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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Sobre a contemplação reflexiva estética na sessão psicanalítica

 

En la contemplación estética del reflexiva en la sesión del psicanalítica

 

On the aesthetic reflexiva contemplation in the psicanalítica session

 

 

Anna Luiza Kauffmann1

Membro aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora traça alguns paralelos entre os conceitos de estética de Donald Meltzer com aqueles de Wilfred Bion e Immanuel Kant, tentando compreender mais sobre as origens do pensamento intuitivo e sua importância na teoria e na prática da psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise; Estético; Belo; Sublime; Meltzer; Kant; Bion.


RESUMEN

La autora esboza algunos paralelos entre los conceptos estéticos de Donald Metzer con los de W. Bion y los de I. Kant, tratando entender más sobre los orígenes del pensamiento intuitivo y su importancia en la teoría y la practica del psicoanálisis.

Palabras clave: Psicoanálisis; Estética; Bello; Sublime; Meltzer; Kant; Bion.


ABSTRACT

The author outlines some parallels between the aesthetic concepts of Donald Meltzer with the ones of Wilfred Bion and Immanuel. Kant, trying to understand more about the origins of intuitive thinking and its importance in the theory and practice of psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis; Aesthetic; Beautiful; Sublime; Meltzer; Kant; Bion.


 

 

Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a
ouvir os sentimentos que meu sangue murmura em mim.

Hermann Hesse

 

Introdução

É das paixões humanas que se ocupa essencialmente a psicanálise. Do que se situa entre os sentidos e a razão. Bion (1970/1991) lembra que, na análise, para lidar com o medo, o amor, a ansiedade, é preciso que não fiquemos enclausurados no sensível ou no saber, mas que nos deixemos envolver pela ‘realidade última’ da experiência emocional da sessão, a fim de apreendê-la através dos sedimentos que em nós brotam espontaneamente. Tal preocupação, com o subjetivo, em especial o intersubjetivo, tem aproximado a psicanálise e a estética. É sobre a intimidade deste vínculo que busco falar neste trabalho, baseando-me, fundamentalmente, nos estudos de Meltzer, Bion e Kant.

Empregado pela primeira vez por Baumgarten em 1750, o termo Estética se refere à ciência ou a teoria do Belo, tendo sua origem no substantivo grego Aísthesis, que designa a ação genérica de sentir. Cabe à estética o estudo dos princípios inerentes aos objetos estéticos: o Belo e o Sublime. Quando em 1790 escreve Crítica da faculdade do juízo, Kant se utiliza do método crítico, baseando sua análise do belo e do sublime na compreensão do que ele denominou juízo estético ou juízo de gosto. Define “gosto” como sendo uma avaliação independente de todo interesse, que não se baseia em conceitos, mas na impressão subjetiva de prazer ou desprazer estéticos puros que os objetos nos causam. Um século depois, Freud (1919/1976) entende que a estética não é simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. É sob este vértice que a estética será aqui abordada: como o estudo das manifestações sensíveis do objeto e das formas de apreensão destas pelo sujeito. Examinam-se fatores determinantes da capacidade de estar com o outro, estar no mundo, e seus reflexos na sessão psicanalítica. Parte-se da ideia de que toda experiência emocional, origem do sujeito psíquico, baseia-se em uma vinculação do tipo estético entre sujeito e objeto, despojada de interesse, sem a finalidade de satisfazer pulsões ou formar conhecimento e livre de julgamento determinante, sendo o sentimento de prazer da interação proveniente da contemplação reflexiva. Finalizando, tento mostrar a importância do ‘estético’ na técnica da psicanálise, propiciando à dupla paciente-analista a essencial interação do tipo contemplante-contemplado. Encontrado, o ‘belo’ auxilia os ‘sujeitos-objetos’ da análise na apreensão dos afetos, emoções e sentimentos presentes no campo psicanalítico.

 

Sobre a experiência estética

Existem diversas versões, tanto na filosofia quanto na psicanálise, do que vem a ser a experiência estética. Dentre as que pude examinar, a visão de Kant me pareceu a mais clara, a que melhor especifica a condição estética do objeto, do sujeito e da interação entre ambos. Quando descreve as faculdades da mente (a faculdade estética sendo uma delas), Kant salienta que há um conjunto de capacidades intelectuais e psíquicas que são próprios da experiência estética. Mesmo entendendo a experiência estética como uma parte da experiência, emocional (contendo esta também a experiência do desejo e do conhecimento dentre outras), procuro neste estudo salientar as peculiaridades daquela, a fim de demonstrar a importância no trabalho analítico do encontro com o que é especificamente estético no todo da experiência emocional.

