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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009

 

ARTIGOS

 

A psicanálise como atividade: desafios e resistências

 

El psicoanálisis como actividad: desafios y resistencias

 

Psychoanalysis as activity: challenges and resistance

 

 

Ney Marinho1

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor procura responder ao questionamento sobre o que seria específico e/ou revolucionário na psicanálise e o campo de resistências que ela geraria no presente. Parte de um vértice: o da psicanálise como uma atividade e, a partir deste ângulo, desenvolve sua resposta em três seções. A primeira discute a especificidade da epistemologia psicanalítica. A segunda, a radicalidade da clínica psicanalítica, tomando como referência um texto de Michael Brearley. A terceira é dedicada às resistências internas (a partir do próprio movimento psicanalítico) e externas (a partir da cultura). Finaliza desenvolvendo as epígrafes que abrem o trabalho e pretendem resumi-lo.

Palavras-chave: Psicanálise; Atividade; Epistemologia; Forma de vida; Resistência; Michael Brearley; Wittgenstein; Bion.


RESUMEN

El autor busca responder al cuestionamiento sobre lo que sería específico y/o revolucionario en el psicoanálisis y el campo de resistencias que él generaría actualmente. Parte de un vértice: el del psicoanálisis como una actividad y, a partir de este ángulo desarrolla su respuesta en tres secciones: En la primera discute la especificidad epistemológica del psicoanálisis. En la segunda, la radicalidad de la clínica psicoanalítica, tomando como referencia un texto de Michael Brearley. En la tercera se dedica a las resistencias internas (partiendo del propio movimiento psicoanalítico) y externas (partiendo de la cultura).
Finaliza desarrollando los epígrafes que abren el trabajo y pretenden resumirlo.

Palabras clave: Psicoanálisis; Actividad; Epistemología; Forma de vida; Resistencia; Michael Brearley; Wittgenstein; Bion.


ABSTRACT

The author seeks to asnswer the question “what would be specific and/or revolutionary within psychoanalysis and the field of resistance that it would generate in the present. Part of the vertex: that of psychoanalysis as an activity and, from this angle develops his answer in three parts. The first one discuses the specificity of psychoanalytic epistemology. The second one, the radicality of psychoanalytic clinic, taking as a reference a text by Michael Brearley. The third one is dedicated to the internal resistences (from the psychoanalytic movement itself) as well as external ones (from culture). He concludes developing the epigraphs which open this article and intend to summarize it.

Keywords: Psychoanalysis; Activity; Epistemology; Lifestyle; Resistence; Michael Brearley; Wittgenstein; Bion.


 

 

Escrito está: ‘Era no início o Verbo!’
Começo apenas, e já me exacerbo!
Como hei de ao verbo dar tão alto apreço?
De uma interpretação careço;
Se o espírito me deixa esclarecido,
Escrito está: No início será o Sentido!
Pesa a linha inicial com calma plena,
Não se apressure a tua pena!
É o sentido então, que tudo opera e cria?
Deverá opor! No início era a Energia!
Mas, já, enquanto assim o retifico,
Diz-me algo que tampouco nisso fico.
Do espírito me vale a direção,
E escrevo em paz: Era no início a Ação!
(Goethe, Fausto)

 

A que se está resistindo? À investigação? À interpretação? À experiência emocional de investigação? À possibilidade de descobrir algo? Ao despertar das emoções? Aos elementos da posição esquizoparanoide? À junção do esquizoparanoide com o depressivo? À irrupção da posição depressiva?

Enquanto escrevo, considerando que a resistência, provavelmente, é tudo que disse, descubro estar pensando em Z com ódio e medo: faço de mim mesmo uma imagem pictórica, levantando em um reunião e atacando Z por ser um desastre para sua profissão. E me ocorre que é dessa imagem visual que tenho medo. Não quero ter a experiência da imagem visual. Um medo desse tipo, levado muito adiante, pode inibir ou destruir α - o processo pelo qual o fato imediato é transformado em material “armazenável” em vez de ser apenas introjetado como um fato indigesto. Imagem visual de mim mesmo sendo expelido da reunião e fazendo um apelo nobre e apaixonado.

Os elementos são então fragmentos do “casal” destruído, e isso combina com o que observo em X.

Mas e a matemática e a música? A geometria é um tipo de imagem visual; a música pode evocar imagens visuais.

O que leva então à resistência em música ou matemática? No meu modo de pensar, é esfinge, a praga (de “elementos”?), o temor de experimentar o interjogo entre posição esquizoparanoide e depressiva. Por que os elementos são tão mortíferos? (Bion, 2007, p. 102).

Sempre poderíamos dizer de um homem que é um autômato (poderíamos aprender isto na escola, nas aulas de fisiologia) e, contudo, isto não influiria em minha atitude para com os demais. Inclusive, posso dizer de mim mesmo.

Porém, qual a diferença entre uma atitude e uma opinião?

Eu diria: a atitude vem antes da opinião. (Wittgenstein, 1996, p. 53)

 

O gentil convite da Revista Brasileira de Psicanálise para discutir a especificidade da psicanálise, “… o específico e/ou revolucionário da psicanálise”, e o campo de resistências que ela gera, veio acompanhado de um amplo esclarecimento de modo a deixar o convidado à vontade para explorar como melhor considerasse o tema.

