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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.4 São Paulo dez. 2007

 

DIÁLOGO

 

O psicanalista e a natureza (humana): comentário à entrevista de Paulo Nogueira-Neto

 

El psicoanalista y la naturaleza (humana): comentario a la entrevista de Paulo Nogueira-Neto

 

The psychoanalyst and (human) nature: comment to Paulo Nogueira-Neto’s interview

 

 

Maria Bernadete Amêndola Contart de Assis*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A entrevista de Paulo Nogueira Neto suscitou na autora algumas associações: a natureza como fonte de figurações para continência da experiência humana; a arrogância do homem quando cria ilusões de poder e domínio sobre a natureza; a preservação/devastação no âmbito do funcionamento mental; a diversidade e simultaneidade de fatores atuantes na constituição de uma resultante, presentes nos estudos do meio ambiente e também nos estudos sobre a mente e as relações humanas.

Palavras-chave: Continência; Representação; Preservação/devastação mental; Arrogância; simultaneidade/linearidade.


RESUMEN

La entrevista de Paulo Nogueira-Neto provocó en la autora algunas asociaciones: la naturaleza como fuente de figuraciones para contener la experiencia humana; la arrogancia del hombre cuando crea ilusiones de poder y dominio sobre la naturaleza; la preservación/devastación en el ámbito del funcionamiento mental; la diversidad y simultaneidad de factores actuantes en la constitución de una resultante, presentes en los estudios del medio ambiente y también en los estudios sobre la mente y las relaciones humanas.

Palabras claves: Continencia; Representación; Preservación/devastación mental; Arrogancia; simultaneidad/linealidad.


ABSTRACT

Paulo Nogueira-Neto’s interview has aroused in the author some connections: nature as a source of figurations to contain human experience; man’s arrogance in creating an illusion of power and control over nature; preservation/devastation within the framework of mental functioning, diversity and simultaneity of factors leading to a resultant, which are present in studies of the environment and also on the human mind and human relations.

Keywords: Containment; Representation; Mental preservation/devastation; Arrogance; Simultaneity/linearity.


 

 

Natureza como fonte de figurações

O tema sobre o meio ambiente e os cuidados com a natureza levou-me inicialmente ao mundo da literatura. A entrevista com Paulo Nogueira-Neto inspirou-me a pensar em Guimarães Rosa, o autor cujo olhar para o sertão e suas veredas, para o mato do Mutum com olhos de Miguilim, para o rio e sua terceira margem é um olhar para a natureza humana, é uma forma de dizê-la.

Há um trecho da entrevista, logo no início, em que Paulo Nogueira-Neto fala do sobrevôo no Pontal do Paranapanema, quando “ele era uma floresta única, pertencente ao estado, a terra estava inteiramente coberta de florestas, inteiramente! Era uma maravilha!” Esse trecho me fez lembrar do Menino que aparece na primeira e na última estória de Primeiras estórias, de Rosa (1962/1988). Trata-se de um menino que viaja com os tios “para o lugar onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade”.

Nesse lugar o Menino contempla a natureza e as máquinas, os animais e os homens, e começa a pensar a vida e a morte a partir dessa experiência. Há a experiência da derrubada das árvores para a construção da morada dos homens; a morte do peru, para uma festa; o vôo do tucano ao amanhecer e ao entardecer. A contemplação da natureza oferecia ao Menino oportunidade de conhecimento do movimento da vida, da ameaça de morte, do ir-e-vir, da efemeridade, despertando-lhe emoções e, ao mesmo tempo, oferecendo continentes para pensá-las. Intrincada relação entre o contemplar, o sentir e o pensar. “Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica”, diz Guimarães Rosa sobre o Menino.

A morte da árvore:

Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto – transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as betumadoras. E como haviam cortado lá o mato? – a Tia perguntou. Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma lâmina espessa, feito limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca. A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara… e foi só o chofre: ruh… sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda. Trapeara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento – o inaudito choque – o pulso da pancada. O Menino fez ascas. Olhou o céu – atônito azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. A limpa esguiez do tronco e o marulho imediato e final de seus ramos – da parte de nada. Guardou dentro da pedra.

A morte do peru:

Saiu, sôfrego de o rever. Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E – onde? Só umas penas, restos, no chão. – “Ué, se matou. Amanhã não é dia-de-anos do doutor?” Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru – aquele. O peru – seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morte. Já o buscavam: – “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago…”

Na última estória, o Menino está às voltas com angústias associadas à doença da mãe. A contemplação do vôo do tucano dá continência para o medo da morte e a esperança da vida.

O vôo do tucano:

A tornada do pássaro era emoção enviada, impressão sensível, um transbordamento do coração. O Menino o guardava, no fugidir, de memória, em feliz vôo, no ar sonoro, até à tarde. O de que podia se servir para consolar-se com, e desdolorir-se, por escapar do aperto de rigor – daqueles dias quadriculados.

A entrevista de Paulo Nogueira-Neto me levou ao Menino de Guimarães Rosa, que, por sua vez, me oferece palavras para pensar e dizer a natureza como continente, como provedora de imagens com que podemos figurar experiências emocionais profundas.