 

O objeto estético e o juízo de gosto

De acordo com Kant (1790/1995), o mundo tal como ele é, a coisa-em-si (o numeno), está além de qualquer experiência possível para a mente. Não posso saber como a coisa-em-si, o objeto físico (empírico) realmente é, porque para saber sobre ela eu preciso tê-la na minha mente, e quando ela está na minha mente já está inevitavelmente afetada por esta; logo, já não é mais a coisa-em-si, mas uma mistura da coisa-em-si e da minha subjetividade. N este sentido, o que está na minha mente não é mais a coisa-em-si, mas uma representação mental desta. As coisas tal como me parecem são os fenômenos, os objetosem- si. O que a minha subjetividade faz é transformar a coisa-em-si no objeto-em-si. Este processo consiste em ordenar as sensações (objetivas) que são despertadas em mim pela coisa-em-si, de acordo com noções de espaço e de tempo (e das categorias básicas de quantidade, qualidade, relação e modalidade). Isto feito, nossa mente já está capacitada a intuir (e não pensar), imaginar (e não conhecer), o que agora vem a ser o objeto-em-si. O objeto em- si, que é uma representação do objeto externo, desperta em mim sentimentos de prazer e desprazer. O objeto que percebo a partir destes sentimentos, e somente a partir deles, é o objeto estético. Concluindo, um objeto pode ser considerado estético quando estiver sendo avaliado pelo sujeito somente através de sua faculdade de imaginação, ‘desconsiderando’ avaliações vinculadas ao desejo (interesses, valores morais etc.) e/ou ao conhecimento (realidade externa, conceito etc.) do sujeito. O ‘juízo’ estético, ou juízo de gosto, na realidade não julga, ele apenas ‘ajuíza’. O juízo de conhecimento, este sim, parte direto das sensações (dos sentidos) ou de ‘pré’ conceitos, e forma um ‘conceito’, um conhecimento sobre o objeto, podendo determinar se algo é quente ou frio; e, somado ao juízo do desejo; julgar que o quente é bom, ou que o frio é ruim etc. Já o juízo estético apenas imagina, intui, a partir das representações formais de determinado objeto, baseando-se no sentimento de prazerdesprazer. “Quando se julgam objetos (…) segundo conceitos toda a representação da beleza é perdida. Logo, não pode haver uma regra segundo a qual alguém devesse ser coagido a reconhecer algo como o belo” (Kant, 1790/1995). Enquanto o juízo de conhecimento (lógico, determinante) exige a universalidade objetiva de suas conclusões por basear-se em conceitos e em dados empíricos, o juízo de gosto também exige universalidade, só que subjetiva. Esta é a dialética do juízo estético: se reconheço o belo a partir do sentimento que a sua representação despertou em mim, então nada poderia concluir sobre o que ele desperta em outros, muito menos exigir que outros também o tomem por belo, pois sequer estou falando do objeto, da coisa-em-si, mas apenas da representação mental que faço dele. Por outro lado, considerando que “um juízo de gosto puro (…) é livre de interesse e indeterminado em relação ao conhecimento” (Rodhen, 1998) sei que não há da minha parte nenhum preconceito em relação à conclusão que chego sobre a beleza da objeto. Nada que contamine minha análise do objeto. Concluo, então, que o que me parece belo é belo, supondo a universalidade do meu sentimento. Esta universalidade subjetiva fabrica uma espécie de senso comum, uma comunhão de sentimentos que aproxima a humanidade.