A partir desta liberdade que me foi concedida, pretendo apresentar minha contribuição limitada a um único vértice: o da psicanálise como uma atividade, uma atividade sem propósitos pré-estabelecidos, sem fins, daí sua especificidade e radicalidade e, consequentemente, um poderoso campo de resistências. Admito a possibilidade de inúmeros outros vértices que bem poderiam representar significativos pontos de vista psicanalíticos. Entretanto, a escolha de desenvolver a ideia da psicanálise como uma atividade sem fins não somente atende a meus interesses atuais de pesquisa, mas acredito ser um ângulo pouco explorado, pelo menos explicitamente, ao mesmo tempo em que oferece promissoras perspectivas clínicas, epistemológicas e éticas, capazes de superar tradicionais impasses. Não ignoro que novos problemas surgirão, não sendo meu intuito evitar ou extinguir os impasses e as aporias inevitáveis ao nosso ofício.

Como me lembrei de convite muito semelhante que recebi em 2007, no II Encontro Luso-Brasileiro de Psicanálise, em Salvador (Bahia), julguei conveniente utilizar o texto então apresentado como base, e que se manteve inédito por não me satisfazer o suficiente, agora revisto e atualizado pela experiência desses dois últimos anos, embora continue insuficiente.

É significativa a recorrência do tema - especificidade da psicanálise e os confrontos ou resistências que gera - da mesma forma que a minha insatisfação em relação a qualquer resposta. Contudo, penso que o diálogo é que importa, por mais incipiente que seja. Assim, mesmo considerando minha formulação ainda embrionária, ofereço-a ao debate proposto, esperando que o mesmo a desenvolva.

Parto da suposição de que a psicanálise tem uma inerente dimensão prática. Dimensão talvez não seja um bom termo, pois o que quero dizer é que a psicanálise é uma prática, tal como podemos ver na obra de Freud e de seus continuadores, qualquer que seja a corrente e direção que tenham tomado. Em outros termos: entendo que a psicanálise é, sobretudo, uma atividade e não me refiro exclusivamente à clínica psicanalítica, mas à própria teoria psicanalítica. Esta é baseada em descrições de eventos ou de histórias que podem ser expostas e vividas em uma sessão de 50 minutos, assim como podem reproduzir períodos de mais de 50 anos de uma vida, ou, ainda, de mais de 5.000 de uma cultura, caso levemos na devida consideração nossos mitos fundadores.

Exponho meu entendimento das questões sugeridas em três seções: a especificidade (por meio de sua peculiar epistemologia); a radicalidade (por meio de sua clínica) e as resistências (tanto externas como internas). Deixo para as considerações finais o tema das consequências do que se convencionou denominar a “crise da psicanálise”, sob o ponto de vista que estou privilegiando da psicanálise como uma atividade.

 

1. A psicanálise como uma nova maneira de ver as coisas

Ao enfatizar o caráter prático, de atividade, da teoria psicanalítica, já me comprometo com uma posição epistemológica. Estou ciente de que os debates sobre a epistemologia da psicanálise despertam, via de regra, certo enfado e o temor de ouvirmos velhas e batidas repetições de defesas e ataques quanto à cientificidade da psicanálise ou coisas do gênero.Contudo, por mais enfadonhas e já um tanto caducas que sejam tais discussões, elas têm um aspecto interessante e esclarecedor, caso tenhamos a devida paciência de acompanhálas mais de perto. Principalmente, se nos voltarmos mais para a racionalidade da psicanálise do que para a sua suposta cientificidade, tema que adquiriu outros contornos dada à evolução da noção de ciência.

Sabemos que Freud sempre alimentou a esperança de ver sua “nova ciência” validada em termos análogos às ciências naturais, embora não ignorasse que elas também sofressem contestações quanto a seus fundamentos e, principalmente, quanto aos seus procedimentos de validação. Apesar de todas as suas preocupações “científicas”, Freud nunca deixou de seguir seu habitual método de trabalho: formular suas hipóteses, confrontá-las com a experiência clínica e com seus estudos sobre a história da cultura; reformulá-las, criando inclusive teorias ad hoc (para escândalo de futuros críticos e gáudio de outros) com o intuito de preservar o mais possível suas hipóteses, e assim foi construindo sua formidável obra.Constantes foram suas reformulações teóricas a partir do que lhe informava a experiência clínica, ou do que lhe solicitavam inusitados eventos culturais. Recordemos o seminal texto que é “Luto e melancolia”, com todas as suas implicações teóricas, surgido para dar conta deste desafio que é compreender o trajeto da tristeza à melancolia; da mesma forma, recordemo- nos do impacto da I Grande Guerra sobre o autor, e a sequência de obras que então se sucedem, de “Reflexões em tempos de guerra e morte” até “Além do princípio do prazer”. Portanto, a clínica, a cultura ou a vida cotidiana sempre forneceram à teoria psicanalítica o oxigênio necessário para sua perene vitalidade, apesar de todas as ameaças externas ou internas. É este aspecto ativo, de responder aos desafios e solicitações da clínica e da cultura, o ponto que desejo sublinhar como o que dá sentido e peculiaridade à teoria psicanalítica. A psicanálise, segundo esta leitura, não tem caráter prescritivo como uma “filosofia de vida” ou uma religião. Freud se preocupava com tais distinções. A partir do vértice que estou propondo, a psicanálise não levanta novas questões ou sugere novas condutas, ela procura responder às solicitações da vida e de seu tempo. Sem dúvida, suas respostas, via de regra, constituem novos questionamentos até então insuspeitados.