Em sessões de análise, muitas vezes os modelos da natureza se apresentam em sonhos de vigília, em livres associações, para falarmos as paixões presentes no campo analítico. Os vulcões que cospem lavas, os tsunamis que devastam comunidades inteiras, os terremotos em que forças provenientes das profundezas manifestam-se na superfície, todas essas são imagens que percorrem as sessões de análise, como continentes para a violência das paixões que se apresentam. Analista e paciente também falam de flores. A generosidade, a amizade, o amor, a delicadeza dos sentimentos encontram suas figurações na contemplação da natureza. Um vaso de orquídeas na sala de espera foi mote de muitas conversas sobre vigor, beleza, florescimento, cuidados, descuidos, perda de viço, recuperação… Os pacientes, em sua poiesis, à semelhança de Rosa, construíam textos que diziam as emoções do encontro. Tomavam como modelo a vida/morte da orquídea que, generosamente, lhes oferecia continência.

Anos atrás, houve um grande blecaute que atingiu alguns estados brasileiros. Uma paciente me disse, no dia seguinte a essa experiência, que durante o blecaute ficou preocupada com seus filhos, dois adultos jovens, que na época estavam morando em outra cidade. Como estariam enfrentando a escuridão e a falta de todos os instrumentos elétrico-eletrônicos com que estavam acostumados? Um deles, que ela definia como “o filho da alta tecnologia”, provavelmente estaria “perdido” sem seus recursos tecnológicos. Já o outro, que “adora o mato”, “vive em acampamentos à beira do rio e no meio da floresta”, esse certamente estaria mais à vontade na escuridão. Interessante associação! No contexto analítico, em que o mundo interno é o foco, pode-se pensar nessa fala da paciente como uma referência ao provimento de representações, oferecido pelo contato direto com a natureza, que instrumentaliza o ego para o enfrentamento da escuridão, compreendida como não-representação.

Botella e Botella (2002) referem-se ao estado de desamparo como aquele em que não há possibilidade de representação: “De fato, segundo nossa hipótese, não é a perda do objeto, mas o perigo da perda de sua representação e, por extensão, o risco de não-representação, que marca o desamparo” (p. 27). A paciente/mãe refere-se ao amparo proporcionado pela intimidade com a natureza provavelmente como referência à possibilidade da dupla analítica de renunciar aos artifícios tecnológicos e poder estar, juntas, em contato com sua/minha “natureza”, o que gera condições de lidar com a escuridão.

 

Carne e espírito: a dualidade do humano

Uma outra associação com a literatura que fiz durante a leitura da entrevista de Paulo Nogueira-Neto foi com Lavoura arcaica, de Raduan Nassar (1975/1989). O texto é belíssimo, um relato lírico da relação do homem com a terra e consigo mesmo. A dualidade “força da carne”/“força do espírito” é poeticamente tematizada. Foi por essa vertente que me lembrei do livro. Fiquei pensando na onipotência e arrogância do homem quando cria ilusões de poder e domínio sobre a natureza.

Há no texto o relato de uma fábula, a fábula do faminto, que é contada pelo pai diante dos filhos, como forma de apologia à força do espírito, que pode dominar as necessidades da carne. Na fábula, um nobre ancião recebe um homem faminto e lhe oferece comida de uma forma encenada, na qual o pão, o vinho e os doces são “apresentados” com gesticulações e “provados” apenas com mímicas. O faminto, de início, fica desconcertado diante da comida imaginada e não real. Depois passa a compartilhar da encenação e faz de conta que saboreia todas as iguarias que lhe são “ofertadas”. Ao final, o ancião anuncia que encontrara, finalmente,

um homem que tem o espírito forte, o caráter firme, e que, sobretudo, revelou possuir a maior das virtudes de que um homem é capaz: a paciência. Por tuas qualidades raras, passas doravante a morar nesta casa tão grande e tão despojada de habitantes, e está certo de que alimento não te há de faltar à mesa.

O filho, personagem que contesta os “ensinamentos” do pai, fala das necessidades do corpo, da pulsionalidade que o habita e o caracteriza, exigindo ser considerada, antes que negada; fala da impaciência como tendo seu lugar entre as virtudes. O filho denuncia a arrogância do discurso paterno, que pretende estar acima das exigências do corpo.

A pulsão, localizada na fronteira entre corpo e mente nos remete à questão da natureza humana, a um só tempo carne e espírito. Green (1990) diz isso com as seguintes palavras:

Com a excitação endossomática, alguma coisa parte da esfera somática e vem de encontro à barreira somatopsíquica e penetra no psiquismo, onde encontra excitações que chegam do psíquico: é a pulsão. É aí que se acha a pulsão. É aí que ela aparece como conceito-limite entre o psíquico e o somático; é aí que ela aparece como representante psíquico das excitações que nascem no interior do corpo e chegam ao psíquico; é aí que ela aparece como medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em face de seu vínculo com o corporal (p. 41).

A pulsionalidade, que demanda trabalho mental e que constantemente coloca o aparelho mental em movimento, apresenta-se como elemento constituinte, impossível de ser desconsiderado. Uma entrevista com um ambientalista nos faz lembrar dos riscos de desconsiderarmos fatores elementares, constituintes da vida.

Cuidar da mente humana, ofício do psicanalista, passa pela “preservação” dessa natureza dual, com todas as complexidades presentes nessa lida com um corpo que demanda representação e de representações que demandam realizações.

 

Preservação e devastação

Nos encontros com os pacientes, o psicanalista está em contato permanente com o embate vida e morte, que se apresenta nas mais diversas formas de vitalização e destruição. Não são estranhos ao psicanalista os riscos de desertificação da mente, quando áreas imensas são ocultadas, negadas e destruídas, impedindo pensamento (Bion, 1965/2004). A condição de sonhar por vezes está tão danificada, que o trabalho analítico se apresenta como reconstrução. De outras vezes, tem-se estados mentais em que o vazio predomina. Não é vazio provocado por destruição, é vazio de não-existência, espaços mentais nunca ocupados, não vitalizados. Lembra o que Paulo Nogueira-Neto fala sobre desertos que precedem florestas.

Os estudos dos geógrafos e geólogos ingleses e franceses que trabalharam na África, pesquisando muito bem os climas que existiram ali no passado, mostram que há 50 mil, 60 mil anos atrás, no Congo Belga, atual República do Congo, no lugar onde existem florestas equivalentes à Amazônia, já existiu o deserto de Kalahari, que é um dos maiores desertos do mundo. Esse deserto migrou para o sul da África quando o clima mudou. São mudanças climáticas profundas, gerais, que desencadeiam mudanças locais.

Também estamos acostumados a desertos que se transformam em florestas ou florestas inteiras que se desertificam. Desertos mentais que migram em função de mudanças “climáticas” nas relações intra e interpessoais. Movimentação do que parece estático. Rigidificação do que é dinâmico. Tudo isso é familiar à psicanálise. No ambiente externo ou no ambiente interno, a ameaça à vida é constante e a luta para preservá-la, permanente.

 

Simultaneidade e linearidade

Um outro conjunto de associações que me vieram com a entrevista foi o da simultaneidade da ação de diferentes fatores numa rede complexa de relações. Em vários momentos da entrevista, somos levados a pensar sobre a complexidade de fatores envolvidos na produção de determinada resultante. As mudanças climáticas que interferem nas condições de solo, que influenciam a produção de alimentos, que está intimamente ligada à explosão demográfica, que provoca utilização abusiva de recursos naturais… Enfim, a rede de influências é complexa o suficiente para que as noções de causa/efeito e linearidade se tornem absolutamente inapropriadas.

Também com esse tema os psicanalistas têm familiaridade. Os processos mentais não conhecem linearidade, não se submetem a leis de causa/efeito; ao contrário, combinam com simultaneidade, com complexidade de diferentes fatores que se comunicam em contínuas e recíprocas interferências. Em Memória do futuro, Bion (1991/1996) apresenta de forma desconcertante e inquietante a simultaneidade da ordem e da desordem, do sofisticado e do bruto, do primitivo e do civilizado nos estados mentais do homem. O olhar do psicanalista, que se dirige “para dentro”, demanda ampliação de visão em direção a fatores atuantes, ainda que ignorados. Trata-se de uma questão de método em que se considera, na investigação e na análise, a ação do desconhecido e do imprevisível.

Quando os fatores que compõem/caracterizam um determinado objeto de estudo são vivos, dinâmicos, móveis, por vezes voláteis, evanescentes, o método mais rigoroso de investigação é o que acompanha essa complexidade e essa movimentação constante. Lembro-me da passagem da entrevista em que Paulo Nogueira-Neto se refere a um tempo em que os ambientalistas consideravam os problemas sociais como pertencentes a “outro departamento”; repensaram essa posição ao conhecer a íntima relação entre erradicação da miséria e preservação do meio ambiente.

A movimentação do profissional é permanente quando seu objeto de estudo é vivo. Penso que esse é um ponto de contato interessante entre ambientalistas e psicanalistas: o trabalho com matéria viva, multidimensional, que se movimenta constantemente, exigindo igual capacidade de movimentação do profissional, aberto continuamente a mudanças.

 

Referências

Bion, W. R. (1996) Uma memória do futuro: O sonho. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1991.)        [ Links ]

______ (2004) Transformações: Do aprendizado ao crescimento, Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965.)

Botella, C. & Botella, S. (2002) Irrepresentável: Mais além da representação. Porto Alegre: Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul/Criação Humana.

Green, A. (1990) Conferências brasileiras: Metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago.

Nassar, R. (1989) Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1975.)

Rosa, J. Guimarães (1988) Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1962.)

 

 

Endereço para correspondência
Maria Bernadete Amêndola Contart de Assis
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua Prof. Alonso Ferraz, 717 – Alto da Boa Vista
14025-530 – Ribeirão Preto SP – Brasil
Tel.: +55 16 3911-1297
E-mail: beta@convex.com.br

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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