SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.42 número4O mito da maternidade glorificadaO divino gozo: o narcisismo feminino e os místicos índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

INTERCÂMBIO

 

Entre demais e muito pouco: a quadratura do círculo da parentalidade1

 

Entre demasiado y muy poco: la cuadratura del círculo de la paternidad

 

Between too much and too little: the squareness of the circle of paternity

 

 

Régine Prat2

Société Psychanalytique de Paris
Association Francophone des Formateurs à l’Observation de Bébé selon Esther Bick

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A parentalidade é focada aqui como uma crise de identidade resultante do traumatismo da percepção da dependência total do bebê frente aos pais. O psiquismo parental supõe portanto uma mutação profunda. Neste trabalho as necessidades do bebê vão ser enfocadas em seu aspecto contraditório: por um lado a necessidade de ser protegido e contido de maneira firme e, ao mesmo tempo, a necessidade de permitir que ele efetue suas próprias experiências, não impedindo sua autonomia. A quadratura do círculo ou a missão impossível da parentalidade vai ser explorada em seus aspectos de experiência comum a todos os pais, como também a sua patologia. O desenvolvimento das capacidades de atenção permite vias de resolução para esse paradoxo, e se revela particulamente útil enquanto instrumento terapêutico.

Palavras-chave: Atenção; Dependência; Depressão pós-parto; Parentalidade.


RESUMEN

La paternidad (paternidad-maternidad) está enfocada aquí como una crisis de identidad provocada por el traumatismo que significa la percepción de la dependencia total del bebé con relación a sus padres. La paternidad supone, por lo tanto, una mutación profunda en el psiquismo de los padres. En este trabajo, las necesidades del bebé son enfocadas en su aspecto contradictorio: por un lado, la necesidad de ser protegido y contenido de manera firme y, al mismo tiempo, la necesidad de que se le permita efectuar sus propias experiencias sin oponer obstáculos a su autonomía. La cuadratura del círculo o la misión imposible de la paternidad va a ser explorada aquí, tanto en lo que se refiere a los aspectos de la experiencia común de cualquier padre-madre, como también a la patología. El desarrollo de las capacidades de atención permite encontrar vías de resolución para esta paradoja, y se revela particularmente útil en cuanto instrumento terapéutico.

Palabras clave: Atención; Dependencia; Depresión post-parto; Paternidad.


ABSTRACT

Parenthood is focused here as an identity crisis resulting from the trauma of the perception of the total dependence on the part of the baby on the parents. Parental psychism therefore supposes a deep mutation. In this article the focus will be on the baby’s needs as far as their contradictory aspects: on one hand the need to be protected and contained in a firma manner, and at the same time, the need to be allowed to have his own experiences, without restraining his autonomy. The squareness of the circle or the mission impossible of parenthood will be explored in its aspects of an experience common to all parents, as well as its pathology. The development of the attention skills allows ways of resolution for the paradox, and it reveals itself to be particularly useful as a therapeutic tool.

Keywords: Attention; Dependence; Post-partum depression; Parenthood.


 

 

A quadratura do círculo da parentalidade, ou eu poderia dizer também: “parentalidade, missão impossível”. Vou falar do que acontece, ou não acontece, não no que é chamado de patologia, mas no que é chamado de normalidade.

Conhecemos bem o que Winnicott chamou de “preocupação materna primária”, uma “doença que se desenvolve nas mães, em bom estado de saúde, na fase inicial da vida do bebê, e que deve realmente surgir a fim de favorecer a saúde do bebê”.

Vejamos brevemente o que acontece. A experiência da gravidez e de seu desenvolvimento constitui uma novidade sem precedentes na história biológica normal de um indivíduo. Nesse tempo extraordinariamente curto, de nove meses, a mulher vai ver seu corpo se modificar de uma forma radical, para transformar-se novamente após o parto.

Por exemplo, algumas mulheres podem ter o sentimento de que não vale a pena se instalar nesse corpo, se preocupar, investir em roupas de acordo com seu gosto e com sua imagem. Frequentemente isso expressa uma forma de resistir, de se mostrar razoável, diante daquilo que surge como uma loucura. Mas a verdadeira loucura está relacionada ao fato de que o corpo se torna habitado e receptáculo para um outro corpo que está se desenvolvendo dentro dele. Estar grávida é ter que se confrontar com o “inacreditável, mas verdadeiro” guardado no fundo de si mesma desde os tempos da infância: quando toda criança se pergunta como se fazem os bebês, elabora o que os psicanalistas chamam: suas “teorias sexuais infantis” e guarda no fundo de si mesma a ideia de que é “inacreditável”, ou seja, impensável.

A gravidez é a verdadeira etapa posterior a esses antigos questionamentos que foram elaborados de diversas maneiras segundo as vicissitudes da história pessoal de cada um, e que neste momento passam pelo teste da realidade (Sob todo desejo de gerar uma criança esconde-se o desejo de verificar e de ver “como se faz”. Os sintomas durante a gravidez, ou a forma de viver e suportar os desconfortos, frequentemente estão relacionados com a persistência dessas antigas teorias infantis).