Outro exemplo da dimensão prática da psicanálise se revela na formação de seus profissionais. Tem - a formação psicanalítica - características muito peculiares, marcadas por um grande envolvimento pessoal e mais uma vez uma intensa atividade. A formação analítica é, a meu ver, um legítimo processo de ascese, uma vez que visa a uma formação e não a um grau mais ou menos sofisticado de instrução especializada. Ou seja, espera-se que o postulante a psicanalista com o decorrer de todo o longo processo - a última estatística realizada em nosso instituto indicava um tempo médio de sete anos (além de três outros prévios ao início dos cursos) - desenvolva uma capacidade de pensar sob o vértice psicanalítico. Ora, esta proposta tem estreitos pontos em comum com a própria terapêutica psicanalítica que, segundo alguns (entre os quais me incluo), propicia fundamentalmente uma nova forma de ver as coisas. Supostamente, tal desenvolvimento não se restringiria à atividade profissional, não sendo propósito de nossos institutos formar técnicos em psicanálise, nem mestres ou doutores, função da academia. Em consequência, a pretensão de formar psicanalistas é um ponto suscetível de despertar poderosas resistências, tanto internas quanto externas ao movimento psicanalítico. Voltarei a este ponto adiante. No momento, penso ser mais premente esclarecer em que consistiriam essa uma nova maneira de ver as coisas, assim como a proposta da psicanálise como uma atividade sem fins.

A rigor, essas duas propostas estão conectadas, pois o que proponho nesta apresentação é aproximar a experiência psicanalítica, e o conhecimento que ela propicia, da experiência estética. Entretanto, penso que mesmo dentro de uma concepção da psicanálise como uma atividade haveria um amplo espaço para colocá-la entre as demais ciências, caso tomemos a noção de ciência como uma atividade; atividade de resolver problemas, problemas empíricos e conceituais, tal como o faz Larry Laudan (1977).2 Porém, por mais atraente que seja a proposta pragmática de Laudan que, a meu ver, supera e avança certas dificuldades da epistemologia de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, abrindo um amplo campo de pesquisa, a aproximação com a estética é a minha escolha. Friso este ponto por considerar que qualquer avaliação epistemológica é sempre uma escolha entre várias possibilidades, igualmente legítimas, desde que as escolhas não sejam arbitrárias, ofereçam alguma forma de justificação e, sobretudo, arquem com as questões e impasses que inevitavelmente geram. Desta forma, cabe agora justificar as razões de minha escolha. A mais imediata é que o convite fala da especificidade da psicanálise e de seu possível caráter revolucionário. Para desenvolver este ponto, vou tomar um importante momento da obra de Kant como referência, pois o grande filósofo se defrontou com um problema análogo ao que os psicanalistas praticantes enfrentam quando desejam comunicar suas experiências: como pensar o singular. Além disso, Kant é reconhecidamente a grande influência filosófica de Bion, autor que tomamos como referência em nossas reflexões e prática. Curioso registrar que o ponto que vamos realçar na obra de Kant não é mencionado por Bion e, no entanto, tem muito parentesco com suas preocupações.

Muitos comentadores da obra de Kant (1989, p. 11-12),3 consideram que é impossível compreendê-la sem levar em consideração as três críticas - da razão pura, da razão prática e a do juízo - ou, colocando em outros termos: Kant estaria igualmente preocupado em compreender como é possível o conhecimento, a ética, mas também os juízos próprios à estética,4 ou seja, como podemos julgar - no sentido de avaliar, ajuizar, valorar, mas não no sentido de determinar (tal como ocorre nas ciências naturais), ou prescrever (tal como ocorre nas ações morais), um objeto por sua beleza - um objeto que é necessariamente singular, único, como é o caso do objeto estético. Lembremo-nos da Mona Lisa, da Pietà, ou de Guernica. Qualquer um de nós pode lembrar, evidentemente, de uma sessão, um paciente, ou uma experiência de vida que não gostaria que fosse catalogada como um caso disso ou daquilo, com este ou aquele rótulo, epíteto ou diagnóstico, sempre empobrecedor. Deste modo, Kant sentiu necessidade de formular um tipo específico de juízo: os juízos reflexivos. Ou seja, perante um objeto estético que é único, singular, não podemos utilizar fórmulas ou príncipios que nos guiam no conhecimento do mundo natural ou no mundo das ações éticas. Precisamos de formulações, de juízos que não podem determinar o objeto, e devem ser passíveis de discussão e crítica, e, ao mesmo tempo, almejar a universalidade - que sejam válidos tanto para o Timor-Leste como para New York, Paris ou São Paulo - da mesma forma que possam apreciar objetos dos antigos egípcios - lembremo-nos de Nefertiti - e os de nossos jovens, lembremo-nos de qualquer exemplo.

Independentemente de concordarmos ou não com as soluções kantianas, vale reconhecer que Kant, em sua investigação, descobriu e formulou certas proposições que são frequentemente esquecidas e que julgo muito atuais, uma vez que talvez sejam parâmetros decisivos para qualquer pensamento alargado sobre nossa condição humana. A proposta kantiana leva em consideração que, para a formulação de um juízo reflexivo, este deva obedecer certas máximas, quais sejam: pensar por si; pensar no lugar de qualquer outro e pensar sempre em acordo consigo próprio. Estas máximas que, como lembra Kant, são próprias ao entendimento comum, tornam-se elucidativas para a compreensão dos juízos estéticos, pois estes necessitam uma radical liberdade (ausência de preconceito), um essencial reconhecimento da intersubjetividade e uma coerência que lhes permitam candidatarse à universalidade. São juízos que exigem uma ampla comunicabilidade. Nesse percurso, Kant desenvolverá a noção de sensus communis que conduz à ideia de uma humanidade possível, assim como à ideia de gênio, como entidade capaz de fornecer regras à arte, que não se presta à imitação, mas serve como modelo. Acredito que os colegas habituados aos textos de Bion devam estar sentindo algo familiar, embora como já foi dito, Bion talvez não tenha tido acesso a este texto kantiano, mas por caminhos semelhantes tenha sentido necessidade de formular concepções análogas, como por exemplo a de gênio, messias ou ideia messiânica.

Esta breve digressão visou, sobretudo, realçar que a abordagem da psicanálise como um empreendimento análogo ao estético, longe de banalizá-la ou enfraquecê-la, abre um vasto campo de pesquisa sobre a natureza específica do conhecimento que produz, de sua avaliação e de suas possibilidades de desenvolvimento.

Guarda ainda a psicanálise uma semelhança de família com a estética muito instigante: ambas têm uma peculiar relação com a noção de finalidade. Por motivos diversos, tanto à psicanálise como ao objeto estético, não podemos atribuir finalidades tal como o fazemos, por exemplo, no campo das ciências naturais. Sem que possa, no contexto deste trabalho, desenvolver o tema, proponho pensarmos a psicanálise como uma atividade sem fins.5

 

2. A clínica. “Psicanálise: uma forma de vida?”

Este é o título de um instigante artigo de Michael Brearley - psicanalista britânico e atual presidente de sua sociedade - publicado em 1989 numa coletânea de textos em homenagem ao centenário de Ludwig Wittgenstein. Dessa coletânea fazem parte trabalhos de G. E. N. Anscombe, J. Bouveresse, Peter Winch, entre outros, tendo como texto final “Loucos e heréticos”, de Renford Bambrough que aborda tema que nos diz respeito muito de perto: a coexistência de loucura e razão, o com sentido e o sem sentido em cada um de nós. Faço este comentário, ao qual voltarei adiante, para registrar como o trabalho conjunto de filósofos e psicanalistas, apesar de toda uma gama de publicações, ainda é incipiente. O relativo desconhecimento do texto de Michael Brearley penso estar dentro deste contexto de um diálogo rudimentar. Brearley (1991) expõe seu propósito no primeiro parágrafo do texto:

Meu objetivo neste trabalho é considerar a sugestão feita, num texto inédito de Peter Hobson, um colega psicanalista, que a psicanálise é uma forma de vida. Hobson se impressiona com a peculiaridade do pensamento psicanalítico, por sua especificidade, e pelo fato de que seus conceitos estão incrustados num sistema de práticas e crenças tais que alguém estranho a tudo isso pode ser incapaz de entender o que um analista diz, quer para seu paciente, quer para outro analista. Hobson usa a noção de Wittgenstein de forma de vida para referir a este sistema de práticas e crenças, mas não critica ou examina a própria noção. (p. 151)

Brearley examinará a noção wittgensteiniana, tal como foi utilizada por Hobson, e concluirá que, embora uma peculiar extensão do entendimento comum, a psicanálise não se constitui numa diferente forma de vida, partilhando - analistas e analisandos - do que Wittgenstein chamou de “complicada forma de vida”, referindo-se ao comportamento comum da humanidade.

Antes de entrar em considerações clínicas, é importante esclarecer que a noção de forma de vida surge na obra de Wittgenstein, como um limite, o leito que alcançam nossas explicações. Daí, a nosso ver, o seu caráter necessariamente vago e impreciso, uma vez que qualquer tentativa de definição rigorosa levaria aos impasses da fundamentação. A esse respeito vale a pena lembrar de uma consideração de Wittgenstein (1990) que aparece em Da certeza:

Mas a fundamentação, a justificação da evidência tem um fim - mas o fim não é o facto de certas proposições se nos apresentarem como sendo verdadeiras, isto é, não se trata de uma espécie de ver da nossa parte; é o nosso actuar que está no fundo do jogo de linguagem. (DC, 204)

Se o verdadeiro é o que é fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro nem falso. (DC, 205)

Brearley desenvolve seu trabalho a partir de duas situações clínicas relatadas por seu amigo Hobson.

