uma primeira concepção, um primeiro pensamento de algo, “cabelos”, que contêm o terror, inicia-se a da construção de uma vida mental. Essa sensação que tranqüiliza vai se transformando e adquirindo um sentido; segue-se a criação dos mitos e contos de fadas, que apontam para os significados que os cabelos vão tomando no imaginário humano.

Medusa Personagem da mitologia grega, as Górgonas personificam os perigos do mar; são monstros que condensam a tendência à sexualidade perversa, expressando nossos aspectos mais primitivos e fantasias ligadas a ataques sádicos por inveja, ciúme e rivalidade. Medusa, a única mortal, como suas irmãs, tinha cobras no lugar de cabelos, garras de bronze, presas de javali e asas de ouro. Quem a olhasse ficava petrificado; suas presas e garras corresponderiam ao desejo de dilacerar a mãe-terra. Olhar para a Medusa petrifica; a pessoa mantém a forma humana, mas perde a capacidade de sentir, está morta de terror.

Para Freud (1941[1922]/1976), cobras significam uma defesa contra a castração frente à visão do genital feminino; para Klein (1932/1969), a mãe com o pênis do pai; já para Anzieu (1985/1988), a perda da pele continente por dilaceramento.

Numa das versões do mito, Medusa teria sido uma bela jovem orgulhosa principalmente de seus cabelos. Seu crime teria sido unir-se a Netuno (ou a Zeus) num templo dedicado a Palas Atena; esta, em seu ciúme edípico, transformou-a em monstro. Assim, a rival de lindos cabelos, desejada e admirada, é transformada, por ódio e inveja, num objeto denegrido, porém ainda temido, já que continua poderoso. Aqui temos a mulher atraente (fêmea ou mãe) odiada por ter a capacidade de despertar desejo; punindo Medusa, Palas desloca e descarrega o ódio ao seu objeto de amor para a mulher que atrai (e a trai).

Sansão É umpersonagem bíblico. Sua mãe era estéril, mas seu nascimento foi anunciado por um anjo de Jeová: ele seria um nazireu de Deus; portanto, deveria consagrar-se totalmente a Jeová, não ingerir nada provindo da videira e não cortar os cabelos.

Nessa época os hebreus viviam sob o jugo dos palestinos, mas Sansão só se interessou por mulheres desse povo; casou com uma delas, mas, como quis enganar seus convidados e a mulher os ajudou, foi tomado de muito ódio e os dizimou. Os ataques se repetiram de parte a parte, com Sansão causando grandes estragos. Dalila, uma palestina, foi então contratada para saber de onde provinha tanta força; ela vai insistindo em saber seu segredo até que ele lhe conta: “Sua força provém dos cabelos compridos, por ser um nazireu de Deus”.Dalila faz com que lhe cortem os cabelos enquanto dorme, de forma que os filisteus podem prendê-lo, cegá-lo e escravizá-lo.

O corte dos cabelos aponta para o fato de, sendo moralmente fraco e contando seu segredo a uma palestina, ter sido interiormente infiel a Jeová (comunidade shaloom). Algum tempo depois, já com os cabelos crescidos, ele é levado a um estádio para ser humilhado; apóia-se então nas colunas de sustentação do local, invoca Jeová, pedindo força para se vingar, e derruba então as colunas, matando a todos e morrendo com eles.

Várias são as histórias populares em que surge a figura do herói cheio de força e de vida, um ser anunciado, filho de pais idosos ou estéreis. São contos que nos falam do desejo de procriar (reparar) independentemente das limitações da realidade. A reparação é alcançada por defesa maníaca e não por se ter alcançado a posição depressiva; a conseqüência disso é que o filho esperado não é um ser comum, mas um ser superior, onipotente.

A Sansão, tudo é permitido; quem atravessa seu caminho comete um crime de lesa-majestade. Sua força está na dependência de que mantenha concretamente os cabelos longos, sinal não somente de virilidade como de força divina. Não há desenvolvimento de força mental ou de valores éticos; da mesma forma que seus cabelos, não sendo aparados, não ganham forma, ele não se civiliza, não se humaniza. O sofrimento, quando ele se percebe um ser comum, não leva ao desenvolvimento, apenas ao desejo de vingança.

Sereias Personagens da mitologia greco-romana com corpo de peixe e tronco de mulher, representam uma figura combinada, masculina e feminina simultaneamente. Costumavam aparecer em pequenos grupos e sentar-se nos rochedos, onde permaneciam penteando os longos cabelos enquanto cantavam. Lindas, impossível resistir ao seu canto e aos seus encantos. Mas não é cantando que as mães embalam seus bebês para que eles se tranqüilizem e adormeçam? E não é freqüente que elas estejam com os cabelos soltos ao tê-los nos braços? Sendo o sono um estado regressivo, o embalar materno é um convite à regressão, à volta a um mundo aquático, uterino.

Iemanjá e Iara No Brasil, temos o correspondente das sereias na figura de Iemanjá, Sereia do Mar, e da Iara, a Mãe-d’Água.

Iemanjá é um orixá4 feminino, originalmente padroeira do rio Ogun, na África. No Brasil, é padroeira do mar e dos amores, mãe de todos os orixás. Vaidosa, recebe de seus devotos pentes, perfumes e flores, que são lançados ao mar para que ela, recebendo-os, os proteja. Ela atrai os marinheiros e os leva para o fundo do mar.

Iara, Senhora das Águas, da mitologia tupi, habita as águas doces e pode tomar muitas formas. Nas noites de lua cheia, penteia os longos cabelos sentada nas pedras dos rios. Extremamente atraente, quem a vê se deslumbra, ficando cego, e quem a ouve é atraído para o fundo das águas.

Encontramos assim, na mitologia de povos tão diferentes e distantes, a mesma figura, expressão das mesmas angústias: uma figura materna meio peixe, meio humana (o pênis representado pela cauda e pelos cabelos) que aprisiona e impede a individuação.

Rapunzel Personagem do conto de mesmo nome (Grimm, 1819/1914), no qual um casal, diante de uma gravidez e de momentos de muita felicidade, tem de se haver com fantasias e atuações de roubo. A mulher passa a desejar desesperadamente os raponços (em alemão, rapunzel) que vê na horta de uma vizinha e o marido aceita roubá-los para ela.5 A dona da casa o surpreende e exige que ele lhe entregue a filha quando esta nascer, dando-lhe o nome da planta. A criança fica, pois, marcada pela atuação dos pais; uma menina– Rapunzel– é fruto de uma equação simbólica (Segal, 1954/1991): bebê = raponço = pênis.

É um conto que nos fala da incapacidade dos pais de conter os impulsos orais e o desejo de apropriação. Não há nenhuma menção a pedir ou comprar os raponços; a pessoa que os possui é tida como bruxa apenas por ter a posse deles (o pênis mágico), sendo eles capazes de despertar inveja e cobiça.

Quando a menina completa 12 anos, a mãe adotiva a encerra numa torre sem portas, só com uma janela, para que ela não tenha contato com ninguém mais. Quando quer vê-la, pede-lhe que jogue as tranças e sobe por elas. Mas um dia um príncipe a ouve cantar, espera para ver quem é e descobre como subir até ela; planejam então fugir juntos, e Rapunzel lhe pede que traga fios de seda para tecer uma corda e ir-se com ele. Porém, num ato falho, deixa que a mãe saiba da existência do jovem. Esta corta suas tranças, abandona-a num deserto e joga o rapaz do alto da torre; ele cai sobre um espinheiro, ficando cego. Passam-se muitos anos até que consigam se reencontrar; as lágrimas de Rapunzel o curam da cegueira e eles alcançam a felicidade.

A mocinha de longas tranças, presa de pais infantis, tenta escapar a uma mãe invejosa e formar um casal. Descoberto, o par é separado e punido pela mãe - madrasta que não suporta o crescimento e a individuação da filha; é separado pelos aspectos invejosos que não toleram a capacidade de vinculação.

A figura feminina é apresentada cindida, presa aos aspectos orais; a menina se desenvolve, mas ainda permanece presa a uma relação materna, sem poder contar com uma figura paterna que a auxilie; as fantasias sexuais são representadas pelo uso da torre para “subir e descer” e as de bissexualidade, pelas longas tranças (fálicas) tão poderosas; os recursos são encontrados ainda no próprio corpo, num investimento narcísico.

Os “cabelos-pênis” permeiam todo o conto: nos raponços com “cabelinhos brancos” e sumo agridoce, nas longas e fortes tranças loiras “como ouro fiado”, na escada de seda “amarelinha”; essa é a primeira tentativa de buscar recurso com o auxílio masculino, o que permitiria romper a simbiose. Rapunzel vai lutando contra as adversidades, com os aspectos invejosos, até poder formar um par. Ao alcançar a posição depressiva, suas lágrimas podem fazer a reparação e o príncipe voltar a enxergar.

Nesses contos e mitos, temos um contínuo das representações mentais desde a figura mais primitiva e terrorífica, a Medusa, passando por Sansão, com seus cabelos identificados a um pênis onipotente, pelas sereias, cuja cauda e cabelos as tornam bissexuais, até Rapunzel, que luta por alcançar integração e desenvolvimento. Em todos eles os cabelos expressam algo poderoso.

 

Algumas situações clínicas

Pedro

O tema “cabelos” esteve presente em todo o nosso trabalho (Oliveira, 2001).

Por volta dos dois anos, colocava as fraldas do irmão na cabeça, para ter cabelos compridos, e os enfeites de cabelo das primas. Com meses, esfregava o rostinho nos longos cabelos da mãe, “era louco por eles”(sic). Esse bebê, ao fazer contato com o seio, o rosto e os braços da mãe, fazia também contato com seus cabelos, que provavelmente tinham grande importância e significado para ela; suponho que em tal interação isso tenha sido apreendido. Ele procurava agarrar-se a eles como forma de não se separar, o que nos remete à pulsão de apego de Balint e a uma situação de bidimensionalidade.

Posteriormente, na sua fantasia, cabelos = seio = bebê foram identificados numa equação simbólica. Assim, quando começou a engatinhar, comia quanto cabelo encontrasse, desenvolvendo um quadro de tricofagia. “Cabelos” era uma figura onipotente que ele desejava “ter-ser” e que servia como defesa frente à percepção da própria fragilidade. Desde muito cedo procurou incorporar esse objeto concretamente, primeiro pela pele e depois oralmente.

No transcorrer do trabalho de análise, passou a contar e representar cenas de histórias e contos de fadas. Ele se identificava fortemente com as princesas (sempre de longos cabelos) e depois com as madrastas e bruxas, quando então as destruía com grande prazer.

Rapunzel– Sua importância se restringia às tranças cor de ouro (cor da superioridade), em que ele queria se transformar. O que parece uma identificação feminina é uma identificação com uma figura combinada idealizada; por conta de fortes aspectos psicóticos, transformava a figura feminina num “Ser de Luz”, mantendo a figura combinada onipotente que impede a formação do casal capaz de gerar vida. Precisando desesperadamente sentir-se fundido à mãe, só podia ver uma dupla como sendo fundida.

A Pequena Sereia– Nesse conto, a sereia, por amor a seu príncipe, aceita trocar a voz por pernas que lhe permitiriam andar, aceita deixar o mundo aquático e narcísico pelo das relações objetais, o mundo idealizado pelo da realidade. Para alcançar o amor objetal, é preciso aceitar a limitação, abdicar da figura combinada bissexual e passar à introjeção do casal parental; só assim se poderá pisar na terra firme da realidade psíquica e da formação da identidade. Também aqui, longos e volumosos cabelos estão presentes.

Nessa época a brincadeira favorita de Pedro era fazer com que animais atravessassem desfiladeiros por cordas que freqüentemente se rompiam. Ele estendia barbantes entre os objetos da sala; os animais deveriam passar de um lado para o outro, mas os barbantes freqüentemente se rompiam ou balançavam. Esses “barbantes-cabelos” não ofereciam sustentação e segurança.

Mortícia Addams– Surgem os Addams, tão anti-establishment, fúnebres e amorosos. Mortícia (de longos cabelos) é a primeira figura feminina que se aproxima de ser uma mulher e não um “Ser de Luz”. Pedro agora fala de toda a família: pai, mãe e um casal de filhos. Faz figuras com massinha para representá-los e no final de algumas sessões pede que eu os prenda na tampa de sua caixa, me explicando que “precisam pôr o cinto de segurança para não cair”.Podem existir crianças quando, e se, há adultos capazes de cuidar delas; em vez de barbantes bambos há cintos de segurança que posso ajudar a firmar.

Juca

Os pais de Juca me procuraram quando ele estava com 16 anos e souberam de sua atração por rapazes. No decorrer do trabalho de análise surgiram sonhos, fantasias sadomasoquistas e alucinações auditivas. Surgiu também a lembrança de que, por volta dos três anos, colocava na cabeça as fraldas do irmão dois anos mais novo, para “ter cabelos compridos como os de uma menina”, e também a lembrança de que, dos desenhos que na época via na TV, desejava ser a “Cintilante”, uma heroína que podia voar. Ela representava seu desejo e fantasia de se transformar num ser que, voando, desafiava a realidade, e, não sendo ela a heroína principal, era alvo menor dos ataques invejosos. A “fralda-cabelos” serviria para transformá-lo nesse ser poderoso e lhe garantiria alguma identidade e autonomia; como “Cintilante”, não teria de se haver com as limitações humanas, estas sim terroríficas, principalmente considerando a força do seu sadismo.

Anzieu (1985/1988, p. 119) afirma:

[…] a pele do bebê faz da mãe o objeto de investimento libidinal. […] Se o investimento da pele é mais narcísico que libidinal, o envelope de excitação pode ser substituído por um envelope narcísico brilhante, passível de tornar seu possuidor invulnerável, imortal e heróico.

Pedro e Juca punham as fraldas dos irmãos na cabeça para ter-ser cabelos compridos; o desejo de se transformar num “ser-cabelo-cintilante” estava presente em ambos como defesa contra intensos sentimentos de fragilidade e desvalia; o grande prazer em dilacerar e destruir sadicamente aumentava ainda mais o terror e a necessidade de um objeto idealizado.

Maria

Foi uma criança que apresentava muitos terrores. A mãe, uma pessoa intelectualmente desenvolvida, lutando por se firmar profissionalmente, não percebeu que estava grávida. Quando soube do fato, apresentava-se então como se não houvesse conflitos e medos a serem enfrentados e como se um filho, o primeiro, não provocasse nenhuma mudança em sua vida.

O parto foi a termo, fácil e rápido, talvez rápido demais, sendo Maria lançada ao mundo sem contar com quem lhe oferecesse continência. O pai mostrou-se incapaz de sustentar a família tanto econômica como emocionalmente. Com muita freqüência a mãe lia enquanto amamentava, havia poucas possibilidades para Maria encontrar seu olhar, quanto mais um olhar apaixonado. A criança tinha grande dificuldade para dormir, e para isso, ou quando queria colo, punha-se a alisar os cabelos da mãe.

Com o desmame, passou a realizar o seguinte ritual: segurava o copo com uma das mãos e com a outra uma mecha de cabelos; cada gole era retido na boca com movimentos entre sugar e mastigar. Esse comportamento permaneceu por muito tempo.

Podemos pensar nesse bebê, extremamente inteligente e sensível, se dando conta de situações que não tinha como enfrentar; um bebê que não encontrava os olhos da mãe para neles se encontrar. Esta, tendo que se ocupar de seus interesses profissionais enquanto amamentava, nos conta que não podia perder-se em si mesma e se identificar com o bebê; pelo contrário, fugia dele e de suas próprias angústias primitivas. Maria, segurando o copo e os cabelos, numa pseudo-independência, mantinha a ilusão de se alimentar e de se segurar sozinha, amenizando o terror de não ter quem a contivesse.

 

Dois casos de alopecia areata6

Antonio

Apresentou um quadro de alopecia por duas vezes: no final das gestações, suas duas filhas correram risco de vida, tendo sido salvas pela presteza do atendimento médico. Com as crianças bem, e já em casa, houve remissão do quadro.

Nossa hipótese é que Antonio se identifica com a mulher, que deixa seus bebês “caírem”, e os cabelos com o bebê em risco; simultaneamente se identifica com os bebês, e seus cabelos caindo com a mãe, que não oferece sustentação. Ele revive o “terror de cair”, é um filhote sem “cabelos-mãe” onde se agarrar.

Ana

Procura um trabalho psicoterápico por se encontrar muito deprimida; informa que tem um quadro de alopecia desde a adolescência, quando perdeu todos os pêlos (alopecia universal). Diante de detalhes de sua história, formulamos a hipótese de que teme ter a identidade destruída; se se mostrar atraente, feminina, com lindos cabelos, despertará desejo e será usada, desconsiderada, será “uma coisa”.

Em poucos meses de trabalho, Ana foi saindo do estado depressivo, passando a se interessar por fazer trabalhos manuais criativos e de muita beleza, confeccionando bijuterias e bolsas com retalhos de tecidos. Surgia uma outra faceta; a mulher empreendedora podia abrigar também criatividade, suavidade, beleza– uma mulher que tentava retecer a si mesma “juntando os retalhos” de forma harmônica, refazendo um continente para suas experiências de dor e desespero. Nessa ocasião, comenta: “O primeiro dia que vim aqui foi no dia do meu aniversário; nasci de novo!”Logo depois nota que está ocorrendo uma repilação (na alopecia o folículo piloso não morre, permanece na fase catágena, num estado de inércia, esperando a ocasião de poder voltar à vida).

No entanto, os aspectos perversos voltaram a dominar; ela interrompe o trabalho psicoterápico e uma possível repilação.

Adendo

A alopecia areata é de etiopatogenia desconhecida e sua evolução está relacionada com a forma clínica. Nas publicações brasileiras os fatores emocionais são considerados secundários, mas, na observação de crianças, Békei (1991) encontrou, como fatores desencadeantes, vivências íntimas angustiantes relacionadas à morte ou à separação do objeto, ou ao medo de perder seu amor.

Seu estudo sobre o tipo de ligação que as crianças alopécicas tinham com a mãe e qual a estrutura egóica em formação demonstrou que havia, por parte das mães, dificuldade em ter empatia com elas, e nas crianças, a permanência de uma relação de objeto simbiótica, portanto sem clara distinção entre eu e não-eu. Numa importante porcentagem dos casos, alcançou-se uma modificação do tipo de relação entre as crianças e as mães e o desaparecimento gradativo dos sintomas, com a organização de grupos de auto-ajuda para as mães e grupos terapêuticos para as crianças.

Quando há perda do objeto e este não está suficientemente discriminado, a criança sente que perdeu concretamente partes de si mesma, partes do próprio corpo e não algo mental. Assim, os sintomas são físicos; nos casos de alopecia, eles expressam a perda da “mãe-cabelos” que ofereceria sustentação.

 

Um caso de desenvolvimento de pêlos

Numa matéria sobre crianças perdidas exibida na TV, foram dadas as seguintes informações: na África, um menino de 5 anos, tendo visto o pai matar a mãe, fugiu para a floresta perto da qual morava; sobreviveu comendo o que encontrava, sempre com muito medo. Um dia, vê um grupo de macacos e se põe a observá-los. Após algum tempo, um deles se aproxima e lhe dá uma banana; depois, outro lhe dá uma fruta. Ele segue o bando e vive com eles por sete anos. Um dia surgem algumas pessoas que disputam frutas com os macacos; uma mulher o vê, acha que é diferente dos outros animais, fala com ele, aproxima-se, e ele a acompanha. Quando os pesquisadores o encontram, está com os humanos há três anos.

O que surpreendeu os cientistas, que não encontraram explicação para o fenômeno, foi o fato de ele ter desenvolvido pêlos em áreas onde os homens não mais os têm. Formulamos a hipótese de que essa criança, encontrando acolhida e cuidados entre os macacos, faz uma identificação com esse objeto bom e passa a ser como ele. Reencontra nos macacos a segurança perdida e, com isso, desenvolve os pêlos que oferecem sustentação.

 

Conclusão

Do ponto de vista tanto do indivíduo como da espécie, cabelos-pêlos têm função protetora contra agentes externos, perda de calor e ainda contra inimigos. Fazem parte do aparelho sensorial cutâneo e, por estarem ligados tanto às áreas mais arcaicas do sistema nervoso central como às mais desenvolvidas, participam das alterações a que o organismo está sujeito conforme as emoções variam. O fato de existir um reflexo de preensão no recém-nascido humano, resquício dos bebês primatas, que precisam se manter presos aos pais para continuar vivos, evidencia um fator filogenético para se agarrar a uma “mãe-pêlos” que nos protegeria de um “cair sem fim”. Soma-se a isso a importância dos pêlos-cabelos frente à satisfação da pulsão de apego; dessa forma, podemos dizer que há uma pré-concepção quanto a cabelos como defesa contra o “terror de cair”, algo que oferece segurança e continência. A partir dessa origem, os cabelos-pêlos passam a ter função protetora também contra os diversos tipos de angústia. Isso se expressa no significado que os cabelos vão alcançando para os vários povos e culturas, assim como para diferentes indivíduos. A força dessa matriz filogenética se expressa pela importância universal de que os cabelos são investidos afetiva e sexualmente.

 

Referências

Andersen, H. C. A Pequena Sereia. Contos de Fadas. São Paulo: Melhoramentos. (Trabalho original publicado em 1835-42.)        [ Links ]

Anzieu, D. (1988). O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1985.)

Auricchio, P. (1995). Primatas do Brasil. São Paulo: Terra Brasilis.

Azoubel Neto, D. (1993). Mito e psicanálise: estudos psicanalíticos sobre formas primitivas de pensamento. Campinas: Papirus.

______ (2001). Uma experiência de aproximação ao primitivo. Ide, 33:30-35.

Békei, M. (1991). Enfoque psicosomático de la alopecia areata infantil. In Lecturas de lo psicosomático. Buenos Aires: Lugar.

Bíblia de Jerusalém. (2004). São Paulo: Paulus.

Bion, W. R. (1991). Uma teoria do pensar. InE. B. Spillius (org.), Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e da técnica. Vol. 1: Artigos predominantemente teóricos. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1961.)

______ (1966). Aprendiendo de la experiencia. Barcelona/Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1962.)

Bick, E. (1991). A experiência da pele em relações de objetos arcaicas. In E. B. Spillius (org.), Melanie Klein hoje. Vol. 1: Artigos predominantemente teóricos. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967.)

Boorer, M. (1971). Mamíferos. São Paulo: Melhoramentos/Edusp.

Caldas Aulete (1986). Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Delta.

Chevalier, J. &. Gheerbrant, A. (1997). Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio. (Trabalho original publicado em 1982.)

Cunha, A. G. (1982). Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Colucci, A. M. (1984). Função-pai e função-mãe: continentes de vida e morte. Apresentado em reunião científica na SBPSP– Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

______ (1973). Dicionário de mitologia greco-romana. São Paulo: Abril Cultural.

Freud, S. (1976). A cabeça da Medusa. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1941[1922].)

______ (1976). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. J. Salomão.Rio de Janeiro: Imago.(Trabalho original publicado em 1923.)

Grimm, Irmãos (1914). Rapunzel. In Irmãos Grimm, Contos e lendas dos Irmãos Grimm. São Paulo: Edigraf. (Trabalho original publicado em 1819.)

Haekel, E. (1910). Maravilhas da vida. Porto: Livraria Chardron de Lelo & Irmão, (Biblioteca Racionalista).

Klein, M. (1969). Os efeitos das primeiras situações de angústia sobre o desenvolvimento sexual do menino. In M. Klein, Psicanálise da criança. São Paulo: Mestre Jou. (Trabalho original publicado em 1932.)

______ (1982). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. InM. Klein, Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1946.)

Meltzer, D. (1979). Exploración del autismo. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1975.)

______ (1973). Mitologia. São Paulo: Abril Cultural.

Monteiro Lobato, J. B. (2003). O Saci. São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1946.)

Ogden, T. H. (1989). La matriz de la mente. Madrid: Tecnipublicaciones. (Trabalho original publicado em 1986.)

Oliveira, M. T. (2001). Elaborando perdas. Revista Brasileira de Psicanálise, 35:107-128.

Sampaio, S.; Castro, R. M. & Rivitti, E. A. (1989). Dermatologia básica. São Paulo: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1983.)

______ & Rivitti, E. A. (2000). Dermatologia. São Paulo: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1999.)

Segal, H. (1991). Notas sobre a formação de símbolos. In E. B. Spillius (org.), Melanie Klein hoje. Vol. 1: Artigos predominantemente teóricos. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1954.)

Tustin, F. (1990). Barreiras autistas em pacientes neuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.

Winnicott, D. W. (1978). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. W. Winnicott, Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1958.)

______ (1978). Preocupação materna primária. In D. W. Winnicott, Textos selecionado: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1958.)

Filmes

A Pequena Sereia. Baseado em Hans Christian Andersen. Walt Disney Company, 1989.

A família Addams. Paramount Pictures, 1991.

 

 

Endereço para correspondência
Marina Trench de Oliveira
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Chácara do Pica-Pau Amarelo/Sertãozinho
Continuação da Av. Cássio Paschoal Padovani, 3395
13400-970 Piracicaba SP – Brasil
Tel.: +55 19 3424-4713.
E-mail: marinatrench@uol.com.br

Recebido em 19.6.2007
Aceito em 28.8.2007

 

 

1 Para Eunice Nishikawa, que nunca soube o quanto suas colocações me auxiliaram no início de nossa formação e que chamou minha atenção para esta característica dos cabelos: “Cabelos contêm o vivo e o morto; crescem, mas podem ser cortados sem produzir dor!”
Este trabalho foi apresentado, de forma mais detalhada, em reunião científi ca da SBPSP, no dia 8 de abril de 2006. Meus agradecimentos aos colegas e amigos que me auxiliaram com informações de suas especialidades: dra. Camila C. Abreu, dra. Alessandra Stutz; dr. Álvaro F. de Almeida, Elaine C. Meyer, Marina L. L. Villas Boas, Viviane Starzinski, Alice P. S. Ferrari, Teresinha Souza-Dias e Rejane M. B. Rosamilia; a meu fi lho Fernando, pelos muitos esclarecimentos nas questões da área médica.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
3 Disponível em http://www.epu.org.br/cm/n09/fastfacts/comportold.htm.
4 “Orixᔠé um ser do culto nagô que serve como intermediário entre os crentes e o Ser Supremo.
5 Raponço (Grieve, 1931): “planta cultivada em vários países da Europa; plantada em maio, está em condição de ser usada como alimento em novembro; possui raízes carnudas, de sabor agridoce; as folhas e raízes novas são usadas como salada de inverno”. Trata-se de uma planta que permitia, há mil anos, no fi nal do outono europeu, que se tivesse um alimento fresco, portanto algo especial, com conotações mágicas. “É uma planta de hastes delgadas eretas, com ‘cabelos brancos’ que quase desaparecem quando crescida; tem um suco leitoso, de sabor mais ou menos acre” (tradução livre da autora; extraído de botanic.com.).
6 A alopecia areata caracteriza-se pela perda dos cabelos e/ou pêlos em áreas redondas ou ovais, sem sinais infl amatórios ou de atrofi a da pele; não há morte do folículo piloso, e sim uma parada na fase catágena.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons