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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009

 

INTERCÂMBIO

 

Místico, conhecimento e trauma1 2

 

Místico, conocimiento y trauma

 

Mystic, knowledge and trauma

 

 

César Botella; Sara Botella3

Sociedade Psicanalítica de Paris - Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A última parte da obra de Bion se orienta, parece-nos, para preocupações mais místicas. Mas não se trata nem de um retorno ao passado nem de uma regressão. Muito ao contrário, estes trabalhos estão no nível dos trabalhos mais instigantes e desconcertantes de Freud, como “O futuro de uma ilusão” e “Moisés e o monoteísmo”. Bion vai submeter ao crivo da psicanálise esta necessidade essencial do homem, isto é, a necessidade de dar um sentido ao seu mundo.

Palavras-chave: Psicanálise; Bion; Místico; Conhecimento; Trauma.


RESUMEN

La última parte de la obra de Bion se orienta, nos parece, para preocupaciones más místicas.
Pero no se trata ni de un retorno al pasado ni de una regresión. Muy al contrario, estos trabajos están al nivel de los trabajos más instigantes y desconcertantes de Freud, como “El futuro de uma ilusión” y “El hombre Moisés”. Bion va a someter al cribo del psicoanálisis esta necesidad esencial del hombre, o sea la necesidad de dar sentido a su mundo.

Palabras clave: Psicoanálisis; Bion; Místico; Conocimiento; Trauma.


ABSTRACT

It seems to us that the last part of Bion’s work is orientated towards mystical concerns. But it is not a return to the past or a regression. These works, on the contrary, are on the same level of Freud’s most instigating and disconcerting works, like “The Future of an Illusion” and “Moses the Man”. This essential need of man, that is, the need to give meaning to his world will be submitted by Bion to psychoanalysis’s scrutiny.

Keywords: Psychoanalysis; Bion; Mystic; knowledge; Trauma.


 

 

Sublinhar o impacto que representa na evolução da teoria freudiana o desenvolvimento dado por Bion à noção de místico é para nós - que não somos particularmente, como se diz, kleinianos ou bionianos, mas sobretudo vinculados ao pensamento freudiano e aos desenvolvimentos que ele contém em potencial - a melhor homenagem que poderíamos prestar a esse autor.

Na teoria de Bion a noção de místico se situa no ponto de junção do processo psíquico da interpretação analítica com o processo da descoberta científica. Trata-se de um conjunto, o conhecimento, cuja abordagem é inseparável da démarche mística. Realçaremos daí duas ideias centrais. A primeira é que a “observação analítica não pode, certamente, ater-se à percepção daquilo que é, apenas, verbalizado”. A segunda, inspirada em Freud - entre outros - em sua obra “Esboço de psicanálise”, onde afirma que “a realidade permanecerá para sempre desconhecida” e que o ser humano não pode ter acesso ao conhecimento do objeto em si; deste, não pode conhecer senão emanações, qualidades emergentes, características em evolução que repercutem sobre ele enquanto fenômenos; porém, essas qualidades sensíveis e perceptíveis, verbalizáveis ou figuráveis, diferem da “realidade última” do objeto. Existe em todo objeto de estudo uma essência, númeno ou coisa em si no sentido kantiano, que permanece inacessível ao observador, devido às características do aparelho psíquico e de sua incapacidade para apreender fenômenos não sensoriais - a “realidade última”, a “verdade última” do paciente é inacessível para o analista ou do objeto de pesquisa para o cientista. Esta realidade ou verdade última é designada por Bion como o “ponto O” do qual nós não podemos conhecer senão suas transformações ou evoluções. Entretanto, Bion pensa que se deve tentar ir além ou aquém da sensorialidade, do representável, do pensável; e que o único meio de realizá-lo é por intermédio da démarche mística.

De modo similar ao místico, o analista deve manter, segundo Bion, “por um esforço do ego”, uma “disciplina positiva”, “rigorosa”, que consiste em se impor renúncias - os célebres três Não de Bion. Renunciando a qualquer memória, desejo e compreensão, o analista tem acesso ao que Bion qualifica como “ato de fé”. Nestas circunstâncias, ele entende que o essencial do encontro analítico é o esforço do analista para atingir o ponto O do paciente, para “ser somente um com O”, para “ser O”, um “estado de união”. O mesmo se daria em qualquer processo de descoberta científica.