No primeiro fragmento clínico, Hobson descreve um episódio em que um paciente, na sexta-feira de sua primeira semana de análise, telefona para a clínica - onde ocorre o tratamento - e informa que não poderia comparecer à sessão. Diz não saber bem o nome de seu analista, podendo ser Hobbs, mas que poderia dar o número de sua ficha. Na segunda-feira, ao chegar à sessão, comenta com o analista se havia recebido a mensagem. Perante um gesto de concordância, diz: “Que bom! Fiquei receoso de não ter lembrado seu nome.” Após alguns comentários, o analista pergunta se seu nome não constava da carta que a clínica havia enviado ao paciente, ao que ele responde que a havia perdido no meio de papéis. O analista diz, então, chamar-se Hobson. O paciente diz que era o que pensava e continua acrescentando que na sexta esquecera que tinha algo importante a fazer, não podendo vir à análise. Em seu texto não publicado, Hobson comenta uma série de sentimentos que experimentou naquela ocasião, desde sentir-se manipulado pelo paciente até um confuso mal-estar físico e mental que acompanhou o protesto: “O nome é Hobson”. Numa reflexão posterior, este estado de desconforto adquiriu um significado. Lembrou que o paciente havia sido adotado quando muito pequeno; que talvez o tivesse feito órfão naquela sexta-feira, tornando-o um número, transformando-o em Hobbs, destituindo-o da qualidade de filho de alguém, Hobson. A dolorosa experiência vivida pelo analista foi por este tomada como a única forma possível daquele paciente, naquele momento, comunicar a experiência de ter se tornado um órfão (“… the painful experience of being orphaned”). Brearley reconhece que o exemplo de Hobson faz parte da prática cotidiana de qualquer analista e sua compreensão é fruto do peculiar processo de formação por que passamos, conforme por sinal havíamos registrado na seção anterior.

Vejamos a segunda situação clínica que se articulará com a anterior:

… um jovem autista chamado “Stephen”, paciente de um hospital psiquiátrico, era incapaz de compreender o que seria um “amigo”, Stephen importunava a equipe com intermináveis questões repetitivas, voltando sempre a indagar: “o que são amigos?”. Stephen - Hobson sugere - não podia compreender o significado da palavra “amigo” porque “ele não partilhava da forma de vida na qual amigos, e a linguagem da amizade, encontram sua existência…. A fim de partilhar de nosso entendimento de amizade, Stephen necessitaria tornar-se envolvido em relações pessoais da espécie que são próprias entre amigos.” (Brearley, 1991, p. 153)

Brearley comenta que Hobson compara a indagação: o que é um amigo? com a questão: o que é psicanálise? Para Hobson “… há uma dimensão do conhecimento psicanalítico referente a pessoas que é de uma ordem diferente de todas as demais maneiras de conhecer pessoas, e partilhar desse tipo de conhecimento implica que a pessoa deve participar de experiências de uma particular espécie, por particulares maneiras…”. Nesta linha de pensamento, somente por meio da descoberta deste caráter único da psicanálise é que se poderia saber o que é psicanálise. “Eu sugiro”, continua Hobson, “que um indivíduo sem conhecimento psicanalítico compreende nosso discurso psicanalítico tanto quanto meu paciente Stephen compreende quando se fala sobre amigos.” (p. 153)

A tese de Hobson não é tão radical quanto parece, segundo nos relata Brearley. Ela permitiria uma leitura mais fraca, reconhecendo a impossibilidade de uma forma de vida psicanalítica completamente independente. A rigor, ambos os textos (tanto o de Brearley, como o de Hobson, ao qual só indiretamente temos acesso) são bem sofisticados e não permitem um justo exame num texto rápido como este. O trabalho de Michael Brearley merece uma leitura cuidadosa. Para o ponto que de imediato nos interessa, concordam os autores com a especificidade da maneira psicanalítica de ver a vida emocional e com a importância de sua internalização. Contudo Brearley julga que, em qualquer crescimento no sentido de uma maturidade, “… todos somos psicanalistas, isto é, figuras parentais reflexivas em relação a nós mesmos.”

Uma vez que estamos voltados para a busca da especificidade da psicanálise em relação a outras técnicas psicoterápicas, ou seja: de seu caráter radical e/ou revolucionário, sugiro o auxílio de outro tipo de experiência: a investigação da loucura, sob o ponto de vista psicanalítico. Lembremo-nos que a psicanálise surgiu do desafio de distúrbios mentais que a ciência tradicional não dava conta e afastava de seu campo de pesquisa, definitiva ou temporariamente. Assim, os distúrbios mentais seriam fenômenos - a exemplo da sífilis - que expressariam enfermidades orgânicas, que estariam prestes a serem descobertas, restando a necessária paciência com respeito aos avanços da ciência. Interessante lembrar que, hoje em dia, deparamo-nos com certa expectativa similar, embora mais sofisticada.

O exame da loucura - sob qualquer designação (psicoses, casos limites etc.) - se oferece como um campo privilegiado de pesquisa, pois certas questões básicas se impõem. É o caso da discussão sobre o que teria sentido ou não (sense e non-sense), ou, o com sentido (consentido) e o sem sentido. Prestes a comemorarmos o centenário da morte de Daniel Paul Schreber e da publicação do texto de Freud - “O caso Schreber” (1911/1971) - após um período histórico de tantas revoluções, é compreensivelmente difícil avaliarmos adequadamente a coragem e ousadia intelectual da proposta freudiana de análise de um delírio. Considero que este é um marco que diferencia a psicanálise de outras abordagens, uma vez que - independente de resultados - a teoria psicanalítica se propõe a transpor a cerca que separa o racional e o irracional. E, neste sentido, desconheço outra tentativa de compreensão e, é bom lembrar, em epistemologia estamos sempre lidando com a comparação entre teorias, em geral, rivais. A proposta freudiana de compreensão do delírio inaugurou um campo que veio, mais adiante, a ser explorado por autores que a desenvolveram a partir de inúmeros vértices. A radicalidade que vejo nesta proposta, tomando o desenvolvimento de Bion como parâmetro, consiste numa aproximação de loucura e razão de modo a tomá-las como componentes de um mesmo conjunto, inseparáveis, caso desejemos um entendimento mais profundo do indivíduo e dos grupos. Por outro lado, os autores que se dedicaram ao estudo do fenômeno psicótico, ou de manifestações mentais muito primitivas, qualquer que seja a orientação - Melanie Klein, Rosenfeld, Meltzer, Winnicott, Lacan, Bion, entre tantos outros - foram profundamente influenciados pelo próprio campo de trabalho e deram contribuições decisivas para a teoria, a técnica e a ética da psicanálise. Acredito que todos aqueles que trabalham com pacientes psicóticos sentem que, por exemplo, as propostas técnicas de Bion - como a abstenção de memória, desejo, sensorialidade e entendimento; ou a noção de pensamento sem pensador - são tanto contribuições como exigências daquele trabalho que pede o permanente exercício de uma capacidade negativa.

Enfatizo este ponto - o particular chamamento que a psicanálise faz à loucura - tendo em vista a terceira questão que me foi colocada: o campo de resistência atual à psicanálise.

 

3. Sobre o nosso atual campo de resistências, internas e externas

A partir do ângulo que estou privilegiando - a psicanálise como uma atividade - vou procurar caracterizar nosso atual campo de resistências. Inevitável esperar que elas sejam tanto internas quanto externas, uma vez que o projeto psicanalítico é um programa de transformação pessoal - quer de analista quer de analisando - assim como se constitui num poderoso instrumento de crítica da cultura, supostamente descompromissado. Vejamos por partes essas questões:

Sobre as resistências internas - oriundas do próprio movimento psicanalítico - muito já se escreveu e, felizmente, muito se alcançou em termos de nos livrar de pretensas tradições que ameaçavam esclerosar precocemente a “jovem ciência” de Freud. Hoje, analisamos crianças, psicóticos, criamos instituições mais flexíveis e propícias à discussão científica, livres do jugo médico, menos hierarquizadas, mais ligadas ao ambiente social, em suma, obtivemos significativos avanços em relação às resistências que o próprio movimento psicanalítico impunha à natural expansão da psicanálise. Entretanto, resta saber se formamos melhores psicanalistas, qualquer que seja o significado desta expressão. Receio às vezes que tenhamos lançado fora a criança com a água suja, o entusiasmo e a paixão de muitos pioneiros podem ter ido junto com o autoritarismo aristocrático que nos asfixiava. Evidentemente, não estou sugerindo saudades de tempos obscurantistas, mas investigar as atuais resistências internas à psicanálise, sabendo que as mesmas sempre vão ocorrer. Neste sentido, remeto o leitor a um trabalho a ser em breve publicado, mas já podendo ser encontrado na biblioteca da Socidade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - SBPRJ, da colega Fernanda Marinho: “Cultura - Objeto não continente. Vicissitudes da formação psicanalítica”. Nesse trabalho, a autora propõe que a cultura forma, por um lado, com paciente/ analista e, por outro, com psicanálise/instituto o terceiro vértice de um triângulo necessário para haver um espaço de reflexão sobre a experiência analítica. Não vou expô-lo aqui, uma vez que se trata de um texto complexo que parte de uma experiência pessoal, das ideias de Bion sobre as relações do místico (ou de uma ideia messiânica, como a psicanálise) com o grupo e evoca trabalhos de outros psicanalistas - como Ronald Britton e Robert Caper - que também sentiram a necessidade de pensar algum tipo de triangulação que fornecesse a necessária objetividade à psicanálise. O que desejo utilizar do trabalho da colega, neste momento, é a noção de que a cultura é parte integrante de nossa compreensão da psicanálise atual, como a de outrora e a do futuro. Mesmo os longos períodos de insulamento da psicanálise não impediram que a cultura fosse um elemento determinante de sua evolução ou involução.6

Embora não separe resistências internas e externas, estou denominando assim estas últimas, quando provêm fundamentalmente da cultura. Sabemos que a psicanálise já foi proibida - por regimes políticos totalitários dos mais diversos matizes -; analistas já foram cerceados em exercer sua atividade; já foi aplaudida, venerada ao mesmo tempo que banalizada; assim como foi várias vezes tentada a livrar-se de alguns conceitos pouco aceitáveis - desde a sexualidade infantil até a pulsão de morte - pelo establishment. As relações da psicanálise com a cultura são necessariamente tensas.

Entendo que as resistências internas e externas interagem e buscam um equilíbrio, embora sempre instável. Uso a noção de establishment tal como está descrita no capítulo 11 de Atenção e interpretação (Bion, 2006), deste modo não tem sentido qualquer conotação pejorativa ou reacionária, mas o reconhecimento de uma inescapável instância, tanto individual quanto grupal.

Minha impressão, limitada como a de qualquer psicanalista que restringe seu campo de atuação ao exercício da psicanálise, malgrado acompanhar o movimento cultural de seu tempo, é a de observar um aparente paradoxo. Não ocorrem confrontos e resistências ostensivos atualmente à psicanálise; ao mesmo tempo, entretanto, ela enfrenta uma inegável e grave crise, marcada pela diminuição da procura por formação analítica, da busca de terapêutica analítica, da redução do número de sessões na prática de todos os analistas, marcada também pelo perverso subemprego de profissionais altamente qualificados,7 levando muitos deles até a abandonarem seu projeto profissional.

Faz parte deste quadro paradoxal, o fato de a psicanálise ter penetrado em todos os terrenos de nossa cultura ocidental, influenciando inclusive políticas sociais - tomemos as campanhas públicas de aleitamento materno, como exemplo - com êxito e ter se tornado uma referência imprescindível em qualquer discussão sociológica, antropológica ou filosófica sobre nossos tempos. Ainda neste sentido, lembro que não tão antigas oposições filosóficas à psicanálise - como foi o caso da obra de Adolf Grunbaum - parecem hoje tão envelhecidas que tornaram o debate a respeito pouco interessante. N ossos grandes atuais opositores seriam mais figuras sensacionalistas do que acadêmicas que, fabricando ou explorando algum escândalo de ocasião, procuram atingir a obra de Freud, não servindo sequer de interlocutores, da mesma forma que caem em rápido descrédito.

Onde estariam então os nossos adversários? São invisíveis e, segundo muitos, seria a própria cultura hegemônica atual. N ão entrarei nesta discussão, por já ter sido muito bem exposta por vários autores e para não me afastar do ponto que desejo frisar. Refiro-me ao fato de que, a meu ver, o fenômeno relevante é o ataque, a resistência, o confronto à prática da psicanálise. Aparentemente a teoria psicanalítica estaria preservada, mas sua prática correria o risco de entrar para o anedotário da história em companhia de outras tantas práticas que se voltaram para a compreensão e alívio, parafraseando Julia Kristeva, das velhas e novas doenças da alma.

Sem desejar ser catastrofista, não posso deixar de registrar a possibilidade de que ocorra uma atrofia, ou, em certos contextos, deterioração da prática psicanalítica sem que isto se reflita, profundamente, na teoria psicanalítica. Durante muito tempo pôde a psicanálise se insular, mantendo-se até certo ponto incólume a um ambiente, às vezes declaradamente hostil, outras tantas, acintosamente sedutor. Isto, a meu ver, explicaria formidáveis avanços na teoria psicanalítica em épocas até de grande conturbação social. N ão ignoro que tal insulamento trouxe problemas, em todas as dimensões do projeto psicanalítico, se os mais evidentes foram os institucionais, não menos importantes foram vastos campos de pesquisa que foram abandonados, ou simplesmente ignorados. E, esta é a minha tese central, a psicanálise vive da pesquisa clínica. Nossos grandes teóricos foram dedicados e apaixonados clínicos. A repercussão teórica do trabalho com crianças e psicóticos já é um exemplo suficiente para o ponto que estou repisando. Pensemos o inverso: como avançar - nesses terrenos em que muito conseguimos, mas que ainda engatinhamos - com as novas gerações de psicanalistas sem a possibilidade da experiência cotidiana que muitos de nós tivemos em analisar psicóticos, por exemplo. Curiosamente, não tenho conhecimento de alguma teoria rival que tenha sobrepujado a psicanálise, como costuma ocorrer na história da ciência. Por outro lado, apesar das novas doenças da alma, as tradicionais formas de loucura não perderam sua posição epidemiológica. Tampouco tenho informação suficiente para acreditar que certas práticas sociais - como a proliferação de correntes místicas ou a difusão do uso de drogas - tenham se constituído em formas modernas de se lidar com a tradicional loucura. Minha experiência pessoal sugere mais um controle sintomatológico por meio de psicofármacos como o principal sucedâneo a abordagens psicoterápicas, em particular, a psicanalítica. Interessante seria pesquisar que atitude (lembremo-nos da epígrafe de Wittgenstein), em relação ao paciente psiquiátrico, acompanha tal controle psicofarmacológico.

 

4. De volta às epígrafes. Novos questionamentos

As epígrafes pretendem resumir as questões centrais do texto.

A luta de Fausto para traduzir o evangelho segundo São João é um texto que foi muito apreciado por Freud (in “Totem e tabu”), Wittgenstein (in Da certeza) e, segundo me conta a tradutora - Jenny Klabin Segall - por Marx (no segundo capítulo do Capital). O privilégio, ou pelo menos a importância da ação humana - quer como ação consequente, quer como prática social - talvez, tenha sido desprezada pela psicanálise devido à ênfase dada ao aspecto da ação como descarga. Recordo-me de conferência de André Green (1996) em que procura resgatar o papel da ação consequente, ligada à elaboração. Entretanto, em meu enfoque, o que enfatizei foi a práxis humana, as bases de nossa linguagem comum e da construção de um mundo significativo.

A citação de Bion pede uma maior elaboração, pois não tenho clareza quanto ao que se resiste? Tanto em minha antiga experiência como psiquiatra, quanto na análise de psicóticos, sempre me chamou a atenção o sofrimento, a resistência à mudança, quer para a insanidade quer para a sanidade. O fato de considerar que ambas as mudanças seriam catástroficas, não esclarece muito, embora abra caminho para uma pesquisa acerca de distinções: mudança, trauma, catástrofe. Recentemente - julho de 2009, na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - SBPRJ, tive oportunidade de assistir, durante o Simpósio sobre A Questão da Saúde Mental na Comunidade de Países de Língua Portuguesa, uma mesa sobre catástrofes - naturais e provocadas - onde se discutiu desde secas e tsunamis até guerras, genocídios e atentados terroristas, segundo o ponto de vista da psiquiatria (representado por José Thomé, membro de organizações internacionais voltadas ao estudo de intervenções em catástrofes, como as de Santa Catarina, N ew Orleans etc.), da psicanálise (representada por Celmy Quilelli Correa, que há muitos anos estuda a questão do trauma) e da literatura (representada por Carmen Lucia Tindó Secco, professora de literaturas africanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, que participa de um simpósio permanente sobre literatura e guerra), coordenada pelo presidente da Federação Brasileira de Psicanálise - FEBRAPSI, Claudio Rossi. Os comoventes e competentes relatos me levaram à conclusão que necessitamos de um trabalho em conjunto para uma compreensão mais ampla do tema, tanto do ponto de vista do indivíduo quanto do grupo. Afinal, tanto indivíduos como grupos resistem às mudanças, com igual tenacidade. O que seria promotor de desenvolvimento numa mudança, o que seria traumático, ou o que seria catastrófico? Necessitamos apurar nossa semiologia e nisso a literatura tem uma contribuição singular dada sua capacidade descritiva.

A referência de Wittgenstein, no que diz respeito ao papel da atitude, vem ao encontro de muito do que se discute atualmente sobre neurociências e psicanálise. Ambos os campos de pesquisa são promissores, resta saber como se dará o diálogo, qual o solo comum para linguagens de estruturas tão diversas, lembremo-nos dos trabalhos de Donald Davidson (1980, 1984) a respeito. Que atitudes daí resultarão?

A psicanálise é uma atividade. Surgiu para dar conta do que a ciência tradicional fracassava em compreender, ou afastava de seu campo de estudo. A psicanálise oferece a possibilidade de nos aproximarmos de novas e velhas questões do homem numa outra atitude. A psicanálise sempre se defrontará com resistências, resta-nos investigar, no presente, a quê, por que, com que sentido, ironicamente, nossa cultura se opõe a este formidável instrumento capaz de ajudá-la a sobreviver à barbárie sempre anunciada. Como preservar a teoria psicanalítica da crise da prática psicanalítica que é a sua fonte de vida? Não tenho resposta, mas julgo que esta é a questão com que os nossos tempos nos confrontam.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ney Marinho
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
Rua Sérgio Porto, 153 Gávea
22451-430 Rio de Janeiro, RJ
E-mail: neymarinho@globo.com

Recebido em 27.8.2009
Aceito em 1.9.2009

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ
2 Para uma avaliação da epistemologia de Larry Laudan, assim como o debate da epistemologia anglo-saxã (Popper, Lakatos, Kuhn, Feyerabend, entre outros) sugiro seu livro: Progress and its problems: towards a theory of scientific growth (Laudan, L. 1977).
3 Ver Philonenko, in Kant, Critique de la Faculté de Juger.
4 Temas, respectivamente, das três críticas: Crítica da Razão Pura; Crítica da Razão Prática e Crítica da Faculdade de Julgar.
5 No último Congresso Brasileiro de Psicanálise tive a oportunidade de coordenar uma mesa: Psicanálise e Filosofia - W.R.Bion e o Ceticismo, com a apresentação de trabalhos de Luiz Tenório de Oliveira Lima (SBPSP) e do Prof.
Danilo Marcondes (PUC-Rio), na qual uma leitura cética de Bion permitiu deixar claro o que se entende por uma psicanálise sem fins, na qual a busca desempenha o papel fundamental. Na ocasião apresentei uma breve introdução: Bion, Sceptique malgré lui, utilizando a expressão que o historiador do ceticismo Richard Popkin consagrou ao comentar Descartes, que espero melhor elaborar para uma publicação futura.
6 O papel da cultura como continente aparece também no recente trabalho de N osek (2009) - “O infinito e o corpo: notas para uma teoria da genitalidade” - que entre outras qualidades ilustra a importância do trabalho conjunto com a filosofia, através da criativa utilização, pelo autor, da obra de Lévinas.
7 Importante registrar que isto não é privilégio da psicanálise, sendo comum em países periféricos esse tipo perverso de subemprego: profissionais altamente qualificados sem possibilidade de exercer suas atividades específicas.

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