 

O belo e o sublime

A noite é sublime, o dia é belo.
Kant

Kant entende o sublime como próximo do belo. Há, entretanto, na filosofia, autores como Burke que contestam a inclusão do sublime na categoria estética por sua inadequação às exigências do juízo de gosto. De fato, Kant abre uma série de exceções a fim de considerar o sublime, estético. Entre o belo e o sublime parece haver mais diferenças do que semelhanças. Diversos elementos do sublime como admiração, reverência e temor parecem melhor se ajustar ao julgamento teológico de Kant, sendo absolutamente alheios à harmonia da interação que se estabelece com o belo. O belo resulta do livre jogo entre a imaginação e o ‘entendimento’ (pré-conhecimento; captação de sentimentos) numa relação harmônica, em que o entendimento está a serviço da imaginação. O sublime, ao contrário, resulta da relação conflitiva entre imaginação e ‘razão’. O que caracteriza o sublime é que ele é inexcedível, “absolutamente grande (…) em comparação com o qual tudo o mais é pequeno” (Kant, 1790/1995), e inapreensível. Enquanto o belo apraz pela forma; o sublime é informe, angustiante, terrificante e só apraz de maneira indireta. O belo pressupõe e mantém a mente em serena contemplação. O sublime provoca um movimento tenso, uma rápida alternância entre atração e repulsão pelo objeto. N o sublime, a grandiosidade do objeto institui uma relação conflitiva entre a imaginação (que tenta apreender o objeto pelos sentidos) e a razão (que busca compreender essas informações). Dá-se o conflito pela impossibilidade da razão adequar-se aos dados da sensibilidade. Por outro lado, a razão exige da imaginação a apresentação do não-apresentável, algo que a razão pudesse compreender. Só que o que a imaginação apreendeu foi o sublime; objeto de uma grandiosidade desmedida para a razão. Esta sensação de inadequação, de incapacidade para compreender algo tão grandioso traz a noção da nossa pequenez, sendo responsável pelo sentimento de admiração, temor e reverência frente ao sublime. Diria que o sublime é belo, mas um belo especial; um belo transbordante e excessivo. Podemos pensar que as duas experiências, a do belo e a do sublime, sejam importantes para o psiquismo, ainda que com funções bastante diversas. N o meu entender, apenas o belo se comporta de acordo com o juízo de gosto e sua função talvez seja, então, a de nos possibilitar tomar contato com os sentimentos puros da experiência emocional, pela serena contemplação reflexiva. Já a grandiosidade do sublime nos obriga ao movimento, à busca. Solicitamos auxílio ao juízo lógico, a fim de captarmos a sublimidade do objeto. Mesmo que ainda não forme conceitos propriamente ditos, parece que o sublima; que por um lado se afasta dos sentimentos puros, por outro, dá um passo adiante no caminho dos pensamentos puros, embriões de conceitos que se originam da própria interação, auxiliando-nos na tarefa de ‘conhecer’ o objeto, genuinamente, a partir da experiência.

 

O conflito estético

A obra de Meltzer, muito especialmente sua teoria sobre a experiência estética, está fortemente marcada pelas concepções bionianas. Meltzer deixa claro o relevo que o impulso epistemofílico tem em sua forma de compreender a mente humana. A partir das ideias de Freud, Abraham, Klein e Bion, trazem importantes contribuições à epistemologia psicanalítica. Em Studies in Extended Metapsychology (1984/1986), lembra que devemos a Melanie Klein a noção de que a beleza da mãe não se deve apenas ao exterior do corpo materno, mas especialmente ao mistério de seu interior, com seus conteúdos desejáveis; que desperta no bebê a ânsia por conhecer e possuir o corpo materno, tão importante quanto seu anseio pelo leite da mãe. Meltzer valoriza o acréscimo de Bion a esta ideia no sentido de enfatizar que o interesse do bebê vai além do corpo materno, dirigindo-se principalmente para o conhecimento da mente da mãe e seus conteúdos. Bion, por sua vez, utiliza-se bastante das concepções filosóficas de Kant como fundamentação para suas próprias teorias sobre a estética. A profundidade e complexidade do pensamento de Kant, Bion e Meltzer tornam muitas vezes difícil ao leitor compreender a que ideia (seja própria ou referida) e a que momento da evolução da teoria determinado pensador está se referindo. Assim sendo, não está claro para mim o que há em comum e no que diferem as ‘experiências estéticas’ dos três autores. Ficou-me a impressão de que nenhum deles pretende concluir a respeito do tema, tendo elaborado textos abertos que promovem reflexão e questionamento. Passo a referir algumas das interrogações que me ocorreram durante a leitura desses textos, enquanto procurava compreender o ‘conflito estético’ referido por Meltzer.

A primeira questão é saber de quem se fala. Qual o objeto estético de Meltzer? E o de Bion? Em relação a Kant, Meltzer e Bion estão falando do mesmo objeto estético que aquele? Se estiverem, trata-se do belo ou do sublime kantianos? Ou ainda de ambos?

É importante assinalar que houve uma evolução na obra de Bion, no que diz respeito à sua concepção do modelo da mente, de um modelo estrutural para um modelo espectral (reflexivo, intuitivo). Levando em conta tal evolução, segundo Chuster (1998) encontramos três Bions. O primeiro é o Bion kleiniano (até ‘Uma teoria do pensar’), depois, o matemático (até Atenção e interpretação) e, finalmente, o Bion “puro” ou “estético”. O ‘novo’ objeto psicanalítico de Bion (que surge no período estético) não tem fundo sensorial (mesmo que se origine de sensações) nem prático (finalidade, utilidade, lógica ou moralidade). Se no início de sua obra o objeto da experiência emocional que Bion nos apresenta é essencialmente um objeto do conhecimento, quase lógico, e o sujeito, um sujeito quase prático, cheio de interesses, preocupado com a formação de conceitos que instrumentalizem seu pensamento e o auxiliem na busca da verdade (a realidade da não-coisa; do fenômeno); o Bion “puro”, mais tardio, preocupa-se primordialmente com a verdade estética dos sentimentos intuídos, baseando-se em ideia s estéticas de Keats, como, por exemplo, a de que a “Beleza é verdade, a verdade é bela”. Diríamos que a verdade do período puro é alcançada no momento estético quando a abstração de sensações e conceitos viabiliza o alcance das impressões marcadas no subjetivo pelas sensações. É como se Bion intuísse que somente através de uma profunda subjetividade pode a psicanálise se tomar objetiva, verdadeira.

 

O objeto estético de Meltzer

Meltzer parte das concepções do período estético de Bion para descrever a experiência emocional e definir o objeto estético. Parece-me possível derivar de suas palavras a noção de ‘existência’ de dois objetos estéticos, ou melhor, duas qualidades estéticas em um mesmo objeto. O exterior da mãe contendo beleza e seu interior, sublimidade. O objeto da experiência emocional estética (objeto interno; representação mental da mãe), comportaria então o belo e o sublime. A mãe do impacto estético é bela, e existe simultaneamente à mãe do conflito estético, que sendo excessivamente bela em seu grandioso, enigmático e insondável interior, é sublime.

 

Os sentimentos despertados pelo impacto e conflito estético

Para Meltzer (1988/1995) o encontro com a mãe, com o ‘admirável mundo novo’, desperta no recém-nascido (ou mesmo antes), sentimentos “(…) que vão desde a aversão total ao maravilhamento extático”. O autor descreve sentimentos diversos tais como: temor, intensa dor mental, admiração e pura alegria, todos vinculados à experiência emocional estética. Segundo ele (Meltzer, 1984), a experiência emocional equivale à experiência estética, consistindo-se no encontro com a beleza e o mistério, que faz surgir o conflito entre os vínculos positivos e negativos de amor (L), ódio (H) e conhecimento (K). Um conflito “(…) incitado pela beleza do mundo, e sua representação primária – o seio e a face da mãe que alimenta. Este conflito; criado pelo impacto das formas externas manifestas e o estado mental interno ambíguo (sentimentos, intenções, atitudes) do objeto de ligação, pode ser pensado como ativado no recém-nascido, despertando emoções apaixonadas, de amor, de ódio, de um anseio em conhecer o interior do objeto seu ‘coração de mistério’” (Meltzer, 1988).

O texto acima sugere que o autor entende o conflito estético como sendo desencadeado no bebê, não pelos sentimentos prazerosos frente à beleza da mãe (suas qualidades formais externas), mas pelo contraste entre tais sentimentos e aqueles, de aversão, despertados pela impossibilidade de conhecer o interior de sua mente. Se assim for, a responsabilidade pelo conflito estético recai na enigmática mente materna e não em sua beleza, sendo o conflito estético um conflito entre o belo e o sublime. Se para Kant o conflito é uma peculiaridade do sublime, que se estabelece entre a imaginação e a razão, e que, em absoluto, se estende ao belo, parece-me que na concepção de Meltzer o conflito estético está situado a meio caminho entre o belo e o sublime, ainda que desencadeado por este último. Meltzer não diz que o conflito se cria simplesmente pelo fato de o bebê estar impossibilitado de apreender a sublime mente materna; ele, sim, afirma que o conflito é criado pelo encontro das formas externas, o belo, com o interior enigmático (que é o sublime, ainda que ele não o nomeie). Todavia, ao explicar a relação entre beleza e verdade, Meltzer parece entender o belo como responsável inclusive pela origem do conflito estético. A própria beleza despertando angústia, como veremos a seguir.

 

O belo, a verdade, e a capacidade negativa

Meltzer reafirma a ênfase dada por Bion ao impulso epistemofílico na determinação do psiquismo, dizendo que a dor mental se deve à dificuldade de aceitação de uma ‘nova ideia’ que contenha a verdade. Segundo ele (Meltzer, 1988), “caso sigamos de perto o pensamento de Bion, vemos que a nova ideia se apresenta como sendo uma experiência emocional da beleza do mundo e de sua maravilhosa organização, mas próximos descritivamente do númeno do ‘coração do mistério’ (…)”. Meltzer aqui afirma que o belo, como o portador da verdade, da ‘nova ideia’, aciona o conflito estético. Neste caso, precisaríamos conceber no juízo estético do belo uma estreita vinculação com a formação de conceitos e de conhecimento, um juízo veritativo. O que não me parece razoável. Em relação ao sublime, sabemos que há alguma participação do juízo lógico – determinante na avaliação do sujeito sobre o objeto, e que é justamente a presença invasiva da razão na imaginação que quebra a serenidade harmoniosa da contemplação estética. Entendemos que este desequilíbrio ocorre no sublime pela incapacidade da imaginação em lidar com a incomensurável grandiosidade que deforma (desfaz as prazerosas formas) o objeto. Meltzer (1988) parte do princípio de que toda experiência emocional se dá pelas diferentes combinações entre amor, ódio e conhecimento. Frente ao impacto estético com o belo “(...) a ‘nova ideia’ (...) se abate sobre a mente como uma catástrofe pois, para ser assimilada, detona o fluxo de toda a estrutura cognitiva”, provocando alteração no arranjo entre L, H e K (mais ou menos). A intolerância a esse desarranjo, equivalente à intolerância ao belo, levada a uma reestruturação tal que faria prevalecer a ‘mentira’, a não aceitação da verdade da nova ideia. Como a nova ideia é de fato uma ideia que não pode ser conhecida (um númeno ou a coisa-em-si), o sujeito necessita tolerar este não-saber, “capacidade negativa”, a fim de apreender o belo. O que me parece que Meltzer explica aqui, e que ajuda a compreender sua concepção do conflito estético, é que embora o belo não seja um númeno, não seja a coisa-em-si incognoscível, ele (como todo objeto estético se aproxima de “0” – da verdade última da coisa-em-si). Sendo assim, o belo despertaria certo temor no psiquismo, inversamente proporcional à possibilidade do sujeito de contemplar a verdade. Neste caso, não seria propriamente por seus atributos estéticos que a visão do belo angustia, mas pelo que o belo deixa transparecer, ou seja, a verdade última da experiência emocional. Também poderíamos pensar que o belo incomodaria o sujeito não somente pela verdade que ele anuncia, mas por demonstrar ao sujeito o quão perto ele pode estar da verdade sem, no entanto, poder alcançá-la.2

 

Conflito estético e posições

Os fenômenos da experiência estética têm sido tradicionalmente relacionados pelos autores kleinianos à posição depressiva (D) e, portanto, não-inatos, mas adquiridos à medida que o bebê desenvolve suas capacidades integrativas (Segal, 1952/1957). Meltzer concorda com a associação entre experiência estética e posição depressiva, afirmando que os objetos parciais próprios da posição esquizoparanóide (Ps) não possuem capacidade para sentimentos, ‘mentalidade essencial’, logo, não são estéticos. Entretanto, para Meltzer a ‘D’ antecede a ‘Ps’ nas relações objetais. De acordo com essa ideia, o bebê começaria suas experiências estéticas (protoestéticas) já no útero materno, tendo a voz da mãe como um estímulo importante para o surgimento de sentimentos estéticos puros de prazer-desprazer. Ao nascer, frente ao impacto com o objeto total estético, surge no bebê a dor mental pela incerteza em relação ao interior da mente materna. Como diz Meltzer, trata-se de uma incerteza que tende à desconfiança, ao suspeito. A tolerância ao conflito depende da capacidade do bebê de permanecer na incerteza sem procurar com irritação o fato e a razão. Caso contrário, ele irá sucumbir ao conflito, voltando sua subjetividade para as categorias negativas dos vínculos efetivos, as antiemoções. Estas, por sua vez, têm origem na inveja da beleza e sabedoria maternas e surgem na interação como um desejo de impedir que o objeto tenha experiências apaixonadas, estéticas. (Meltzer, 1988/1994).