Ao reabilitar a noção de místico, Bion se coloca dentro de uma corrente de pensamento desprezada pela ciência positivista e pelos cientistas. No século XIX, se alguém se interessava pelos místicos era, sobretudo, para criticá-los de forma contundente e não para obter benefícios de sua sensibilidade. Essa época é o momento da grande viragem do pensamento em direção à ciência, e o termo místico - e com ele, em parte, a filosofia hegeliana - é relegado ao domínio do irracional tornando-se sinônimo de obscurantismo.

O impacto da démarche de Bion é, portanto, de grande estatura. Para que possamos medir seu alcance é útil lembrar a definição do termo misticismo no vocabulário de Lalande:

Crença na possibilidade de união íntima e direta do espírito humano ao princípio fundamental do ser, união que constitui simultaneamente um modo de existência e um modo de conhecimento singular e superior por comparação à existência e ao conhecimento normais.

Eis então que o místico é um problema maior e incontornável, não somente para o religioso - seria muito cômodo reduzir o problema somente ao mundo da religião - mas também para o cientista e para o psicanalista, ele que pretende conhecer o “princípio fundamental do ser”. De fato, o problema do místico, enquanto “modo de conhecimento”, é concernente à psicanálise desde suas origens, de forma que nós não podemos compreender sua importância em Bion, e mais globalmente na teoria analítica, senão a partir de seu estudo em Freud.

Freud utilizou o termo místico de uma maneira crítica até as formulações da nova teoria das pulsões e da segunda tópica, nos anos 1920. O contexto científico, que já não era mais aquele do século XIX, e a ciência que acabara de sofrer o impacto, como se sabe, das descobertas de Einstein, devem ter influenciado de forma importante a evolução de Freud. A teoria da relatividade questionando os princípios da física e da mecânica newtoniana, assim como a concepção do espaço e do tempo, não podia passar despercebida àquele que pretendia explicar o funcionamento do psiquismo segundo os modelos da mecânica de Newton: os diferentes movimentos se articulando prioritariamente em funções das pressões do passado, com um encadeamento linear e reversível no tempo. Do mesmo modo que os postulados newtonianos, esta concepção de Freud vai se mostrar insuficiente para dar conta do crescimento da teoria analítica.

Com a segunda tópica, Freud opera o que denominaremos, de forma natural, um descentramento da noção de sistema inconsciente recalcado. Fazendo parte agora do vasto território que é o Id, o Inconsciente terá um papel um tanto relativizado em relação ao que tinha anteriormente. O papel da psiconeurose, obrigatoriamente, enquanto modelo de estrutura organizacional do psiquismo, também se relativizou. A estas mudanças se acrescentam a descoberta por Freud do impacto econômico e dinâmico da neurose traumática, e ao mesmo tempo sua presença tanto na estruturação da própria psiconeurose quanto no seio do funcionamento psíquico normal. O que Freud compreende é que quando as circunstâncias o exigem, o psiquismo tem a potencialidade de se descarregar repetitivamente, sem participação das representações, com um apagamento das tópicas e do funcionamento psiconeurótico que permite que a percepção se transforme em alucinação; é a neurose traumática. A partir de então, uma concepção do místico está acessível a Freud: ele poderá dizer, em 1932, nas “Novas conferências”, que a démarche mística, ela também, é um apagamento da tópica psíquica suprimindo com ela a temporo-espacialidade.

Porém, Freud vai mais longe. Nesse mesmo texto, ele preceitua que os “os esforços terapêuticos da psicanálise incidem no mesmo ponto” que a démarche mística e “que é possível obter-se por determinadas práticas místicas a modificação das relações normais entre os diferentes distritos psíquicos particulares, de modo que a percepção pode conceber relações no Ego profundo e no Id, que de outra forma lhe teriam sido inacessíveis”. Da parte do criador da psicanálise, o alcance a partes que não são acessíveis senão por intermédio do místico, é uma constatação corajosa dos limites de sua disciplina, tal como praticada naquele momento.

O pensar místico funciona, na concepção freudiana, com o equipamento psíquico habitual que, entretanto, sofrendo um apagamento das tópicas psíquicas, aproxima-se da neurose traumática: apenas, em lugar da descarga alucinatória repetitiva de uma percepção dita traumática, o pensador místico teria a singularidade de conferir à percepção uma nova capacidade. Ao tentar compreender esta eficácia psíquica que alcança “aquilo que está inacessível” é que poderemos melhor apreender a démarche mística.