A gravidez é, portanto, ao mesmo tempo uma comoção física e psíquica que se expressa, obrigatoriamente, pela fragilidade emocional da jovem mulher nesse período. Mas “obrigatoriamente”, no sentido que eu lhe estou dando, não está somente ligada à história individual da jovem mulher. É imperativo que ela se torne capaz de encarar as necessidades do bebê, é preciso obrigatoriamente que se torne mais sensível, é preciso obrigatoriamente que desenvolva outras formas de sentir e perceber os acontecimentos emocionais para tornar-se capaz de se ajustar às necessidades desconhecidas de um bebê desconhecido. Esta transformação, verdadeira mudança psíquica, prepara o salto ao desconhecido. Mas quando se dá um salto para o desconhecido, mobilizam-se também todos os recursos defensivos que se têm à disposição: pensamento mágico, apelação a princípios, rigidez, barreiras, estruturas pré-concebidas em função das defesas e não das necessidades internas. Como ajudar os pais e futuros pais a não caírem nessas situações? Qual seria o acompanhamento adequado?

A meu ver, deveria ser um acompanhamento que permitisse colocar a questão: “que parte de você quer isso?”, e que permitisse discernir as respostas do passado daquelas que se adaptam ao presente.

Outro aspecto de extrema fragilidade nessa comoção emocional é a chegada de um novo bebê que, no conjunto da constelação familiar, vai mobilizar a totalidade da cadeia geracional. Os sonhos que têm a futura mãe podem ser muito claros em seu conteúdo aparentemente mórbido e traumatizante (sonho de morte da mãe). O pai também é confrontado com suas antigas teorias sexuais infantis. A cadeia geracional também se reposiciona tanto para os pais como para os filhos já nascidos… Em suma, temos uma extraordinária configuração de crise como o demonstra…

 

I. A depressão pós-parto

A clínica das perturbações da relação mãe-bebê confronta-nos com todas as declinações do fenômeno descrito habitualmente sob o nome de depressão pós-parto. Esta entidade clínica tem se estendido bem além do enquadre das consultas e da literatura especializada. Os baby-blues têm tido um grande sucesso na mídia, possivelmente fundado na universalidade desse estado, experimentado em graus diversos por toda mãe: no pré-natal não é raro que as futuras mães sejam alertadas pelo seu médico, com uma finalidade profilática, acerca do provável surgimento dos baby-blues alguns dias após o parto.

Alguns aspectos desse estado particular da jovem mãe foram descritos por Winnicott. Seu artigo bem conhecido de 1956, “A preocupação materna primária”, é sempre a base de referência incontestável dos trabalhos psicanalíticos mais recentes. Para que o bebê se desenvolva de maneira satisfatória, “o estabelecimento de seu ego deve repousar sobre um sentimento contínuo de existir” (p. 172) que só pode ser proporcionado pela mãe, com a condição de que ela “consiga atingir este estado de doença normal que lhe permita adaptar-se às primeiras necessidades do bebê com delicadeza e sensibilidade” (p. 171).

Uma mãe “normalmente dedicada a seu bebê” deve ser “capaz de entrar nesse estado de ‘hipersensibilidade’… e de se recompor depois” (p. 170).

É nesta condição que ela poderá identificar-se com seu bebê e se adaptar da forma mais estreita às suas necessidades.

A meu ver, devemos procurar a continuação da descrição clínica deste estado particular da jovem mãe, nos trabalhos de Esther Bick.

À chegada de um bebê, a mãe perde sua identidade e deverá constituir uma nova, troca de pele. “Ela não é mais a mulher adulta capaz (…) não sabe mais quem ela é, porque ainda não adquiriu sua nova identidade de mãe. Sua confusão e o sentimento muito doloroso de perda de sua antiga identidade se somam à tomada de consciência de sua total responsabilidade em relação a esse bebê” (Magnana, 1992, p. 181).

Nas manifestações clínicas observadas na jovem mãe, isso se expressa por meio de temas mais ou menos depressivos, de dúvidas em relação à sua capacidade de se ocupar de seu bebê, de sentimentos de transbordamento. O bebê é vivido como invadindo todo o espaço psíquico e físico materno, predominam os sentimentos de culpa.

Esther Bick fala da susceptibilidade especial da nova mãe e de sua fragilidade em relação às interferências externas.3O conjunto de suas descrições acrescenta precisões ao que Winnicott chama de ‘hipersensibilidade’.

Bertrand Cramer e Francisco Palácio Espasa (1993) demarcaram uma nova tópica que permite compreender as especificidades do funcionamento psíquico do pós-parto e propõem o conceito de parentalidade, como “uma nova fase do desenvolvimento”.

(...) que impõe aos pais uma tarefa considerável de redistribuição de seus investimentos (narcísicos e libidinais) (...) O funcionamento psíquico dos pais – sobretudo da mãe – obedece, portanto, a uma nova tópica, que inclui a representação mental da criança como uma adjunção ao território psíquico parental (…) As vicissitudes normais e patológicas das relações precoces são o resultado da natureza deste efeito do encontro entre o novo do bebê e o infantil dos pais, entre o estranho do bebê e a familiaridade das antigas imagos.” (p. 374)

Um tema particular constitui a base dos conceitos evocados; paradoxalmente esse tema, a meu ver, não parece ter sido desenvolvido de maneira específica na literatura.

 

II. O trauma do nascimento para os pais

1) O impacto sobre a mãe

O encontro com o bebê constitui uma experiência bastante singular e, em muitos sentidos, é uma experiência traumática para a mãe, necessitando um remanejamento fundamental e imediato de todo seu funcionamento psíquico.

A experiência da parentalidade confronta pela primeira e única vez com a vivência da dependência total, no sentido de um outro – o bebê – que depende inteiramente deles – os pais – de maneira geral, mas mais particularmente da mãe.

Essa descoberta da dependência é brutal; não há gradação, aprendizagem, evolução. No momento da chegada do bebê o mundo da mãe se estremece: ela se torna a pessoa da qual o bebê é totalmente dependente.

Vai haver uma curta latência que varia de algumas horas a alguns dias após o parto, que corresponde ao tempo que a mulher necessita para descentrar-se da experiência do parto e perceber realmente seu bebê enquanto tal, ou seja, separado dela. Pode-se notar que esse tempo existe também para o bebê: para permitir testar o bebê e não suas reações ao parto, as avaliações do comportamento dos recém-nascidos mediante a ajuda da escala de avaliação do comportamento neonatal de Brazelton não são feitas antes do 3º ou 4º dia após o nascimento.

Esse tempo intermediário pode dar a impressão de um período particular de feliz harmonia entre uma mãe e seu bebê, e sobre ele se fundam as ilusões do “bebê reparador”, ou seja, os bebês terapêuticos para suas mães.

No entanto, é fundamental que seja vivido em toda sua plenitude, pois é aí que se constitui, a meu ver, a base do vínculo. Poderíamos dizer que esta ilusão fundadora constituirá a base de sustentação quando surgirem os momentos difíceis.

A mãe descobre a dependência a partir de momentos muito concretos da vida com seu bebê. A satisfação das necessidades vitais do bebê: as necessidades materiais, a troca de fraldas, a alimentação etc., dependem dela. Ela descobre que isso não tem fim: levanta-se da cama quatro vezes consecutivas durante a noite, será necessário que ela se levante ainda uma quinta vez, mesmo que esteja cansada.

Soma-se a isso a dependência psíquica absoluta: o bebê depende de sua mãe para construir-se psiquicamente, para tornar-se uma pessoa.

Se certos aspectos da dependência material podem ser similares aos de outras situações da vida (ao contato com pessoas com deficiências físicas, com pessoas idosas ou com diversas formas de relação assistencial) não acontece o mesmo com a dependência psíquica, com a qual somente a parentalidade se confronta.

A combinação desses dois aspectos cria uma situação inteiramente nova e singular: poder assumir esse papel supõe uma mutação profunda do psiquismo parental, que a partir dessa experiência se tornará radicalmente diferente do que era anteriormente e, consequentemente, diferente daqueles que não são pais.

Toda experiência da vida acarreta, certamente, modificações psíquicas e, portanto, uma crise de identidade relativa, mas nenhuma supõe uma mudança de posição tão radical.

Esta mudança é, para a mãe, a continuação de uma outra mutação brutal: a gravidez representa uma mudança corporal extremamente rápida sem nenhum equivalente na história biológica normal de uma pessoa.

As reações da mãe

Para Laplanche e Pontalis “o trauma é um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, a incapacidade na qual ele se encontra para responder adequadamente a comoção e os efeitos patogênicos duráveis que provoca na organização psíquica. Caracteriza-se por uma afluência de excitações que é excessiva em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e elaborar psiquicamente essas excitações.” (1967/1971, p. 678)

As reações da mãe após o nascimento de um bebê podem ser consideradas, a partir deste ângulo, como a expressão de uma comoção na organização psíquica.

Os aspectos novos externos podem, então, ser recusados para que possa ser preservada a sobrevivência da construção psíquica interna.

• Nas formas clínicas extremas das psicoses puerperais, isso pode chegar até à não percepção da realidade do bebê, encoberta por falsas percepções alucinatórias. A construção de um delírio vem ocupar aqui o lugar da construção de uma nova realidade que inclua o bebê.

• Nas formas psicopáticas, o vínculo com a realidade será mantido, mas todas as formas de rejeição ativa do bebê, desde o maltrato ao abandono, manifestarão a incapacidade da mãe de conceber o bebê como um ser que precisa ser cuidado.

• Finalmente, há múltiplas situações clínicas nas quais o bebê torna-se alvo das projeções da mãe. É vivido como mau, perseguindo-a intencionalmente por meio de seus choros, por exemplo. Trata-se, portanto, de uma inversão da relação de dependência, que tem a função de uma negação. Na fantasia da mãe, o bebê está numa posição dominante em relação a ela.

• Nas situações menos patológicas, ou consideradas normais, o corolário desta confrontação com a extrema dependência é o sentimento de responsabilidade.

Os sentimentos de estar transbordando, de incapacidade de estar à altura da tarefa, de confinamento e de solidão, em graus que variam da inquietude ao pânico, são uma constante nos temas abordados pelas jovens mães. São a expressão banal das reações ao nascimento do bebê e, no tema que me proponho desenvolver aqui, mais particularmente ao impacto da dependência.

