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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.42 n.3 São Paulo set. 2008

 

RESENHAS

 

 

Resenha: Munira Aiex Proença*

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro

 

 

Corpo e subjetividade na medicina

Liana Albernaz de Melo Bastos

Rio de Janeiro: ufrj, 2006, 210 p.

 

Impasses e paradoxos

O tema do livro de Liana Albernaz de Melo Bastos, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), é a crise da medicina ocidental contemporânea, expressa nas aflições que a prática clínica produz em estudantes, médicos e pacientes. No desenvolver do trabalho, tomamos contato com sua experiência docente na cadeira de psicologia médica da Faculdade de Medicina da ufrj, entremeada à graduação médica e à especialização psiquiátrica, bem à sua formação e prática clínica psicanalíticas. O vértice da reflexão proposto pela autora emergiu da escuta desse sofrimento e do desejo de cuidar, como fazem os psicanalistas, dando voz ao não dito, trazendo à cena o que é expurgado e marginalizado sobre aquela prática.

Orientados pela objetividade requerida pela ciência e pelas testemunhas silenciosas da subjetividade inerente à prática clínica, os integrantes da cena assistencial se debatem diante da polaridade estabelecida entre o saber médico, abstrato e epidemiológico, e o sofrer singular do paciente. Disso não se fala, ou mais, é melhor que não se fale… E isso retorna sob a forma de um mal-estar nos pacientes, que se queixam da desumanização do atendimento médico e, nos profissionais, da baixa adesão aos protocolos de tratamento preconizados. O poderoso discurso médico perde sua eficácia e sofre solução de continuidade ao se aplicar à experiência clínica.

Por reconhecer a complexidade da questão que elegeu como seu objeto, a autora busca, nos campos de saber que circunscrevem a Medicina enquanto prática clínica, a perspectiva multidisciplinar do texto. No primeiro capítulo, a racionalidade científica moderna e a biomedicina, com seu desdobramento no campo médico, nos é trazida na trilha dos autores identificados com a epistemologia histórica. Ao acompanharmos suas ponderações, torna-se perceptível como a tensão entre o saber médico e a prática clínica passa a ser identificada como oposição eficácia/humanismo.

Fleck, Canguilhem, Stengers, Prigogine, Latour, Souza Santos, Morin, Castoriadis nos conduzem até nossos dias, quando a medicina baseada em evidência movimento que se propôs como crítico ao modo de pensar dominante na medicina acabou por se impor como verdade científica.

A escola médica, como as instituições sociais do mundo ocidental contemporâneo, estruturou-se dentro da mesma racionalidade e se dedica a preparar os futuros profissionais para reproduzi-la em sua prática clínica com pacientes e familiares e no desenvolvimento do saber médico. Na metodologia do trabalho educacional, a prática clínica é equiparada a um momento da pesquisa científica, e seu objeto (a doença) deve ser tratado com a neutralidade exigida ao pesquisador pela racionalidade científica moderna. Assim, o processo de aquisição da identidade profissional se faz como uma formatação que busca controlar, para efeitos de uma sistematização pretendida, as variáveis contingentes.

O aluno deve aprender a ser preciso, objetivo no que pergunta, ouve, vê ou relata. E o paciente também é convidado a sê-lo. Engendradas pelo modo de pensar o mundo e a ciência adotada pela medicina ocidental contemporânea, as práticas semiológicas e semiotécnicas são demonstradas, na maior parte do tempo, como desvinculadas do contexto histórico-social do paciente, além de desconsiderar seu universo psicológico.

Ao nos convidar a revisitar suas experiências como professora de medicina, tema do segundo capítulo, a autora introduz a compreensão psicanalítica dessa realidade. Aponta como o Freud dos primeiros anos estava mergulhado na racionalidade científica moderna, preconizando que o psicanalista se comportasse com a frieza de um cirurgião. Mas os relatos de seus pacientes mostram um Freud empático. Fala-nos das contribuições dos analistas kleinianos e neokleinianos sobre a prática clínica e a questão substantiva da transferência que vem sendo repensada no tocante à oposição objetividade/subjetividade. Afirma que a transferência é própria do campo intersubjetivo e está presente em todas as práticas clínicas, incluindo a médica, sublinhando as angústias diante do sofrimento e da morte, inevitáveis no cotidiano assistencial. Por serem altamente contagiosas para todos, ao evocarem nosso desamparo, medidas defensivas se impõem, abrindo espaço para a onipotência, defesa pela desafetação e sujeição simbólica. Mas não há ciência que possa dar conta do sofrimento de todos os envolvidos.

O terceiro capítulo foi dedicado à construção do conceito sujeito-corpo, considerado capital para o exercício de qualquer das modalidades da prática clínica. A autora acompanha historicamente a construção freudiana da experiência analítica, trazendo à cena a intersubjetividade e a intra-subjetividade, bem como as teorias pulsionais. Demonstra o empenho de Freud para superar a oposição corpo/alma, uma vez que psiquismo e corpo são apenas duas formas de apresentação do humano.

Em suas considerações finais, Liana Albernaz de Melo Bastos, seguindo Latour, reconhece como grande desafio para a medicina ocidental contemporânea a assunção da prática clínica como possibilidade de se trabalhar com o paradoxo do corpo-maquínico e do corpo-sujeito dentro de uma teoria da complexidade. Esse entendimento abre o caminho para a maior eficácia, garantindo um convívio humano e ético entre médicos e pacientes.

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ.

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