Novamente surge a questão. Qual é o objeto estético a que Meltzer se refere aqui? Estaria ele considerando também o ‘terrificante’ sublime um objeto integrado da ‘D’? Penso que o objeto ‘total’ da relação mais primitiva é o belo. Este seria o objeto prévio à desintegração, ao conflitivo. Já o objeto estético da curiosidade não satisfeita, do saber não alcançado, que gera angústia do tipo persecutória, temor, reverência, conflito, movimento; que impulsiona para o conhecimento, parece-me ser não o belo, mas o sublime. Compreendo a experiência estética do belo como tendo características da posição depressiva. Já a contemplação do sublime parece-me proporcionar uma experiência estética do tipo esquizoparanóide. Penso ainda que não necessariamente o impulso para a criatividade e para o conhecimento estejam diretamente relacionados às capacidades integrativas da ‘D’. Nestes termos sou levada a pensar que a experiência com o belo (‘D’) seja essencial como ‘matériaprima’ para a criatividade e conhecimento. Porém, parece-me que é a instabilidade da ‘Ps’ que cria a ânsia pelo ‘novo’, sem a qual não se faz conhecimento criativo. Os ‘símbolos idiossincráticos’ que Meltzer refere como próprios do ‘aprender a partir da experiência’ de Bion, relacionados com a busca da verdade última, não são, a meu ver, o resultado imediato das capacidades integrativas do self, mas são criados devido a uma necessidade de integração que surge do ‘desequilíbrio’ útil, causado por ansiedades esquizoparanóides. Este desequilíbrio só se transformará em conhecimento (símbolos idiossincráticos) se houver algum registro prévio de experiência estética integrativa (do belo, harmonioso); caso contrário, não há capacidade negativa e, em vez de símbolos, teríamos, como refere Meltzer, ‘signos convencionais’, ou seja, aprender sobre a experiência.

Concluindo, penso que a experiência estética pura, contemplação reflexiva do belo, é do tipo integrada; objeto total. Segue-se a ela uma experiência com o sublime onde o objeto sofre cisões; objetos parciais; que se constituiria na busca do ‘novo’, do não conhecido, da criatividade. Ambas são experiências do tipo estético, sendo a primeira pura e a segunda não. N enhuma delas forma conceitos. Para a formação de conceitos é preciso que os objetos voltem a se integrar de acordo com as necessidades do self, a fim de que o conhecimento seja genuíno e o aprendizado se dê a partir da experiência. Esta última etapa, a meu ver, já não faz parte da experiência estética.

 

O objeto perseguidor, o sublime e a ilusão de imortalidade

Outro paradoxo do objeto estético sublime é a possibilidade da criação, manutenção e destruição da onipotência do sujeito-contemplante. Ao deparar-se com a grandiosidade do sublime, o sujeito se convence que a infinitude é algo possível (se possível para o objeto, também o é para ele) ao mesmo tempo em que intui sobre a sua própria finitude ao confrontar-se com a realidade de sua pequenez e limitações, comparado ao objeto sublime. Segundo Meltzer (1995), “a apreensão do belo contém, em sua Própria natureza, a apreensão da possibilidade de sua destruição (…) o objeto presente é visto como contendo a sombra do objeto-ausente-presente-como-um-perseguidor (...) Minha tese é que o perseguidor é um objeto narcisista. Um objeto composto de um objeto e uma parte do self”. O que Meltzer afirma acima nos sugere pensar que a qualidade da experiência estética se deva também a esta relação dúbia do sublime com o ideal de ego que, por um lado, seduz o sujeito, alimentando sua onipotência narcísica e, por outro, destrói esta mesma onipotência, expondo sua vulnerabilidade. É possível deduzir que o aspecto perseguidor do sublime se deve ao fato de ele evidenciar a realidade da morte. Ou seja, é perseguidor à medida que violenta a onipotência que mantém a ilusão da imortalidade e infinitude do sujeito.