Também é muito frequente ouvir os jovens pais queixarem-se de não terem sido prevenidos. As formas de expressão do pai podem ser diversas: o sentimento de ter sido abandonado pela maternidade (que rodeia a futura mãe nas preparações antes do nascimento, e depois a deixa sozinha com seu bebê), sentimento de ser abandonado pelos amigos (em particular, precisamente pelos amigos que não têm filhos), ou temas persecutórios, onde prevalece a ideia de que a realidade foi ocultada conscientemente pelos outros, supostamente coaliados. Todas essas formas variadas de expressão manifestam o mesmo estado de choque relacionado ao vivido: não há preparação possível, pois se trata da tarefa de ter que modificar o funcionamento psíquico para poder viver esta experiência.

Por que estou insistindo tanto em tudo isto? Precisamente para recordar que quando atendemos jovens pais (pouco importa a idade real deles, pois enquanto pais eles têm a idade de seu bebê), estamos lidando com pessoas em crise, que acabam de viver uma comoção de uma extrema violência e devemos ter em mente que a clínica do nascimento na família está relacionada com a clínica pós-traumática. (A especificidade da psicose puerperal é a de ser um surto delirante clássico, surgido após um parto, e é mais frequentemente observada na população de mulheres que acabam de passar pelo parto, do que na população em geral).

Um bebê obrigatoriamente prematuro

O bebê vai se construir em função da pessoa que é sua mãe, que se manifestará através do que ela faz com ele e para ele: o sentimento de responsabilidade da jovem mãe é realmente esmagador. Minha hipótese pessoal é que isto constitui o ponto em comum que está na base de todas as perturbações do pós-parto.

Fazer tudo pelo seu bebê pode levar a mãe a “sobrecarregar” sua responsabilidade, não deixando ao bebê a possibilidade, ou não imaginando-o capaz de se virar sozinho para qualquer coisa que seja.

“Tornei-me medrosa, enquanto antes não tinha medo de nada” é o depoimento de muitas mulheres a partir da maternidade. Isso expressa o medo de fazer algum mal ao bebê, ou que “alguém” lhe faça mal, na ideia de um mundo que se tornou perigoso pela percepção da dependência do bebê e da responsabilidade total da mãe em sua missão de protegê-lo. As situações, também frequentes, de medo de esquecer do bebê, ou de lhe fazer algum mal podem ir até às fobias impulsivas, muito impressionantes para os pais (medo de ser tomado, de forma irreprimível, pelo impulso de jogar o bebê pela janela ou de lhe fazer algum mal). A descoberta brutal do cruzamento entre a dependência do bebê e a responsabilidade parental, passa por: “Mas, então, se tudo depende de mim, isso significa que eu tenho todo o poder sobre ele, um poder de vida e morte, eu poderia fazer tanto bem quanto mal a ele”. As ideias de fazer mal ao bebê expressam o choque desta descoberta, muito mais do que uma agressividade inconsciente em relação ao bebê.

Mostrar para os pais que isso que eles interpretam como sua própria incompetência ou agressividade é, na realidade, uma prova de amor excessivo, permite restituir a confiança neles mesmos. Imaginando-se maus demais, descobrem-se bons demais, o que resulta mais fácil do ponto de vista narcísico. É também útil para o clínico lembrar que, não importa qual seja a patologia da pessoa ou da família, neste caso temos que lidar com a sobrecarga que significa o trauma do nascimento para os pais.

 

II. Do lado do bebê

1) Perda

No momento de nascer, o bebê perde o mundo no qual ele tinha constituído suas primeiras referências de segurança vital. Esther Bick (1967/1987) considera que no momento do nascimento, certamente, o bebê nunca mais vai sentir tamanha claustrofobia como quando ele passa pelo canal genital para sair, e, nunca mais vai sentir tamanha agorafobia, como quando ele sai. Ela compara o bebê, no momento do nascimento, com um cosmonauta que não tivesse mais seu traje espacial para protegê-lo. Sua hipótese central é que as angústias essenciais do bebê se devem ao sentimento de perda da sensação de compressão intrauterina, que equivale a ser abandonado e se expressa por uma vivência de precipitação, sem nada para se agarrar, um cair sem fim. As angústias são angústias de liquefação, de esparramar-se, de estilhaçar-se … nas quais predomina a vivência de ausência de um limite continente, que permita guardar em seu interior os conteúdos corporais. Estas angústias são as que acompanham inelutavelmente a perda do meio intrauterino; elas são independentes da forma de nascer e existem, também, após um parto por cesariana, em que a passagem pelo canal genital é evitada.

O papel do ambiente, ou seja, a primeira função da mãe e dos pais, será acalmar essas angústias, ou melhor, fornecer condições que permitam que o bebê possa acalmá-las. O bebê deverá encontrar no ambiente elementos para fabricar um invólucro “pele” que substitua seu antigo traje espacial uterino.

O bebê, imperativamente, terá que encontrar no ambiente um objeto continente ótimo que acalme as angústias de precipitação, permita restabelecer a continuidade com os elementos da vivência pré-natal e permita a interiorização de uma pele que “mantenha (passivamente) reunidas as diferentes partes de sua personalidade” (Bick, 1967/1987, p. 115). Esse objeto continente bom, como nos diz Esther Bick (1967/1987, p. 115), é “o mamilo na boca, junto com o cuidado, a fala e o cheiro familiar da mãe…”

Esses reencontros com os elementos do mundo conhecido antes do nascimento são necessários para restabelecer a continuidade na experiência de vida: o que permitirá uma adaptação psíquica à vida aérea. Em suma, trata-se de permitir uma dosagem do novo para poder absorvê-lo pouco a pouco.

Se isso faltar, o bebê será obrigado a cuidar de si mesmo sozinho, fazendo esforços ativos para isso.

Ester Bick abriu, assim, o caminho para o estudo dos momentos nos quais o objeto continente está ausente ou indisponível, e fundou o que poderia se chamar: a clínica dos agarramentos: “A necessidade de um objeto continente, no estado não-integrado do início da vida, pareceria produzir uma busca frenética de um objeto – uma luz, uma voz, um cheiro, ou um outro objeto sensual – que possa reter a atenção e, portanto, ser experimentado, momentaneamente ao menos, como algo que mantém reunidas as partes da personalidade” (Bick, 1967/1987, p. 115).

É extremamente importante clinicamente que possamos reconhecer a função do “agarrar-se” em diversas manifestações do bebê que expressam uma insuficiência ou fracasso do holding. Assim, diversos distúrbios funcionais (vômitos, distúrbios do sono), distúrbios psicomotores (agitação, instabilidade, hipertonicidade), tornam-se compreensíveis em seu sentido de defesa contra angústias de precipitação, e melhoram à medida que melhoram as capacidades continentes do ambiente e, em particular, da mãe. É o impacto terapêutico essencial das terapias pais-bebê.

2) Construção

Como acabamos de ver, mãe e bebê acabam de viver um verdadeiro terremoto, agora precisam reencontrar-se e, ao mesmo tempo, descobrir-se.

Para esses dois seres que acabam de viver um abalo tão grande, a urgência consiste em refazer suas bases de segurança. Para a continuidade da história comum deles dois, é indispensável que refaçam essas bases juntos. Esse vínculo tecido durante a gravidez, sacudido e posto à prova durante o parto, mas igualmente reforçado, precisará ser retecido, tornando-se mais complexo. Da mesma forma, será necessário que a mãe e o bebê juntos possam ir integrando o novo em pequenas doses e deixar ao tempo fazer seu trabalho integrador.

Quando uma mulher atravessa tudo isso que acabamos de ver para se tornar uma mãe, ela pode ter tendência a tornar-se uma mãe “imperialista”. Ela superdesenvolveu a parte de entrega dela mesma e está inteiramente voltada para seu bebê, a serviço dele: então, pode ser que não o veja como sendo ele mesmo, como um outro de quem precisa descobrir a alteridade incontestável e separada, mas considerá-lo parte dela mesma. Cada sinal do bebê torna-se um sinal exclusivamente dirigido a ela. E assim ela restringe outros aspectos de sua própria identidade pessoal, por exemplo: não se interessa em mais nada que não seja o bebê e, mais precisamente, só se interessará pelo aspecto de seu bebê que depende dela, tentando ignorar ou suprimir aquilo que escapa à dependência. Tornando-se hipervigilante, hiperconsciente da fragilidade e da dependência de seu bebê, pode facilmente ver só isso, esquecendo que o bebê, dentro de sua grande dependência, tem desde o começo áreas nas quais pode se virar sozinho.

Essas áreas se desenvolverão durante seu crescimento psíquico, ou seja, ao longo de toda sua vida. Portanto, poderíamos pensar que haveria primeiro um tempo de dependência absoluta e exclusiva, para depois se desenvolver a independência e a atividade. Esses dois aspectos estão presentes desde o começo, em proporções diferentes que vão evoluir, certamente, na direção global de uma maior independência. Ainda é preciso que a noção de “independência” seja reconhecida como função e apoiada em seu desenvolvimento. Não existe um tempo “x” para que isso possa começar, pois está presente desde o início. O recém-nascido que faz o movimento de mamar com seus lábios enquanto dorme, põe em funcionamento, de maneira autônoma, um mecanismo que lhe permite continuar dormindo. Da mesma forma que, durante o dia, isso lhe permite acalmar-se e esperar a chegada da mamada. Ninguém precisa fazer isso por ele, e eu diria mais, se alguém o fizesse, seria lamentável, pois isso prejudicaria gravemente a construção desta função e a construção paralela da imagem de si mesmo, sua autoestima, ligada à confiança que pode ter nele mesmo e em suas próprias capacidades.

Muitos bebês são confrontados com necessidade de se desenvolver tendo que contornar a desvantagem da intrusão sistemática em sua esfera pessoal. Em função do nível e a frequência dessas intrusões, essas “travas na roda” podem se tornar verdadeiros empecilhos no desenvolvimento, equivalendo a uma deficiência. Mas, felizmente, o entrave nunca é total: muitas atividades do bebê escapam à esfera do olhar dos outros e podem, assim, se desenvolver clandestinamente.

 

IV. Como pensar a articulação dessas experiências contraditórias?

Pode-se resumir essa questão dizendo que os pais são confrontados a algo monumental que os obriga a transformar profundamente o que eles foram e, como se isso não bastasse, eles têm que ao mesmo tempo fazer uma coisa e o seu contrário!

Trata-se de uma “missão impossível”, na procura de uma quadratura do círculo! Eles devem se situar desde o início sobre duas linhas radicalmente contraditórias: vimos que é necessário para o bebê que haja o prosseguimento de uma gestação psíquica, e trata-se agora, ao mesmo tempo, de encorajá-lo em tudo aquilo que ele pode fazer sozinho.