A surpreendente qualidade da percepção evocada por Freud é difícil de precisar porque ele não se ocupou, verdadeiramente, em definir o que seria, na metapsicologia, o conceito de percepção; ele se preocupou essencialmente com o conceito de representação, de palavra e de coisa. Em todos os domínios, a noção de percepção comporta certa ambiguidade incluindo uma função, o ato pelo qual se exerce esta função e seu resultado. Freud não escapa a esta ambiguidade; entretanto, ao longo de sua obra, associa a percepção à consciência sob a forma de um sistema, o Pré-consciente-consciente, que ele situa na periferia do aparelho psíquico; um sistema dotado de uma energia livre, ou pelo menos móvel, e oposto aos sistemas dos traços mnemônicos e das representações que são o préconsciente e o inconsciente. Por outro lado, quando em metapsicologia queremos abordar a percepção separadamente do sistema Pré-consciente-consciente, devemos concebê-la como aquilo que se situa topicamente fora das representações; ou, ainda, como aquilo que escapa à dinâmica dos investimentos de representações e, por consequência, igualmente à dinâmica da psiconeurose. Somos obrigados a defini-la não por suas qualidades, mas pelo que ela não é, isto é, pelo negativo. Do ponto de vista do analista, percepção em relação à realidade permanece “sempre desconhecida”; ou, dito de outro modo, ela não pode ser definida senão em função de um real inteiramente desconhecido.

Ao mesmo tempo, devemos levar em consideração que em o “O ego e o id”, Freud considera a alucinação “indiscernível da percepção” o que, aparentemente, é uma evidência; porém, ao fazermos uma reflexão, tal afirmação se revela de certa complexidade, já que uma alucinação pode ser sentida como “real” pelo sujeito, sendo para ele perfeitamente discernível do que considera habitualmente uma percepção. O que nos interessa aqui é que a equivalência afirmada por Freud entre alucinação e percepção é válida nos dois sentidos, e sobretudo acentuar que, para o analista, a percepção não faz sentido senão por referência e em contraste com a alucinação e a representação.

Existe uma dinâmica representação-percepção-alucinação que nós apenas começamos a entrever. Diante de qualquer percepção o funcionamento do psiquismo é tal que, imediatamente, ele se empenha em lhe conferir um sentido, conforme o conjunto dos sistemas de representações e da psiconeurose, a fim de integrá-la. Queremos dizer que a partir do momento em que uma percepção se apresenta, o psiquismo tenta imediatamente, sem demora, vinculá-la aos sistemas significantes; se isto não ocorre a percepção, topicamente sem representação, com tendência a provocar o apagamento das tópicas (da psiconeurose), se encontraria dotada de uma potencialidade traumática e de uma qualidade alucinatória. A percepção, do ponto de vista do analista, é por essência de natureza traumática. Devemos explicar essa afirmação. Tentamos mostrar anteriormente que, na realidade, a neurose traumática não é uma simples repetição alucinatória de uma percepção dita traumática, e sim a consequência de uma desorganização psíquica, de um apagamento das tópicas que se produz quando os sistemas de representações se mostram incapazes de dotar a percepção de sentido. Produz-se o que nós qualificamos de não representação, um estado de não investimento, um brutal desligamento de energia. Freud concebeu o estado de angústia, hilflosigkeit, como um estado extremo caracterizado fundamentalmente pela falência do psiquismo em formar uma representação da angústia; é a não representação e não a percepção da ausência que desorganiza a mente. Secundariamente, e pouco a pouco, o psiquismo poderá preencher o “vazio” da não representação e ligar a energia por intermédio da repetição alucinatória de uma percepção investida progressivamente de um sentido, eventualmente de ausência.

