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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008
RESENHAS
Resenha: Maria Cecília Pereira da Silva1
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações
Tatiana Inglez-Mazzarella
São Paulo: Escuta, 2006
O que é inelutável é que somos postos no mundo por mais de um outro, por mais de um sexo, e que nossa pré-história faz de cada um de nós, bem antes de nascermos, o sujeito de um conjunto intersubjetivo, cujos sujeitos nos têm e nos mantêm como servidores e herdeiros de seus ‘sonhos de desejo insatisfeitos’, de seus recalcamentos e de suas renúncias, na malha de seus discursos, de suas fantasias, de suas histórias. (Kaës, 1993, p. 13)
Estas palavras de Kaës ilustram o interesse de Tatiana Inglez-Mazzarella em discutir a herança genealógica enquanto constitutiva da vida psíquica do ser humano em seu instigante livro Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações, resultado de sua dissertação de mestrado defendida pela PUC/SP.
“Qual a complexidade e a extensão do “passado” que marca para o bem e para o mal cada “presente” ao longo de uma existência? De quantas pessoas se faz uma pessoa? Quantas experiências de vida (...) compõem uma subjetividade? Quantas vozes e quantos silêncios calam em cada um de nós?” Com essas perguntas Luís Cláudio Figueiredo apresenta esse livro em que a autora procura respondê-las tratando da transmissão psíquica transgeracional e intergeracional, dialogando com diversos autores e ilustrando com situações clínicas, além de fazer várias referências à literatura.
Tatiana Inglez-Mazzarella inicia apresentando os caminhos da história da transmissão psíquica geracional, passando pelos apontamentos freudianos sobre esse tema, dialogando com os precursores Abraham, Torok e Tisseron. Transita por Ferenczi, Lacan, Aulagnier, Kaës, Golse, Granjon, Baranes, Penot, Mezan, Szejer, Moro, Safra, entre outros, sempre articulando com sua experiência clínica.
Muito apropriadamente, a autora discute os limites entre o eu e o não-eu, o que é fantasia e o que é realidade, o que é memória e o que é história. Aportada numa visão lacaniana, afirma que o ponto de partida da constituição do eu é sempre o Outro, pois o homem é um ser social, e explicita a relevância do aspecto da negatividade da transmissão:
Não é só da positividade que se faz uma pessoa; há sempre uma porção da negatividade, algo que não foi dito, representado ou constituído. É desta dimensão da transmissão em seu negativo que discutiremos: do não-dito, tanto do proibido de dizer do indizível… o indizível no qual não há palavras para dizer e o indizível no qual as palavras são insuficientes. (p. 15)
Afirma que o analista, para escutar, necessita amarrar conceitos como uma forma de compreender o sofrimento dos analisandos. Arrisca-se nessa empreitada
… buscando a superação da rigidez e da incomunicabilidade dos modelos teóricos, tencionando não perder de vista duas qualidades essenciais do analista: o deixar-se abalar pela escuta e o procurar compreender do que se fala, ou, até mais aquém, do que não se fala, pois muitas vezes sequer há palavras para isso. (p. 17)
Dentre as situações clínicas apresentadas destaco o caso de Bárbara, três anos, ponto de partida de sua reflexão, uma menina com manobras tipicamente autistas. Esse relato traz à tona a importância das consultas terapêuticas conjuntas com pais e filhos, como favorecedoras de uma aliança terapêutica com os pais e a compreensão do sintoma num contexto familiar trans e intergeracional, e sua contribuição como modelo de parentalização.
O sintoma de Bárbara é expressão de sua necessidade de encontrar um objeto que a compreenda e nomeie suas emoções. Ali, na sessão com Tatiana, ela brinca de escondeesconde, um jogo que denuncia o quanto quer ser achada. Depois do esconde-esconde inicia a brincadeira de mamãe-filhinha, com funções discriminadas, em que a analista tem sempre que ser a mãe evidenciando a distinção de gerações e ocupando o lugar de criança, o que não podia viver até então em suas relações transgeracionais. Por fim, de médico, encontrando na analista o objeto reparador para todo o seu sofrimento. Mas, fundamentalmente, durante a análise, Bárbara pôde começar a brincar e a compulsão masturbatória foi trocada pela palavra, pelo jogo como elaboração de lutos e conflitos que pertenciam a outras gerações.
A esse propósito, Giana Willians (1997a, b; 1999) afirma que nas situações em que os pais possuem patologias graves ou são incapazes de conter suas projeções sobre o bebê, o bebê torna-se um receptáculo (e não um continente) desses corpos estranhos dos pais (ao invés de conteúdos), pois ele ainda é incapaz de metabolizar esses aspectos. N esses casos, a falha da capacidade de continência é extremamente danosa e pode originar o terror sem nome, como o reverso do modelo continente/contido (Bion, 1962). Então, muitas vezes, a presença de um observador de bebês (Bick, 1948) pode facilitar o processo de separação sadia ou de discriminação entre mãe e bebê. N esses momentos frequentemente a mãe se alia ao observador em sua postura observacional distanciando-se da criança, começando a notar alguns aspectos singulares da personalidade de seu bebê, do que ele gosta e do que não gosta, enquanto uma pessoa com necessidades próprias. (Silva, 2007a)
No segundo capítulo, por meio de conceitos como identificação, repetição, incorporação e introjeção, relevantes para compor o entendimento acerca da transmissão psíquica geracional, Inglez-Mazzarella mostra sua visão sobre a negatividade da transmissão.
Ao discutir as relações entre história e filiação, aponta a importância da instituição da diferença geracional, aquela que marca as posições ocupadas na constelação familiar e que se tornará relativa ao longo do nascimento da descendência.
Destaca como nos tempos atuais cada vez mais recebemos pessoas vivendo importantes crises após o nascimento de um filho, desde uma depressão até a eclosão de uma psicose. Quando a diferença geracional e a diferença entre os sexos podem se inscrever há referências para se apoiar e há a instauração da tríade com a presença da figura paterna. Tatiana reafirma a importância da função paterna, da lei, para a possibilidade da entrada do sujeito na condição neurótica e não psicótica.
Propõe que a dimensão da realidade, não é menos importante do que a dimensão fantasmática que desenvolve e sustenta a transmissão entre as gerações. Refere-se aos trabalhos realizados com base em catástrofes sociais como a Shoah, e aponta que diante dessas catástrofes, mas não só, é necessário pensar em uma articulação fundamental entre o intersubjetivo, representado no grupo primário da família e do social, e o intrapsíquico, na constituição do sujeito:
(...) apenas o trabalho da memória, na produção de algum nível de nomeação, representação e simbolização, é capaz de restituir pelo menos parte do tecido simbólico esburacado pela intensidade violenta, fazendo uma contraposição ao horror experimentado na realidade. O não reconhecimento da dimensão desta realidade pelo social e pela família é fonte de “buracos” na constituição psíquica. A denegação opera tão traumaticamente quanto a situação traumática em si. O não falar impossibilita o pensamento. Aí é que se fica, então, diante da dimensão negativa da transmissão, que ocorre quando a vivência não entrou no registro das palavras. (p. 55)
Esclarece que herança em seu trabalho está sublinhada tanto em termos de continuidade quanto de ruptura, e é nesse sentido amplo que compreende o geracional como estruturante da psique.
No terceiro capítulo, discute a questão da constituição do sujeito em sua articulação com a história e a filiação, buscando aprofundar a discussão, diferenciando a transmissão em sua dimensão de negatividade: intergeracional e transgeracional.
Tatiana detem-se cuidadosamente sobre a transmissão do negativo. O pacto denegativo, desmentido, forcluído, recusado. Define as noções de transgeracionalidade, intergeracionalidade, introjeção, incorporação, trauma, cripta, fantasma. Além da noção de identificação endocríptica, conceito de Abraham e Torok, aquela na qual a identidade do sujeito é trocada pela identificação com o objeto perdido.
Do ponto de vista técnico propõe que, diante de situações traumáticas, o analista tome em consideração que algo existiu e que só poderá ser ressignificado na análise se o analista estiver atento à importância da realidade como vivido na construção da subjetividade.
Nesse tema o trauma ocupa seu lugar, afirma a autora: “Abraham é herdeiro de Ferenczi, para quem tomar a realidade psíquica como verdade e conferir à realidade material do vivido um estatuto menor é correr o risco de deixar de fora importantes ‘nós’ traumáticos, que insistem sob forma de repetição atuada, porque fora do campo representacional” (p. 112).
No quarto capítulo, estabelece as relações entre o não-dito e a transmissão. Inicia com a diferença entre as qualidades do não-dito: proibido de dizer e indizível do sem palavras para dizer e da insuficiência das palavras, utilizando-se de ilustrações clínicas e de produções culturais. Destaca que o segredo é uma forma privilegiada de transmissão psíquica geracional, diferenciando pelo menos duas categorias de segredo que atravessam gerações: o não-dito do proibido de dizer e o inominável.
Nesse capítulo narra o olhar selvagem de Radmila Zygouris e todo processo da paciente se fazer herdeira de sua história. Descreve o caso de Matheus, um menino Barbie, em que um fenômeno transgeracional pôde ser elaborado no processo analítico e ele pôde “reprojetar seu futuro” (p. 32). Faz várias referências ao holocausto, ao nazismo como uma herança de difícil apropriação. Discute um caso de psicose infantil de Bernard Penot em que este autor apresenta a questão do indizível, da infância e do delírio.
Do meu ponto de vista, quando a autora trata do “excesso” ao se referir às narrativas reveladoras das situações traumáticas (“um excesso intratável, inimaginável, irrepresentável”, p. 138), acredito que ela fala de identificações projetivas massivas e exitosas, excessivas ou vazias, cheias demais ou inaudíveis (Faimberg, 1993), identificações mórbidas (Silva, 2003, 2007), mas que de qualquer forma são transmitidas inconscientemente por meio de gerações adoecendo o sujeito e demandando um trabalho psicanalítico. Podemos pensar que do ponto de vista do sujeito, a vivência de ser objeto de uma transmissão inter ou transgeracional, seja ela excessiva ou vazia, é de um “cheio em excesso”2 que a mente não consegue processar, sendo alienante e impeditivo da constituição psíquica ou da subjetividade.
Em suas considerações finais procura pensar a clínica sob a égide da herança psíquica. Defende a ideia de que só se alcança a ampliação da escuta analítica se o aspecto da transmissão psíquica geracional for tomado em consideração. Acredita que a partir dessa escuta ampliada, diante de certos impasses do cotidiano clínico, alguns elementos se organizam, demandando outras leituras e intervenções. Ressalta que em todos os atendimentos há elementos da transmissão quando se pode escutá-los, contudo, em alguns mais do que em outros, torna-se necessário trabalhar com a criação da possibilidade de encontrar uma maior mobilidade identificatória, mas para todos os casos a escuta do analista é peça-chave.
Conclui apontando que, para ela, pensar na transmissão psíquica geracional é pensar numa articulação entre narcisismo e Édipo, entre história e pré-história, entre constituição psíquica e intersubjetividade.
Tatiana Inglez-Mazzarella provoca no leitor o despertar de “uma escuta mais aguçada do analisando através do tempo, das gerações, restituindo a ele o que lhe pertence, discriminando isso do que carrega indevidamente como sobrepeso”. (p. 164)
Referências
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Bion, W. R. (1991). Aprendiendo de la experiencia. México: Paidós. (Trabalho original publicado em 1962) [ Links ]
Faimberg, H. (1993/2001). Escuta da telescopagem das gerações: pertinência psicanalítica do conceito. In: Kaës, R. et al. Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 129-145. [ Links ]
Kaës, R. et al. (2001). Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 13. (Trabalho original publicado em 1993) [ Links ]
Silva, M. C. P. (2003). A herança psíquica na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo/Fapesp. [ Links ]
_____ (2007). Identificação mórbida: comunicação transgeracional traumatizante. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, 14, 137-165. [ Links ]
_____ (2007a). O impacto emocional da observação de bebê no observador e na relação mãe-bebê. Percurso - Revista de Psicanálise, nº. 39. pp.69-80, dez/2007. [ Links ]
Williams, G. (1997a). O bebê como receptáculo das projeções maternas. In: Lacroix, M.B.; Monmayrant, M. (Orgs.). Os laços do encantamento: a observação de bebês segundo Esther Bick e suas aplicações. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 105-12. [ Links ]
_____ (1997b). As angústias catastróficas de desintegração, segundo Esther Bick. In: Lacroix, M.B.; Monmayrant, M. (Orgs.). Os laços do encantamento: a observação de bebês segundo Esther Bick e suas aplicações. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 37-9. [ Links ]
_____ (1999). On different introjective processes and the hypothesis of an Omega Function. Psychoanal Inquiry, 19 (2), 243-53. [ Links ]
1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Segundo Faimberg (1993), a atitude dos pais de apropriação e de intrusão gera no paciente um psiquismo ao mesmo tempo vazio, devido à apropriação do que é bom e espontâneo no paciente, e cheio em excesso devido à intrusão dos elementos rejeitados pelos pais. Esses elementos rejeitados correspondem às histórias dos pais com seus próprios pais, resultando no paciente identificações com situações de gerações anteriores às dos pais, e assim Faimberg define o que chama de “telescopagem de gerações”. “O trabalho analítico vai se ocupar de desenrolar esse emaranhado de elementos inconscientes libertando o paciente dessa trama” (p. 80) e permitindo o desabrochar de um psiquismo (Silva, 2003).