Pode-se dizer então que “dar suporte não é suficiente” ; esse suporte deve ser ajustado à necessidade que o bebê tem de poder utilizar seu espaço pessoal: deve, portanto, ser ao mesmo tempo suficientemente “solto” para que haja a possibilidade do bebê fazer uso de seu próprio espaço.

1) Resolver o paradoxo

Para os pais, o único guia que permite ajustar a soltura do suporte é o momento em que a criança está pronta a apreender-se a si mesma, é a atenção dirigida ao outro.

A atenção é a única coisa que permite se soltar sem largar, de se soltar continuando ao mesmo tempo a se segurar. É a atenção que permitirá a manutenção de um vínculo ao mesmo tempo leve e seguro e a articulação de um ritmo leve e ajustado onde não há intrusão, invasão do espaço do outro, sem contenção. Isso supõe que o parceiro da relação seja presente e ativo de modo particular: ser ativo emocional e psiquicamente não significa, obrigatoriamente, agir. É preciso, para isso, que ele próprio seja suficientemente sólido para que não haja uma necessidade de que o bebê o suporte, em uma troca de papéis [É preciso que o parceiro esteja] suficientemente “fora da depressão”, como se diz: “fora d’água”, pois alguém que se afoga sozinho, que não sabe nadar, não pode salvar ninguém…

O trabalho em Loczy demonstrou o papel fundamental da atenção para resolver o paradoxo da necessidade de ser participante sem agir. A vida em Loczy, para quem conhece um pouco a atmosfera barulhenta de uma comunidade de crianças, é de uma calma surpreendente, não há violência e são poucos os conflitos. Cada um, tanto os adultos quanto as crianças, integram um modelo de relações baseado em respeito recíproco e é privilegiada a atenção ao outro, a observação.

Favorecer experiências autônomas permite o desenvolvimento da capacidade criativa da criança e funda as bases da confiança em si mesmo, indissociável da confiança no mundo. Tudo aquilo que impede a criança, desde sua mais tenra idade, de pôr em cena o teatro da descoberta constitui um entrave a esse movimento, e finalmente compreendemos, não somente “tecnicamente”, mas um entrave fundamental ao próprio princípio do desenvolvimento autônomo, ao senso profundo de criatividade e de construção psíquica da criança.

– O ambiente deve fornecer as condições de segurança para permitir ao bebê um desenvolvimento autônomo. Mas o que é autonomia no início da vida?

O bebê pode “escolher” chupar sua língua, passá-la entre seus lábios, apontá-la em direção ao exterior, beliscá-la, explorar o interior de sua boca: ele tem desde o início a capacidade de se organizar, de colocar em cena um teatro da boca que prefigura as representações futuras (palavra comum tanto ao mundo do teatro como ao da psicanálise). O brincar com a língua permite a ele re-presentar, reproduzir voluntariamente as experiências vividas: explorar assim as alternâncias de contato, e a ausência de contato, e essa já uma é maneira de brincar de esconde-esconde. Não devemos negligenciar a notável eficácia dessa ferramenta de conhecimento do mundo: dessa maneira as experiências nos mostraram que aqueles bebês a quem foram dadas chupetas de diferentes formas para chupar, sem que as vissem, tornavam-se capazes de reconhecê-las em seguida de maneira visual.

Sabe-se que desde o nascimento o bebê é capaz de imitar um rosto que lhe mostre a língua; isso constitui uma das primeiras brincadeiras que se pode fazer com um recém-nascido. Essa mesma brincadeira muito rapidamente se enriquece com a participação da mão, e do mesmo modo permite ao bebê experimentar as partidas e os reencontros.

Pode-se ver claramente a que ponto um bebê que tiver tido a liberdade de exercer seu livre arbítrio em seus movimentos, e tiver tido a oportunidade de experimentar as consequências desses movimentos, poderá assim construir os fundamentos de sua segurança interna. Do mesmo modo que todos os entraves, como a impossibilidade de chupar o dedo, ou toda restrição, terá um efeito no seu desenvolvimento.

Ele utilizará suas novas capacidades para descobrir o mundo com uma nova mobilidade. O andar lhe permitirá explorar mais longe com a ajuda de suas mãos. Ele poderá enriquecer suas representações com a utilização de acessórios, de palavras, de símbolos. Esse teatro permite a ele expressar sua vontade própria.

2) Dois exemplos clínicos

Carole, cuja mãe é superansiosa. Ela acha que seu bebê não pode fazer nada sem ela e quer poupar a ele todo sofrimento, bem como toda dificuldade e toda frustração.

Carole tornou-se dessa maneira uma expert na arte de fazer sua mãe se mexer: é muito passiva, não segura os objetos, não brinca com suas mãos, e com seis meses não manifesta nenhuma prontidão para sentar-se, nem para se mexer ou se deslocar. Quando está sentada e deseja mudar de posição, deixa-se simplesmente escorregar de lado e espera que sua mãe a instale em uma posição melhor. Sua mãe parou de trabalhar para cuidar dela: com esse sistema a mãe tornou-se mais do que ocupada!

Ao final de nossos encontros a mãe de Carole começou a se dar conta do que ela própria estava fazendo e o que sua atitude estava causando ao seu bebê. Começou a poder dar um tempo de latência antes de intervir, e pudemos ver Carole começar a se interessar pelo que podia fazer sozinha. Carole depende agora menos de espetáculos – “espetáculos de chocalhos, de ninar etc.” – que sua mãe organizava para ela permanentemente.

Descobrimos que sua vida é cheia de rituais complexos que ocupam todo o tempo de sua mãe. Por exemplo, ela faz Carole adormecer envolvendo sua cabeça com alguns bichos de pelúcia, recoberta por uma fraldinha que ela roça em seu nariz. A mãe me explica esse ritual durante uma sessão na qual Carole está claramente com sono. Carole pega um bicho de pelúcia que fazia parte do material disponível das sessões, esfrega seu nariz e joga o bichinho com um ataque de raiva. Sua mãe fica angustiada e arrasada pela culpa de não ter trazido os bichinhos de pelúcia habituais, sem os quais ela acredita que Carole não poderá adormecer. Mas, juntas, pudemos observar e eu lhe mostro como Carole pegou um outro brinquedo: um cubo de espuma mole recoberto de tecido. Ele parece ser uma escolha que lhe convém, e Carole o esfrega no nariz fechando os olhos. A mãe compreende então, com minha ajuda, que Carole tem capacidade e autonomia para adormecer sozinha: ela procurou ativamente reconstituir as condições mínimas habituais que lhe permitirão adormecer, encontrando um objeto com características táteis similares àquela de seus bichinhos de pelúcia conhecidos. Ela não teve necessidade que sua mãe “a adormecesse”. Carole estava numa “gaiola dourada” onde todos os seus desejos eram satisfeitos antes mesmo que pudessem ser expressos. Ela só precisava renunciar a seus desejos, renunciar a senti-los e se remeter completamente à sua mãe para toda e qualquer satisfação.

Mas este é um círculo vicioso que se instala rapidamente, pois a passividade do bebê reforça a ilusão na mãe de que é indispensável, e seu bebê incapaz. De fato, ele logo se tornará incapaz, pois toda a sua construção psíquica será entravada assim.

Darei um breve exemplo que coloca em evidência, a meu ver, essa dupla composição da atenção que permite ao mesmo tempo segurar e soltar.

Na consulta de nove meses, o pediatra achou Tim hipotônico e falou de atraso psicomotor. Sua mãe, muito inquieta, procura estimulá-lo colocando-o de pé para incitá-lo a andar, coloca-o sentado – posição que ele ainda mal domina –, para estimulá-lo com atividades com objetos. Convidei a mãe a colocar Tim sobre o tapete e não no bebê-conforto. Como ele oscila para um lado e outro, convido a mamãe a não colocá-lo sentado e nós o olhamos juntas. A primeira reação de Tim é se virar em direção à sua mãe e pôr-se a gritar. Sustentada por mim (e talvez um pouco impedida de agir), ela não intervém, e Tim interessa-se por uma bola de vime dentro de um vaso de plástico transparente. O objeto está um pouco longe dele, e ele grita dirigindo-se à mãe. Nós comentamos sobre o interesse dele pelo objeto, mas também sobre o hábito que ele adquiriu de contar com sua mãe para aproximá-lo dos objetos que deseja. O interesse dele é mais forte e ele consegue aproximarse o suficiente e suspender a bola de vime. Mas ela rola para dentro do vaso sem que ele possa agarrá-la. Ele vira-se novamente para sua mãe e se põe a berrar. Ela exclama “mas ele grita para mim depois!” Parece ser esse mesmo o caso: essa fúria explosiva parece manifestar que sua mãe é, para ele, responsável por todos os incômodos do mundo e por todas as suas frustrações. Parece que ele conta com ela de maneira infalível…mas não conta com ele mesmo. Ele arrasta-se, puxando-se pelos braços. A mãe lamenta o fato de ele estar tão longe ainda de engatinhar. Ele se irrita com a bola – esta vez não com sua mãe –, e consegue virar o vaso e agarrar a bola. Ufa! A mãe o felicita e nós comentamos sobre a satisfação e o orgulho dele, manifestos. Mas empurrada por ele com força, a bola rola… e deixa o tapete. Foi demais! E Tim começa uma gritaria de fúria dirigida à mãe.

Seremos agora auxiliados pela sorte, associada com a tecnologia moderna: o pai, que estava em viagem há alguns dias, telefona nesse momento e a mãe lhe conta sobre suas descobertas. Para atender ao telefone ela se estica, colocando-se dessa forma em linha reta atrás da bola. Assim, os protestos veementes de Tim, que em seguida se tornam gritaria, parecem se dirigir para a bola e para sua mãe [ao mesmo tempo]. Ela então vai fazer ao vivo para o pai o comentário sobre aquilo que Tim faz: “É inacreditável, diríamos que ele me repreende, ele me olha… bem… ele me repreende e à bola também. Mas que temperamento! Você verá isso… ele faz tudo que pode para se aproximar. Você verá os esforços que ele faz… Ele tem um desejo absurdo de engatinhar, ele eleva suas nádegas, mas não consegue… Ele recomeça, te juro que diríamos que ele vai engatinhar… Oh! Ele conseguiu ir adiante apoiando-se nos braços… Ele avança uma perna…Oh! ele se move. É incrível: ele engatinha! Ele alcança a bola… ele a pega…Oh! é isso…é isso [que está acontecendo]! Ele conseguiu!”

O clima é o dos comentários de um jornalista esportivo. Sustentado por sua mãe e seu pai, os mais fiéis torcedores, Tim agarra sua bola com uma extraordinária expressão de triunfo, senta-se pela primeira vez sozinho, e pega a bola com as duas mãos.

É um momento de intensa emoção: é evidente que Tim está orgulhoso por ter atingido seu objetivo, e por ter podido contar com suas próprias forças. Seus pais estão também orgulhosos dele. Para seguir a analogia esportiva, é parecido com um esportista que marca um ponto e fica mais orgulhoso com isso do que com aquele ponto que ele viu na televisão ser conseguido por um atleta de renome!

Contrariamente ao que deixavam prever as performances de um bebê reputado como hipotônico, Tim andará dois meses depois.

3) Nos atendimentos terapêuticos

As aplicações práticas, das quais não farei um catálogo, decorrem do simples bom senso. Este pressupõe “somente ver” o bebê. Como vimos bem no exemplo de Tim, é a ansiedade da mãe, infelizmente reforçada pelo pediatra, que a impedia de ver as possibilidades de seu bebê. “Somente ver” não é tão simples e pressupõe tornar menos denso o que impede e torna cego de forma interna [esse olhar]. Essa é a ajuda que um profissional pode dar, sob a condição de que ele:

• saiba reconhecer os pontos nodais e, de maneira geral, decifrar a linguagem corporal;

• não intervenha no lugar dos pais [tornando-os passivos], o que os confirmaria em sua incapacidade, do mesmo modo que a intervenção [dos pais] no lugar do bebê torna esse passivo e dependente, pois, como o bebê, os pais perderiam toda confiança em suas próprias capacidades;

• possa sustentar ativamente a atenção dos pais sobre o bebê e se apoiar sobre sua própria capacidade de observação de clínico; isto pressupõe respeito, atenção, distanciamento nas ações e engajamento emocional;

• desenvolva modos de intervenção não intervenientes, formas de interpretação não incisivas, não forçosamente interpretantes (trabalho de ateliê nas terapias de modo mais técnico) ;

• saiba bem como olhar o que faz o bebê sem [concepções] apriorísticas e, sobretudo, quando não compreende o sentido, que se proteja de encontrar algo já pronto para pensar.

 

Conclusão

Ter como referência o desenvolvimento “normal” do bebê, a situação de crise “normal” de toda a família, ver os disfuncionamentos normais, ver a patologia normal da nova família não permite apenas relativizar dizendo que isso passará (a expressão: “é normal, é o baby-blues”, é algo que não serve a ninguém e deixa sem ajuda alguma), mas permite reconhecer algumas vezes entre expressões francamente patológicas a parte de exagero de fenômenos observados nas famílias comuns.

Não tratamos dos pais, mas tratamos a parentalidade, no mínimo de maneira suficiente para que o bebê possa desenvolver-se e fabricar os fatores daquilo que Cyrulnik chama de resiliência.

Sob a condição de se apoiar nesses aspectos “normais”, de ajudar para que as famílias possam reconhecer por elas mesmas os aspectos sadios com os quais podem contar, é o que ajudará a desenvolver; pode-se, então, sair do dilema do demais ou muito pouco, que faz a quadratura do círculo da parentalidade.

 

Referências

Bick. (1987). Collected Papers of Martha Harris and Esther Bick. London: Clunie Press. (Trabalho original publicado em 1967)        [ Links ]

Cramer, B. & Espasa, F. P. (1993). Técnicas psicoterápicas mãe-bebê. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1971). Vocabulário da Psicanálise. Lisboa: Moraes Editores. (Trabalho original publicado em 1967)        [ Links ]

Magnana, J. (1992). Observation d’un bébé avec Esther Bick. Journal de Psychanalyse de l’enfant, Bayard Ed., (12), p. 173-208.

Winnicott, D. W. (1978). A preocupação materna primária. In: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1956)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Régine Prat
Société Psychanalytique de Paris SPP
28 chemin de la Creuse Voie
91570 Bièvre France
E-mail: regine.prat@freesurf.fr

Recebido em: 19.12.2008
Aceito em: 20.1.2009

 

 

1Trabalho apresentado na Conferência do dia 28 de agosto de 2008 à Av. Dr. Cardoso de Melo, 1450 – Térreo – Auditório Sigmund Freud. Atividade da Diretoria Científica e Secretaria de Psicanálise de Crianças e Adolescentes da SBPSP. Agradecemos as tradutoras: Ana Maria Rosa Rocca Rivarola, Beatriz Helena Peres Stucchi, Cláudia do Amaral de Meireles Reis. Revisora: Teresa Rocha Leite Haudenschild
2Psicóloga, psicanalista, membro da Société Psychanalytique de Paris SPP e da Association Francophone des Formateurs à l’Observation de Bébé selon Esther Bick (AFFOBEB).
3Esther Bick, ensino oral traduzido por M. Haag in “A propósito das primeiras aplicações francesas da observação regular e prolongada de um bebê na família segundo o método de Mrs Bick”, tiragem privada 18, rue Emile Duclaux Paris XV

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons