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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.3 São Paulo set. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Haroldo Pedreira*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

Uma visão da evolução clínica kleiniana: da antropologia à psicanálise. Elizabeth Bott Spillius. Rio de Janeiro: Imago, 2007, 365 p.

Além da qualidade teórica e técnica da comunicação de um autor, também são muito importantes a clareza e a simplicidade do seu texto. Elizabeth Bott Spillius figura entre os três melhores explicadores de psicanálise kleiniana que conheço. Ela se esmera em transmitir pensamentos próprios e alheios, tornando os fenômenos e os conceitos teóricos mais compreensíveis para o leitor comum.

Assim, considere-se a seguinte preciosidade, extraída por ela do Dicionário do pensamento kleiniano, de Hinshelwood:

A fantasia inconsciente é uma crença na atividade de objetos “internos”, sentidos concretamente. É um conceito difícil de compreender. Uma sensação somática arrasta consigo uma experiência mental, interpretada como uma relação com um objeto que quer provocar essa sensação, e que é amado ou odiado pelo sujeito de acordo com suas intenções, boas ou más (i.e., uma sensação agradável ou desagradável). Assim, uma sensação desagradável é representada, mentalmente, como a relação com um objeto “mau”, que tem a intenção de ferir e de danificar o sujeito. No sentido oposto, quando o bebê é alimentado, ele tem a vivência de um objeto, que nós podemos identificar como a mãe ou seu leite, mas que o bebê identifica como um objeto dentro da barriga com motivação benevolente de ali proporcionar sensações agradáveis (1989, p. 34-35) (itálicos meus).

As explicações dessa mesma situação geralmente transmitem uma operação no adulto semelhante à do bebê, ou seja, uma operação em que primeiro a sensação é sentida, para depois, num segundo momento, ser atribuída a um objeto que a estaria criando. A novidade dessa maneira de descrever é que a sensação é direta e primariamente associada ao objeto, quase como se a sensação e o objeto concebido por meio dela fossem uma só coisa. A reação do bebê ao acontecimento não seria, então, a percepção de uma dor ou satisfação atribuída à ação de um objeto mau – ou bom –, mas sim a percepção direta e imediata de um objeto dentro do corpo, ele próprio indissociável da dor ou da satisfação. O que o bebê experimenta é diretamente a “natureza” do objeto, como no caso da anedota do sapo e do escorpião.

Na Introdução, Elias da Rocha Barros destaca, a respeito de Elizabeth Spillius:

• A extrema humanidade no modo de considerar as pessoas, sejam pacientes, colegas de seu grupo ou de grupos concorrentes.

• A abordagem aberta, guiada pelo desejo de compreender o pensamento de cada autor em seu contexto de pensamento e de trabalho, ou seja, uma abordagem ao mesmo tempo histórica e estrutural, o que proporciona liberdade de escolha conceitual ao leitor, colega ou aluno.

• Na clínica, sua humanidade, também herança dos tempos de antropóloga, torna peculiar a sua escuta. Ela não perde de vista a história pessoal do paciente, sempre presente no contexto de cada sessão. Isso não quer dizer que a história esteja concretamente presente na interpretação, nem que Spillius creia que a interpretação histórica se baseie numa reconstrução de algo que de fato aconteceu.

• A interpretação do infantil sem infantilizar o paciente.

• A atitude humilde e reflexiva com relação ao impacto da cultura e dos papéis requeridos da pessoa em seu contexto cultural.

• Por seus trabalhos sobre teoria e técnica, é uma historiadora indispensável à compreensão do alcance das idéias kleinianas, tanto quanto Petot.

O livro contém três blocos de artigos. O primeiro descreve o percurso da autora, já antropóloga reconhecida, em direção à psicanálise até se tornar analista da Sociedade Britânica. Somos informados sobre sua história pessoal e profissional e sobre sua personalidade. Também há um estudo antropológico e psicanalítico sobre manicômios e sobre a relação da sociedade com esses estabelecimentos.

No segundo bloco, há dois artigos preciosos: um sobre o desenvolvimento do pensamento kleiniano até 1994 e outro sobre o desenvolvimento da técnica kleiniana até os dias de hoje (este publicado pela primeira vez no Brasil). São abordados, em artigos específicos: o conceito de fantasia em Freud e em Klein (comparativamente); a alteridade do outro; a diferença entre compreender e ser compreendido, abordando diferenças entre psicanálise e psicoterapia. Há uma resenha crítica do Dicionário de Hinshelwood e também um artigo muitíssimo interessante sobre as anotações e os pensamentos não publicados de Melanie Klein, revelando aspectos pouco conhecidos de sua pessoa e sua técnica, que Spillius comentados fartamente.

O terceiro bloco se dedica à prática psicanalítica. Contém o nosso conhecido “Investigando fatos clínicos”, além de artigos sobre tipos de experiência invejosa, travestismo em análise (inédito), experiências clínicas de identificação projetiva e reação terapêutica negativa.

Considero imperdíveis os seguintes artigos: “Desenvolvimento do pensamento kleiniano: revisão e visão pessoal”; “Desenvolvimento da técnica kleiniana”; “Melanie Klein revisitada: seus pensamentos sobre técnica não publicados”; “O conceito de fantasia em Freud e Klein”; “A alteridade do outro”; “Tipos de experiência invejosa”; “Experiências clínicas de identificação projetiva”.

Elizabeth Bott Spillius é uma autora de renome internacional e já esteve diversas vezes no Brasil, dando palestras e seminários clínicos. Foi durante muitos anos editora da Coleção Nova Biblioteca de Psicanálise, do Instituto de Psicanálise de Londres, publicada no Brasil pela Imago.

Não tão importante quanto o que foi já dito, mas também importante: Spillius é uma mulher bonita e muito bem-humorada, qualidades que de certo modo também estão presentes nesta obra.

 

 

* Membro efetivo e professor assistente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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