SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.43 número3 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009

 

RESENHAS

 

Resenha: Cecilia Luiza Montag Hirchzon1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - São Paulo
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae - São Paulo

 

 

Autor: Decio Gurfinkel

Editora: Escuta/Fapesp, São Paulo, 2008, 336 p.

Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe

Quando o tema “sonho” parecia ter se esgotado, quando tem sido predominantemente trabalhado em seus aspectos funcionais ou transferenciais, eis que… aparece esta obra original de Decio Gurfinkel, resgatando e recriando em torno do “real caminho para o inconsciente”.

Partindo de farta pesquisa bibliográfica, o autor vai incluindo muito do que existe sobre o assunto no panorama mundial contemporâneo, ao mesmo tempo em que realiza um levantamento minucioso de tudo o que se tem escrito entre nós.

No decorrer do livro, Decio se dá a conhecer através de dados autobiográficos e de sonhos próprios, trazendo-nos também sonhos ouvidos em sua clínica e vários aportes que evidenciam uma vasta cultura psicanalítica. Um conhecimento diversificado de literatura, poesia, filosofia, mitologia, música, cinema e campos afins, colabora para ilustrar e enriquecer suas contribuições.

O estilo da escrita, embora denso, é claro, transitando continuamente da teoria à prática e vice-versa. A sequência em que vão sendo considerados os vários assuntos é frequentemente precedida por questões que instigam a busca de respostas.

No campo teórico, o autor, ao mesmo tempo em que esclarece os conceitos, circunscreve- os, situando-os no contexto mais amplo, o que facilita o reconhecimento de suas semelhanças e diferenças. Entre as várias abordagens, privilegia as de Freud e Winnicott: estabelece diálogos entre ambas, polemiza e revitaliza as questões, levando o leitor a refletir e se posicionar diante de cada uma.

Ao longo do livro, Decio vai tecendo pontos de intersecção e rotas alternativas entre os vários elementos do processo onírico. Salientando o conceito de “transicionalidade”, infere que desde 1900 (“A interpretação dos sonhos”) o sonho é um intermediário entre o sono e a vigília, posição para ele, central e ao mesmo tempo oculta na teoria de Freud.

A sua hipótese básica é que é nas funções intermediárias que se encontra a raiz do trabalho de simbolização do sonhar, sendo que por sua vez, a simbolização dá origem ao sonhar dentro do processo analítico.

O autor parte da afirmação de que para estudar o sonho é indispensável que se conheça o sono - o correspondente do holding para o sonho. Ao ampliar o objeto de estudo para o processo onírico como um todo, considera básicas as intermediações entre sono, sonho e vigília. O “gesto”, entendido como ação simbólica (“poesia do ato”), que também implica em transformação, é outro elemento indispensável para esclarecer a atividade simbolizante do sonhar. O entrejogo - transicionalidade - entre estes elementos, pouco observado nos trabalhos sobre o sonho, revela uma contribuição singular de Decio.

O campo intersubjetivo, que aponta para a função do outro na constituição do psiquismo, às vezes entendido como ausente na atividade do sonhar, também é estimado por Decio como determinante enquanto função intermediária. O isolamento do sono/ sonho, expressão da capacidade do estar só, articula-se paradoxalmente com o outro e ao mesmo tempo em que se isola, também espera se comunicar e ser encontrado.

Recorrendo a Winnicott, acrescenta aos tradicionais mecanismos do sonho, o papel de reorganização da função onírica na relação da experiência cotidiana com o passado e o futuro, proporcionando “a experiência da continuidade do ser” e portanto, a “própria essência da experiência de um si mesmo”.

Para Decio é crucial ressaltar que: “se o estudo do sonho enfatizou o papel do inconsciente recalcado, o estudo do sono já coloca, desde o começo, a problemática do Eu.” Despertar e adormecer, momentos de transição entre estados fundamentais da experiência humana, expressam um ir e vir de um estado integrado a um não-integrado (o Fort-Da do “eu sou” ao puro estado de Ser”).

Os rituais do adormecimento que fazem parte do cotidiano saudável do processo de adormecimento, na neurose obsessiva apenas acentuam fortemente a delicadeza desta passagem. Nesta transição ganha relevo a importância do objeto transicional, pois a perda da consciência pode também ser associada à perda do objeto. Sem a certeza de seu objeto, o sujeito fica à deriva.

“Talvez o mais temível sejam justamente as passagens: da vigília para o sono, do sono para a vigília”. A preparação para dormir recria cotidianamente um enquadre para o sonhar, análogo ao ritual da análise.

Baseando-se fundamentalmente em Winnicott, o autor assinala que o sonhar sempre é uma experiência psicossomática (por oposição a uma atividade mental). Embora seja difícil afirmar que há pessoas que não sonham, alguns autores relacionam a ausência de sonhos à somatização, sinalizando uma desorganização circunstancial do psiquismo.

Preocupado com o “colapso do sonhar”, Decio destaca a necessidade de deslocar o foco do sonho enquanto objeto (seu conteúdo e interpretação) para o sonhar enquanto função. Quando a função onírica está preservada é possível colocar-se em ação a atividade simbolizante do psicossoma. Sob esse ponto de vista, traz a questão do uso dos psicotrópicos, alertando para o perigo dos medicamentos induzirem à redução do psíquico e portanto, do potencial de simbolização.

A comparação do sonhar com o criar enquanto dimensão estética é também assinalada, sustentando ambos a condição de paradoxo entre a solidão essencial e a dependência ao outro; o máximo de holding e as melhores condições para o informe.

Se para Freud o sono pode ser entendido como uma fuga da realidade ou mesmo como uma volta para o inorgânico, para Winnicott “dormir é a busca positiva do reabastecimento do si-mesmo através da comunicação com os objetos subjetivos”. A paz procurada no adormecimento não tem nada a ver com uma tendência em relação à morte. N a verdade o que se busca é uma restauração da “continuidade do ser”.

 

Dormir e sonhar

A transposição de alguns elementos da fisiologia do sono para a clínica, revela recursos especialmente úteis na pesquisa e discriminação de estados alterados de consciência.

A relação entre sonhar e dormir também é abordada sob o ponto de vista psicofisiológico, referindo-se, o autor às pesquisas que tem corroborado certas propostas psicanalíticas. A título de ilustração: os vários tipos de sono (sono rápido e sono lento), relacionados a níveis diversos de inconsciência (do mais superficial ao mais profundo) tem sido associados à presença/ ausência de sonhos desde Freud.

À medida que a imobilidade é considerada parte integrante essencial do processo onírico, os sobressaltos ou “pequenos espasmos” funcionam como “despertadores motores” autoativados como defesa diante da angústia despertada pelo sonho. A sensação de queda às vezes é acompanhada de “visões do semi-sono”, traduções de pensamentos em linguagem imagética, costumam se manifestar no momento do adormecimento. O sonambulismo, o sonilóquio, o pesadelo e o terror noturno que podem ser conotados como “passagens ao ato”, levantam diferentes questões e prenunciam um fértil campo de investigação.

 

A gestualidade e o psicanalisar

Ao abordar a “gestualidade” do sonhar, Decio esclarece: “Uma psicanálise do gesto nasceu também de uma revisão crítica do conceito de acting out, que nos levou a conceber a situação analítica como um teatro de transferência.” (Gurfinkel, D., 2008, p. 127). A gestualidade, considerada fundamental por Winnicott na constituição da subjetividade, ganha para o autor, lugar de “fundamento”.

Focalizar o lugar da ação na situação analítica conduz a questões técnicas, que implicam, entre outros aspectos, na consideração do papel do corpo no setting psicanalítico: O psicanalista se interroga: “como repensar o lugar do agir e do gesto durante o tratamento…?” (Gurfinkel, D., 2008, p. 130).

Para ele “o setting original da psicanálise deve ser concebido como análogo à situação sono-sonho”. Levando em conta os três processos básicos do desenvolvimento emocional segundo Winnicott (personalização, integração e realização), também inerentes ao sonhar, propõe que se considere um “quarto” processo: a “gestualização”, colocada à prova no estudo do sonhar.

Para o autor “se a inação caracteriza o dormir, a gestualidade é a marca do sonhar”.A passagem ao sono não é uma passagem ao ato, mas sim, uma passagem ao gesto. Quando o sonho tem seu espaço resguardado, não é a atuação que sobrevem. A quebra do habitual desperta o self adormecido, convidando-o para uma viagem ao viver criativo, que emerge por desfocalização da atenção, reconfigurando sentidos. O que anima o sonho é a força vital. Quanto mais avançamos na viagem do sonho, mais nos dirigimos ao território do informe e da solidão essencial.

De acordo com Winnicott, o sonhar é análogo ao viver. Para Decio “o sonhar põe em movimento o viver do sujeito, dando voz ao gesto que nasce no poço profundo do si mesmo”.

São esses em síntese alguns pontos de destaque de Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe, livro que recomendo com insistência. Para além do encantamento do tema e da escrita, para além do estabelecimento de relações entre “dormir, sonhar e psicanalisar”, sua leitura enfatiza a ressignificação do sonho enquanto paradigma da situação analítica.

 

Referências

Gurfinkel, D. Por uma psicanálise do gesto. In Volich, R.M. et al. Psicossoma IV: corpo, história, pensamento.São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.        [ Links ]

 

 

1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons