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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.3 São Paulo set. 2007

 

INTERCÂMBIO

 

O discurso do adolescente em análise e o esgarçamento do tecido transicional: a mudança da psicopatologia na sociedade contemporânea1

 

The adolescent discourse in analysis and the laceration of the transitional tissue: changing features of psychopathology in contemporary society

 

El discurso del adolescente en análisis y el despedazamiento del tejido transicional: la mudanza de la psicopatología en la sociedad contemporánea

 

 

Vincenzo Bonaminio2

Società Psicoanalitica Italiana
Sapienza Università di Roma

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Três pequenas vinhetas clínicas são relatadas para mostrar, através do discurso adolescente, como um “esgarçamento” mais ou menos extenso da experiência transicional pode ser considerado uma fonte de sofrimento psíquico e a origem de uma nova forma de “mal-estar na civilização” contemporânea. Como psicanalistas, deveríamos olhar a adolescência como um de nossos observatórios privilegiados, pela função que exerce de vínculo cultural entre gerações: as novas formas de descontentamento cultural perturbam a estruturação e o funcionamento da vida psíquica, em especial os processos de transformação e mediação, que são os mais frágeis e sensíveis aos efeitos metapsíquicos da intersubjetividade. À maneira de um observatório, a adolescência nos dá a chance de ver, quase em tempo real, o quão rápidas, totalizantes, transitórias e “inapreensíveis” podem ser as mudanças no modo de pensar e representar a realidade interna e externa, o quão incipientes e ao mesmo tempo abortivas elas podem ser. A adolescência ilumina aspectos do “mal-estar na cultura”, assim como os “descontentamentos” do analista, que precisa fazer frente a eles. Focalizam-se aqui alguns problemas em particular: o papel do trauma e seu impacto no ego, que não é “preparado” para cooperar com o que ainda não está representado, o conseqüente não-desenvolvimento da diferenciação entre realidade e fantasia, a legitimação progressiva da “auto-sensorialidade autística” e o aumento dos “distúrbios psíquicos autístico-miméticos” como um marco da idade.

Palavras-chave: Adolescência; Mudanças na psicopatologia; Área transicional; Trauma; Defesas autísticas.


ABSTRACT

Three short clinical vignettes are reported to show, through the adolescent discourse, how a more or less extensive “laceration” of the transitional experience can be considered a source of psychic suffering and an origin of new form of “discontent with civilization” in contemporary society. As psychoanalysts, we should regard adolescence as one our privileged observatory, because of its function as a cultural link between generations: the new forms of civilization’s discontents disturb the structuring and functioning of psychic life, especially the processes of transformation and mediation, which are the most fragile and sensitive to the meta-psychic effects of intersubjectivity. As an observatory, adolescence gives us the chance to see, almost in real time, how rapid, overwhelming, transient and “ungraspable” are the changes in ways of thinking, of representing inner and external reality– how incipient and at the same time abortive they may be; it highlights aspects of “civilization’s discontents”, and along with these the “discontents” of the analyst who has to face them. Some issues are particularly focused on: the role of trauma and its impact on an ego which is “not prepared” to cope with what is not yet representable; the consequent undeveloped differentiation between reality and phantasy; the progressive legitimation of the “autistic auto-sensuousness” and the increase of “the autistic-mimetic psychic disturbances” as the mark of the age.

Keywords: Adolescence; Changes in psychopathology; Transitional area; Trauma; Autistic defences.


RESUMEN

Tres pequeñas viñetas clínicas son relatadas para mostrar, a través del discurso adolescente, como el dilaceramiento más o menos extenso de la experiencia transicional puede ser considerado una fuente de sufrimiento psíquico y el origen de una nueva forma de “malestar en la cultura “contemporánea. Como psicoanalistas, deberíamos mirar para la adolescencia como uno de nuestros observatorios privilegiados, por ejercer la función de un vínculo cultural entre generaciones: las nuevas formas de descontentamiento cultural perturba la estructuración y el funcionamiento de la vida psíquica, especialmente los procesos de transformación y mediación que son los mas frágiles y sensibles a los efectos metapsíquicos de la intersubjetividad. Como un observatorio la adolescencia nos da la chance de ver, casi en tiempo real, lo tan rápido, extenso, transitorio e “inaprensible” pueden ser las mudanzas en el modo de pensar y representar la realidad interna y externa– tan incipientes y al mismo tiempo abortivas ellas pueden ser; la adolescencia ilumina aspectos del “malestar en la cultura”, y más allá de eso los “descontentamientos” del analista que precisan hacer frente a ellos. Algunos problemas son enfocados en particular: el papel del trauma y su impacto en el ego que no está “preparado” para cooperar con lo que aun no está representado; consecuentemente el no desarrolló de la diferenciación entre realidad y fantasía; la legitimación progresiva de la “autosensorialidad autística” y el aumento de los “disturbios psíquicos autísticos-miméticos” como marcas de su edad.

Palabras clave: Adolescencia; Mudanzas en la psicopatología; Área transicional; Trauma; Defensas autísticas.


 

 

Ao longo de algumas sessões consecutivas, um adolescente de 18 anos vagamente deprimido, vagamente envolvido na vida social com seu grupo de referência, vagamente envolvido no consumo de drogas leves (das quais faz uso esporádico, mas contínuo), vagamente tomado pela sexualidade com as garotas que se aproximam, vagamente interessado por música (ainda que a pratique, tocando um instrumento), solicita que eu considere uma relação entre duas canções escritas à distância de aproximadamente 25 anos.

Trata-se de uma relação explícita– que eu conheço–, mas sobre a qual meu morno analisando faz uma “descoberta pessoal” que o leva a sugerir uma “conclusão” alternativa, nitidamente diferente da forma proposta pelos dois autores em questão. Um final que seria, segundo ele, mais coerente com os pressupostos expressos nos textos do que as conclusões que apresentam.

O primeiro texto é God– Part II. Bono, líder do U2 e autor da canção, presta uma homenagem a John Lennon. Faz uma “variação sobre o tema”, tanto na música como na letra, de uma canção pouco conhecida do próprio Lennon, God, escrita na ocasião da traumática separação dos Beatles– traumática não só para os integrantes do grupo e para a dupla fundadora, Lennon e McCartney, mas para toda uma geração.

Em seu texto “niilista”, Lennon cita, num crescente iterativo e raivoso, todos os valores nos quais pensava acreditar e que agora declara não acreditar mais: “I don’t believe…”; cita inclusive o rearranjo dos próprios Beatles: “I don’t believe in Beatles…” A lista vai em frente até o ponto em que a música, interrompida por uma pausa, por uma cesura angustiante mas necessária, prossegue de forma tranqüila; o texto, nesse ponto, anuncia: “I just believe in me, in Yoko and me”.

“Aqui”, diz meu paciente, referindo-se a objetos culturais que seu interlocutor, isto é, eu, é capaz de compartilhar, “Lennon deveria ter continuado a gritar:‘I don’t believe in me, I don’t believe in Yoko and me’”. Deveria, “coerentemente, ter ‘criado o deserto’ em torno de si, mas não teve coragem. Deveria ter destruído tudo, inclusive a si mesmo, ainda que depois tivesse sido destruída, a partir de fora, a única coisa que ele deixou de pé: ele mesmo”. Meu paciente prossegue: “Mas eu consigo entender Lennon; eram os anos 80, eu nem tinha nascido, para mim é pré-história, mas consigo entender”.

E eu, de fato, reflito que para mim, ao contrário, é história, é história de ontem. No entanto, o que meu paciente diz se exprime, de qualquer forma, numa língua que compreendo: a destruição necessária que preserva uma parte do self, para que o self “renasça”. A separação é necessária para existir.

Ele continua: “Mas Bono, que nessa homenagem a Lennon conclui a lista das suas didascálias de ‘I don’t believe…’ ‘I don’t believe in devil, I don’t believe in cocaine, I don’t believe that rock’ n roll can really change the world’–, que conclui com um ‘I… [pausa] I believe in love…’, aonde ele vai buscar esse ‘amor’, onde diabos se encontra? Aqui em volta? Ele, Bono, se ‘apóia’ em Lennon, mas o falsifica […] quer impor a ele próprio uma continuidade de Lennon que não existe, porque tudo está despedaçado agora, tudo em pedaços, tudo está em pedaços, uma confusão. Ele, Bono, ‘transforma’ uma coisa em outra. Lennon está com medo, mas é verdadeiro; Bono acredita que pode ‘evangelizar as massas’, é o espetáculo feito pessoa, aliás, a pessoa feita espetáculo, como o papa, o Clinton, o Bush, o Mandela, como todo mundo, hein?! Ele vê a porcaria, mas falsifica, acrescenta alguma coisa em cima, fingindo que existe, mas, ao contrário, não existe, não”.

Aqui, é preciso dizer, meu paciente me entristece com sua crítica tão cerrada, porque sou admirador da música de Bono e do U2, além de grande admirador de John Lennon, naturalmente. Porém, devo reconhecer que sua crítica à sociedade do espetáculo global atinge o ponto.

Trago esse breve flash extraído de uma fala adolescente tendo plena consciência de seu aspecto comum para a escuta do analista. Não há nada de particularmente brilhante nas palavras do meu inteligente paciente adolescente, o qual, aliás, revela um notável pensamento reflexivo sobre a cultura, sobre um fragmento de cultura do qual pode dar uma “interpretação histórica”, no qual ambos estamos imersos e do qual ambos fazemos parte. Mas me parece que o conteúdo de sua fala traz inscritos em si os traços e a marca daquela peculiaridade dos objetos culturais, de sua mutabilidade, de sua fugacidade inapreensível, que já não é a forma na qual os dados culturais podem se apresentar, mas se tornou o próprio conteúdo.

Escolhi a fala de um adolescente em análise como início destas reflexões sobre o tema de hoje porque ela mostra com eficácia, de maneira “ostensiva”, as rápidas transformações culturais e sociais da contemporaneidade. Não podemos, como analistas, apenas “observar” essas vertiginosas e incessantes mudanças sociais e culturais, com nossos instrumentos de conhecimento forjados sobre uma realidade social e cultural diferente da atual, com a ilusão de ficar à margem do rio revolto, isto é, fora dele. A “crise da psicanálise” em que os psicanalistas estão envolvidos, às vezes de forma masoquista, a partir da posição de laudatores temporis acti, nasce também de uma crise de pensar sobre nós mesmos na sociedade global. Ela é em si um aspecto do mal-estar da civilização. Como escreve Daniel Widlöcher (1996/2004), temos– devemos ter– “novas cartas” da psicanálise.

A intersecção da psicanálise clínica e teórica com o quadro sociocultural no qual a psicanálise vive e se desenvolve não pode ser descuidada pela reflexão do psicanalista (Petrella, 2005),3 no momento em que consideramos as direções atuais e futuras da nossa disciplina e das tarefas que teremos de enfrentar.

Nessa perspectiva, devemos considerar que também as mudanças na teoria e na técnica não são somente fruto de progressos de conhecimento, devem ser vistas também como efeitos de uma pressão cultural que orienta princípios e escolhas temáticas e de campo.

É possível examinar, ainda que de forma necessariamente sintética e esquemática, essas mudanças na clínica e na teoria, ou seja, o impacto e os efeitos dessa “importação do externo”, seja no que se refere aos percursos atuais seja no que concerne aos futuros da psicanálise. Como observa Petrella (2005):

a) A idéia de sujeito dentro da qual a psicanálise cresceu pressupõe que o ego tenha condições de fazer diferenciações entre si e o mundo, seja capaz de reconhecer e satisfazer as próprias necessidades e saiba produzir tanto ações e narrações adequadas para a ação quanto construções de sentido entre essas distinções. A intuição freudiana segundo a qual “o ego não é dono na sua própria casa” (Freud, 1916/1977, p. 663) dilatou-se enormemente na contemporaneidade, pois nos encontramos ante configurações mentais novas e desconcertantes e formas de identidade menos definidas.

b) No que se refere à posição do inconsciente,ocorreram muitas mudanças recentemente. Modificou-se de forma profunda o horizonte do que é censurável até o desaparecimento, e houve a transformação radical dessa noção.

c) A mudança de paradigma– por exemplo, da teoria pulsional para a das relações objetais–, assim como a atenção às patologias graves e severas (borderline e personalidades narcísicas, depressões, síndromes psicossomáticas) e também os métodos de observação direta da criança, favorecem no conjunto uma elaboração teórica que minimiza o papel das conseqüências intrapsíquicas das pulsões sexuais. Veja-se o que afirma Green (1993/1997) a respeito da contribuição dos psicanalistas contemporâneos para cancelar ou remover a sexualidade da psicanálise.

d) A teoria do objeto que dá segurança se situa ao lado do modelo pulsional do objeto do prazer próprio da tradição metapsicológica, até substituí-lo.Prazer e segurança se dissociam, e perde-se de vista a idéia de uma conexão originária dos mesmos.

e) A evanescência do Édipo até seu aparente dissipar-se na teoria e na clínica psicanalítica atual deixou lugar para outros tipos de considerações e outros modelos. Como afirmou de forma “antecipatória” um psicanalista italiano, Francesco Corrao (1992), o nosso tempo e as estruturas psíquicas com as quais nos confrontamos hoje não são mais bem representados no mito de Édipo, mas no de Dioniso. A história de Édipo se desenrola nos confins do destino individual e familiar; a de Dioniso é desde o início coletiva, tribal, penetrada pela facilidade, pela ausência de critérios normativos e prescritivos, pela exaltação, pela excitação e pela ação. Assim, cada vez mais lidamos não com o mundo de Édipo, um mundo interior habitado pelo conflito, mas com um mundo exterior onde o conflito é negado e evacuado no real (Riolo, 2005).

 

II.

Uma outra razão pela qual escolhi iniciar e depois prosseguir brevemente, neste texto, com uma referência à adolescência, é porque, embora de forma não exclusiva, ela constitui para nós, psicanalistas, um “observatório privilegiado”, pela função de elo cultural entre gerações. Como aponta Kaës (1998), “as novas formas de ‘mal-estar’ da civilização perturbam a estruturação e o funcionamento da vida psíquica, particularmente os processos de transformação e mediação, que são os mais frágeis e os mais sensíveis aos efeitos metapsíquicos da intersubjetividade”.

Como afirma o autor, é razoável pensar que a cultura do nosso tempo, além de ter produzido outras configurações psicopatológicas, também fez emergir outros modelos de funcionamento psíquico. Considerar a transmissão intergeracional nas perturbações psíquicas colocou em discussão a concepção da psique exposta apenas aos conflitos intrapsíquicos. Os traumas e os lutos coletivos que permaneceram sem elaboração revelaram a existência e a importância das funções simbolizadoras extra-subjetivas.

Um aspecto crucial do cenário da psicanálise contemporânea é, portanto, que a nossa própria concepção endógena da psique não pode mais desconhecer as condições ao mesmo tempo culturais e intersubjetivas da vida psíquica. Ainda que uma parte da realidade psíquica inconsciente escape a qualquer determinação social ou intersubjetiva, a vida psíquica pode se desenvolver somente com base na exigência de trabalho psíquico imposto à psique pela sua inscrição nos vínculos intersubjetivos primários e nos vínculos sociais, que Kaës define como garantes metapsíquicos da estruturação do psiquismo.O que está em crise na sociedade contemporânea é justamente o processo de subjetivização, que constitui um processo fundamental específico da adolescência, a sua “tarefa evolutiva”.

Por isso propus a adolescência como um observatório privilegiado, que nos possibilita ver, quase em tempo real, quão rápidas, avassaladoras, fugazes, impossíveis de serem pegas, são as transformações das maneiras de pensar, de reconhecer a realidade interna e externa; quão incipientes e, ao mesmo tempo, abortivas elas são, colocando em evidência um aspecto do ‘mal-estar da civilização’, mas também, contemporaneamente, do mal-estar do analista diante disso.

Ouvir o discurso de um adolescente, e trazê-lo, como fiz no início destas reflexões e como farei com dois outros breves exemplos clínicos, nos permite de ressaltar alguns aspectos do psiquismo em termos de “mal-estar da civilização” ou da cultura contemporânea: a instalação residente do trauma no interior do tecido psíquico, isto é, o impacto sobre o ego do que ainda não pode ser representado, que cai fora de seu âmbito e o encontra, por assim dizer, “não preparado” para fazer frente a ele: mesmo assim o influencia e altera sua estrutura; o conseqüente obstáculo a uma progressiva diferenciação entre realidade e fantasia, até sua equiparação, pela ausência virtual, ou a redução daquela área transicional entre dois âmbitos, justamente realidade e fantasia. Minhas principais referências, aqui, são Freud de Inibição, sintoma e angústia (1925/1978) e Winnicott de O medo do colapso (1963/1995) e, obviamente, da teoria sobre “os objetos e os fenômenos transicionais” (1951). Outro aspecto a ser evidenciado nesse contexto é o que podemos chamar, em termos de mudanças de funcionamento psíquico e na psicopatologia, de uma espécie de legitimização daquela auto-sensualidade autística, originariamente descrita por Tustin (1981/1983) ao abordar crianças autistas e alguns pacientes “neuróticos”. Como observa Ahumada, “as perturbações psíquicas da polaridade ‘autístico-mimética’ parecem se tornar o traço saliente da idade contemporânea, cujas conseqüências podem ser vistas também na progressiva diminuição da tolerância ao setting clássico, nas últimas décadas” (Ahumada, 2004).

Desse ponto de vista, o indolente pedido de outro adolescente– mais jovem, com cerca de quinze anos– pode ser considerado ainda mais exemplificativo do que o precedente. Durante a entrevista, ele me pediu que não marcasse a sessão para segunda-feira, pois naquele dia ele ficava “acabado” depois da festa rave do fim de semana: fica “difuso”, “esparso”, “esmagado”, como um cacho de uva pisoteado– condição que ele busca de modo intencional freqüentando a rave. Nem considera poder renunciar ao prazer embotante que a rave lhe proporciona– obtido com o uso de drogas sintéticas e a música ensurdecedora, que lhe “penetra dentro do estômago” e o faz se sentir “flutuar” como em um líquido leitoso. Esse prazer é a única razão pela qual “vale a pena viver a semana”.

Igualmente significativa, ainda que de uma vertente oposta– mais reasseguradora–, pode ser a consideração estupefata de um rapaz no último ano do colegial. Durante uma sessão no segundo ano de análise, ele me relata não conseguir compreender logo de cara a linguagem cheia de gírias de um grupo de rapazes do quarto ano do ginásio dos quais havia se aproximado por acaso: “Tive de perguntar o significado de algumas palavras, porque eu não sabia o que queriam dizer e não entendia a frase inteira. Eles já falam uma língua diferente da nossa”. Entende-se por “nossa” a língua do grupo de referência dos que têm dezoito anos. “Eles ‘se amassam’ já no ginásio, enquanto para nós fumar um ‘baseado’ ou a primeira trepada era a ‘idéia fixa’ da sétima ou oitava, do primeiro colegial…” Tentativa árdua, mas significativa, de conter e modular o fluxo daquelas transformações tão aceleradas, que denunciam o estado de potencial não-inteligibilidade de significados “intrageracionais” que nascem já “despedaçados”, difusos, “em frangalhos”. Tentativa, do meu paciente, de “sair disso” e refletir, assumindo quase uma posição “parental”: são evidentes nas suas palavras os sinais de um juízo superegóico, que de qualquer forma institui, dolorosamente (“o sentimento de espanto”), uma condição de separação.

Aos “objetos culturais” que povoam o que Winnicott descreveu como área intermediária entre o individual e o social, entre mundo interno e mundo externo– presentes em cada fase da vida e que constituem não uma função acessória para o desenvolvimento psíquico, mas um ponto de virada fundamental, uma síntese do criado-encontrado (Winnicott) que assegura a osmose de duplo sentido entre externo e interno, fornecendo ao indivíduo a possibilidade de “sustentá-lo”–, estamos acostumados a atribuir, como psicanalistas, estabilidade, coesão e durabilidade relativas, que garantem certa estabilidade dos limites do self, ou, se preferirmos, do sentido de subjetividade, na medida em que tem condições, pela sua função, de transformar incessantemente o self, ampliando experiencialmente os confins (Bollas, 1992/1995).

Um pouco como o sonho, que toma emprestado do mundo exterior o material, isto é, os restos diurnos das experiências para “se construir” e “decorar” o espaço dentro do qual o próprio sonho pode acontecer, assim o indivíduo cria o ambiente em que vive (“o lugar no qual vivemos” e a “sede da experiência cultural”, escreve Winnicott, 1971/1974) com os objetos que encontra fora de si, mas que tem a ilusão de criar. Winnicott (p. 171) escreve:

Ao fazer uso da palavra cultura, penso na tradição que herdamos. Penso em algo que é parte do patrimônio comum da humanidade, para o qual os indivíduos e os grupos podem contribuir e do qual nós todos podemos usufruir, se tivermos um lugar para colocar o que encontramos.

Mas podemos legitimamente nos perguntar se não é possível caracterizar o mal-estar do mundo contemporâneo como a dificuldade de construir este lugar no qual colocar o que encontramos.

 

III.

Poderíamos dizer que, desse ponto de vista, a psicopatologia predominante, a fonte de maior sofrimento que leva os pacientes para a análise, pode ser reconduzida a esse “esgarçamento”, a essa “laceração”, mais ou menos extensa, desse tecido transicional entre o externo e o interno. Na visão, por assim dizer, “pós-moderna” de Winnicott sobre a relação entre indivíduo e ambiente– mais avançada e dinâmica que a da “contradição dialética” inerente, prospectada por Freud em O mal-estar na civilização: “a psicoterapia tem o objetivo de conduzir o paciente de um estado em que não é capaz de brincar a um estado em que é capaz de brincar”. Com certeza, Winnicott intuiu, mas também prefigurou, quanto essa área intermédia está ameaçada, quanto está se reduzindo ou quanto os objetos transicionais “culturais” podem se tornar objetos-fetiche.

Na passagem de um tipo de aculturação ligada sobretudo ao âmbito familiar e à cultura escrita, para uma aculturação baseada nos meios audiovisuais (Ahumada, 1997/2004)– que “iludem” mostrar a realidade, porém de fato só “aludem” a ela, deixando para um “pensamento despreparado” a tarefa árdua de estabelecer aqueles nexos que parecem estar presentes neles de forma implícita, mas não estão por definição– e aos objetos culturais seria exigida ainda mais aquela função de mediação entre “interno” e “externo”, que parecem, no entanto, não ter mais condições de realizar.

O interno e o externo migram sem limite um no outro, o espaço transicional tende a se tornar uma tênue película de contenção e divisão. O ruir das Torres Gêmeas é o ruir do self. O ruir do selfé, concretamente, o ruir das Torres Gêmeas. A sensação de se sentir “acabado” depois da festa rave é uma só com a sensação de buscar aquela condição durante a rave.

“A psique é extensa, disso não sabe nada.” Esta frase enigmática de Freud (1938/1979), escrita em forma de anotações incompletas, uma de suas últimas linhas, poucos dias antes da sua morte– e naturalmente passível de ser interpretada em uma multiplicidade de significados–, parece-me que prefigura de forma eficaz e inquietante aquela difusão da identidade, aquele seu “caminhar errante” em lugar chato, acima de tudo bidimensional. “Um pedaço de psique”– e ainda mais consistente– do meu paciente adolescente está no sentir-se acabado na rave; um outro está, ocasionalmente, na sessão; outro naquele se sentir “sempre chapado”,mas “sem muito esforço”, na contínua sensação “auto-sensual” (Tustin, 1981/1983) provocada pelos numerosos piercings espalhados em várias partes do corpo, incluído o prepúcio, como ele mesmo me conta.

Mas, se na árdua passagem geracional que a adolescência realiza como processo, a “transmissão” estava garantida por uma ainda que instável e mutante continuidade de significados compartilhados, significados a serem abatidos, destruídos e mortos, para elaborar, todavia, a destruição; se era garantida por aquele ponto de virada essencial constituído pela cultura, pelas experiências culturais, já delineada por Freud no Mal-estar como ponto de chegada de uma elaboração iniciada com Totem e tabu e que passa (a meu ver) pelo mais significativo tema tratado em Psicopatologia das massas; será que ainda podemos nos “satisfazer”– para parafrasear o próprio Freud– com a definição de que a “civilização [Kultur] designa a soma das realizações e dos ordenamentos que diferenciam a nossa vida daquela dos nossos progenitores animais e que servem a dois objetivos: proteger a humanidade contra a natureza e regular as relações dos homens entre si”?

Se o século XX foi definido como “o século breve” (Hobsbawm, 1994/1997), pela multiplicidade incessante de acontecimentos e transformações históricas, sociais, culturais e tecnológicas que se verificaram, as últimas décadas foram brevíssimas, e os primeiros anos do novo século, fulminantes. Tão acelerados que, exatamente como meu paciente de 18 anos, nós os sentimos como bastante ininteligíveis. Nossas categorias de pensamento para ordenar a realidade estão sem fôlego, estão “no af㔠de tentar correr atrás dela. A cultura “pós-moderna”, da qual todos fazemos parte, reflete essa situação num duplo sentido: descreve e documenta o ocaso das ideologias, a crise das certezas, a concorrência de verdades diversas porém “compatíveis” entre si, mas se ressente, intrínseca e consubstancialmente, daquele mesmo estado fragmentário e fugidio que tenta descrever.

De forma surpreendentemente intuitiva dos desenvolvimentos futuros, Freud nota, no Mal-estar, que “nas últimas gerações a humanidade realizou progressos extraordinários nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de um modo jamais imaginado”. “Profeticamente”, Freud descreve aquele “gozo barato” que caracteriza a idade atual. Para ficar apenas no âmbito da tecnologia, o quanto era imaginável para Freud aquele jamais imaginado também inimaginável para nós apenas duas décadas atrás, diante da “prótese” constituída pelo personal computer,cujos primeiros exemplares dos anos 1980 já constituem peças de antiquário?

Para o psicanalista dentro da sala de análise– na medida em que esse é o lugar inevitável, única fonte de dados sobre os quais deveríamos ser chamados a falar na nossa função de cuidar do sofrimento psíquico– o mal-estar da cultura de que ele mesmo faz parte é também o mal-estar pela inadequação dos próprios instrumentos de pensamento, pelas próprias categorias de compreensão diante do que Kristeva, com uma expressão largamente difundida, definiu como “novas doenças da alma”.

O mal-estar de que falou Freud tornou-se ele mesmo uma doença, como observa A. Green (1993); está em discussão a idéia de civilização em cuja base temos vivido. O otimismo inicial da psicanálise sobre suas possibilidades de influir sobre a cultura está naquela confiança no “projeto civilizador”, que hoje não podemos mais lhe atribuir. A “crise” do “projeto civilizador” de que nos fala Green associa-se àquela “crise da subjetividade” que, em termos de diferentes configurações clínicas– as quais, ainda assim, devem ser reconhecidas em sua especificidade–, constitui hoje o denominador comum na base do “pedido de análise”.

O fato de o social incidir sobre a psicopatologia não é novidade para a psicanálise. Todavia, como observa Ahumada (1997/2004), a passagem, na sociedade global, de uma cultura da escrita para uma cultura fundada no virtual é fundamental, “porque representa talvez a mais chocante das experiências a que foi submetida a humanidade, em escala mundial”. A possibilidade de habitar neo-realidades substitutivas e assimilar-se a elas– sublinha J. Ahumada– enfatiza e dilata aquelas defesas miméticas do indivíduo na sociedade, intuídas por Gaddini em seu artigo pioneiro e antecipador de 1984, “Como e se mudaram nossos pacientes até nossos dias”.

São bastante sutis e enganosas as interações entre a problemática psicológica e social que caracteriza a nossa época e o pós-modernismo, no momento em que ele parece ter a função de “coro grego”– é sempre Ahumada quem o diz–, que “acompanha e canta os acontecimentos sem modificar seu curso de forma significativa”. Os psicanalistas, ao contrário, não devem se privar da “oportunidade privilegiada oferecida por nossa atividade clínica de se ocupar do significado, em muitos aspectos recôndito e inquietante, das mudanças socioculturais a que assistimos e das conseqüentes mudanças na psicopatologia”. Oportunidade que nos é oferecida por nossa atividade clínica, por nosso método e pela responsabilidade que daí deriva para nós.

Gostaria de concluir com tarefas futuras e instrumentos para enfrentá-las, retomando uma temática de que tratei no início desta conferência internacional e que tentei desenvolver ao longo de minhas intervenções: o deslocamento do interesse da psicanálise contemporânea e da clínica psicanalítica do puramente “intrapsíquico” para o intersubjetivo, isto é, para o que ocorre entre duas pessoas envolvidas na relação clínica. A mudança de focus do objeto conhecido para o objeto que conhece (Bordi, 1996, 2005) pôs em primeiro plano o analista como pessoa, a dimensão dialógica da relação terapêutica e a potencialidade transformadora para o indivíduo que dela participa e a distingue. A idéia de pessoa como referência organizadora, em contraste com a dispersão atual do sujeito, é uma noção tipicamente sintética e dinâmica com nos medirmos e na qual podemos nos ancorar conceitual e emocionalmente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Vincenzo Bonaminio
Società Psicoanalitica Italiana
Via Nomentana, 256
00162– Roma– Italia
E-mail: vibonam@tin.it

Recebido em 24.6.2007
Aceito em 28.8.2007

 

 

1 Apresentado na I Conferência Internacional de Clínica Psicanalítica, Rio de Janeiro, Brasil, 23-25 de novembro 2006. Tradução: Marta Petricciani (membro efetivo da SBPSP), com RBP.
2 Analista didata e supervisor, membro efetivo da Società Psicoanalitica Italiana SPI; professor adjunto da Sapienza Università di Roma.
3 Como observa F. Petrella (2005), “os imperativos da modernidade mais recente – ‘produzir’, ‘competir’ e ‘consumir’ – contrastam ou até se chocam com a exigência de compreender, fantasiar e brincar, isto é, com os ingredientes fundamentais da psicanálise, com o tempo e os espaços que ela exige”.

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