Em metapsicologia a percepção possui, então, toda sua ambiguidade de função, de ato, de resultado; mais precisamente, devemos considerar uma dinâmica trabalhando permanentemente entre um polo traumático e o resultado de um trabalho de transformação agindo sobre este; ela é para ser vista como uma das dinâmicas possíveis de um “organismo vivo” sujeito às leis complexas, cujo funcionamento espontâneo conduziria, diante do mesmo problema e sem a intervenção do trabalho da prova de realidade, à satisfação alucinatória do desejo. A percepção “é o que sobra” quando a dinâmica da satisfação alucinatória perde cidadania no psiquismo; ela é o que se produz quando a energia não pode se servir do caminho imediato da descarga alucinatória e/ou traumática, nem daquilo que Freud denomina, em A interpretação dos sonhos, de caminho alternativo, a via mediata de investimento das pequenas quantidades ligadas da representação e do pensamento. A percepção seria aquilo que não sendo nem representação nem alucinação é investido pelo psiquismo como separação indispensável entre elas. Este investimento se faz menos em função de um princípio de realidade, pretensamente objetivo, do que em função de um principio de realidade, como diz Freud, modificação do princípio do prazer, ainda tributário dos desejos inconscientes do id e do superego, impregnado dos embates conflituais intrapsíquicos, notadamente aqueles da neurose infantil. Um princípio que força o psiquismo a criar simultaneamente duas qualidades específicas, complementares e opostas, a representação e a percepção, as quais provocam uma dupla cesura na indiscernibilidade original percepção-alucinação, uma dupla distinção necessária para a manutenção da diferenciação com a alucinação. Essas duas qualidades psíquicas tão fundamentais - a representação e a percepção - constituem duas dinâmicas cujo equilíbrio remete ao exercício particularmente delicado e complexo do trabalho de prova da realidade, que nós começamos a estudar em outra parte.

Agora podemos apreender melhor o problema do místico. O estado místico seria um estado psíquico particular que permitiria uma aproximação ou apreensão da zona de não representação, de não investimento da mente. Trata-se de uma solução original: o místico, seja ele do Extremo Oriente - um sufista -, ou um de São João da Cruz prescrevendo o desapego das sensações, do pensamento, dos desejos, das lembranças, isento de toda representação e de todo investimento, transforma o mundo da perda e o sentimento de terror que a ela se liga, em sentimento de plenitude, em estado de união. O trauma do não investimento e da não representação é evitado em proveito de um estado alucinatório de felicidade. O místico, visto pelo vértice do modelo da satisfação alucinatória do desejo, adota a saída alucinatória da neurose traumática - mais adiante, veremos como -, tendo como pano de fundo a busca de uma verdadeira modificação de ordem psíquica, uma evitação do conflito, da sexualidade e do trauma infantis - o que é evidentemente incompatível com a prática analítica.

Que relação tem isto com a prática de Bion? É preciso não fazer confusão entre o estado de união místico, tal qual acabamos de descrever, e a preocupação de Bion em atingir a “verdade última”. Talvez por associar com frequência sua prática e o modelo místico, Bion corra o risco de nos induzir a certo erro quanto ao pensamento que ele quer transmitir. Por outro lado, desde que não nos deixemos fascinar pela grande sedução da ideia de êxtase, de união - seja com Deus, com o universo, consigo mesmo ou com o paciente -, podemos compreender que a prática mística não é, quer nos parecer, outra coisa senão uma forma particular de funcionamento psíquico, o funcionamento regressivo. N esse sentido podemos encontrar algumas raras passagens em Bion que se exprimem melhor em termos de regressão que de místico, porém, coisa curiosa, sem as aproximar: “É preciso notar”, dirá ele, “que a submersão no analista, de lembrança, desejo e compreensão parece não somente ir ao encontro do procedimento corrente, mas que está próxima também daquilo que espontaneamente aparece no paciente severamente regredido”. Bion será ainda mais preciso, no momento em que conclui: “Perigos reais (para o analista) aí estão associados; daí que o procedimento aqui esboçado é recomendado apenas aos analistas cuja própria análise foi conduzida bastante profundamente!”.

Nossa opinião é que mais do que “perigos reais para o analista”, o que está em jogo são angústias de ordem particular contra as quais a própria análise do analista, por mais aprofundada que tenha sido, não pode verdadeiramente prepará-lo, porque a organização da sessão e da economia do trabalho analista-analisado são justamente uma proteção para este último. Essas angústias são fenômenos de inquietante estranheza que se desencadeiam no momento da aproximação da via regressiva do funcionamento psíquico, isto é, a regressão formal do pensamento. Contra a ameaça da perda do sentimento de alteridade gerada por essa forma de regressão, o analisando é relativamente bem protegido pela presença nele da regressão libidinal inerente à transferência que alimenta o trabalho das representações e da memória, com o reforço dos investimentos libidinais de objeto que conhecemos. N o analista, ao contrário, não acontece essa proteção mesmo que ele abandone, ou, como diz Bion, renuncie à memória, ao desejo e à compreensão. Com efeito, se nas condições econômico- dinâmicas habituais da sessão - facilitando particularmente a regressão formal diurna do pensamento, estando a percepção sensorial parcialmente afastada como por ocasião do adormecer, e o psiquismo momentaneamente privado do arcabouço temporo-espacial e do pensamento racional - a regressão se assentar no analista até banir os investimentos das representações e das sensações, aí sim se pode produzir nele um apagamento dos limites do ego. N ão é senão nesses momentos e a esse preço que o psiquismo pode atingir um estado de regressão formal do pensamento e, por meio dele, das qualidades de percepção “de outra forma inacessíveis”.

Sabemos que as capacidades de regressão formal do pensamento são mais ou menos desenvolvidas segundo as diferentes estruturas psíquicas; elas podem estar ausentes em certos funcionamentos psicóticos e, sobretudo, operatórios. No que diz respeito à démarche mística, já dissemos acima que, por intermédio da regressão, face ao mecanismo traumático da não representação, o místico “opta” pelo investimento alucinatório de uma vivência de união sublime com um ser idealizado, Deus ou o universo. Do nosso ponto de vista de psicanalista, esta vivência de união não pode ser outra coisa senão uma elaboração do efeito do desaparecimento do sentimento de alteridade, desaparecimento inelutavelmente concomitante à regressão formal do pensamento, quando esta se torna extrema. A energia liberada pela perda do investimento de objeto tendente à dor ou à alternativa traumática será dominada no místico por meio de uma transformação em seu contrário: em vez de uma percepção dolorosa repetitivamente alucinada, produz-se o florescimento da energia por sua transformação em feliz estado alucinatório de união com um objeto imaterial idealizado, substituindo o investimento do objeto real e de si mesmo. Trata-se de um mecanismo de recusa do luto pelo objeto com resolução alucinatória, tal como se pode observar nos lutos patológicos, em particular na criança.

Mas, então, quando Bion insiste sobre o sentimento de união, o que se deve entender por esta formulação? O problema não é simples e devemos tentar sua apreensão de forma precisa. No contexto teórico de Bion, “estado de união” remete simultaneamente às noções de místico e de gênio; essas duas entidades ou conceitos são considerados por ele idênticos, particularmente em suas relações com o grupo. Se, indiscutivelmente, não podemos senão concordar com Bion pela admissão de uma base comum para os dois, tomando como ponto de partida, em nossa opinião, a regressão formal do pensamento, não é menos verdade que divergências fundamentais ressaltam nos respectivos resultados de suas démarches, os quais parecem se opor.

Visando aprofundar a questão, uma passagem pela obra de Freud faz-se novamente necessária. De 1932 até o fim, a teoria freudiana segue uma sutil evolução e estamos ainda longe de ter absorvido toda riqueza que ela contém. Essa evolução teria permitido a Freud, em 1938, repensar a noção de percepção revelada pela prática mística e capaz de apreender “relações no ego profundo e no id”, como “autopercepção obscura do reino fora do ego, do id”. Esta famosa frase tão frequentemente citada implica que Freud, em vez de uma união - para o crente, com Deus, ou, para outros místicos, com o universo - prefere compreender o fenômeno místico em termos unicamente intrapsíquicos de “autopercepção”. Seria preciso tomar essa definição ao pé da letra e conceber o resultado da regressão do pensamento sob a forma de uma autopercepção do id? Temos a impressão de que nesse caso é preciso dar livre curso às hipóteses e, sendo assim, supomos que o emprego do termo id era provavelmente a única maneira disponível nos conhecimentos de Freud em 1938, para exprimir em linguagem metapsicológica sua compreensão da prática mística. Parece evidente que ao utilizar o termo id, Freud queria não somente reduzir o problema a um fenômeno puramente intrapsíquico, mas também vinculá-lo ao que, no aparelho psíquico, não é nem sistema pré-consciente e processos secundários, nem inconsciente dinâmico e processos primários; portanto, compreendê-lo independente de tudo aquilo que no psiquismo é estruturado e organizado. Para ele, do que pudemos compreender, a démarche mística remete a zonas de desorganização psíquica, a uma zona “obscura” autopercebida pelo que não são nem os órgãos habituais sensoriais nem seus equivalentes intrapsíquicos; com efeito, na mesma data de julho de 1938, ele escreve no “Esboço de psicanálise” que “O id isolado do mundo exterior tem seu próprio universo de percepção. Pensamos que Freud tenta dessa forma abordar o estudo de uma percepção diferente daquela do sistema Pré-consciente-consciente, um estado no limite do psíquico apto a conter o que, atualmente, condensamos sob o termo de não representação.

Em uma recusa da perda, como dissemos, o místico transforma a dor do não objeto em um estado de união alucinatória, o terror em êxtase. O gênio, ao contrário, seria aquele que, reconhecendo o trauma e a dor, enfrenta o sentimento de inquietante estranheza despertado pela aproximação da perda de todo investimento; ele tenta dessa forma “perceber obscuramente” no domínio do não objeto e da não representação, e por seu intermédio o que poderia lhe dar figura e sentido. Se Freud fala de “autopercepção”, é talvez porque com o desaparecimento do investimento de objeto e da alteridade inerente à regressão formal do pensamento, o gênio que “opta” por permanecer observador sem se diluir no sentimento de união mística, adquire a capacidade de “perceber” o observado “nele próprio”. Mais exatamente, quando a alteridade se apaga, o ato de perceber e seu resultado tornam-se indissociáveis, observador e observado indistintos, sem que por esse fato se produza um “estado de união”. Trata-se de “autopercepção” de uma inteligibilidade sem investimentos objetais e narcísicos, sem processos primários e secundários, como que suspenso entre eles; uma inteligibilidade sem representações, uma janela sobre o desconhecido. Aí onde o “estado de união” é afastado em proveito da autopercepção, o caminho se abre à descoberta. Por um trabalho de figurabilidade diurna o observador pode então figurar, dar sentido, colocar em representação o que até então estava nele como pertencente ao domínio da não representação - Bion falará da “verdade última” do objeto. Assim, parece claro que a prática analítica não pode, em nenhum caso, ser diretamente ligada àquela do místico, pelo menos do modo como nós concebemos esta última; em compensação, em certos momentos e em vários pontos ela pode ser parecida com a démarche do gênio.

Pareceu-nos indispensável lembrar o problema da relação de Freud com o místico e sua evolução para refutar a ideia, algo simplista, que reduz a importância do místico na teoria de Bion a uma espécie de hobby particular, a uma consequência das influências recebidas em sua infância na Índia, ou a seu interesse pelos místicos - sobretudo os sufistas, nos parece - ou ainda ao impacto que teve em Londres, após a guerra, uma personalidade como Krishnamurti. Pensar que a força do místico na teoria bioniana seja consequência do fato de que Bion tinha um espírito místico, não diminui em nada a importância do problema levantado por sua obra das relações da prática analítica com a démarche mística. A ideia de que Freud era um neurótico também não serviria para desacreditar suas descobertas sobre a neurose. É importante admitir que o papel que Bion dá ao místico no seio de sua teoria, situa-se em linha direta com a evolução da obra de Freud. Bion efetua, também, um retorno a Freud.

Dito isso, reconhecemos igualmente que Bion preconiza uma prática analítica que se distancia da de Freud. Na concepção de Freud, o psiquismo do paciente é governado pela pressão de sua memória reprimida, por seus desejos inconscientes, e o tratamento psicanalítico é definido pela neurose de transferência e sua vinculação com memórias e desejos inconscientes contratransferenciais. Bion, em contraste, pensa que “lembranças e desejos são iluminações que destroem a observação”; ou, ainda, que “a importância do Inconsciente não deve nos cegar”; afirmações que testemunham sua vontade de não ocultar a diferença com Freud. Ele falará de sua prática analítica como uma análise “diferente” e “complementar”, criando tal afastamento teórico-clínico em relação a Freud que cada analista é obrigado a se interrogar e a se posicionar: a prática freudiana e a bioniana são realmente “complementares”, como pensa Bion? É apenas uma questão de profundidade, ou de vértice? Aqueles que se baseiam na ideia de que a prática analítica só pode ser aquela que revela o Inconsciente têm condenado globalmente o pensamento de Bion.

Na realidade, o problema com o qual nos confronta o pensamento bioniano ultrapassa, e muito, a questão de sua prática analítica. O impacto teórico é mais fundamental do que o de outros teóricos em função da importância relativa do inconsciente reprimido na obra de Bion. Mesmo se pensarmos que esta relativização é apenas a consequência inevitável do descentramento do Inconsciente operado pelo próprio Freud, isto não impede que a teoria de Bion contenha os fundamentos de uma crise da teoria psicanalítica no nível da noção de interpretação, a qual é definida por ele sobretudo como “um acontecimento atual em uma elaboração de O que é comum ao analista e ao analisando”, do que como o meio de acesso a um desejo reprimido localizado no passado. Assim, Bion nos confronta com a dificuldade de continuar a pensar a psicanálise em função do que até então podia ser considerado um só paradigma.4

Entendemos por este paradigma, os seguintes quatro pontos significativos: em primeiro, o desejo conflitual, inconsciente e reprimido que, mesmo descentrado, permanece como ordenador; em segundo, o fato de que ele se origina no passado; depois, vem a noção de causalidade; e, em quarto, a complementaridade da reversibilidade da equação sintomaconflito no passado, de onde o papel primordial da memória e do retorno da lembrança. Esses quatro pontos organizam a interpretação e fundam o paradigma freudiano. Ele está condensado na célebre sentença que abre e fecha a obra de Freud: em 1895, ele declara: “a histérica sofre de reminiscências”; ele a retoma, mais de quarenta anos depois, em 1937, quando descobre que, como a histérica, o delirante também sofre de reminiscências. Eis aqui a unidade marcante da obra de Freud.

Nesse mesmo texto de 1937, algumas páginas antes, Freud chegou a certa moderação sobre o alcance desse modelo, moderação que é simultânea ao descentramento do Inconsciente dinâmico. Ele afirmará que o retorno de uma lembrança do passado não é sempre indispensável: a convicção que se destaca de uma construção pode alcançar o mesmo resultado que a rememoração - complexidade incessante tão notável quanto a unidade de seu pensamento. Inserida nesse sulco, a obra de Bion continua a interrogar o paradigma freudiano e confirma sua insuficiência, já suspeitada pelo próprio Freud, para dar conta de toda a extensão do psiquismo.

Quer sejamos bionianos ou não, a verdade é que se torna cada vez mais difícil sustentar uma concepção do funcionamento psíquico limitado unicamente às tópicas de Freud e à dinâmica do recalcamento das representações como decorrência. Outras dinâmicas podem ser tomadas em consideração, sem que por isso o edifício freudiano arrisque ruir - do mesmo modo como a teoria einsteiniana não destruiu a de Newton. É da natureza do pensamento de Freud o expandir-se permanentemente. Falaríamos, naturalmente, de um pensamento em expansão que corre o risco de definhar se abandonar o espírito para se fixar na letra. Bion o percebeu com acuidade. Finalizamos, rendendo-lhe homenagem com uma última citação:

O domínio mental não pode ser contido no quadro da teoria analítica. Esse é o sinal de uma teoria defeituosa, ou o sinal de que os psicanalistas não compreendem que a psicanálise não pode ser contida de maneira permanente no seio das definições que ela utiliza.

 

 

Endereço para correspondência
César Botella e Sara Botella
[Sociedade Psicanalítica de Paris SPP]
11 rue Jean de Beauvais
75005 Paris, France
E-mail: cbotella@club-internet-fr

Recebido em 20.8.2009
Aceito em 23.9.2009

 

 

Tradução: Uraci Simões Ramos
Revisão: Sandra Maria Gonçalves
1 Em homenagem a W. R. Bion. Texto redigido a partir de uma exposição oral apresentada por um de nós na ocasião da Jornada consagrada a Bion.
2 In W. R. Bion. Une théorie pour l’avenir. Paris: Éditions Métailié, 1991, p. 120-131.
3 Membros da Sociedade Psicanalítica de Paris SPP.
4 Utilizamos o termo paradigma no sentido de Thomas Kuhn: um conjunto de convicções partilhadas pelos cientistas de uma disciplina.

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