 

A contemplação reflexiva estética na sessão psicanalítica

Kant, Bion e Meltzer tomam a experiência estética como cerne do mental: a mentalidade essencial (Meltzer, 1988/1995) do indivíduo. O acesso à coisa-em-si, à verdade última – ‘O’, só é possível pela intuição, e esta resulta da experiência estética, dos fenômenos suprassensíveis (além dos sentidos e dos conceitos), algo que se localiza além do pensamento lógico. Para se chegar a intuir é preciso ‘não pensar’, não estar com a mente saturada por pensamentos, impressões sensíveis ou conceitos. Como disse Bion, baseandose em Freud, “(...) considero que é de grande importância que todos os analistas possam se cegar, no sentido de despojar-se de tudo aquilo que lance luz, ou pareça fazê-lo, sobre a situação analítica” (Bion, 1970/1991). Manter-se cego para melhor enxergar significa, para Bion, manter-se em capacidade negativa, buscando tomar contato com os próprios sentimentos, sem ‘pensar’ de forma saturada priorizando a captação subjetiva das emoções que permeiam o campo psicanalítico sem se apressar em ‘compreender, ou transformar em conceitos e interpretações as vivências daquele momento da sessão’.

 

Um aparelho para sentir os sentimentos

Segundo Bollas (1977/1978) as experiências estéticas são reexperiências com ‘bons’ (diria ‘belos’) objetos que, como estas geram modificações nas realidades internas (e externas) do sujeito. Em Reverence and Awe, Bion (1967/1992) descreve os sentimentos de admiração fervorosa do bebê pelo objeto estético, a mãe, como um aspecto saudável da interação. Mitrani (1998), integra este conceito de Bion com o ‘conflito estético’ de Meltzer, concluindo que a resolução deste em muito depende da capacidade da mãe em aceitar os sentimentos de reverência (do sublime) do bebê em relação a ela. Pode-se deduzir que tolerância semelhante seja imprescindível na sessão psicanalítica. Em Cogitations (18 fev. 1960- 1992), Bion reelabora seu conceito de função alfa, acrescentando a necessidade do analista ‘sonhar’ o paciente, nisso se constituindo o ‘trabalho-de-sonhar’ da função alfa. Pelo que entendo, é como se ao priorizar (ao final de sua obra) o ‘pensamento intuitivo’ em lugar do pensamento lógico, Bion estivesse mais preocupado em alertar os analistas para que buscassem instrumentalizar seus pacientes. Assim, estes poderiam vir a possuir um aparelho para sentir seus sentimentos insuportáveis, mais do que um aparelho para pensar os pensamentos, dando um colorido estético à função revêrie do analista. Com isso este poderia se empenhar na busca da contemplação estética reflexiva da experiência emocional da sessão psicanalítica e viabilizar a verdadeira compreensão da pessoa do seu paciente pela apreensão dos sentimentos destes. Cientes da necessidade de nos ‘libertarmos’ do desejo de conhecimento e dos conceitos prévios, enfim, de nos despojarmos dos ‘sentidos’ a fim de tomarmos contato com o suprassensível, os afetos de nossos pacientes, o que é possível fazer para se chegar à contemplação estética reflexiva, própria do ‘estado estético’?

 

Sobre o estado estético

0 sonho descobre a verdade detrás da qual se esconde o pensamento.
Kafka

Para que a função de sonhar alfa se estabeleça na sessão, é preciso que haja um profundo senso de intimidade entre o analista e o paciente, estando ambos total e absolutamente entregues à experiência emocional no campo psicanalítico (Bion, 1970/1991). Abdo nos sugere algo sobre como alcançar o estado estético. Diz ela: “No ‘estado estético’ o sujeito se Liberta enquanto equilibra em si sensibilidade e razão e através dessa harmonia entre inclinação e dever, liberta-se da escravidão imperiosa da primeira e da rígida lei do segundo, o objeto é considerado (…) como pura aparência subtraída a qualquer finalidade pratica” (Abdo, 1988). Fácil, não?

Em “A memória e o desejo opacificam a mente”, Bion (1970/1991, apud Zimerman, 1995) faz considerações práticas sobre como alcançar este estado, sugerindo “que se fixe o olhar (...) nos fatos incompreensíveis, incoerentes e não-relacionados” da sessão, lembrando que “o que se deve ver é uma situação nova”.

Considero fundamentais estas e outras sugestões de Bion para o encontro da intuição. Todavia, fico me questionando sobre a possibilidade de vir a se alcançar este estado estético, e, caso isso seja possível, em que medida e de que forma este fenômeno se daria. Como lembra Ferro (1997) em “O setting como condição mental do analista”, é “(...) necessário não criar ilusões de que este (…) possa ser considerado como uma invariante (…)”. Ou seja, o analista sofre permanentes transformações em sua condição mental, que independem da contemplação estética pura de seu paciente. Ferro, como Bion, considera a importância da insaturação da mente do analista com ‘memórias’ e ‘desejos’, sustentando, por outro lado, que mais do que lutar para evitá-las na sessão o analista precisa estar ciente delas e utilizá-las como fonte de compreensão da experiência emocional. “A situação mental do analista, se considerada como uma variável do campo para cuja formação ela contribui, será (para um analista permeável e receptivo) continuamente perturbada e continuamente restabelecida, pelo menos se houver disponibilidade para se ocupar os estados mais primitivos da mente do paciente e das suas protoemoções”. Estaria o autor aqui se referindo a um contato estético – função sonhar alfa – entre analista e paciente? Parece que, para ele, o analista deveria buscar sua compreensão tanto nos sentimentos nele despertados pela experiência emocional do campo, quanto – e nisso ele me parece genial – nos sentimentos que tal experiência faz surgir nos pacientes. Estes sentimentos se constituiriam não apenas como realidade psíquica do paciente, mas como verdade última do fenômeno da sessão.

 

Considerações finais

A contemplação reflexiva estética deve ser uma meta buscada no trabalho psicanalítico, não esquecendo, contudo, que o ‘prazer estético’ é produto da paixão, do reino do indeterminável, do imprevisível. Penso que tudo o que pudermos pensar e conceber racionalmente sobre a presença ou a ausência da ‘paixão’ no nosso trabalho, neste ou naquele dia, com este ou aquele paciente, certamente vai nos ser muito útil para a avaliação e aperfeiçoamento da nossa atividade, servindo inclusive para nos orientar quanto à possibilidade do paciente em apreender experiências estéticas dentro e fora da sessão. Todavia, quanto à nossa disponibilidade para o apaixonamento, para a reciprocidade e contemplação reflexiva estética, penso que, tanto quanto nossos pacientes, só podemos encontrá-la aprendendo a partir da experiência do e no divã, perscrutando intensamente nossas emoções mais primitivas.

Parece-me que o modelo estético surgiu e vem tomando corpo no cenário psicanalítico pela insatisfação com os aspectos deterministas dos modelos anteriores.
A ânsia pela descoberta das causas cede lugar à criação de sentido.
Certezas são paulatinamente substituídas por imprevisibilidade.

O BELO parece dar conta deste estado mental, de contemplação serena que acolhe as emoções da sessão, viabilizando um encontro analítico genuíno, particular.

Mas seria o SUBLIME o responsável pela desordem, pelo desequilíbrio essencial ao surgimento do novo, de uma nova organização para o complexo sistema psíquico.

Por fim, quero enfatizar que acredito que a busca do encontro analítico deve ser essencialmente uma busca estética, não lógica, pré-representacional e que o estado mental que me parece mais próprio para esse encontro é o do SUBLIME, e não o do Belo. É a incomensurabilidade do Sublime que nos faz perceber nossa finitude e, como tal, o sublime provoca, assusta, desloca, criando infinitas possibilidades, infinitos vértices (entendimentos). A Imprevisibilidade do Sublime, sua indeterminação é, a meu ver, o que viabiliza a irrupção do NOVO, do ainda não vivido.

É a ‘provocação’, o desequilíbrio, o choque e a desestabilização emocional que faz do encontro analítico um ACONTECIMENTO.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Anna Luiza Kauffmann
Av. Taquara, 586/402
90460-210 Porto Alegre, RS
Tel.: +55 51 3321-3316
E-mail: luikauffmann@terra.com.br

Recebido em: 1.12.2008
Aceito em: 19.12.2008

 

 

1 Membro aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA.
2 É de se pensar se Meltzer está de fato atribuindo qualidades do juízo lógico-veritativo, ao belo (exterior materno) ou se, por não nomear o sublime (interior materno), ele possa estar se referindo à sublimidade do objeto quando vincula o belo com a verdade.

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